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31 de março de 2012
COMÉDIA ROMÂNTICA: TRUMAN CAPOTE REFILMADO
Nei Duclós
Mulher solteira e independente não quer compromisso amoroso e só se relaciona por meio do sexo, mas acaba se apaixonando e cede ao convite de uma vida em comum com o homem que a ama. É o tema de Sexo Sem Compromisso (No Strings Attached , 2011), com Natalie Portman. Exatamente o mesmo de Bonequinha de Luxo (Breakfest a at Tiffany´s, de Blake Edwards, 1961), com Audrey Hepburn. Portman é a médica ocupada e Audrey a garota de programa que quer fisgar um ricaço. Ambas a mesma personagem, com direito à cena final de arrependimento e romantismo. Vi entrevista do diretor do filme de 2011, Ivan Reitman, falando que adorou o script. Sim, é totalmente chupado, mas isso ele não disse.
Passaram-se 50 anos. A história foi adaptada sem sustos e soa ser ultra-moderna, mas já existia há meio século. Isso significa que a idéia do script tem consistência. Pudera, a autoria é de Truman Capote. Aí fica fácil, não dona Elizabeth Meriwether, “autora” do script do Sexo Sem Compromisso? Mas uma história não pode ser refilmada, adaptada? Claro que sim, desde que citem a fonte. Parece que os artistas de hoje criam do nada e não fazem justiça a quem criou de verdade. Vejo aí um sintoma de que a originalidade foi expulsa e no seu lugar vieram os chupadores, que tomaram conta de tudo. A cópia é uma exigência da indústria, que não quer arriscar nada.
No filme de 1961, o ricaço cobiçado por Audrey é o brasileiro José da Silva Pereira. Incrível como a presença do Brasil é forte na história. Naturalmente, com a confusão de sempre: José é identificado com as touradas espanholas, já que do Rio Grande para baixo tudo é hispânico. O ator, José Luis de Vilallonga, por coincidência, nasceu em Madri. Mas Audrey aprende e fala algumas frases em português no filme e tece uma roupa sob a cabeça de um touro, já que José é fazendeiro e portanto, tem a ver com touros espanhóis, naturalmente. O filme homenageia Nova York e esculacha a América do Sul. Normal.
Natalie Portman não chega aos pés de Audrey Hepburn. Acho Natalie um exemplo de desperdício de talento, revelado precocemente em O Profissional (de Luc Besson, 1994), quando ela tinha 12 anos. Estava bem em alguns filmes bons, como Um Beijo Roubado (de Kar Wai Wong, de 2007) e Closer ( de Mike Nichols, 2004). Mas em Cisne Negro ( de Darren Aronofsky, de 2010) está over, não convence, apesar de tantos elogios. Me parece sempre meio esforçada demais, não tem aquele aplomb natural de Hepburn, encantadora com sua sexualidade ao mesmo tempo explícita e sob controle. Audrey é bem mais sexy vestida da cabeça aos pés do que Natalie se atirando em Ashton Kutcher em clips de trepadas sem fim. É como diz o ditado. Quem tem, tem, quem não tem não se conforma.
Outra coisa chupada são os bizarros personagens coadjuvantes. Em Tiffanys, Mickey Rooney faz um oriental atrapalhado e dedo duro, um papel http://www.blogger.com/img/blank.gifque deixou furioso Bruce Lee numa sessão de cinema, que se viu retratado de maneira grotesca. Em Strings há a ótima Lake Bell, que rompe a mesmice narrativa com uma personagem atrapalhada querendo conquistar o galã. Neste link, Lake Bell conta como aconteceu seu envolvimento com o filme.
Vejo todas as comédias românticas. Só a cena do beijo final na chuva com o gato entre Audrey Hepburn e George Peppard vale todos os ingressos.
RETORNO - Imagens desta edição: em preto e branco, o casal Peppard-Hepburn; em cores, Kutcher-Portman.
30 de março de 2012
LAÍS CHAFFE: MÍNIMO VERBO DE MÁXIMO FOGO
Nei Duclós
Os poetas se anteciparam à necessidade de mudar a linguagem para adaptá-la ao mundo e assim ajudar a transformá-lo. Na carona dessa mudança, a poesia tornou-se escassa numa época beletrista, certeira quando o discurso descrevia espirais de ilusionismo em volta das grandes guerras, emocionada sem apelar para as emoções baratas, demolidora na sua força de desestabilização dos discursos do poder e sedutora antes que a publicidade começasse com seu arsenal de simulações em função do comércio. Virou minimalista, aforística, implodida, sem derramamento de sangue. E mudaram os poetas para sempre.
Laís Chaffe faz parte dessa linhagem inaugurada quando havia necessidade de chutar a canela da folga cultural com margens indecentes que a tudo dominava. Seus poemas são o receptáculo desse trabalho aparentemente marginal, mas que ocupa o centro do mundo virado pelo avesso: o da linguagem voltada para si mesma em busca de uma solução dos conflitos e que intensifica a necessidade de clareza do que nos move na vida. Antes que a abordagem ensaística seja confundida com elogio, vamos a alguns exemplos do trabalho da poeta no volume que leva seu nome e que faz parte do projeto Instante Estante, da Castelinho Edições.
“Poesia:/ desejo salivando/ em frente à mesa/ vazia”, escreve Laís Chaffe na primeira página do seu livro, mostrando o confronto entre a palavra como vontade e a oferta de um tempo sem sentido. “Nunca foi/ muito popular,/ como então/ diria não/ quando as palavras/ convidavam para brincar?”, diz, sobre a vocação marginalizada na infância que encontra no espaço lúdico do verbo o seu futuro ofício. Verbo no duplo sentido, de ação substantiva, como vemos em alguns versos: "translúcido na taça/ o tinto já foi uva/ tudo passa” ou “Guaíba, lago?/ alguns resistem/ eu rio”. É o acúmulo de camadas de significados no mesmo espaço do poema, levando à leitura sobreposta de percepções que se cruzam entre a introspecção e a denúncia.
Mas seus poemas não se circunscrevem a esses voos breves. Alguns assumem forma mais clássica como em Sina (“Aterriso/ antes do voo/ e mesmo sem engravidar/ enjoo”) convidando a leitura a revisitá-los, como se sempre um novo poema surgisse, liberto do que vimos num momento anterior. Essa mobilidade muitas vezes sugere desconforto, como em “Quisera morar em mim/ Negaram o habite-se”. Ou intensa carga de revelações como nos belíssimos Vagas Emoções de Navegante Insatisfeito (“queria mais que o fervor/ das águas turvas/ queimando sob a saia”) e Bilhete (“Prefiro o suor ao surto,/ ao sangue, o sêmen”).
Poeta ocupa seu próprio espaço sob encomenda do que sente e sabe. Laís Chaffe mostra a força do que diz nesta pequena e significativa amostra da poesia brasileira contemporânea. Palavra econômica com poder máximo de fogo, que atinge o leitor atento, enredado em tantas linguagens artificiais. É quando o poema rompe o laço e reinaugura algo além do sonho, enriquecendo o mural de representações do mundo dominado por inúmeras vontades.
TODO FILME É SOBRE CINEMA
Nei Duclós
Toda vez que a câmara aponta para o alvo obedecendo a um roteiro, uma edição, a uma narrativa, está enfocando a arte em si mesma, no caso, o cinema. Pode ser filme de qualquer gênero, dimensão ou época, sempre haverá esse foco direcionado. Não para um suposto conteúdo, como drama, memória, guerra ou poesia, mas sempre o cinema cumprindo sua função. Pois não se trata de impérios, cidades, heróis ou vilões, mas a maneira como foi criada a solução audiovisual para chegar ao espectador.
Não é apenas o fato de, em Pierrot Le Fou, Paul Belmondo perguntar a Samuel Fuller de que se trata o cinema. Fuller responde que é ação, amor etc.("numa palavra: emoção"), mas a resposta é dada pela câmara de Godard: é de cinema que está se tratando. Ou em Memórias de Helena, de David Neves, a Super 8 aparecer como protagonista do resgate da mulher amada. Ou o detalhe de que, em muitos filmes, é recorrente a referência a alguma obra que define um tempo, quando, ao fundo da ação, os letreiros de uma sala anunciam uma atração. Ou que os filmes favoritos são citados explicitamente ou fazem parte da trama, num efeito dominó infinito que costura as obras através das décadas. Ou o tema da Sétima Arte ser presente de forma decisiva como em Crepúsculo dos Deuses, ou coadjuvante, em Tetro. Não é apenas essa evidência que confirma a ideia.
É principalmente a noção exata que temos de estar vendo um filme quando nos postamos diante da tela. Pois se o filme aborda o Império Romano, sabemos que aquilo não é Roma, é Hollywood ou Cinecittá. Sabemos que são truques, que as pessoas que morrem na tela sobrevivem na vida real, que a iluminação cria o clima e o ambiente, que não existe reconstituição de época e sim a disposição de elementos do cenário em função da narrativa. O que nos leva ao cinema é o próprio cinema, não a Grécia antiga ou a Resistência francesa. Porque é disso que se trata. Quando pela primeira vez o público foi ver um filme, aquele dos irmãos Lumière que mostra um trem edm movimento vindo para cima das câmaras, todos se levantaram em pânico. Foi quando descobriram que a tela mostrava não um trem de verdade, mas a Sétima Arte.
Uma grande parte da produção audiovisual hoje, e que serve para abastecer os inúmeros canais pagos ou da Tv aberta, na indústria do espetáculo, é a filmagem dos bastidores da produção. Um ator ou atriz, produtor ou diretor ou roteirista fala sobre o que está sendo montado e como foi feita tal cena e quais as dificuldades encontradas para que algo desse certo. Ficamos sabendo dos riscos que Tom Cruise correu ao filmar Missão Impossível, o que Scarlett Johansson sentiu quando protagonizou um filme de Woody Allen, o que pensa um cineasta sobre o trabalho do seu colega, como foi formada a equipe, o que a estrela tem a dizer sobre determinado detalhe etc. O cinema é o foco, servindo de apoio para o filme, que trata exatamente da mesma coisa e é seu resultado.
Pode-s elencar inúmeros filmes que jamais citaram a Sétima Arte ou são documentários realistas que marcaram época e que então iriam contrariar o enfoque deste artigo. Pode-se contra argumentar que todos os filmes que não citam a Sétima Arte explicitamente são sobre o filme que está sendo feito, desde o primeiro enquadramento, o primeiro diálogo, até o The End. O filme noir que é sobre a investigação de um crime é o claro escuro e os enquadramentos, a música e as sequências definindo o perfil dos personagens e criando suspense. É a obra em permanente auto-referência.
O que pega em Hitchcock? O suspense? Não, o cinema. Quantos cortes há na célebre cena do assassinato da mulher no banheiro? O que James Stewart vê da sua janela, um crime? Não, uma cena de cinema, onde um possível assassinato dá alguns sinais de que algo sinistro está acontecendo. Stewart é o espectador permanente, está sempre de binóculo em punho, fazendo sua montagem. Representa a nós, espectadores do filme. Ele nos leva pela mão para o centro do drama: veja, isto é o cinema, o cachorrinho tentando desenterrar a cabeça da mulher escondida pelo assassino no jardim.
Poderíamos continuar indefinidamente neste ritmo, mas o que destaco é que esse enfoque costura todo o meu trabalho ensaístico sobre a Sétima Arte. Não é pequeno e gira em torno desse foco. É meu instrumento de trabalho, minha metodologia. Sem procurar forçar a tese, noto que todo filme é sobre cinema. É a marca registrada dos meus textos produzidos depois que aparecem os letreiros.
RETORNO – Imagem desta edição: James Stewart em cena de Janela Indiscreta, de Hitchcock.
29 de março de 2012
EM BUSCA DA GRAÇA
Nei Duclós
(Obs.: Esta resenha foi publicada em fevereiro de 2007. Volta por motivos óbvios, sob o impacto da morte de dois nomes importantes do humor brasileiro, Millor e Chico Anysio)
O Brasil perdeu a graça. A violência com as palavras chega ao nível da violência física. Perdemos a graça porque perdemos a inocência, não a inocência útil, ou algum estado de imbecilidade pré-natal. Perdemos a inocência do espírito desarmado, a que se abre ao Outro sem má-fé ou disputa. É por isso que lamento chegar tarde aos textos sobre cinema, já que só vejo dvd, expulso que fui das salas de projeção, muito distantes aqui de casa ou impossíveis de aturar devido à presença da multidão de engraçadinhos (os perversos que embarcam nas distorções da comédia). Gostaria de fazer justiça no bate-pronto, desmascarando a falta de juízo sobre obras como Onde anda você (2004), do cineasta maior Sergio Rezende: teve gente que não viu sentido no filme, tentando desqualificar o autor e sua equipe para o humor. Mas Rezende acerta no veio e é dever nosso dizer porquê.
Lembro um show que vi com o mutante Arnaldo Dias Batista. Ele estava quase vestido de Chaplin e sua performance, poética e hilariante em alguns momentos, era sempre pontuada por um agradecimento ao público muito parecido ao de Calvero, o personagem de Chaplin, no imortal Luzes da Ribalta, quando apresentava seu número com pulgas amestradas imaginárias. A comédia, especialmente a radical, como nesse filme de Chaplin, é um gênero da poesia e costuma sofrer da mesma incompreensão.
Rezende se serve de amplo acervo cultural, de dentro e fora do país, do cinema à música, para contar uma viagem às origens da graça perdida no país dominado pela brutalidade televisiva. Para isso, contou com a ajuda essencial do roteirista Leopoldo Serran, que desdobrou o argumento do próprio diretor, e de atores fundamentais como Juca de Oliveira, José Wilker e José Dumont, e coadjuvantes maravilhosos, como José Vasconcelos (no papel dele mesmo, uma referência ao humor que foi para o buraco negro) Paulo César Pereio (não haveria cinema brasileiro sem Pereio), Castrinho (perfeito no personagem Mirandinha), Drica Moraes (o retrato da grande perda), e o jovem casal Tiago Moraes e Regiane Alves. Além de Aramis Trindade, o foco da narrativa, pois seu Bocapura (a pureza oculta) é alta criação cinematográfica pelo ritmo, pela complexidade e pelo acerto do personagem (Aramis foi também consultor de comédia nesta obra).
A viagem parte do sufoco paulistano (onde só é possível vida na mesa entre amigos ou no passeio da madrugada) para a branca areia do Ceará, representação da inocência intocada e necessária. O impulso é dado pela exclusão, a do comediante que teve seus dias de glória e que, ao perder o grande amor e o parceiro, pretende retomar a vida buscando um novo companheiro da sua aventura profissional. É um filme explicitamente terminal, no sentido de que a procura é pontuada pelos vestígios de um país em ruínas, que assomam em sobreviventes (Dummont, absolutamente genial como sempre) ou condenados em busca da esperança (Juca de Oliveira, o ator que sobra em experiência e talento).
A viagem é contaminada pela culpa, já que Juca de Oliveira, o Felício de outrora, não perdoou a traição entre seu ex-amigo e a mulher que tanto amava. Essa culpa convive com a vontade de não morrer, mas o destino (a morte iminente que é fruto de um coração exausto, a perda total da nação sem graça) acaba se impondo. Contar essa história significa recuperar o sentimento provocado por músicas inesquecíveis (Tom Jobim, Brahms, Pepino de Capri), filmes imortais (Fellini, Mario Monicelli, Chaplin, o eterno cinema da Atlântida).
Não é pouca coisa para um filme que passou despercebido e que hoje, apesar de tão recente, dorme nas prateleiras das locadoras expondo seus enigmas. O mistério é como Sergio Rezende consegue colocar na tela o que perdemos para sempre. Seu instrumento não é a saudade, mas a busca arqueológica de um perfil nacional soterrado pela incúria. Descobre o quanto sobrevive o Brasil que nos criou e formou e foi assassinado nas esquinas do tempo.
RETORNO - Imagem desta edição: Juca de Oliveira e José Dumont.
SERENA
Nei Duclós
Não é falta de vento.
Há tempos sopro para que venhas.
Acordas comigo na ponta
corro contigo ao relento
Mas não levantas voo
desatenta
Não é falta de beijo.
Acumulei uma fortuna nos lábios.
Investi em teus olhos, apertos
puxei teu papel de seda
Mas estavas vazada
de medos
Não é falta de aceno.
Em todos os cais tremulei o lenço
Misturei mensagens em bandeiras
cada cor era um poema
Mas olhavas para outro lado
poente
Não é falta de tempo.
Amor é a eternidade do encontro.
Moro em ti, minha verbena
flor que carrego no peito
Mas tardas, como o correio
com notícias do front
Não é falta de esforço.
Usei todos os recursos da língua portuguesa.
Lecionei em desertos
compus bizarras bibliotecas
Mas desaprendeste, por gosto
serena
RETORNO – Imagem desta edição: Ann Sheridan.
LUAU
Nei Duclós
Antes de dormir ela me beija, com seu esplendor sem conta. É mais do que sorte, esse gesto com cheiro.
Cantei perto dos teus joelhos no luau da praia gelada. Meu rosto estava próximo demais do que jamais esqueço.
Quero que adivinhes, decifres a charada o quanto antes. Entender é a véspera da cama.
É por dentro que acontece o evento. Lá onde cede a barreira.
Lisinha não é lisura, traiçoeira. Mas não me surpreendes. Os nós que tenho mal acostumam tua imprudência.
Melhor aquietar-se, aventureira. Aninhe-se no lençol do poema.
Ficaste só alguns minutos. Foi como luz de candeeiro que treme na noite fria.
Perdeste o ar no alto mar da poesia. Precisei fazer respiração boca a boca, letra e sílaba. Aos poucos, naufragada, voltaste à vida.
Não entregas o que te preserva. O resto, só com senha ultra-secreta.
MEIA NOITE
Não dê meia volta só porque vai chegar a meia noite.
Meia noite é quando o escuro põe os sapatos.
Meia noite é quando a noite já cumpriu meio expediente.
FORTUNA
Não é falta de vento. Há tempos sopro para que venhas.
Não é falta de beijo. Acumulei uma fortuna nos lábios.
Não é falta de aceno. Em todos os cais tremulei o lenço
Não é falta de tempo. Amor é a eternidade do encontro.
Não é falta de esforço. Usei todos os recursos da língua portuguesa.
RETORNO – Imagem desta edição: Sandra Bullock.
28 de março de 2012
FELICIDADE
Nei Duclós
O amor é a felicidade. Recuse imitações.
Tua beleza transparente faz desaparecer teu rosto na luz ambiente. É como se fosses um sonho. Só o sorriso tem vida própria, o resto é outono.
Eu tinha abandonado esse amor que já existia antes do encontro. Mas resolveste gritar da basculante que estavas saindo do banho.
O amor transborda e não cabe na vida em torno. Como inventar espaço para o infinito?
Não me importo em depositar meu poema em cada canto do planeta. Só quero que lembrem de onde veio.
Morro em mim mesmo. Em ti, renasço.
Eu estava quase desistindo. Mas aí você sorriu.
Do fundo do teu silêncio, de repente quiseste me dar um abraço. Quem te deu licença de ser tão linda?
O dia amanhece melhor quando na véspera te debruças sobre mim.
O amor transborda e não cabe na vida em torno. Como inventar espaço para o infinito?
Eu tinha abandonado esse amor que já existia antes do encontro. Mas resolveste gritar da basculante que estavas saindo do banho.
Dê uma volta e me traga mais poesia, disse ela. Vai faltar. O estoque está acabando.
Não me leve a mal, não estava pensando em você. Às vezes dou um tempo. Pronto, voltei.
Não faço coleções. Jogo fora os catálogos. O dia ensina que tudo começa sempre do nada.
Fiquei doente da espera. Agora me cure, bela.
Será lenta a recuperação. Silaba a sílaba, como pássaro que emudeceu na quarentena.
Tardou o abraço. Mas amanheceu o amasso.
Será que ela volta de verdade antes do inverno?
Grudei o rosto na janela. O outono chegou com a friagem. Do outro lado da calçada, ela.
RAZÃO
Fazemos todas as concessões para ficar vivos. Depois, morremos
Mala direta é a arte de errar o nome do destinatário.
Como eles não nos percebem? perguntou o piloto Alien. Somos milhões de naves naquele planeta! Viramos nuvens, disse o general Alien.
Proteja as placas de sinalização. Custaram uma nota. Agora, o buraco não precisa se preocupar. Passe por cima.
Costumamos errar em todos os níveis, no diagnóstico, nas soluções. É comum ver conceitos opostos, ambos errados, disputarem quem tem razão.
RETORNO – Imagem desta edição: Romy Schneider.
SENTIMENTO
Nei Duclós
Quando não sabes o que dizer, és como sempre: puro sentimento.
O dia piorou quando o amor perdido não fez mais efeito.
Medo de te esperar numa estação e você descer em outra.
Não faço coleções. Jogo fora os catálogos. O dia ensina que tudo começa sempre do nada.
Não preste atenção nas fotos do dia. Vais acabar encontrando meu coração surrado numa rua de insurreições aos berros.
Achei que o importante era o sentimento. Não é. O importante é ela. O amor vai a reboque
Sou teu cinema. Me filma, açucena.
És uma voz. Sem te ouvir, não te acho.
Vai ficar de castigo até reencontrar o anjo que te soprava maravilhas. Como você deixou escapar aquela voz? ela disse. Você me deixou, disse o Solidão.
Nunca te soprei nada, disse o anjo. Sou ágrafo, não aprendi a ler. Eu queria impressioná-la, falou ele. Agora fica difícil dizer a verdade.
Não preste atenção nas fotos do dia. Vais acabar encontrando meu coração surrado numa rua de insurreições aos berros.
Achei que o importante era o sentimento. Não é. O importante é ela. O amor vai a reboque.
Você não me escreve mais, ela me disse. Pareces letra de forma.
O amor sobrevive ao silêncio, à dúvida, ao balanço? Ao que um dia foi entrega e hoje é pânico?
Lembra quando nos dávamos as mãos? ela disse. Agora vais indo em frente como se não fosses meu. Parece o tempo em que decretaram o fim da dança de rosto coladinho.
Virei de vez em quando. Deixo tua ausência em meu lugar.
CULTURA
Falando de cultura, não de pessoas, saudade é um conceito analógico. Na era digital, dos tempos simultâneos, chega de saudade.
RETORNO - Imagem desta edição: Adrianne Palickikw.
ESBOÇO
Nei Duclós
Tristeza é sopro de cinza
acumulada num ano
mulher que me deu a vida
levou de volta o que amo
A quadra muito sofrida
está escrita no muro
risco de pedra polida
cor de sangue derramando
Mandei embora o que tinha
ficou grudada no forro
com lenço de seda e vinho
e os lábios de porcelana
Jarro de água purinha
colhida em dias de espanto
lavava os pés da rainha
saciava a sede do sonho
Por um acaso quebramos
sacrifício de cordeiros
foi nossa vez e falhamos
ficou a marca no espelho
Com ela te reconheço
com minha dor eu te chamo
volte talvez ao esboço
do que um dia desenhamos
RETORNO – Imagem desta edição: Marylin Monroe.
26 de março de 2012
BELEZA
Nei Duclós
Por que você me tirou daquele ermo absoluto e me colocou aqui no centro do mundo? ela perguntou. A beleza precisa ser livre, disse ele.
Qual teu ofício? perguntaram. A palavra certa, quando o resto falta, disse o poeta.
Acene de volta, coração, quando meu verso adotar teu canto.
Consultei a caixa postal. Olhei todos os spams. Talvez um deles fosse teu recado.
Ponha um sapato e arranje um emprego, disseram. Estrelas precisam de um espanador de nuvens.
Precisei viajar. Deixei a ração de sonetos no quarto de despejo. Alimente os sonhos. Eles estão famintos.
Não vai levar poesia hoje? perguntou o garoto. Não, disse ela. Preciso comprar um par de brincos.
Viciei em você. O pior é a síndrome de abstinência.
Foi por te querer que te perdi. Agora me ache onde sou teu.
Não é o sol que brilha no teu ombro, é o meu desejo. Esse flash na pele sobre a areia.
O presente do passado: tudo se mantém intacto. A memória é apenas o espelho que distorce.
Passageiros do tempo, assombramos quem fomos. O garoto vê-se adulto e grita. O ancião olha-se menino e acena.
Se não te ocorre nada, me dá um beijo. Eu farei o mesmo.
Não brinde o excesso de poesia com bocejo. Guarde para o inverno.
Agora que o dia acabou vieste ver minha febre. Não sei como cruzei a tarde olhando o teto.
Não me troque por meia dúzia de frases prontas, disse o poema. Quando for com tudo, me apresente.
Coloquei a beleza em destaque na parede. Quando levanto, é a primeira coisa que vejo. É a tua imagem que desce do pedestal e me cerca.
RETORNO – Imagem desta edição: tenista sérvia Ana Ivanovic.
VISGO
Nei Duclós
Impões o teu silêncio e eu adoeço
fico à mercê do ruído, meu apreço
nada faz sentido quando esqueço
o mel que nos criou bem no começo
Morte da paixão, final de feira
sonho sem perdão, derrota régia
és meu coração e eu um visgo
fora da comunhão com sua deusa
O mal está em mim, que não te deixo
sou incapaz de dizer o que me vence
essa fala que é dor e apenas sangra
As palavras murcharam, meus canteiros
cansaram de esperar a primavera
Volta que eu refaço e então me lembro
RETORNO – Imagem desta edição: Catherine Zeta-Jones.
25 de março de 2012
POÇO
Nei Duclós
Teu infinito é a palavra feminina
o limite nem de perto se aproxima
segredo de quem muito te admira
e não sabe o perigo que dominas
Não se trata da carga de destino
que depende da flor da anatomia
mas do poço cavado em água viva
que o amor sem sentido contamina
Não pedes compreensão, tuas esquinas
aguardam corações que viram vítimas
cobaias de uma oculta medicina
Dizes: mulher, e tudo se ilumina
não é preciso conceituar o que assinas
chave de pernas, fábrica de gemidos
RETORNO – Imagem desta edição: Megan Fox.
ANATÓLIA: EXUMAÇÃO E AUTÓPSIA DE CLARK GABLE
Nei Duclós
A noite é iluminada pelos faróis que buscam um cadáver enterrado em lugar desconhecido. O dia é assombrado pelos motivos das mortes sem sentido. Cinema tradicional é o foco da ação, mas em Era uma vez em Anatólia (2011), do turco Nuri Bilge Ceylan, Grande Prêmio do Juri e indicado para a Palma de Ouro de Cannes, cinema é a periferia desse foco, formada pela espera e por diálogos aparentemente banais. O morto se parece com Clark Gable, diz o promotor, também identificado com o grande ator do passado. No filme, é uma piada. Para sua abordagem, é a solução de uma charada.
O que é mais importante: um necrotério bem equipado ou luz elétrica sem interrupções? Na aldeia onde o grupo de busca descansa por algumas horas, coloca-se o dilema. O ermo está abandonado pela migração e só quando alguém morre é lembrado pelos seus jovens ex-habitantes. No lugar, esplende a beleza da moça da casa, que aparece no apagão portando um candeeiro que ilumina sua face de anjo, quando ela carrega uma bandeja de chá para os visitantes. Que desperdício, dizem, vai murchar neste local miserável. A mulher, coadjuvante numa civilização que “casa” as filhas, ocupa o centro do drama que se desenvolve nas conversas entre homens esvaziados em suas atividades diárias.
O morto foi traído pela esposa, que gerou um filho assumido pelo assassino. O promotor não mandou fazer a autópsia da linda mulher que decidiu se suicidar depois de saber da traição do marido (e ele cai em si quando descobre, por meio do médico, que a morte da suicida, que era sua esposa, foi uma vingança provocada pela traição dele, promotor, que foi flagrado com outra mulher, e não fruto de uma premonição). O chefe da polícia foge da vida doméstica espichando o expediente e precisa se explicar para a esposa que fica em casa com o filho com problemas mentais. O policial quer evitar a adeia dos parentes da mulher, o médico divorciado sente falta da ex-esposa.
O universo feminino fica a maior parte do tempo fora do que as câmaras mostram, mas ocupa o foco principal. Aparentemente, o núcleo do drama é a exumação e autópsia do cadáver parecido com Clark Gable, mas o buraco é mais fundo, é onde se situam as relações amorosas entre a brutalidade masculina e a reação submissa e cruel das mulheres.
O maior papel de Clark Gable foi o de conquistador cínico de E O Vento Levou, personagem que acabou grudando em sua personalidade. Por ser um grande talento, virou Rett Butler pela vida afora. O promotor parecido com Clark Gable perdeu a esposa quando fez uma conquista quando estava bêbado. O morto, também identificado com o ator, não usava roupa de baixo pois estava pronto para o assédio sexual, segundo o legista. Um conquistador barato que se deu mal, pois a mulher se vingou tendo o filho de outro, que acabou matando-o.
Mas há uma leitura mais forte, orientada pelas conversas paralelas e a sucessão de olhares entre os personagens: o cinema tradicional se ocupa de uma ação que diz pouco sobre a vida, é uma ilusão, apenas aparências, enquanto o cinema que se quer verdadeiro foca o subúrbio dessa indústria, o cansaço, o medo, as frustrações de meia dúzia de personagens terminais, que enxergam com dureza a vida traída pela rotina.
Nessa alternância entre a noite da exumação e o dia da autópsia, o diretor trabalha os detalhes como o destaque principal de uma grande arte. O vento nas roupas do varal ou nas gramíneas do descampado; os telhados filmados de cima funcionando como pinturas e apertando o personagem em sua solidão de ruas estreitas; os olhares demorados depois de uma observação ou de uma fala mais intensa; o humor pesado de pessoas que trabalham profissionalmente com a morte; a escassez dos recursos no sistema de segurança e de saúde. Tudo isso compõe um quadro sobre o tempo contemporâneo assombrado pela ancestralidade, tanto da paisagem quanto dos hábitos milenares das relações humanas complicadas.
O diretor usa o país que ama para definir o rosto de sua obra radical. Não filma subterfúgios, não dispõe os elementos do cenário artificialmente, antes os decifra para mergulhar no drama que expõe. Cinema de primeiríssima grandeza, obrigatório sob todos os aspectos. Uma fábula sobre o cinema em busca de um sentido por meio de personagens vazios, humanos e cruéis.
RETORNO - Imagem desta edição: cena de Era Uma Vez em Anatólia.
24 de março de 2012
URUGUAI
Nei Duclós
Aquele rio de nome estrangeiro
não nos pertence
Se é também nosso
é porque é só deles
Ficamos com a terra
mas perdemos o rio
Como cortar a água com a faca?
Como inscrever uma cerca
na correnteza?
Como contentar-se
com uma só margem?
Aquele rio, de nosso
tem apenas a paisagem
O rio mesmo, suas águas,
o barro no fundo,
os peixes e também
os fantasmas são de outro país
Aquele rio estrangeiro
entretanto é a minha pátria
Porque nele minha infância
molhou os pés sob os olhos
vigilantes da mãe
que não permitia a água chegar à cintura
Porque nele, adolescente,
pesquei piavas ligeiras
que assobiavam na superfície
Porque tornou-se meu com o tempo
deixou de ser estrangeiro?
Quando estou do outro lado da ponte
onde fica o rio que é meu?
Aquele rio permaneceu
com seus arroios onde imperou meu pai
que hoje me abraçam sem jamais revelar
a que nação de verdade pertenço
Talvez faça parte da pátria
comum da poesia
Mas um pescador precisa de peixes
não de poemas
precisa de anzóis,
não de canções
Estendo toda noite o espinhel
das minhas perguntas
naquele rio dividido
entre o país do meu pai
e a nação que inventei durante a vida
RETORNO - Imagem desta edição: foto de Anderson Petroceli.
GALÁXIAS
Nei Duclós
As galáxias estão seguras no cosmos compenetradas pela força em espirais do amor. Quando há ruptura elas se soltam e se jogam em massa sobre o rosto de Deus em pânico.
Te espalhaste na noite, me comportei. Mais tarde, na volta, juntei ombro com batom borrado e liguei o rádio nos teus suspiros.
Disseste que irias te recolher e acreditei. Quando vi teus óculos escuros sorridentes numa animada mesa fiquei zunindo por dentro e me aproximei. Não eras tu, prudente.
Conversamos indiferentes. De repente falei da mão em concha, em torno do seio, que encaixa Vênus. Tremeste.
Aguardei minha vez. Vinhas vindo, impressionante.
Por trás do biombo teu enigma. Só o olhar à mostra. Sugeres nudez, mas estás vestida com três camadas. Todas romperei fazendo estrago.
É fácil entrar, és minha senha.
Tão distante que suas mensagens parecem os antigos telegramas. Com letras quase invisíveis, conteúdo todo truncado e demoradíssimas.
Sumiste de novo, iluminada. Meu coração é um pisca-pisca.
A vitória foi contra o espartilho. O soutien resiste.
Perdi a palavra. Bateu no tambor da Lua e pípocou no mar. Depois mergulhou para sempre esquecida de te procurar.
Não é o sol que brilha no teu ombro, é o meu desejo. Esse flash na pele sobre a areia.
O CAPITÃO
O sr. fica vazio quando ela não volta mais? perguntou o Grumete. É como se me tirassem o mar e me deixassem contando os cardumes mortos, disse Jack o Marujo.
Vocês não se perdoaram, disse a viajante. Algo se partiu, que não se recupera. Amar é dificil quando a ferida ainda está aberta, disse Jack o Marujo. Mas amor é âncora e não é de vidro.
Quero o sr. dando aula na escola de marinheiros, disse o Almirante. Não domino a matéria, diss Jack o Marujo. Fui reprovado pelo abandono da Sereia.
Vou iluminar o convés com este candeeiro, presente da Sereia, alimentado com óleo de algas extintas. Ela poderá vê-la, lá de onde suspeito que me ignora.
Ela disse que voltava em um dia, disse Jack o Marujo. Já passou um século e nada.
RETORNO – Imagem desta edição: Megan Fox.
23 de março de 2012
MUNDOS QUE NÃO SE TOCAM
Nei Duclós
Mundos que não se tocam:
meu pai a tiro na guerra
eu atento na sala
Mundos que não se tocam:
meu pai faz parte da tropa
eu embaixo da cama
Mundos que não se tocam
A rigidez que eu temia
era sua identidade
Meu pai em direção à corredeira
no mato liderando a caminhada
a falta de lua era seu norte
Eu ao sol sem entender
que tipo de flor deixava de colher
naquela hora
Mundos que não se tocam
meu pai sem uma lágrima
só sobre a terra
Eu de coração em tiras
amparado pela musa
que me guarda
Mundos que não se agarram
a não ser aquele último abraço
Umbral de uma vida adulta
Quando a chave do tempo
dava enfim
sua definitiva volta
RETORNO - Imagem desta edição: Estiagem, foto de Anderson Petroceli.
CONFRONTO
Nei Duclós
Ficamos no canto, presos no confronto
ouviram barulhos, brutos, e gemidos
sugerindo manchas roxas no vestido
e rostos afogueados de morangos
Puxava tua renda até os joelhos
rasgavas minha pele com garrotes
eu mordia tuas chuvas absurdas
choravas disfarçando teu galope
Entreviam a porção da tempestade
que ventava contra ti pela parede
o corpo exausto de terror e toque
Chamaram a polícia, vieram os bombeiros
te tiraram de mim batendo o choque
mas rias, louca, em sintonia, a trote
RETORNO – Imagem desta edição: Lana Turner.
O RIO NÃO MORRE
Nei Duclós
Não se mata um rio
como não se enterra
um morro
Como a fogueira
não se põe no bolso
Como um leão
não pede socorro
Um rio terminal
é a soma da baba
do rebanho
viscoso no que tem
de sono
aéreo no que tem
de sonho
O mar recebe o rio
feito de escombros
O mar pode morrer
(Netuno exangue)
Não por obra do rio
que guarda o sopro
Envenenado talvez,
mas nunca morto
Um rio sobrevive
sem suas vertentes
Um rio pode seguir
sem ser corrente
Um rio não é a escama
de nenhum peixe
Ele será sempre o rio
da minha infância
O Uruguai antes
do saque
touro frente à lua
surra de gigante
Nesse rio sem fim
mora meu povo
Cobre de minuano ao frio
Charrua de invencível
lança
Não se mata um rio
O sol não cabe
numa estante
A eternidade acampou
e faz a ronda
RETORNO - Imagem desta edição: Rio Uruguai, foto de Anderson Petroceli.
MANDATO
Nei Duclós
Mudei a cidade em tua homenagem
teu passo define o limite dos bairros
teus ombros inspiram monumentos
tuas curvas desembocam em praças
Entrei nessa briga só para ver de perto
teu poder de encantar deus que te espia
e o jeito que pisas o entorno que implora
uma grama de atenção do teu olhar remoto
Estudei livros do barroco e a linha reta
para saber o ponto exato da rua torta
que se dobra para celebrar teu mandato
Não ficarei com nada dessa formosura
que se transforma na tua arquitetura
e meu castigo, projeto onde sou mendigo
RETORNO – Imagem desta edição: Marilyn Monroe.
22 de março de 2012
COBERTA
Nei Duclós
Você ainda se emociona com o que eu digo, mas não comigo. Sou mídia, transmito dados do infinito.
Passei da hora, já estás dormindo. Só me resta compartilhar a coberta sobre ti, do outono ainda no início.
E agora o que eu faço contigo, encrenca?
Quando deixamos secar, somos profissionais.
Chuva gelada e continuas ausente. Olho pela janela e te comparo à estrela que não aparece.
Aguardo o beijo. Não porque tenhas prometido, mas porque adivinho.
Quando acordares, o poema estará alto de tanta vontade.
Não meço o acervo produzido. Não acumulo sínteses. Disperso tudo para que o vento distribua no cosmo frio, e assim transforme o dia.
O amor fez as malas. Vou extraviá-las.
Escrevo o que teu coração dita.
Não estou falando contigo, ela disse. Não importa, falei. Se encaixa.
Poesia pela manhã é ainda lençol e gemido. Não está na hora do batente, adormecida?
A toda hora te espio. Me prenderás por assédio? Mas sou invisível. Meu olhar é um cofre onde beijo teus cílios.
Queixa-se da intensidade de eventos exclusivamente femininos. Quem manda ser tão mulher, aviso.
Vi você encolhida num canto. Estava tremendo. Te peguei nos braços e acariciei teu rosto. Imediatamente levantaste voo.
Você me trouxe um cheiro meio indefinível. Só sei que é de mulher que está querendo.
Não se emocione, passe um verniz no sentimento. Deixe tudo pronto para quando vier o tempo. Então verás como foi tudo em vão, meu sonho.
Expulsei todo mundo de perto. Queria um momento só contigo. Concedi permissão apenas para o vento.
Perdi um soneto, falei para o anjo. Deixaste cair quando ela pediu teu telefone, disse ele.
O clima fechou a cara, queixou-se ela. Nunca mais a praia. Só depois que o Outono se instalar e acender o fogo, avisei.
RETORNO – Imagem desta edição: Laetitia Casta.
BUNNY DROP: UMA FAMÍLIA DE NARRATIVAS
Nei Duclós
O coelho de Alice in wonderland, de Lewis Carroll, corre grudado a um relógio, apavorado com o atraso, pois se perder a hora poderá ter a cabeça cortada pela rainha.O pai adotivo em Bunny Drop (2011), filme de Hiroyuki Tanaka (Sabu) corre para colocar a menina órfã (e seu coelhinho de pelúcia) na creche e assim não chegar atrasado no trabalho, onde faz marketing para uma grande corporação comercial. Carrol é um dos elementos do riquíssimo acervo cultural desta obra que filma um Shōjo manga, história em quadrinhos japonesa feito por mulher, a artista Yumi Unita, divulgado na imprensa do Japão desde 2010 e que tem previsão de novos lançamentos (nove volumes) até 2013.
O diretor Sabu é fã do filme alemão Corra, Lola, Corra (1998), de Tom Tykwe, mas prefiro Lewis Carrol como referência mais importante. O coelhinho em queda (Usagi Doroppu, original de bunny drop) é o mergulho da infância no abandono. Como poderá ser resgatada? Pelas mãos providenciais duo pai adotivo, homem solteiro de 30 anos, que enfrenta uma transformação radical da sua vida ao assumir a menina, deixada de lado pela família numerosa por ser filha temporã do patriarca e sua empregada, exatamente uma autora de mangás. A mãe não se sente responsável pela menina e prefere ficar com sua arte, que é o nicho original de toda a trama.
Como costumo dizer, é a arte voltada para si mesma, para sua própria linguagem. Os mangás tem uma história sofisticada e foram reproduções escritas e desenhadas de histórias dos teatros de sombras e fantoches que percorriam os vilarejos japoneses na alta idade média. Produzidos originalmente em rolos, é a paixão de muitas gerações de japoneses e se tornou um fenômeno de massa internacional principalmente depois da II Grande Guerra. Isso tudo pode ser visto em bons verbetes da Wikipedia e não vale repetir aqui. Interessa que Sabu coloca em frente às câmaras a complexa rede de tradições e transgressões da cultura visual e audiovisual, como é o caso dos animes, os filmes de animação.
Soa um pouco estranho no filme as reações exageradas das pessoas diante de algumas surpresas, como a aparição do neto muito parecido com o avô morto, ou o ataque de irritação na hora do telefonema para a mãe verdadeira da menina. Mas faz parte da cultura dos animes que Sabu coloca como referência. Parece não funcionar direito, mas esse é seu objetivo, cruzar inúmeros vetores. Como os clipes da cultura pop e que povoam a fantasia do rapaz agora exilado das baladas, já que a paternidade é radical e inclusive lhe corta a cabeça, ou seja, o expulsa do prestigiado posto do marketing para a vida bruta operária das embalagens.
A queda social do protagonista representa as dificuldades de quem tem crianças para cuidar no Japão ultra-moderno. No marketing, todos se ocupam até tarde com horas extras e quando uma funcionária engravida, ela se demite. No setor de embalagens, dezenas de pais orgulhosos fazem apostas sobre qual filha é a mais bonita, usando para isso as imagens dos seus celulares. O setor operário é o sonho das mulheres que querem pais responsáveis focados nos seus filhos. A preocupação é com as crianças que por vários motivos perderam todo ou parte do apoio dos adultos.
As pessoas são pais e mães e o amor vem em ondas, diz o protagonista. Mas para que a ferida possa cicatrizar, é preciso manifestar a dor com toda a intensidade, nos diz essa obra que encantou o público quando estreou nos festivais internacionais de cinema. E principalmente pais adotivos que assumam a verdadeira paternidade. Essas duas providências acontecem na história.
A obra nos brinda com a cena mais pungente do cinema contemporâneo, que é a despedida do casal de órfãos de 6 anos no cemitério, aos prantos e aos berros, diante do túmulo do pai do garoto. A menina, que também perdeu o pai, entra no mesmo ritmo do desespero, numa explosão emotiva considerada piegas pela percepção obtusa de alguns analistas, que projetam nas obras o que carregam dentro de si. Nos funerais familiares, eles não tiveram a chance de chorar e dizer adeus. Por isso fugiram para manifestar a perda e a saudade.
A fuga do casal de órfãos foi provocado por um equivoco recorrente nas escolinhas (no Brasil, nem se fala): o de fazer as crianças escreverem sobre pai e mãe. Deveriam ser e incentivadas a escrever sobre as pessoas que cuidam delas, sejam pais adotivos ou não, avós, tios etc. Se sentindo rejeitados por não terem acesso à paternidade, eles somem da vista dos adultos.
A menina Rin Kaga (interpretada por Mana Ashida) foi colocada de lado na cerimônia, por ser filha temporã do patriarca, que escondeu a paternidade tardia de todos. E a mãe do garoto Koki Nitani ( Ruiki Sato) esconde do filho a morte do marido, obrigando-o a fugir para poder assumir sua grande dor. O pai adotivo é Daikichi, interpretado por Kenichi Matsuyama que fantasia com Koki antes de conhecê-la. Ou seja, a nova família está prestes a se formar e curar de vez a orfandade.
O cinema tem pais: os mangás, os animes, a literatura infantil. Irmãos: as mídias digitais, os celulares. Tem filhos: os videoclipes. Trata-se de uma família de narrativas, resgatadas e cruzadas numa só obra. A numerosa família que rejeita a filha temporã do patriarca no fim se arrepende e aceita a menina. O jovem que estava solto encontra um sentido na paternidade responsável. A mãe que abandonou a criança se emociona com o sorriso dela estampado no celular. A orfandade tem cura. Para isso é preciso uma nação, um povo e a confluência de muitas culturas. Em Bunny Drop, uma família de narrativas se mobiliza para trazer de volta a garota que perdeu o arrimo. Alice segue o coelho apressado, enfrenta a tirania e se reencontra na volta à superfície.
RETORNO - Imagem desta edição: a menina Rin Kaga e Kenichi Matsuyama em cena de Bunny Drop.
TIROTEIO DA PALAVRA
Nei Duclós
O mundo sempre foi uma piada. Só que antes não precisava explicar.
Professor no Brasil está abaixo do piso.
Pisar é não pagar o piso.
Carreta de cem toneladas é jogada longe por triciclo. Está ficando cada vez pior.
Para o bem das pacíficas Mercedez prateadas, todas as perigosas bicicletas deveriam ser recolhidas.
Ciclovias são estradas inexistentes construídas embaixo de ônibus e carrões.
Base aliada é a que favorece a maquiagem.
Sherlock assuntou, assuntou e decidiu: a Chevron é incompetente. Hummm. Brilhante, Holmes!
Como abrimos mão de tudo em favor da lógica, só temos seres racionais em todos os cargos, fazendo misérias. É o elogio da razão corrupta.
Estamos nas mãos de autoridades dedutivas, servas da lógica. Por isso estamos bem. Não admitimos defecção. A lógica até o limite da idiotia.
O país descamba, mas a lógica triunfa. Produzimos dívida, mas faz de conta que produzimos pensamento.
Vazamento tem óleo diferente, diz a Chevron. Antes era soja, agora girassol.
Chevron arrebenta o subsolo do litoral brasileiro e se justifica dizendo que subestimou e superestimou. Importante é o argumento,não o crime
O Brasil é grandão, mas tem pib pequeno.
Use "pouca gente sabe" sempre que concordar com sua superioridade informativa atávica, de berço.
"Ninguém poderia imaginar" também é importante. Só quem usa isso imagina.
Contracampo é quando há gol contra.
Fora do mercado é não ter acesso ao bolinho de bacalhau no balcão.
Quando quiser dizer que é europeu fale a palavra tupiniquim. Ainda cola. Mostra esse nojodieu tão ao gosto da aristocracia fake.
Ping: No me enseñaste como se vive sin ti, de Frank Dominguez (Tu me Acostumbraste,1957). Pong: Você Não Me Ensinou a Te Esquecer, do Caetano.
Armadilha no trabalho é enredar o adversário numa decisão tomada sem o conhecimento dos responsáveis,mentindo que isso todo mundo tá sabendo
Falar ao celular no volante é deslocar a atenção para fora do momento, sinal de que não compartilha com o que o resto está fazendo. Zelite
O Brasil está bem resolvido. Pibinho de 2,7%, indústria sucateada, vilania nos negócios e o assunto xis é a venda de bebidas nos estádios.
É lei: em todo cruzamento complicado se sobressai o energúmeno ao celular mexendo no volante de maneira irresponsável com a mão que sobra.
Industriais brasileiros permitem que os chineses deitem e rolem aqui. Eram tão ferrões, viraram ferrados?
Não existe desaquecimento industrial,mas sucateamento do parque industrial brasileiro. Estamos nos preparando para virar província chinesa.
Indústria trabalha com menos de 50% da capacidade, acumula estoques e fecha postos de trabalho. Foi pras picas mas é a "evolução negativa".
Fazer coro e mirar riscos: o pesadelo da linguagem começa cedo seu estrago na mídia. Não apenas não sabem, como não gostam de escrever.
RETORNO – Imagem desta edição: Sophia Grabner.
21 de março de 2012
VOLTA
Nei Duclós
O perdão não retoma o tempo
abre porta mas para outro quarto
não queira cobrir o ferimento
com seu entusiasmo pela volta
Algo se perdeu, talvez o medo
de dizer não quando chega a hora
melhor que o amor seja prudente
do que atirar-se se jogando fora
Amadurecemos, teu porte intenso
agora assume o trono de princesa
eu fui vassalo, adquiri consciência
Não falo mais num tom de sacrilégio
não reajo alto com razões supremas
apenas vivo ungido por teu privilégio
RETORNO – Imagem desta edição: Monica Bellucci.
RUÍDOS
Nei Duclós
Alguns ruídos fazem parte da noite. O lento subir da Lua. O pipocar das estrelas. As nuvens esparsas em viagem. E tua respiração, que é a minha.
Não estarei mais aqui, onde sequei. Escolhi a fonte que abandonei. Não importa a água, sugada pela areia, mas a sede, teu beijo.
Brincaste de solidão, marujo. Como se o alto mar não tivesse te ensinado que não há deserto maior.
Tanto amor desperdiçado. Agora é juntar o que se espalhou na tormenta. Venta de volta, venta.
Me trataste a pão e água, disse o soneto. Agora toma tento e vê se me serve algo mais decente.
Nem me fale, mar. Nem te conto meu pai Netuno. Os tridentes vão parar de tirar pedaço do meu coração. Há um marulhar de doçura que vem do fundo.
O sol, a lua, as estrelas podem falhar. Mas ela não. Ela volta. Não porque estava escrito, mas porque eu pedi.
Sabe este mar? disse Jack o Marujo para a Sereia. É pranto de marinheiro, que se derrama quando ninguém está olhando. Só a Lua vê e não me consola.
Suba no barco, implorou Jack o Marujo. Hoje, não, capitão, disse a Sereia. Preciso te deixar mais uma noite só porque viciei na tua saudade.
A poesia não é nada sem teu vestido de seda roçando minha perna no vento de uma praia fora do mapa.
ESPERA
Espera é areia que lidamos como se fosse terra fértil. Conseguimos estrelas do mar, caranguejos, conchas, pedrinhas. Mas jamais uma flor. Só o encontro é canteiro.
Talvez seja errado ter esperança e algo se partiu sem remédio. Mas tenho fé. Moro na estação do sentimento.
Bato em mim, bruto de pedra. Tudo terá de ser refeito. Desta vez, com o veludo do teu macio desejo.
Tive medo de tanta beleza. Alma roída custa a entender quando a fortuna pousa sua sombra iluminada.
Não poderia viver sem você. Não existe o verbo desviver.
Talvez venha chuva e tu, sereia, venha à superfície molhar teus cabelos com água doce. Poderás me ver abanando do convés, tirando o chapéu para a deusa.
Não estarei contigo. Deixo o poema, como flor, para quando despertares abrindo bruscamente a janela à minha procura
Ela está certo em desisitir. Assim como estou errado insistir. Mas não decidimos nada. Nem o mar, quando quer, flutua.
Pensamos que é um estágio quando entramos no amor, a eternidade.
Você se sente segura comigo. Eu fico firme, sentinela do abismo. Tenho você, corpo trêmulo.
Dá para viver sem sentimento. Contigo longe. O difícil é o que fazer com o tempo que sobra, a áspera eternidade do momento.
VÉSPERA
A cama é grande. Não use como álibi e venha.
Deve ser divertido me ver à tua roda tentando falar contigo. Não páras de rir.
Não faz sentido. Escrevi tanto quanto existem estrelas. E nem fiquei com uma delas. Ciúme da Lua?
Definiste o plano para a noite, com prazo de validade no horário marcado pelo pêndulo. Cumprimos. Na manhã seguinte, quando me vi na rua carregando os sapatos, saí dos trilhos.
Suei demais e fiquei à parte, meio com vergonha. Notaste, observadora de perfumes.
Foi só uma noite e não posso insistir. Quem sou eu para tocar a bainha de seda que a bela musa esvoaça, muda?
Não tenho para onde ir. Aponto para ti quando me perguntam o destino.
És minha pintura e nem uso pincéis. Sou de palavra, que a ti se entrega.
RETORNO – Imagem desta edição: Hedy Lamarr.
20 de março de 2012
A LUTA É NA LINGUAGEM
Nei Duclós
Primeira providência dos tiranos é desmoralizar a legitimidade das falas, contrapondo-as a uma pretensa "ação". Fala e não faz nada, dizem.
Os tiranos temem a insurgência da linguagem, pois o poder se exerce pelo discurso.
Liberar o verbo das soluções engessadas de linguagem é o caminho para nos desvencilhar da ditadura. É o núcleo da luta.
Admoeste com generalidades,advirta quem não tem poder,imponha-se perante a mídia sabuja e encare as câmaras com o olhar mortiço dos canalhas
Gaste o dinheiro público ostentando a riqueza que falta à nação, falando sempre no estado democrático de direito e na soberania do povo.
Use de maneira indecente o tempo disponível nas TVs institucionais para testemunhar perante os trouxas as providências que você jamais toma.
Sinta-se confortável no terno chique brega que encomendou por sugestão de sua personal trainer,a que leva toda a grana da propina em jóias.
Capriche na transparência cool dos óculos, para que faísquem nas câmaras.Mas faça de conta que eles não são de grife.Use sempre o tom casual
Para mentir, encaixe as mãos levantando os polegares e fazendo concha com as palmas. Desgrude uma delas e jogue gestos de onda, incisivos.
Se quiser mentir com credibilidade coloque umas bandeiras atrás de você, de preferência a do Brasil.
Ao tributar o alimento e isentar a picaretagem religiosa, o Brasil pune a sobrevivência espiritual e física. Suicida-se.
Gavetas são muito úteis para guardar o que jamais iremos achar.
Lutamos contra a frase pronta e o lugar comum, pois é na linguagem que acontece o conflito. Simplicidade é síntese.
Não há punição no Brasil porque traumatiza. É um país isento de palmadas.
Onde está o apoio para tanta sacanagem? No engessamento da linguagem. O verbo no trilho da tirania mantém tudo na opressão.
Quando você quer desmoralizar uma atividade ou conceito, diga que Hitler foi pioneiro nisso. Sempre cola.
A palavra que aproxima, também serve para a rejeição. Basta uma sílaba e você já está colocado em remota paisagem marciana.
Achamos petróleo, disse o explorador. Está chegando na porta da sua casa de praia.
Multiprocessador é o sujeito que usa a palavra processo para tudo
Por que o sr. rouba todo o dinheiro público? perguntou o popular. Para fortalecer o estado de direito democrático, respondeu o impopular.
Atribuir a alguém famoso o que você cita de um anônimo é a maneira de usufruir do prestígio da notoriedade beneficiada
A diferença entre uma revista importante e uma revista sem importância é que o editorial da revista importante não acaba com um boa leitura.
Um bom texto não almeja que você goste dele. Se você não gostar problema é seu. Ele tem auto-consciência.
Dinheiro é extremamente ofensivo quando cabe a você receber.
Quando um equívoco é desmascarado, imediatamente a revelação é apropriada pelo equivocado, que assim mantém intacto seu capital simbólico.
Os acertos não mudam os erros, antes se superpõem como camadas no acervo dos poderes, que assim dispõem de força de manipulação.
A criatividade dos indivíduos é sufocada pela indústria da notoriedade, que se apropria ou joga o crédito na vala comum do anonimato coletivo.
Os melhores insights, versos, idéias são devorados pelo imã das notoriedades, que assim sustentam o comércio da sociedade do espetáculo
Para os poderes, é mais fácil contar com algumas figurinhas carimbadas para que se possa transformar em lucro o que as pessoas criam.
MEMÓRIA
Nei Duclós
Soneto fora, como cão de guarda
velando pelo amor que foi embora
late para a Lua, morde a nuvem
expulsa os ladrões da tua memória
Poema inútil, como beijo solo
numa orquestra de invisíveis cordas
cais do trapézio, trêmula virtuose
numa praia sonâmbula e remota
A voz recolheu-se, eco sem montanha
balão de gás em busca do seu rumo
anjo que a dor marcou em plena sorte
Levaste contigo a manhã, o melhor do dia
quando acordavas junto ao desalinho
que teu corpo inventava antes da aurora
RETORNO – Imagem desta edição: Marilyn Monroe, foto de Douglas Kirkland.
INCÊNDIO
Nei Duclós
Não faça rescaldo. Dê espaço depois do incêndio. Não queime a lembrança da Lua pegando fogo.
Me surpreendes com tua entrega, mais completa do que imaginaria. Sempre estou aquém do que me aprontas. Sorte minha.
Mandei um coração para ela. Jogou fora. Achou que era spam.
Te mandei um presente minúsculo, sumia na minha mão bruta. Colheste como um alfinete, com a respiração suspensa.
Me civilizas. Tua beleza prova que faço parte de outro mundo. O que te admira através do cosmo frio e surdo, minha melodia.
Agora estás quieta e me escutas. Teu olhar está longe, além do muro. Viajas comigo, despertando a delícia.
Não tens nada a dizer? Fico só quando te calas.
Quero você fora desse perímetro, lá onde encontramos a crueza do nosso desejo. Onde a luz rasga o céu, tua conduta.
Medo da rejeição me imobiliza. Mas basta um sinal para que combines algo mais fundo.
Não há vida sem esse curto-circuito na morta planície. Desço da montanha com fúria, te acendendo, encantadora.
A poesia respira quando enfim me aceitas. Misturo meu ar na tua clorofila.
Te vi apressada e desconfiei. Tens outro. Ok, entregue a ficha. Vou ter um particular com o meliante.
CARTAS
Minhas cartas voltaram. Endereço desconhecido. Hoje passa uma avenida na sala da nossa primeira noite.
Lembro bem quando ficamos juntos na primeira vez. Estavas de vestido todo transparente. Há dez minutos tirei a roupa, me avisaste.
Na primeira vez, me orientaste em tudo. Eu não tinha o mapa. Era um rastreador intuitivo. Sabia que tinha água, mas não onde ficava o oásis.
Tinhas o cabelo liso, escorrido e um olho azul de jóia preciosa. Meio sorriso, passinho miúdo. Tomaste a iniciativa, claro. O bruto ainda engatinhava.
Não sinto saudade. Queria apenas um pouco de nós sobrevoando o tempo e chegando agora de uma longa viagem.
Abandonamos tudo por aquele amor. Depois, nos abandonamos, cada um para um lado. Quem entende as criaturas amadas?
Mentiam sobre tudo. Era proibido fazer perguntas. Precisei de ti e tuas sardas. Respiravas afogueada.
Quando imaginei já ser um especialista, foste embora. Eu tinha errado no básico. Passamos a vida aprendendo o que o outro gênero nos catequiza.
O namoro foi além da praça. Tinha um laço nas costas da fada. Os tecidos caíram nos sapatos. Lá fora o sol da tarde, dentro a penumbra do arraso.
Jogávamos cartas esquecidos de tudo. Aprendíamos o convívio, o amor fora da balada. Amadurecemos antes de chegar as férias.
RETORNO – Imagem desta edição: Marilyn Monroe.
19 de março de 2012
CRAZY, STUPID, LOVE: AMOR É TRANSPARÊNCIA
Nei Duclós
Não ia resenhar Amor a Toda Prova (2011), no original, Crazy, Stupid, Love, de Glenn Ficarra e John Requa, escrito por Dan Fogelman, e com os ótimos Steve Carell, Ryan Gosling e Julianne Moore. O filme é bom, não excepcional, mas está sendo injustiçado pela crítica. O pouco que olhei nas observações dos jornalistas me pôs na obrigação. Ele abordam os filmes “revolucionariamente”, ou seja, como se Lenin escrevesse sobre a Sétima Arte no Pravda. Assim, uma comédia romântica é conservadora pois passa um verniz moderninho na história para tudo ficar como está.
Vi montes de comédias românticas em que o casal que dá certo no final nem é nem esteve casado nem obedeceu às normas. Bem ao contrário: há sempre uma aposta na diversidade, na diferença radical, que no fundo está na origem das dificuldades enfrentadas pelos dois (ou mais casais). O problema é que não abordam a narrativa cinematográfica em seus limites, de trabalho voltado para a própria linguagem. Não que haja uma fórmula, mas uma lógica narrativa, em que a ruptura de dois amantes que não se reconhecem como tal acaba no fim do filme, quando um dos dois ou ambos se dão conta da besteira e acabam juntos. Stupid Love foge um pouco dessa receita e se transforma em drama, gerado pela transparência: o que acontece no amor e no erotismo quando ninguém tem mais nada a esconder?
Alguns gêneros me comovem, como a comédia romântica, que é sempre essa quebra entre duas pessoas que procuram o amor em outro lugar e no fim acabam se encontrando. Não se trata de moralismo, mas de natureza do gênero: é preciso que haja distanciamento na maior parte do filme para justificar o grude no fim. A diversidade das tramas só reforça que não se trata de uma babaquice qualquer. Fala de relacionamentos amorosos eróticos, que é o que ocupa a mente das pessoas a maior parte do tempo.
O filme em questão é uma sucessão de situações constrangedoras, provocadas pela cultura pós psicanálise: todo mundo fala tudo em público o tempo todo, não há segredos, a transparência é absoluta. Dizem na lata o que acontece com elas e o que querem. Mas tanta sinceridade acaba ocultando uma série de verdades. O casamento que acabou está apenas sendo testado, pois tem a permanência que contraria a superficialidade dos desdobramentos (a liberação da caça, por exemplo); o triângulo amoroso que envolve pessoas de idades diferentes vai além da precocidade ou da idéia de que a idade define os papéis.
Há situações hilárias, como a crítica ao físico do galã da hora, Gosling, quando tira a camisa e a namorada acha que ele passou photoshop no tanquinho. E tristes, como o marido traído que conta sua desventura todas as noites para todo o bar ouvir. Tensas como a briga do casal que tentava se reconciliar. Bonitas como o clipe do relacionamento que começa numa noite de transa e no fim surpreende com o sentimento fincando raízes. Patéticas, como garoto de 13 anos que confessa no pátio do colégio que está apaixonado pela babá. Todo mundo paga o maior mico neste filme rápido, bem escrito e encantador.
Contribuições importantes: a sempre boa Marisa Tomei faz a professora alcoólatra que rompe o longo jejum do marido traído. O insosso Kevin Bacon , o amante ocasional que leva uma dura do filho adolescente do seu rival, se esforça e dá certo como o contador que quer conquistar a colega mais importante do que ele. E a ótima Emma Stone, que extrapola no papel da solteira que encontra o amor quando se desespera. Há um clima de shopping e happy hour o tempo todo, mas afloram as verdades pessoais graças ao script e a segura direção de atores. Farrel, o francês narigudo, está ótimo como o babaca sedentário e distraído. E Gosling é o galã no seu papel clássico, o conquistador indiferente que cai na própria armadilha.
Quando escrevo sobre cinema, não sou cineasta, mas autor de texto. Não falo em plano sequência ou campo/contracampo. Tenho sido criticado por ser pouco técnico nos meus textos sobre cinema, e que me deixo levar pelas emoções e retaliações, o que é uma distorção. Minha abordagem é técnica e pode ser resumida em alguns princípios, que vivo repetindo para dar base ao que escrevo, como este: todo filme é sobre cinema. Por exemplo: inspirado em Dirty Dancing - Ritmo Quente, 1986 , em que Patrick Swayze levanta sua partner até acima dos ombros e depois a desce bem próxima, o conquistador faz seu grande lance para a garota que quer levar para a cama. Costuma dar certo. É o filme e seu foco principal, o cinema.
Outro princípio: não existe reconstituição de época e sim elementos do cenários dispostos em função da narrativa. No filme, a assepsia do ambiente da caça amorosa se contrapõe ao caos doméstico do jardim para ser cuidado e o fogão que não acende. A busca do par acontece assim na oposição entre a veracidade do lar e a superficialidade do bar. Os dois ambientes não se referem ao ano em que se passa a história, mas à dramaturgia da história. Mais um: os atores são divididos entre monstros (que encarnam os personagens, como a grande Juliane Moore) e cavaleiros (que o carregam pela mão de maneira brechtiana desdramática, como Steve Carell, que o tempo todo descreve o bobalhão traído). A partir disso, teço o texto incorporando a obra audiovisual, cada uma com sua originalidade.
É um acervo técnico bom. E jamais deixo de lado o coração, pois o sentimento faz parte do conhecimento. Fazer pose desértica não coloca ninguém na vanguarda ou em posição revolucionária. Mas ver com amor nos revela detalhes insuspeitos. Saber ver é também saber gostar do que se vê. E é bom lembrar: revolução é linguagem.
RETORNO - Imagem desta edição: Ryan Gosling e Emma Stone.
PAPEL E VENTO
Nei Duclós
Vamos falar do ruído, que é o silêncio
no intervalo da lata, teus soluços
arrombo da mudança, andar mudo
que inauguramos entre desavenças
Vamos falar do jeito bruto que servi
teu peito ferido pela tempestade
e como descobri que sempre sou
o que não devo ser, pedra lascada
E de como sumiste pelo pó dos ares
princesa que desperdiçou seu canto
sou servo de uma herança de maldades
Agora é tarde e só descubro o pranto
diante de tua lembrança, papel e vento
Voas no mar, de onde me expulsaste
RETORNO – Imagem desta edição: Winona Ryder.
PORTO
Nei Duclós
Dancei a lembrança ao redor da valsa
até cansar o passo que não estudamos
sentado no meio fio desenho o lance
de trocar pela carne essa luz fantasma
Você errou, eu errei, talvez seja o destino
que tenha feito o amor se atrapalhar à toa
Sobramos na mão de Deus, anjos na esquina
são moleques a testar nosso pobre fôlego
Perdemos esta chance, apesar do esforço
não há mais melodia que resgate a barca
e seu convés de gala a convidar estrelas
Sangramos devagar vendo o velame
empurrar o vento para o impasse torto
mas um dia aporto onde fomos belos
RETORNO – Imagem desta edição: obra de Marie-Denise Villers.
18 de março de 2012
VIDRAÇA
Nei Duclós
Estou ocupado. Suspendi todos os compromissos para te esperar.
A vidraça do salão mostra a noite. Vemos a cidade, que não descansa. As luzes concorrem com as estrelas. Há uma chuva de prata em teus olhos de amêndoa.
Conseguiste me tirar da vista? Sou o horizonte que o mar limita.
É tudo fantasia, ou seja, sentimento. Bate coração, que tudo dá no mesmo.
É sábado, o batom é vermelho. Aproxime sua boca na minha orelha. Quero escutar o sussurro do desejo.
Dispense a carruagem, não é de confiança. Cristal é design, mas desconfortável. Enrede-se nas cortinas, que é para lá que te levo.
Está pronta? Vim te buscar para o baile. O som vem do vento nas palavras. O sonho é o virtuose. E a valsa é aquela nossa, lembra?
Fica, disse ela. Tem chocolate no céu da minha boca.
Há uma risada coletiva que cruza o tempo. O perfume vem dos corpos, amenos.
Tinhas que fazer não sei o quê, mas acabaste dormindo no meu colo. Eu precisava sair, mas quem sou eu para contrariar o destino?
Quando o amor enfim dá certo, o poema descansa e fica lendo almanaques antigos.
Já que não voltas, volto eu. Pena que estarei só para me receber.
Sou invisível. Saí do teu convívio.
Sim, comecei cedo. Vou parar. Preciso arrumar os presentes que me deste e que estão espalhados de qualquer jeito.
Não amar é como viagem de turismo de um exilado. Em cada lugar, pulsa o sonho da felicidade perdida.
Vou falar um pouco sobre o que é bom no amor. Preciso de ti para me lembrar.
Depois que te perdi, procurei meu coração no deserto. Tinha virado pedra.
Não precisa passar por aqui. Estou debaixo da tua marquise.
Consoantes são o barro. Vogais, a alma imortal.
RETORNO - Imagem desta edição: Natalie Portman.
ELA ME DISSE
ELA ME DISSE
Nei Duclós
Gosto quando misturas, ela me disse.
Doce e picante, poema e surra.
Cavalgo e sou montaria. Quando desces, subo.
Molhada se estás enxuto. Seca se me inundas.
Da fera e do bruto. E da arte dita sem rodeios.
Do gemido e o sussurro. Do amor que machuca
Gosto do barulho e do assunto. Verbo e espinho
Sulcas o que entrego em meus canteiros
Te quero porque assim me cruzas, ela me disse
sou terra e caminho, prazer e estudo
Gosto do amargo, mas não da amargura
Custas a descobrir o que eu procuro, ela me disse
essa superfície funda, essa bóia no mergulho
Mas quando achas, não tenha dúvida, sou toda tua
RETORNO - Foto sem crédito num site sobre maquiagem. Fazendo boa companhia ao poema.
17 de março de 2012
DE VOLTA PARA O FUTURO: POR QUE FUNCIONA?
Nei Duclós
É lei: toda vez que vejo um milissegundo de qualquer cena da série de três filmes “De volta para o futuro” eu acabo vendo tudo de novo. Qual a mágica? A perfeição nos detalhes. Não tem linha fora no script. Os cenários são convincentes. No lugar de épocas maquiadas, temos reproduções dos sinais do Tempo que sugerem autenticidade. O mais hilário e encantador são os cruzamentos de épocas, como o carrinho de rolimã dos anos 50 que vira skate dos anos 90, ou a impagável cena do bailinho do colégio, com a empolgação do protagonista na guitarra, que começa com Little Richard e termina com AC/DC.
Outra coisa que pega fundo no filme (veja os três como um só) é a conexão incestuosa entre mãe e filho que é rompida pelo puritanismo do beijo que não funciona. É um jogo sofisticado. O garoto luta para não desaparecer e vira alcoviteiro dos próprios pais para que não haja interferência nefasta no futuro das pessoas. Mas esse princípio de não interferência é rompido pelo próprio cientista, que se preserva do atentado depois de ter lido como iria morrer. Isso também é forte nessa obra antológica: os paradigmas mudam conforme a trama vai se intensificando.
Seria muito fácil se perder no vai e vem do tempo, mas existem âncoras perfeitas para que tudo funcione. Uma delas são os próprios filmes. Quando o garoto faz sua primeira viagem, se certifica que está em 1955 quando vê os cartazes de uma atração no cinema local com Barbara Stanwick. Há também a encarnação de clássicos, como na assustadora sequência, já no terceiro filme, em que o protagonista vê o mundo destruído pela sua própria culpa, como acontece no clássico de Frank Capra It´s a wonderful life. James Stewart confrontado com a ruína de sua vida depois de ter pedido para não ter nascido é idêntico ao jovem que testemunha a derrocada da sua cidade e de sua família depois que o vilão rouba os resultados dos jogos e assim fica rico e poderoso para acabar com tudo.
As inúmeras citações e encarnações da cultura dos últimos 50 anos fazem do filme um balanço da criatividade americana, do faroeste aos gibis, as histórias de ficção científica, os grandes ídolos musicais, o marketing, os produtos de referência, da Pepsi a Calvin Klein. Assim vemos sequências bem montadas que cruzam terninho e gravata com roupas futuristas, timidez com abuso, terrorismo com romance, vocação com frustração, medo com coragem, ciência popular com os comics etc. Seria fácil se perder nesse emaranhado, mas isso não acontece. Devido também à magnífica direção de atores, todos antológicos em seus papéis.
O cientista louco (Christopher Lloyd ) é o próprio professor Pardal da Disney, inclusive com o chapéu de ter idéias, um dos elementos mais conhecidos do grande personagem das revistinhas. Michael J. Fox é o carismático viajante no tempo que seduz sem querer a própria mãe (Lorraine Baines). Crispin Glover faz o atrapalhado autor de ficção científica que sofre para conquistar seu amor. E Thomas F. Wilson é um dos vilões mais execráveis da história do cinema. Adoramos odiá-lo e torcer para que McFly reaja depois de ser chamado de chicken.
O filme trabalha o sonho americano dos vencedores. O garoto ganha o carrão sonhado e reencontra sua bela namorada (Claudia Wells), o pai vira autor consagrado, a mãe fica magra e deixa de beber e o bandido vira subalterno limpador de carro para expiar sua culpa das atrocidades cometidas. O filme não aposta no erro, mas o estoca com cenas intensas de suspense, como a do raio na igreja, quando o professor faz um Harold Lloyd suspenso no relógio da torre, como no filme clássico super citado. Enquanto em Hugo a citação de Harold Lloyd no relógio é reprodução pura e simples, em De Volta para o futuro é altamente elaborada.
O director Robert Zemeckis, que escreveu o roteiro junto com Bob Gale, faz parte da turma do produtor Steven Spielberg. Sempre Steven, o gênio.
RETORNO - Imagem desta edição: cena em De Volta para o Futuro I, com Christopher Lloyd e Michael J. Fox.
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