1 de maio de 2012

ESQUINAS CULTURAIS


Nei Duclós

Várias vezes o que estou lendo ou vendo conflui para um mesmo ponto. Aconteceu com um onto impressionante de Kafka sobre uma cantora, chamada Josefina, que se destacava numa comunidade pouco musical. Kafka nasceu na Boemia, hoje República Tcheca, mesma região do compositor seu contemporâneo, Gustav Mahler. No mesmo dia em que estava lendo o conto vejo na TV Cultura de São Paulo um documentário sobre Mahler que diz exatamente o contrário: que a riqueza musical da região influiu decisivamente nas sinfonias do grande compositor erudito.

O maestro britânico Michael Thomas foi até a cidade onde o gênio se criou e mostra como a casa dele, em cima de uma taverna da família judia, ficava a poucos metros da grande praça onde pontificavam as retretas, os dobrados das bandas militares. Embaixo do piso onde morava, na taverna, todo tipo de musica popular impregnava o ambiente. Havia também a influência da Igreja, onde Mahler entrou em contato com compositores sacros como Haendel. O programa mostra como tudo isso confluiu para a Sinfonia Número 1, que soma vários momentos de motes populares e hinos marciais na elaboração da obra.

Lembro então que Kafka trabalha exclusivamente no terreno da linguagem, como todo gênio, e não se deixa levar pela percepção que temos da realidade. O povo pouco musical que ele fala pertence ao conto, à literatura e talvez tenha algum vínculo com o povo da Boemia, mas não é ele. O objeto de observação de Kafka é uma criação literária e não tem identificação com o histórico regional. Assim, o autor fica livre para contrapor a platéia imaginária à sua personagem, a artista que cantava e assobiava e se sentia superior ao povo que a idolatrava.

Ao mesmo tempo, notei mais uma esquina cultural, essa confluência que tanto me impressiona: a identificação profunda entre a obra de Mahler e a obra de Nino Rota, o genial compositor dos filmes de Fellini, autor daquele fraseado inesquecível que define O Poderoso Chefão, de Coppola, entre outras obras primas. Me pareceu ser Rota um discípulo de Mahler, ao impregnar-se de suas estruturas musicais, suas elaborações de razíes sonoras, sua solenidade poética, entre outras sintonias.

Certa vez notei que o genial vagabundo criado por Chaplin tinha bebido nas águas de um conto de John  Reed, o grande jornalista americano que cobriu a revolução Russa. E que Sartre tinha influenciado Woody Allen num filme. E que o grande filme de Samuel Fuller, Shock Corridor, sobre alguém que finge loucura e é internado num hospício mas acaba também enlouquecendo,  é baseado no romance que gerou anos mais tarde outro filme, Um estranho no ninho, de Milos Forman.

Gosto de seguir a pista das confluências, influências e até mesmo as cópias pura e simples. A criação é um mistério para muita gente, que confunde invenção com reprodução. “Criamos o produto”, me disse um empresário. “Meu filho foi ao Japão e me enviou o desenho por fax”. Picasso falava que roubou a arte africana quando rompeu com suas fases tradicionais na pintura.   Roubar é um verbo que exerce fascínio. As pessoas dizem até de brincadeira. Compartilhar é bem mais simpático, mas menos celebrado, apesar de ser a ação ideal para encontros agradáveis nas esquinas culturais.


RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Veneza, cenário do filme de Luchino Visconti,que usa Nino Rota e Mahler na trilha musical.