Aconteceu em Nova York, no início do século 20. Milhares de crianças, com o rosto borrado de carvão, cruzaram a cidade gritando e exibindo cartazes com os dizeres: “Queremos ir para a escola, não para as minas”. Na liderança da passeata, firme, do alto dos seus 93 anos, aquela que era considerada pela polícia “a mulher mais perigosa da América”, conhecida como Mother Jones. Pessoa marcada, de oratória precisa e poderosa, foi presa várias vezes como agitadora, numa época em que as reivindicações dos trabalhadores, que não tinham salário nem jornada de trabalho fixos, eram consideradas atos de traição à Pátria, em plena véspera da participação americana na guerra na Europa.
O que fazia nas ruas uma anciã, envergando longo vestido preto, com sua carranca herdada de suas origens irlandesas e de suas tragédias pessoais, como a morte família por motivo de doença e a perda de todos os seus bens num incêndio? Por que não se recolhera à cadeira de balanço e ao tricô, como queriam seus inimigos? Por que insistia em esfregar nas fuças da América o crime que se cometia contra a infância pobre, quando se gerava uma cidadania despossuída e assim se condenava o futuro do país? Por que Mother Jones não ficou vendo tudo assustada, pela fresta das janelas?
Porque, entre outras coisas, ela sabia dos fatos, tanto pela vivência e pelas reportagens da imprensa combativa da época, onde se destacava John Reed, o maior repórter do mundo, que escreveu livros sobre o México Rebelde, a Revolução Russa, o front europeu da I Grande Guerra e o massacre dos mineiros nos Estados Unidos. No seu livro “Eu vi um novo mundo nascer” ele cita a figura de Mother Jones, que com suas milhares de crianças foi até as portas do presidente Theodore Roosevelt, que se recusou a recebê-la. Hoje ela é título de revista alternativa importante. Deveria virar um grande filme. Veríamos aquela senhora idosa à frente da infância maltratada a meter o dedo nas fuças dos marmanjos bem nutridos.
Mother Jones encarna a esperança na idade em que tudo fica claro depois de tanto sofrimento. O grande evento da longevidade não é o que aparece no espelho, mas essa lucidez que atrapalha o trânsito e faz a Terceira Idade vociferar contra a injustiça. É o recado terminal de quem não tem mais nada a perder e ainda precisa enfrentar a retaliação alheia. Hoje, quando se vive além do permitido numa era de altos custos e nenhum sentimento, as cobranças se sucedem. Época em que não se deve esperar reconhecimento e intensificar a presença quando todos dão as costas.
Churchill achou que seria eleito depois de tudo o que fez na II Guerra. Foi derrotado nas eleições, apesar de ter sido o líder que venceu os alemães. Resolveu colher os louros, acabou com um maço de urtigas. É constrangedor aguardar homenagens. Mais saudável é enxergar a indiferença dos que ainda, em tese, viverão por muito tempo. Não existe nada de mais desumano do que a comiseração tardia. É preferível ser xingado, assim se faz justiça a quem continua vivo. Ou temido, como acontecia com Mother Jones.
Se alguém muito antigo é tratado sem aquele olhar bovino de afetividade forjada, ele se sentirá muito melhor. Num ambiente de sinceridade, quando vier alguma homenagem, terá muito mais impacto e será mais benéfico. Mas vivemos na época dos corretos, onde tudo foi substituído por sua representação, pela falsidade das intenções e resultados, pelas aparências. Ao mesmo tempo em que se fala tanto em proteção aos animais, respeito aos idosos ou defesa das crianças, sobram exemplos de exploração infantil, comercialização predatória da fauna silvestre e jogo bruto do abandono dos velhos nas ruas, asilos ou quartos dos fundos.
A grande solidão hoje da Terceira Idade é o desperdício de uma chance de recuperarmos os paradigmas perdidos. A vivência por muitas décadas é o testemunho vivo do que se foi, especialmente no Brasil, onde se somaram as mudanças radicais da era pós-industrial e o longo regime de exceção, ainda vigente, apesar do discurso recorrente sobre democracia.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Mother Jones em Nova York na passeata que organizou com os filhos dos mineiros.