31 de maio de 2008

A LUTA DELES


Vejo Mein Kampf (Minha luta), documentário sobre a ascensão e queda de Hitler. Está tudo lá. Hitler tentou tomar o poder via golpe de estado, não conseguiu. Resolveu se eleger e conseguiu seu objetivo manipulando o sistema político, neutralizando a oposição, mais tarde eliminada. No poder, deu um golpe de estado a partir do incêndio do Reichstag, colocando a culpa num holandês e alguns comunistas (a Holanda odeia a Alemanha até hoje, exatamente devido aos nazistas, que invadiram o país).

Uniu a nação derrubando os governos provinciais e tacou fogo no mundo. Fazia discursos politicamente corretos, como a velha cantilena de que não imitaria os políticos corruptos. Enquanto pregava a correção, implantava o terror. Depois de assinar vários pactos de não agressão (com a Noruega, França, Dinamarca, Polônia, Rússia) invadiu todos. Vimos esse filme várias vezes.

Recebi, a propósito, a seguinte notícia: Scott McClellan, ex-assessor de imprensa de George W. Bush por quase uma década, escreveu em seu novo livro de memórias que a guerra no Iraque foi vendida à população dos EUA apoiada em um forte aparato de campanha, com o objetivo de "manipular as fontes de opinião pública" para "esconder o motivo principal de entrar em guerra". Foi o que Hitler fez. Usou a propaganda e o marketing para manipular a opinião pública, posar de salvador da pátria e destruir quem estivesse na frente.

Uma coincidência espantosa é o que ele fala sobre a necessidade de os jovens alemães serem magros, elegantes e fortes. A pregação da eugenia triunfou. Hoje a moda é corpo sarado. Vejo a rapaziada toda, mas toda mesmo, de corpo tatuado, com aquela deformação física dos halterofilistas, troncos largos, peitoral abundante, latifúndios costais. É a padronização dos corpos, coisa do nazismo.

Gerar um discurso que conquista votos e mentes é um expediente maroto. Vejam o que Lula está fazendo: vociferando contra os estrangeiros que cobiçam a Amazônia, enquanto faz tudo direitinho para entregar o território (deixando que as pastagens, a soja e a cana invadam, fechando os olhos para o desmatamento, garantindo a exploração do subsolo para quem não é brasileiro, por muitas década, criando reservas indígenas contínuas, ou seja, inventando enclaves em pleno território nacional. “Quem fala mal de nós não tem uma árvore em pé”, disse Lula. Parece o Diário da Fonte. Ei, os assessores estão lendo este jornal? Assim não vale, assim não dá. Usar a argumentação da oposição para posar de politicamente correto!

Hitler uniu a Alemanha destruindo as diferenças regionais (ou as mantendo sob o tacão da iconografia e comportamento nazistas). Para se diferenciar do nazismo, foi criada a diversidade. Mas não importa unidade ou diversidade, o que importa são as intenções, a boa fé o bom senso. É preciso ter uma nação coesa, que defenda o território, mas isso não significa matar gente para conseguir o objetivo. Não é preciso incentivar a diversidade, que existe naturalmente, basta não massacrar as diferenças, interagir com elas e não permitir que a soberania se perca devido ao expediente sem-vergonha de invadir a nação.

O documentário sobre Hitler peca pela falta de rigor histórico. Coloca a culpa da ascensão do ditador em nós, ou seja, no Ocidente que deixou que tudo isso acontecesse. Como se a culpa regesse o mundo. Não aborda as condições econômicas, os motivos imperialistas, a divisão do bolo entre as várias cobiças imperialistas. Marx sempre faz falta num trabalho de História. É preciso levar em conta o bom e velho alemão. É fundamental não se abraçar com o alemão errado. Ou austríaco.


RETORNO - Imagem de hoje: foto de Bebeto Alves, da série "Óleo, ferro e concreto armado".

30 de maio de 2008

O FINO DA PROSA



Nei Duclós

Escrever literatura é um duelo de punhais num território dominado pela pólvora. A desvantagem é enorme: não há sobrevivência aparente para uma arte de armas brancas diante da capacidade do fogo inimigo. O confronto retrocede até a arena mais oculta, pois se trata de manter viva essa esgrima de lâminas curtas (letra, sílaba, palavra), que exige suor e provoca ferimentos. É manter a sobrevida num condenado, suportando o convívio desigual em relação à complexa cadeia de explosões em volta - a indústria cultural e os cânones, os lançamentos fulgurantes e a reprodução infinita dos mesmos, a percepção viciada e indevassável, a leitura recorrente e o desprezo aos que procuram emergir de alguma forma.

Ou o escritor se recolhe e imagina a luta, sabendo que não vai derrotar a força que o exclui, ou sai a campo e encontra o deserto. Mesmo que autor seja imediatamente reconhecido, como é o caso de Tony Monti, que foi celebrado já no seu livro de estréia, O Mentiroso (7letras, 2003), vencedor do projeto Nascente, da Universidade de São Paulo em 2002. O impulso inicial vale , mas não é suficiente. Não temos, no Brasil, ventos favoráveis constantes para que os talentos possam cumprir destinos e vocações. Vivemos em espasmos, em premiados que caem no esquecimento, em aplausos que o tempo cobre. Depende do autor seguir adiante e é o que Tony Monti consegue fazer, mesmo agora, desarmado do apoio inicial, quando chega ao seu segundo livro, O menino da rosa (Hedra, 46 páginas).

Tony traz embutida uma postura pessoal que reflete o da sua geração (ele está chegando aos 30 anos): as concessões não são importantes. Não fazer concessões é o lugar comum mais desmoralizado depois do revés sofrido pelas utopias. Não significa que os escritores agora aceitem a derrota, e tenham desistido de redescobrir a vida na matéria bruta. Simplesmente mudaram o foco, ou melhor, já nascem com outra embocadura. É por isso, talvez, que inúmeros escritores nessa faixa de idade trabalhem hoje em outro patamar, fora da linearidade que opunha legitimidade e farsa, verdade e mentira, realidade e imaginação.

É que sua estratégia traz carregada um baú de emergências, para o caso de a barra pesar. São mantos que espalham disfarces cada vez mais freqüentes, como se a literatura cumprisse a sina apontada pelos preconceitos e fosse realmente tudo mentira. O que decide um duelo de punhais, que por natureza é feito de maneira franca e aberta, são os detalhes especialmente que confundem o adversário. Tony se aprofundou nessa arte, como revelam os contos do seu primeiro livro, e a desconversa contínua do seu blog, o Exato Acidente (que costuma ser batizado com outros nomes).

Essa brincadeira de esconde-esconde não é a fuga em direção a uma arte superficial ou obscura. É a maneira de se chegar à essência do drama, pois o que resta para um autor que chega a uma literatura que se transformou num mega-negócio e que é cercada por milhões de pessoas que estão escrevendo ao mesmo tempo sobre tudo, na rede múltipla da web infinita? Restam sua partícula de vivência, seus verdes anos, seus sonhos mais antigos, sua pessoalidade extravagante. Morando em casas idênticas às de seus colegas, convivendo com o mesmo tipo de pessoas, cercado por famílias numerosas que se repetem em gestos e tradições, a originalidade está na linguagem raspada de toda espécie de “conteúdo”, essa palavra mentirosa que tomou conta das mídias.

Fica mais claro se pegarmos o pequeno livro à unha, que de tão curto pode ser lido sem queimar calorias. Em princípio, são memórias da infância, escritas numa clareza do universo infantil, em frases que se encadeiam na lógica realista dos olhos que enxergam pela primeira vez. Mas é mais proveitoso ler como o enxugamento total da arte a que nos referimos acima. Como se a briga feia que usa apenas punhais pudesse ser representada por poucas linhas de um design essencial.

O resultado é um terreno baldio, onde caem frutos maduros explosivos. O que vai ser quando crescer? “Aos quatro anos , eu queria ser caminhão”. Que fim deu aquela garota que roubou seu coração no Primeiro Grau? Ela volta ciclicamente, cada vez mais perto da vida adulta, e marca encontros sucessivos para o resto da vida. Por que meu nome escrito não me representa direito, como se na página ele fosse uma outra pessoa? Nesse espaço pessoal, o mar tem cheiro e, a areia, gosto. E o toque no braço da tia - um pouco mais velha -, era diferente quando o atingia, não fazia o mesmo efeito do que o toque no braço da irmã.

É pouco para que seja visto como criatura no zoológico das autorias? É o que Tony Monti tem, essa escassez que busca o brilho, esse recuo que reage, esse disfarce que quebra a leitura e a transporta para outras paragens. Por ser curto, o livro engana a pressa dos olhos que acham já terem visto tudo. Não precisa ficar relendo, o autor se entrega na primeira viagem. Mas é preciso ler de maneira decidida, pois não haverá outra chance. Se o leitor passar impune, não poderá ver o fio de água que a chuva verte pela fresta da grande janela da sala. Não se enganará de casa na busca da primeira namorada. Não reconhecerá a alegria no pai que sempre sorri e o leva para a praia.

Também não precisa cair na tentação de achar que se trata de prosa poética. Poesia é outra coisa. Aqui o que existe é o fino da prosa. Não pela espessura mínima do volume ou pela economia dos contos. Mas por ser silêncio em tempo de gritaria, por ser voz em época de mesmice, por ser dor, mesmo que só ofereça o curativo. Não que haja recados por baixo da narrativa. O que há mesmo é prosa, finíssima, para ouvidos fecundos. E uma autoria que se projeta em vôo circunflexo em meio à tempestade de almas, em linha reta.

RETORNO - Esta resenha teve a valiosa contribuição da escritora Beth Fleury, editora da futura revista Os Sertões. Com sua leitura atenta, Beth apontou e solucionou uma série de detalhes que atrapalhavam o texto.

28 de maio de 2008

O ÚLTIMO REDUTO DA LEI


A “mão” no trânsito é o último reduto da lei. Dirigir na contra-mão significa romper definitivamente com as determinações, as regras, as imposições que tentam manter a isonomia entre motoristas. É o extremo privilégio, ir contra o fluxo desafiando a lógica. É porque outra lógica se impõe no país entregue aos bandidos. É a vontade de colocar tudo de pernas para o ar, contrariar o bom-senso, desprezar os outros, arriscar a própria vida e as que estão ao redor. Só em São Paulo foram sete casos nos últimos dias, segundo a Folha, de gente envolvida nesse tipo de crime. Há várias explicações e justificativas, como alcoolismo e deficiências psíquicas.

Estou tendendo a desacreditar da loucura. Não me levem a mal. Mas você conhece alguém que comete um ato de loucura para o bem? A loucura só se manifesta para o mal, para ao assassinato, suicídio, distúrbio público, atentados etc. Se o acesso de loucura é um problema de saúde, então vamos combinar o seguinte: é preciso que um determinado número de pessoas também pirem para coisas boas. Por exemplo, sair ajudando todo mundo de maneira impensada. Fazer gentilezas fora de hora. Ousar a salvação dos outros quando tudo parece impossível. Se não a coisa está mal contada. É mole enlouquecer matando geral. Isso qualquer um faz. Deve ser gostoso destruir, já que tanta gente se especializou nesse ofício.

Mas, falávamos de trânsito. A quantidade de automóveis nas ruas é fruto de decisões políticas do passado. É quando nos entregamos como filhos da mãe para a estrangeirada. É quando decidimos transformar a região do grande ABC naquela cloaca de montadoras que produzem sem parar, para o mundo todo, automóveis que são vendidos a 70 suaves prestações. Não faz sentido. Se todos sabem que o troço vai acabar destruindo o país, já que as maiores cidades estão praticamente paradas, então por que não tomam providências?

O petróleo nas alturas é o sintoma dessa crise interminável. Se todo mundo precisa de automóvel, como prova até a China, tão bicicleteira tradicional e que resolveu meter bronca no motor movido a combustível, para que inventar paliativas como o biodiesel, que só vai adiar o problema, além de ajudar a destruir o que resta de terra arável? Se a porra polui, acaba, por tabela, inflacionando os alimentos, se o troço mata sem parar em todas as ruas, becos, avenidas e estradas, para que continuar desovando automóveis sem conta, apoiados por grossa dinheirama da publicidade (que só mostra, claro, carros andando em estradas desertas).

Dirigir na contra-mão tem a ver com os chamados filmes de ação (que explodem carros para incentivar o consumo) e com as campanhas de publicidade: tudo pode nesses filmecos criminosos e luxuosos. Então por que não ir contra a corrente, desvencilhar-se da massa, ser herói da própria lenda pessoal e investir o carrão no contra-fluxo, “duela a quien duela”? É possível fazer esse tipo de barbaridade. Depois que o estrago está feito, chegam os reis dos panos quentes, os soberbos defensores do bem-estar dos meliantes. “O cara tem problema, por isso dirigiu na contra-mão”. Um bom cacete. Tomou a direção errada porque é um safado e precisa de um corretivo, trabalhos comunitários pesados, cursos de boas maneiras e primeiros socorros, ou simplesmente cadeia.

Pobrezinho, tem problemas. Claro que tem.Vive num ambiente de transgressão, onde ninguém respeita ninguém, todo mundo quer devorar o próximo. Onde sobram flanelinhas bem frente a instituições de Justiça (como acontece aqui em Florianópolis, segundo denúncia da RBS), onde carrões possantes fungam atrás dos outros, cruzam faixas de pedestres e faróis de trânsito a toda velocidade, estacionam na horizontal ocupando de três a quatro vagas.

Daí para a contra-mão é um pulo. Ou apenas engatar nova marcha. O que dizem ser loucura é pura sacanagem.

27 de maio de 2008

SILÊNCIO DE FOGO


Nei Duclós (*)

A narrativa objetiva, enxuta, precisa, sem nenhuma emoção, descrevendo algo brutal, arrebatador, sinistro, é o contraponto genial criado por grandes escritores a partir de Cervantes e que chegou ao ápice na obra autobiográfica de Máximo Gorki. Esse achado, que se opõe à exaustão dos truques ilusionistas, se estendeu a Kafka e, despido de toda indumentária possível, até Dalton Trevisan. É ainda uma solução literária radicalmente nova, fora das preferências pelo palavreado arrastado, pomposo, excessivo, explícito.

Arrancar o coração na hora de escrever ou declamar é o expediente mais corriqueiro dos que ainda imaginam a literatura refém das entrelinhas, como alma chorona presa na torre. É um vício que não enxerga a linguagem como criatura e a confunde com emoções baratas. Quando as intenções contaminam a obra, derramando-se para fora da página e expressando a grandiloqüência, fica claro que o excesso é pura vaidade. Costuma arrancar aplausos. É o dó de peito da palavra, que nunca sai da moda.

O difícil é simplesmente abrir mão do que achamos ser nossa humanidade e compor um texto, um poema em que a lança incisiva do talento cutuca a realidade, reproduzindo sua aparente indiferença, a frieza, a voragem infindável de tempos e impérios. É preciso mais do que humildade (que costuma ser o álibi perfeito da arrogância dos bem-postos). Também não se trata de anular-se, já que o narrador continua ativo, dominando o espetáculo. O que precisa ser feito é não atribuir à palavra mais do que ela pode suportar.

Palavra é osso antigo que virou pedra, é árvore impassível em dia de mormaço. As palavras não gemem ou choram nem fazem confissões, como ensinava o árcade virtual Alberto Caieiro quando se referia aos rios (no fundo, à palavra “rios”). O verbo, apesar de divinizado no universo bíblico, é coisa terrena, feito de detalhes, entonações, saliva, roncos. Vibra por acaso como pedaço de papel grudado nas ruínas do deserto, em plena ventania. Não tem utilidade, já que a vida prosaica é dominada pela força e não pelo discurso.

É dispensável em fotos, acenos, beijos, socos, saltos, chutes. Ninguém precisa da palavra quando se entrega a qualquer ação básica, como chorar, respirar, suar. Foi inventada pela vocação de querermos dominar tudo no grito. Ao criar uma palavra para cada coisa, substituímos as coisas pelas palavras, como notou Michel Foucault. Crescemos então num mundo de frases, textos, versos, atirados por todo canto.

As palavras perderam a força pelo excesso de sentido que transferimos para elas. Mas a solução já foi encontrada. Basta render-se ao que a palavra é de fato, um ovo esquecido no ninho depois do furacão. Lá está ela, perdida de si mesma, a brilhar com a possibilidade da fecundação. O escritor a toca pelas pontas, para não quebrá-la. Coloca-a contra a luz para enxergar o estado em que se encontra. E a deposita de volta, sem fazer ruído.

Os mestres são pastores ascetas que descansam ao crepúsculo depois de apascentar o dia inteiro. É quando aguardam a noite, que é o momento em que abrimos os seus livros. O escritor que não se esparrama, nem se entrega, aprende a nos revelar o oculto, usando as palavras no que elas têm de espessura e carne viva. Em absoluto silêncio, fabrica fogo, fazendo fricção entre granito e eternidade. Essa quietude nos surpreende porque não expõe inutilmente seu acervo de assombros.


RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 27 de maio de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Anderson Petroceli, o cara que captura o assunto antes de existir o texto.

25 de maio de 2008

OS CÍRCULOS DA FALSA DEMOCRACIA


Fogão a lenha tem, na chapa, um conjunto de círculos de ferro acoplados, que calibram o volume do fogo para todo tipo de comida. São retirados ou colocados, conforme a necessidade, por uma barra de ferro torcida na ponta, que fisga o aro quente. O círculo maior, que sai por último, é para fazer pratos poderosos, como o feijão, cozido em grandes panelas de ferro. Para esquentar uma chaleira, precisa apenas retirar o primeiro da fila, o círculo menor. Esse sistema é usado na falsa democracia que nos ilude e explora. Cada roda é um nível de representação popular manipulada.

A primeira é o programa de auditório. A arena da claque orquestrada pelos animadores aplaude os princípios veiculados nos domingões faustosos, nos sabadaços sertanojos, nas manhãs xuxadas. Representa o eleitor, que precisa votar no consenso engendrado pelos donos do poder, o consumidor, que devora novelas, xampus e crédito fácil. É o núcleo da sacanagem, onde o fogo está concentrado num pequeno, mas significativo espaço. É onde se concentra o grosso da publicidade, que estimula o grude coletivo monitorado.

A segunda roda, um pouco maior, é o chamado povo-fala (era assim que batizavam as entrevistas feitas na rua, não sei como dizem agora). Para que se justifique tudo o que está sendo inoculado no programa de auditório, é preciso que apareçam as pessoas, em filmagens externas, confirmando que o líder criminoso da favela tem toda a razão de existir e de ser a lei do mais forte, por exemplo. Enquanto a perversidade corre solta no programa de auditório, o segundo círculo, o do povo-fala, cerca a mentiragem com uma espécie de álibi perfeito, tipo a voz do povo é a voz de Deus.

A terceira roda, de maior alcance e poder de fogo, são as pesquisas de opinião encomendadas. Desde 1982, no escândalo Proconsult, sabemos para que servem as pesquisas. Não mudou nada, só tiveram o cuidado de não dispor nenhum Brizola por perto. Agora estão pesquisando, com dinheiro público, quantas vezes você vai o banheiro. O resultado será vendido para fábricas de papel higiênico, naturalmente. Se você dá ou come e de onde você tira a suada sobrevivência. Se você vive com sua tia e em quem vai votar. Pesquisa é uma coisa, o resultado é outro. Serve para justificar a opinião pública a favor do comércio de produtos e cargos (as velhas mamatas, como provam os cartões corporativos).

Na quarta roda, bem maior, existem as campanhas eleitorais. Milionárias, mas veiculadas graças às concessões públicas da difusão. Obedientes ao marketing, com suas câmaras lentas de pessoas se abraçando, suas palavras recorrentes (saúde, educação), as caras lombrosianas, as batidas no peito a favor da ética e toda essa baboseira que conhecemos. É um círculo foda, pois ali fervem as grandes granas expropriadas da população. A verba grossa tem destino ali, nas campanhas. Os mandatos servem para pagar campanhas anteriores e preparar as novas.

E por último, a grande roda de ferver feijão em grossas panelas, o discurso oficial, as falas dos governantes, os que já estão com a mão na massa e mentem sem parar, de olho nas pesquisas, nos programas de auditório, no noticiário. Nesse discurso nascem expressões como duela a quien duela (Collor), assim não pode, assim não dá (FHC), nunca antes neste país (Lula), sem falar nas expressões cretinas como vontade política, força tarefa, saia justa, tomar posse etc.

Na grande chapa do fogão da lenha da nacionalidade, somos fritados em óleo quente. É como diziam para Frank Sinatra em inesquecível comédia (The lady is a tramp): jump, jump, Joe, jump. Pule, pule, Joe, pule. Como já foi dito aqui, nós somos o play-ground dessa canalha.

RETORNO - Faça um teste: coloque o nome de Sandra Corveloni, entre aspas, no Google. Virão milhares de ocorrências, a maioria do prêmio que ela ganhou como melhor atriz em Cannes neste fim-de-semana. O resto são apenas citações por seu trabalho no teatro. Ou seja, não existe nenhuma entrevista, nenhum destaque. Ela jamais foi assunto de capa de caderno cultural, nunca apareceu falando do seu trabalho, nem estava cogitada para ganhar o que ganhou. Até mesmo Walter Salles, diretor do filme onde atuou, confessou surpresa. Sandra, por problemas de saúde, dizem, não compareceu ao evento. Certamente colaborou também para sua ausência a falta absoluta de esperança de vencer dessa maneira. Vemos isso diariamente: o talento sendo colocado de lado. Na Globo, tiveram a manha de dizer que ela era desconhecida até a data de ontem. Se era desconhecida é por culpa da mídia viciada, que só vai no Mesmo, repetindo sempre os mesmos nomezinhos. Walter Salles e Daniela Thomas ganharam milhares de ocorrências na mídia, mas o único prêmio do filme foi para Sandra. Quem é? Ninguém. É preciso que os estrangeiros venham apontar nossos talentos, que aqui são cercados de indiferença.

24 de maio de 2008

A VERDADE SOBRE OS ANOS 60


Nei Duclós (*)

Tudo o que é relacionado, hoje, aos anos 60 era, nos anos 60, considerado um horror. Por exemplo: cabelo comprido. Nas capitais provocava apenas xingamento, má vontade, deboche. Mas no interior a punição era o apedrejamento. Outra: rock. Ligado à sujeira e à vagabundagem, rock era coisa de pessoas desviadas do rumo. Dava cadeia. Mais: ser de esquerda. Ninguém tolerava um esquerdista. As bocas se inflavam com o xingamento gritado: comunista! O chic, o elegante, era ser de direita. Ser reaça era o fino. Comunista era morto a paulada.

Em relação às mulheres, a barrava pesava ainda mais. Não havia mulher liberada. Existiam as casadas e as solteiras. O resto era uma pouca vergonha. Sexo livre tinha outro nome. Querem mais? Cinema de vanguarda: Godard esvaziava os cinemas. Filme com gente de olho parado era recebido aos pontapés. Vi gente sair berrando das sessões de Glauber Rocha. Ingmar Bergman? Piada de intelectual. Dava sono. “Não entendi”: eis a frase mais ouvida depois de um Antonioni.

Poeta lido chamava-se J.G. de Araújo Jorge. A vanguarda seca e granítica, João Cabral, os Irmãos Campos, os transgressores Mario e Oswald de Andrade, o tísico Bandeira ou o desencantado Drummond não faziam parte das prioridades nacionais. Romances, os de Sidney Sheldon ou algo parecido (não sei, agora tudo se embaralha). No máximo um Jorge Amado. Revista impressa: ainda imperava a Seleções, com suas seções “Piadas de caserna, Rir é o melhor remédio, Meu tipo inesquecível”. Quando surgiu a Realidade, já no fim da década, com um sucesso estrondoso, a censura caiu matando. A mesma coisa aconteceu com o Pasquim. Com uma agravante: mais tarde, tiraram o crédito do Tarso de Castro como fundador do jornal alternativo, que chegou a vender 200 mil exemplares por semana. Os que se atribuíram o feito hoje estão milionários, já que “lutaram contra a ditadura”.

Quem lutou de fato contra a ditadura, morreu. Os sobreviventes dançaram conforme a música. A repressão, assim como a escravidão, foi instalada em rede por todo o tecido social. Não havia como escapar. Protagonistas tardios fizeram carreiras batendo no peito. A verdade é que a ditadura não foi derrotada ainda. Costumam esquecer que o movimento das Diretas-Já perdeu a batalha no Congresso em 1984. O primeiro presidente civil depois do regime militar era vice de uma chapa que não tinha assumido. Não poderia, portanto, ascender ao cargo. A política econômica é praticamente a mesma, tanto é que os velhos tzars da economia continuam pontificando.

Ok, mas e o voto? Considero o voto útil o novo voto de cabresto. Nossos governantes são eleitos num sistema político engessado, onde um voto na selva (derrubada) vale dez das grandes cidades. Nesse quadro, a classe política não se renova. Sobrevive ainda a Medida Provisória, invenção da ditadura que permite o Executivo legislar.

O passado nos escapa porque elegemos algumas certezas como definitivas. Nestes 40 anos desde 1968 o tema se gastou com tanto documentário e tanta saudade fajuta. Em qualquer resgate audiovisual dos 60, o sonho sempre acaba. Isso foi sendo aos poucos substituído pelo ano que não terminou. Engraçado, comemorei o fim de 68 no dia 31 de dezembro. Como assim não acabou?

O que fica dos 60 é essa defasagem entre as versões oficiais, as que geram grana, e a grande periferia dos acontecimentos, onde tudo foi decidido. A revolução do comportamento não foi exclusivo da época, mas uma herança. As mulheres sempre trabalharam, com dupla jornada de trabalho ou não. Parece que hoje há um consenso, expresso em contundência fanha, de que a “mulhééérrr” só deu a volta por cima nos 60. E aquelas mulheres liberadas dos anos 20, estavam “adiante do seu tempo”?

O cosmopolitismo, a vida boêmia, a libertação das amarras dos relacionamentos, a insurgência da juventude (antes conhecida como mocidade) já existiam, minoritárias, antes que a histeria dos 60 gerasse a ilusão de que tudo mudou só ali, naquela quadra de tempo.

Mudou, nada. Continua a mesma coisa: a poderosa sacanagem sendo estocada pela guerrilha da coragem e da vontade de viver. Hoje, o que há de mais concreto sobre os anos 60 é que minha geração chega enfim aos 60 anos. Como diria Mário Quintana: por favor, não me chamem de sexagenário.

RETORNO - (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Monica Vitti, a musa de Antonioni.

"DIÁRIO DO LEITOR"

Nesta seção da edição impressa do Diário Catarinense, foi publicada a seguinte carta, no espaço "Sobre o DC":

"Excelente o artigo "O que é música?", de Nei Duclós, publicado no caderno de Variedades do DC de 20 de maio. Tudo o que diz o articulista é verdade. É impossível entrar numa loja, num ônibus ou deixar as janelas abertas em qualquer lugar sem ouvir batidas e palavras repetidas, gritando aos nossos ouvidos. O grande músico húngaro Kodaly falou: "Se você não aprende a ouvir boa música até os quatro anos de idade, vai ser difícil aprendê-lo mais tarde". É o mesmo que aprender línguas: até uma certa idade, nós adquirimos a capacidade de ouvir sons e descartamos outros que não são usados ao nosso redor. Mais tarde será difícil a quem não foi educado ouvir e pronunciar tais sons. Seria ótimo que acostumássemos nossos filhos a ouvir e apreciar boa musica o mais cedo possível".

Helga Szmuk
Aposentada - Florianópolis

O CRIME DA VÍTIMA


Vejo a Guarda Costeira da Austrália salvar um casal de mergulhadores que tinha se perdido do barco de apoio. Acharam porque são profissionais competentes e fazem parte de uma instituição permanente, mobilizada, eficiente. Acharam também porque não teve nenhum boi corneta colocando a culpa nas vítimas. Não houve uma comoção nacional berrando: “Mas que trouxas, mergulharam e se perderam do barco de apoio! Merecem mesmo se afogar”. Nada disso. Houve uma mobilização para que os dois fossem encontrados. Estavam a 12 quilômetros da costa, num mar infestado de tubarões. Aqui sabemos o que aconteceu com o padre Adelir Antonio de Carli, que resolveu voar com balões.

Choveram impropérios contra o padre, chamaram o cara de tudo, de imbecil, despreparado, exibicionista. Não sabia nem operar um GPS! Ora, ora, ora gritaram em coro milhões de especialistas em GPS. Houve destaque para a turma do “não te disse? eu avisei!”. Apareceram os scholars da situação, os sabichões, os que advertiram. Teve também o bispo, que se eximiu de toda culpa, dizendo que o padre voador era teimoso e fazia o que achava que deveria fazer. Ou seja, o padre deveria pagar mesmo pela bobagem que cometeu, levantando vôo em plena tempestade.

Quando começaram a procurar a vítima, perdida por uma série de causas, como a mudança do vento, o excesso de altura alcançado pelo conjunto de balões, o pouco treino do piloto, imediatamente fizeram as contas. Aquele padre burro já tinha gastado 500 mil reais do dinheiro público. Dinheiro nosso, vejam. O padre, além de vaidoso e irresponsável, ainda era o sumidouro de impostos.

Depois, quando encontraram os balões boiando no mar, foi a gargalhada geral. Esses balões apareceram em inúmeras charges. Vi uma que colocava o padre entre os personagens do seriado Lost. Outro em que os balões coloridos faziam parte do sistema solar, e estavam situados além de Plutão. O imbecil da vítima se perdeu, foi para o fundo do mar usando aquela ridícula roupa de alumínio, vejam que idiota. O alumínio só faz aumentar a hipotermia, diziam os doutores em ciência termostática.

O padre caiu no mar ou então se perdeu na mata. Mas isso não importa. O que impoprta é que ele não merecia ser achado, deveria mesmo sumir para sempre, para deixar de ser besta. Queria chamar a atenção, está aí, foi voando em direção ao Salvador. É uma série gigantesca de impropérios e barbaridades contra alguém que simplesmente deveria ser achado, independente do que fez ou deixou de fazer. Se perdeu, atrás dele e já. E não desistam no terceiro dia. Pois a série de críticas significou uma desistência a priori. Para que achar se o cara é culpado?

Aqui é assim. Foi roubado? Bem feito, quem manda. Foi assassinado? Alguma ele fez. Foi preso injustamente? Eu sabia! Está desempregado? Sempre foi vagabundo. Pediu dinheiro emprestado? Tem vocação para perdedor. Reclamou? Não passa de um chorão. Caiu? Qua quá quá, que engraçado. Se perdeu na trilha? Filhinho de papai. Se acidentou? Preencha antes o formulário. Precisa de transplante? Morra na fila.

Não somos uma nação, mas um amontoado, uma cambada. A solidariedade serve de moeda corrente para o marketing políticamente correto. Sobra gente correndo em câmara lenta para o abraço. Está assim de pai de margarina e filhões cheios de lições para ministrar. Não temos uma Guarda Costeira mobilizada, eficiente, série, apesar dos oito mil quilômetros de costa. Não temos uma polícia confiável. Não temos um governo de verdade, só títeres nos braços dos estrangeiros. “Nós, os progressistas”, dizia um energúmeno dias atrás na televisão. A política é de mentirinha. As posições ideológicas são de ocasião, quando existe. Não criamos líderes para o futuro, apenas insubordinados xingadores oportunistas.

Quando morre alguém como Jefferson Peres, quem fica em frente às câmaras para falar da ética e da correção do ilustre morto? Exatamente os canalhas que usam dinheiro público para ir ao enterro. Comprem a própria passagem, seus!

RETORNO - Façam um teste: coloquem "padre voador" no setor de imagens do Google. Existe uma infindável série de gozações. Prefiro a imagem de hoje, que reflete a tragédia pessoal do padre, que cometia o grande pecado de desenvolver um trabalho social sério e deicidiu usar a mídia para chamar a atenção para seu projeto. BBB pode. Padre Carli, não.

23 de maio de 2008

OS LIVROS EM “GANHANDO MEU PÃO”, DE GORKI


Nei Duclós

Li o segundo volume da obra autobiográfica de Máximo Gorki, “Ganhando meu pão”, que faz parte do pacote lançado no ano passado pela Cosac & Naify, com três volumes (os outros são “Infância”, já comentado aqui, e o outro, “Minhas universidades”, próxima leitura). Comprei os livros em separado, pois desconhecia a caixa preparada pela editora e que é oferecida com razoável desconto (um dos três livros quase sai de graça). Portanto, quem quiser navegar nessa lição de alta literatura, é melhor se convencer e adquirir logo o conjunto, pois cada volume dá vontade de quero mais.

É inútil tentar resenhar essa obra monumental nos limites deste espaço. Ainda mais que Boris Schnaidermann e Rubens Figueredo, especialistas no grande autor e também tradutores, destrincham Gorki magistralmente, com prefácios e posfácios valiosos. Seria redundância abordar o significado, o impacto e a grandeza dessa literatura que cruza o Tempo com o frescor das coisas recém feitas e com a força de uma avalanche, despertando o coração de pedra em que nos transformamos. Prefiro colher algumas folhas dessa floresta generosa e com elas descobrir as pistas de uma nova estação.

Em Infância, destaquei algumas cenas, imortais, da narrativa. Aqui, quero focar a relação entre o autor e os livros. Qual a Rússia reportada por Máximo Gorki nesse inesquecível rio de palavras? Aparentemente, é um país mergulhado na miséria e na barbárie. Rodeado por pessoas ágrafas, o adolescente Gorki, órfão e sem recursos, sobrevive à custa do seu esforço físico. O que o diferencia é a leitura de livros que lê à luz de lampiões, apartado de todos, e às vezes compartilhando com operários e velhos exaustos. É tocante cada cena em que os autores russos, lidos pelo jovem autodidata (que foi encaminhado para os livros pelo cozinheiro de um navio que singrava o Volga) emocionam aquela humanidade brutalizada.

Às vezes, chegam a roubar um livro favorito do rapaz para escondê-lo numa gaveta fechada a chave. O que isso nos diz? Que a Rússia produzia uma literatura, no século 19, que se disseminava em rede por todo o tecido social, chegava até os confins da população de todas as formas, seja em sebos onde se alugavam livros, seja por meio de alguns leitores que liam para a coletividade. Por todo o trajeto de sua narrativa, Gorki esmiúça essa relação complicada entre o povo russo e sua própria literatura.

Trata-se de uma sucessão de comentários sobre livros e autores, o que cada um produziu e a referência que eles tinham entre comerciantes, camponeses, operários, entre o povo recém saído da servidão e às voltas com a rudeza do tzarismo décadas antes da Revolução. Não tente detectar qualquer vestígio do chamado realismo socialista nessas palavras de Gorki. Ele as escreveu e publicou antes de 1917. Sua principal observação é que as pessoas reais não estavam reportadas na literatura que conhecia, não apenas estrangeira, mas nacional. Ele sabia do que estava falando. Convivia diretamente com o povo, fazia parte dele e era seu olho consciente.

Vindos de uma realidade rural, se aglomerando em vilas e cidades, a população criada nos ermos tinha a auto-suficência da sabedoria empírica, que despreza o que estava impresso, considerando-o fantasia. Tudo pode ser publicado, observou um dos personagens de Gorki, portanto não preste atenção nisso que você lê. Mas Gorki encontrava nessa relação com os livros o ambiente suportável para trabalhar suas perplexidades. O que mais o invocava era o sem sentido das vidas entregues à maldade. Considerava particularmente nojento o jeito como eram tratadas as mulheres.

Como a grande formadora do seu caráter foi a avó, paradigma de bondade e generosidade, e de alma caridosa e cheia de fé, Gorki se insurgia com a violência que se abatia sobre todas as mulheres, desde as prostitutas até as operárias, passando pelas nobres e pelas famílias com algumas posses. Era um mistério que os homens as tratassem daquele jeito, falando mal pelas costas, açoitando-as e, como aconteceu com sua própria mãe, levando pontapés do marido, padrasto de Gorki.

As pessoas não são boas nem más, são incompreensíveis no seu comportamento, segundo Gorki. Ele tenta decifrar o enigma compartilhando suas dúvidas para quem estiver perto. Se ressente do deboche e das perguntas evasivas. Acha que todos escondem algo dele. Por isso insiste e cada personagem é crivado de perguntas até a exaustão. É uma pesquisa profunda que ele faz, que desenvolve sem as veleidades científicas, mas como literatura de primeira água, saindo dela enriquecido. Acumula sabedoria, ao mesmo tempo em que enche sua cabeça de mais dúvidas.

Nada está resolvido e tudo está por fazer. O que o aguarda na cidade para onde foi tentar ser um universitário? Sabemos que não foi fácil. Mas isso é o que vamos ler. A nova estação a qual me referi tem a ver com o atual estado da literatura brasileira, tão anêmica e cheia de maneirismos. Precisamos mergulhar sem piedade na nossa formação e vivência e descobrir nelas algum resquício de verdade. Sem isso, não sobreviveremos.

22 de maio de 2008

DIA DO ABRAÇO


Nei Duclós

Quero te dar um abraço modesto
do tamanho do mundo
pequeno em relação ao universo
enorme para nossos passos

Quero te dar um abraço profundo
que surpreenda as almas
apesar da idade
e que a gente morra quando se aperte


RETORNO - 1. Hoje, Corpus Christi, é também o Dia do Abraço. Gostei da data. O poema faz parte do livro Outubro. 2. Tirei a imagem de hoje daqui. 3. Christian David publica resenha sobre Diogo e Diana, de Tabajara Ruas e Nei Duclós. Trecho: "Num clima de mistério, os autores gradativamente apresentam Diogo e Diana — dois adolescentes com habilidades fora do comum — e continuam brincando com nossas expectativas ao introduzirem no texto pequenos fatos, aparentemente corriqueiros, que vão pintando o pano de fundo da história."

21 de maio de 2008

O SUSTO DA ESTRADA

Chegar ao anoitecer numa cidade desconhecida, ou acampar numa paisagem selvagem; batalhar comida entre desconhecidos que o condenam no olhar; pedir pouso quando todas as portas se fecham; ficar à mercê da barbárie; passar fome no meio do lixo; cansar as pernas atrás de uma porta que se abra; e, pior, explicar o que você está fazendo ali para quem está obcecado pela própria pergunta, jamais pela resposta; são os pesadelos recorrentes de quem optou pela estrada, por diferentes motivos. Acabo de ver Into the Wild (Na Natureza Selvagem), o road movie de Sean Penn, de 2007, sobre o bem nascido que deixou tudo de lado para viver esse tipo de experiência.

São motivos opostos. O garoto, que se auto-denominou Alexander Supertramp, queria tirar o excesso de sua vida: o dinheiro, a posição social, a identidade, o futuro em Harvard. Nós, classe média empobrecida pela política econômica da ditadura, e jogados contra a parede por meio da intervenção da universidade, queríamos encontrar o que tínhamos perdido: uma vida com algum sentido, onde houvesse lugar para o sonho, a felicidade, o prazer, a emoção. Há um gap de vinte anos entre nossa história, do fim dos anos 60, e a de Christopher McCandless, o Supertramp, que é do início dos noventa. A origem e os objetivos das duas viagens, tão parecidas, são diferentes.

Nós tivemos sorte em não acabar como Chris, ilhados no ermo, passando necessidade. Talvez porque fôssemos mais acostumados à escassez. Não havia muita oposição entre nossa vida normal de estudantes sem recursos e a que levamos na estrada. Não tínhamos futuro, fomos procurar um. Chris fugia do futuro. O filme é deslumbrante, mostra esse deserto horroroso que é os Estados Unidos de maneira grandiosa e poética.O personagem é irritante, pois caminha firme para o suicídio com a certeza de que está fazendo algo de bom para si.

Ele está destruindo a própria família, a vida que o embalou e desprezando o papel fundamental das pessoas que recolhe pelo caminho. Não enxerga que elas são sua única riqueza. Não é nem a trajetória, mas as relações humanas que o enriquecem, que o chamam para a sobrevivência. Mas ele está disposto a morrer. Não perdoa os pais por terem escondido o fato de que ele era filho bastardo, ou coisa assim. Funde a cuca e se atira no meio da neve como um tarado qualquer. Mas Sean Penn tirou leite de pedra, a partir do best-seller de mesmo nome, de Jon Krakauer, publicado em 1996. Traça umperfil isento do aventureiro, colocando sua grandeza e sua precariedade.

Sean não quis fazer o filme antes que a família aprovasse tudo. Levou dez anos na empreitada. Conseguiu duas indicações ao Oscar, uma de edição e outra de melhor ator coadjuvante, o magnífico velhão Hal Holostrom, no papel do artesão que pede para adotar o abombado em viagem para a morte.

Lembrei o tempo em que tive de dormir em delegacia, rebentar tênis e pernas de tanto andar, cheirar mal todo o tempo, passar necessidade. Viajei em cabine de caminhão, dormi ao relento a quase zero graus, cheguei com os cabelos duros de tanta poeira em pousadas sinistras, como na Lapa do Rio de Janeiro, ou no vasto recinto do estádio Pacaembu, cheio de insetos, em colchões de palha terríveis.

Não era bem a natureza selvagem que queríamos. Nós éramos os selvagens. Queríamos, talvez, reencontrar o Brasil soberano, o que nos escapava pelos dedos no meio de tanta repressão. Queríamos o país de volta e por isso fomos conhecer aquelas cidades tão parecidas e nos banhar em praias maravilhosas, mas cheias de escassez e miséria. Haja coragem na juventude. Haja nós.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Emile Hirsch em cena de "Into the wild". 2. A internet tem tudo. Assista essa entrevista de Sean Penn sobre seu filme.

20 de maio de 2008

O QUE É MÚSICA?


Nei Duclós (*)

Música é a capacidade de ouvir. Você pode ser Mozart, mas se não houver quem escute sua obra, ela não existirá. Ninguém compõe para as altas esferas, mas para que o som se propague até um receptor. A música foi assassinada quando descobriram a mina de ouro que é a banalização da batida do tambor. A sofisticação foi reduzida ao pó das baterias, e o tunc tunc se consolidou na indústria imediatista. Mais tarde, “evoluiu” para o baticum eletrônico, que é a entronização surtada da redundância.

Tudo o que música produziu, como melodia, harmonia, ritmo, foi deixado de lado para que imperasse a obsessão pelo Mesmo. O eterno presente, que devora a memória, precisa de reiteração permanente. O entorno dessa barbárie é a parceria gritada de duplas infernais. É preciso atordoar os ouvintes até que não reste uma nesga de civilização auditiva. A vítima então está pronta para digerir o atordoamento interminável. O objetivo é destruir a capacidade de ouvir. É o assassinato implantado da música.

Ouvir significa sonhar, pensar, aprender, enlevar-se, transcender. Tudo isso não serve para nada, pois é preciso que a linha de montagem obedeça aos ditames do entretenimento doentio. A coletividade injeta nos tímpanos a mais intensa avalanche de porcarias auditivas. Dá para perceber de longe. Os ouvidos estão cobertos por grossa camada de fuligem. É para enlouquecer, mesmo, já que pessoas saudáveis seriam incapazes de se submeter ao matadouro cultural.

Nos supermercados ou lojas onde você cai na asneira de entrar, existe a distorção pop de vozes intermináveis, que se esganiçam até o osso. Você está louco para fugir dali, mas não sabe por quê. Aí descobre que é a monstruosidade despejada pela caixinha de som, construída pelo horror de DJs invisíveis, mas mortais. E não ouse reclamar. O sorrisinho maroto de que você está por fora irá se manifestar.

O que resta para as pessoas que conservam um mínimo de lembrança da cultura musical? Num restaurante de bom gosto, num concerto fino, numa sala de espera de luxo, eis que chega até nós os acordes da bossa nova, do jazz, do blues, ou mesmo da música sinfônica, erudita, romântica, barroca. São pílulas caras, pois cobram os tubos para você compartilhar um pouco do que restou, as ruínas desse acervo popular maravilhoso, que sumiu do mapa e hoje está enterrado no coração sem esperança.

Se você tem a coleção completa de Frank Sinatra, Tom Jobim ou Doris Day (sim, ela é o máximo de doçura na voz), de Pixinguinha, Baden Powell ou Maysa, se você gosta de Brahms ou Edu Lobo, então você está condenado a escutar bem baixinho, nos intervalos da guerra. No fundo, você continua preso. Jogado dentro de uma cela por inúmeros malfeitores, como o Ruído e o Gritalhão, é como se houvessem decretado a pena de morte. Mas ainda é possível ganhar dois minutos no pátio para tomar sol. Lá, você respira fundo e consegue lembrar aquela frase musical perdida. Do tempo em que você escutava. Quando havia música.

Por que perdemos a capacidade de ouvir? Porque entregamos o país para a bandidagem, e isso foi há mais de quatro décadas. Quando abrimos mão do Brasil soberano. Quando achamos que poderíamos viver sem a música a feita por nós, e pelo melhor dos estrangeiros. Que deveríamos nos entregar para sempre nas mãos de quem domina o espaço público e loteia nosso ouvido como se fosse um terreno abandonado.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 20 de maio de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Este texto teve chamada de capa na edição impressa, que está nas bancas. 2. Imagem de hoje: Doris Day.

RETORNO EXTRA:

Cartas sobre a crônica "O que é música?"

O EXEMPLO DE VIENA

Um excelente artigo. Tudo e verdade o que o artigo fala. E impossível de entrar numa loja, num ônibus ou deixar os janelas abertas em qualquer lugar sem ouvir os batidos e palavras repetidos gritando ao nossos ouvidos.O grande musico Hungaro Kodaly falou: se você não aprende ouvir boa musica ate 4 anos de idade , vai ser difícil de aprender mais tarde, E a mesma coisa de aprender linguas, Ate uma certa idade nos adquirimos a capacidade de ouvir sons e descartamos outros que nao sao usados ao nosso redor, Mais tarde vai ser dificil de ouvir e pronunciar tal sons. Seria ótimo de acostumar nossos filhos de ouvir e apreciar boa musica mais cedo possível.
É muito interressante. Os músicos têm filhos músicos( Mozart, bach, Strauss etc) Porque os matemáticos ou pintores não tem filhos matemáticos ou pintores? A resposta é: não é hereditário, mas costume, Ouvir música boa em casa faz você gostar de música. Por que em Viena tudo mundo fala baixo e não grita, não buzina?

Helga Szmuk
Aposentada
Florianopolis Sc

IDIOTAS GRITANDO

Nei
Parabéns pelo artigo. Enfim mais alguém não suporta idiotas gritando.
Abraços

Gilberto Soares França
Caçador - S.C.

BATE-ESTACA

Nei, sou eu de novo.
Parece premonição. Ontem no salão que frequento a proprietária perguntou à manicure que me atendia se ela havia trocado a estação do rádio. A mocinha disse que sim. Estávamos escutando um tipo de música a que chamo de "bate estaca", essas a que te referes na coluna de hoje. Aproveitei para perguntar a ela se gostava deste tipo de música, o que foi confirmado prontamente; e mais, que ela só escuta isto. Perguntei se na escola ela teve aulas de música, ou
qualquer instrumento musical, e a resposta foi não. Acredito que nem o Hino de SC ela deve conhecer, o que é uma ironia em se tratando de ex-aluno de escola pública.A música é uma dos maiores atrativos do ser humano. Veja a atração que os nossos indígenas tinham pelos sons produzidos pelos invasores europeus. O que se pode esperar desta geração que configurou o seu mental nas batidas do "tunc-tunc"? Somente imediatismo que descamba em violência, pois agimos como pensamos e sentimos (isto é da Kabbalah).
Estou levando o DC com a tua coluna para mostrar no salão.

Da leitora e assinante, Maria Teresa/
Floranópolis - SC

SÃO JOBIM

Caro Nei,
Muito feliz fiquei ao ler sua coluna do DC desta data. É mais uma das ( poucas e raras) vozes que hoje manifestam-se para protestar contra a mediocridade e primitivismo grosseiro a que se reduziu a música ouvida no Brasil (que não difere muito do eu se ouve pelo mundo).
Lembrei-me até de um pequeno texto que publiquei em um jornal da região onde moro ( Tubarão), intitulado “Meu São Jobim, me acuda”.
Quanto a “entregarmos” o Brasil, isso é fato. E é antigo, não? Hoje a ameaça de aniquilamento já chega a nossa Língua Portuguesa, substituída de maneira irresponsável ( e hiper incentivada pela mídia ) pelo inglês vulgar. O mesmo inglês que impõe músicas de péssima qualidade aos nossos ouvidos.
Parabéns pelo texto, que além de crítico é belo. E se eu for útil, nessa “cruzada” , conte comigo.

Demetrio Nazari Verani
Tubarão - SC

TUNC TUNC

Nei:
Como faz todas as semanas, você mais uma vez traduziu o sentimento das pessoas de consciencia em palavras, contextualizando as coisas num esfera macro. Tambem sofro com o "tunc tunc" dos jovens e dos sertanejos gritões das empregadas e pedreiros ( só esqueceste de citar os odiosos pagodes). É triste tambem o fato de termos de ouvir musica imposta nos shoppings e supermenrcados. Acredito que o ser humano precise de um mínimo de silencio e vazio para criar algo relevante para o mundo. Será que um dia voltaremos a ouvir belas melodias no rádio dum vizinho? Obrigado Nei e não desista. Abraço do
Rodrigo Cunha, 31 anos.
Florianópolis - SC

18 de maio de 2008

O QUE É ECOLOGIA?


Ecologia é o uso estratégico dos recursos naturais de países incapazes de se defender. É regido por um sistema de princípios, valores e ações inventados pelas grandes potências para justificar o acesso irrestrito ao que sobreviveu às sucessivas ondas da revolução industrial. Esse sistema elimina as fronteiras das nações que ainda dispõem das riquezas da terra, como água, solo arável, selva, minérios etc. E intensifica as fronteiras dos países predadores, que precisam erguer muralhas contra a miséria gerada pela submissão econômica dos mais fracos.

Uma das mais notórias conversas para boi dormir é essa de defender as tribos indígenas. Logo quem, os maiores autores de massacres de povos nativos em todo mundo, são os que mais batem no peito para “preservar” o que sobrou dos índios. Ao ler sobre o aqüífero Guarani, notei que o texto se refere ao “que era sagrado para os índios e é hoje valioso para o planeta”. Ou seja, passa do sagrado para o ecológico, eliminando o quê? Exatamente as nações. Não se fala em Amazônia dos brasileiros, aqüífero Guarani do Brasil. É sempre pertencente às tribos e deve ser compartilhado com todos os fofos planetários.

Se não existisse o Brasil, não haveria esse vasto acervo de riquezas naturais. Pois os caras conseguiram destruir, sugar tudo, da prata dos Andes e da Argentina ao ouro da Califórnia, das floretas americanas às savanas invadidas, das jazidas de diamantes africanas aos desertos que vertem de petróleo. Mas não conseguiram ainda destruir a Amazônia, que existe graças a estadistas como Dom Pedro II, que proibiu a navegação pela bacia hidrográfica do Norte do país, e a Getúlio Vargas, que implementou a ocupação responsável da nossa infindável mata, de Goiás e Mato Grosso até Roraima, graças às operações desencadeadas pelo ministro João Alberto, como as expedições dos irmãos Villas-Boas.

Não fosse isso, teríamos um enorme Saara no norte, pois a gringalhada gosta é mesmo é de rebentar com tudo. Como o único entrave para esbugalhar o quem restou é a identidade nacional, a existência do Brasil, a ocupação brasileira (milhares de municípios antigos e novos disseminados pelo vasto território), então o objetivo é desmoralizar a idéia de Brasil. Para isso contam com este governo de mágicos de circo, que usam ecologistas para assumir ministério enquanto permitem e incentivam tanto a destruição da mata quanto a demarcação de terras que contrariam o conceito de Brasil soberano.

O movimento ecológico ganhou força com uma enorme encenação: a destruição, a pauladas, de milhares de bebês focas. Foi provado que a mortandade do bichinhos era apenas para sensibilizar a opinião pública e inventar um movimento multinacional, que se arroga no direito de “proteger” a terra e as águas dos outros. Não se trata de justificar a destruição do ambiente por parte dos brasileiros, tipo “é nossa, fazemos o que queremos”. Não! Mas sim de não deixar que a ecologia sirva de ferramenta para sugar o que ainda ficou para nós e nossos descendentes.

Quem são os maiores adeptos da ecologia? Exatamente os maiores poluidores, que usam do marketing e da publicidade maciça para dizer que são conservacionistas. Não só no agronegócio, onde os defensivos agrícolas empesteiam tudo. Mas nas indústrias urbanas, que envenenam sem parar e pagam os tubos para a mídia dizer que são inocentes. E há ainda todo o link de falcatruas nos departamentos governamentais. A indústria das licenças ambientais é só um detalhe. Pior: a sacanagem se dissemina também entre os que se dizem vítimas da depredação. Perde-se dinheiro dos dois lados: tanto de quem destrói quanto dos que batem no peito dizendo que são prejudicados.

Há uma indústria das boas intenções que tunga dinheiro público dentro e fora do país. Qual a saída? Soberania. Políticas públicas. Fiscalização de verdade. Pessoas preparadas nos cargos, incorruptíveis. E um esforço gigantesco para desmascarar o que chamam de ecologia e é apenas mais uma fase do velho imperialismo.

RETORNO - Imagem de hoje: pose da matança das focas. Além da crueldade, marketing para sensibilizar a opinião pública. Assim, fica mais fácil aceitar que a falsa moral tenha acesso aos recursos naturais dos países incapazes de se defender (os que não dispõem da bomba).

17 de maio de 2008

1968: O BONDE DA HISTÓRIA


A foto acima é pura provocação: tínhamos bondes em 1968! Mas o que pega são as passeatas. Hoje, na Zero Hora, excelente matéria "A capital amordaçada", de Carlos André Moreira na capa do caderno Cultura, conta como foi a grande manifestação de 28 de junho daquele ano. O grande destaque é a presença marcante de José Loguércio, o supremo líder do movimento estudantil da época e que contava com apenas 18 anos, um a menos do que eu (descobri agora; sempre achei que Zé era mais velho). Mas o repórter me privilegiou com uma longa entrevista e acabei sendo também um dos destaques da reportagem, contrariando assim meu slogan favorito "é duro não ser um líder". Escreve André:

"O hoje escritor Nei Duclós, com 19 anos e secretário do Centro Acadêmico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFRGS, em total desacordo com seu físico extremamente magro, fazia parte do comitê de segurança da passeata. Havia permanecido por todo o caminho organizando as últimas alas e agora percorria a multidão, que defrontava com uma fileira de policiais para os lados da Praça 15. A todos advertia aos gritos de "é pacífica!", para evitar que os ânimos se exaltassem. A polícia, contudo, avançou e a pancadaria foi inevitável."

O jornalista, extremamente gentil, eficiente e atencioso, diz a verdade, mas faço uma ressalva: os gritos de "é pacífica" era da multidão, uma espécie de palavra de ordem oficial da passeata, pois dias antes tínhamos nos recusado a sair para a rua, para não fazer o jogo da repressão (para desespero dos estudantes secundaristas, que estavam super mobilizados). Colocado no final da passeata, eu apenas repetia o que dizia a massa. A advertência era de todo o movimento.

Eu era um dos secretários, de Imprensa. Fazia parte do staff de Zé Loguércio como representante "da massa". Fora escolhido graças ao prestígio desfrutado na sala de aula, onde ficaram sabendo que eu passara no vestibular de jornalismo da Ufrgs com o primeiro lugar. A origem de ter sido catapultado para o miolo das decisões fora esse passado de bom moço, estudante cdf. Mas 1968 cuidou para esbugalhar tudo isso.

Mais da mesma matéria: "Duclós correu para o lado do Banco da Província, tangido a golpes dos cassetetes de borracha - repuxavam a pele e deixavam uma sensação de queimado a cada golpe. Assim como ele, uma boa parte dos manifestantes em fuga foi encurralada contra uma parede.
- Estávamos literalmente "contra a parede" e a milicada veio em cima pra bater. Mas antes disso, passou um tenente a cavalo e freou os subordinados - conta." Tudo verdade. Só que o tenente não passou a cavalo, e sim a pé. Devo ter me empolgado na entrevista e passado algo de faroeste no relato.

Mas a grande declaração da matéria é do Zé Loguércio. Diz o líder: "Por mais que a população não houvesse pendido para o nosso lado, a ditadura não foi mais aceita naturalmente depois daqueles movimentos. Baixou o AI-5, partiu para a truculência e perdeu a falsa legitimidade que tinha. Se não tivesse havido aquela resistência naquela época, talvez a ditadura tivesse sido mais longa."

Sempre admirei Zé Loguércio. Tem um carisma natural, uma coragem infinita, uma inteligência tocante. É um dos grande quadros formados em 1968 que deveria assumir integralmente seu papel na política. Já falei para ele que o vejo como o futuro presidente da República. Ganha fácil.

Ainda tem um toque final sobre mim na reportagem que diz o seguinte: "Nei Duclós, embora reconheça a fagulha de luta do período, não abre mão de uma nota de humor.
- Me perguntam muito como eram os anos 1960. E eu sempre respondo: a maioria de nós usando cabelo curto e vivendo numa baita duma ditadura. Não sintam saudades, porque não era legal." Falei que a única coisa legal era nossa mocidade. Mas tinha outras coisas. Na hora de ser entrevistado, sempre falamos menos ou mais do que devíamos. Mas o bom é que a reportagem pega fundo no movimento. "O 68 que nos toca", diz o título, magnífico, do caderno.

Não "refletíamos" a época, como é dito em outo texto, de outro autor, no caderno. Éramos protagonistas. Éramos o Tempo bravo como a tempestade. Líamos Marx, Lênin, Mao. Éramos contra a ditadura. Eu fui me embora para Floripa e depois São Paulo. Zé Loguércio, depois de ter sido preso em ibiúna, caiu na clandestinidade.

Tu precisas voltar, líder de massas. Bota de novo o povo na rua, que a ditadura, como a luta, continua.

RETORNO - A reportagem traz também outros protagonistas, como o estudante do Colégio Parobé Lauro Dario, o jornalista e escritor Walter Galvani (mais tarde meu primeiro diretor de redação), e Maria Teresa Chaves Custódio, que cursava o Clássico no Colégio Júlio de Castilhos.

15 de maio de 2008

NOTÍCIAS ESPANTOSAS


Sou um consumidor mediano do noticiário. Leio a Folha, acompanho os jornais da Globo (a única emissora que tem sinal decente por estas bandas, onde a TV a cabo não chegou), às vezes consulto outras fontes e só quando um assunto me invoca desencadeio a busca pelo Google. Passo meio lotado pelos blogs. Para saber o que se passa onde moro leio o Diário Catarinense. Mas tenho um editor ótimo, o jornalista Paulo Nogueira, que, por e-mail, me envia artigos, matérias, hight lights do que se passa pelo mundo. Por isso, o que comento a seguir tem esse limite de abastecimento, o que não impede que a gente extrapole nas análises. Como dizia minha mãe, me tiraram tudo, menos a capacidade de dizer o que bem entendo.

TRÂNSITO - Na assombrosa série de reportagens dos jornais televisivos da Globo sobre a encrenca que é o trânsito nas grandes cidades brasileiras, falta entrevistar os executivos das montadoras e os donos das empresas de transporte. Os maganos não mostram a carinha para bater. Nem tudo depende de políticas públicas. É preciso deixar de linkar o lucro a qualquer preço à custa da sobrevivência da espécie. Falta também apontar o excesso de publicidade e o crédito fácil como parceiros da culpa pelo entupimento geral. Quando dói no bolso, todos se calam. E dê-lhe repórter acompanhando os infelizes que gastam décadas para ir e voltar do trabalho. Chamem os milionários que colocam sucata nas ruas.

O que me impressionou é a tese de que a tigrada, da classe média (subornada sucessivamente pela política econômica da ditadura implantada desde 1964) precisa ser conquistada para pegar ônibus. Aí aparecem os ótimos micro-ônibus de Porto Alegre, que são rápidos e com tarifas razoáveis. Para atrair a classe média é preciso transporte de qualidade, diz a autoridade. E para servir o povo, só transporte de merda? A entrevistada, advogada jovem, rica e loirosa, falando pelo nariz (o feminismo é fanho) destaca as vantagens de se pegar o micro-ônibus., Enquanto formos divididos entre privilegiados e servos da gleba, nada seremos, a não ser um amontoado de narizes chafurdando no lixo.

Nas tomadas de helicópteros, vemos a fila de carros e ônibus e nos lembramos dos trens. Graças ao mineirinho sestroso JK e à ditadura de 64, sucateamos o transporte ferroviário, que atualmente em outros países é o mais moderno e eficiente do mundo, em favor do diesel sujo e da gasolina adulterada. Pagamos caro, mas ninguém lembra a origem do mal. É como se o pesadelo fizesse parte da ordem natural das coisas. Não faz. É fruto de uma intervenção, quando nos tiraram a soberania e nos transformaram em consumidores de porcarias.

FRITURA AMBIENTE - A Marina Silva cansou de ser fritada pelo Lula, que precisava dela para manter as aparências enquanto vai fazendo cagada em cima de cagada na Amazônia,. São várias: transformar a reserva indígena num espaço contínuo, criando um país dentro do Brasil, contrariando assim a estratégia básica de preservar a nacionalidade nas nossas fronteiras; não intervir diretamente no desmatamento, que aumentou; dizer que preservar o meio ambiente é defender os bagres; compactuar com a transformação da mata em biodiesel, soja e cana.

Esse assunto clama por informação. Ontem vi no Jornal Nacional escrituras públicas de fazendas de arroz datadas de décadas atrás, outras dos anos 30 e um empresário dizendo que sua fazendo nunca se situou em área indígena. Criaram um estado de guerra em Roraima a troco de nada, por pura incompetência. Mais do que a cobiça internacional, o que pega na Amazônia é a falta de escrúpulos, planejamento e vergonha nacionais. Somos tão ruinzinhos.

Agora o Carlos Minc ocupa o lugar de Marina Silva com o mesmo discurso e propósito: por fora desenvolvimento sustentável, por dentro fraqueza para enfrentar a quantidade de interesses poderosos que dominam a região. Lula precisa de Minc para apaziguar a comunidade internacional, que ficou chocada com a saída de Marina. Agora, a chanceler alemã dizer que o planeta é de todos é de lascar. Aquela porção do planeta que é o território da Alemanha é só dos alemães, pois não? Ou posso meter a colher torta lá?

Já sei o que significa planeta: Brasil! Quando eles dizem que são responsáveis pelo planeta (que poluem sem parar) eles querem dizer que o Brasil é deles. Simples assim. É um conceito que vem a calhar: eles acabaram com o ambiente deles (tudo bem, a Alemanha é um primor de política ambiental, mas só depois que destruíram tudo, ou não?) e agora metem o olho grande no nosso. Querem etanol que não tenha trabalho escravo? Deixem disso. Basta não querer o etanol. Isso não, não é mesmo? Vão cortar cana transgênica na neve.

CICLONES E TERREMOTOS - Fico impressionado com a China. Para onde a câmara aponta, não há miséria. Há destruição, provocada pelo terremoto, mas não existem indigentes. São todos chineses. Impressionante. Já na Birmânia (Mianmar o catso, parem com isso) é como no Brasil: favelões varridos do mapa, mais de cem mil mortos e vem mais chuva por aí. A Globo chama a ditadura da Birmânia de militar socialista. Socialista como, cara pálida, se em mais de 40 anos de governo eles só têm a mostrar a miséria? Socialismo é distribuição de renda. Mas é imperiosa a necessidade de desmoralizar o socialismo. Que coisa.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: o soberbo, veloz, confortável e barato bonde holandês, o tram de Amsterdam. Foto de Daniel & Carla Duclós. Lá não é como aqui, que trilho significa passado, Maria Fumaça ou propaganda de Rhum Creosotado. 2. Geraldo Hasse toca na ferida no seu espaço do site Século Diário. Seu artigo, "Vem aí o monstro do longo prazo", é uma costura brilhante do que está pegando no trânsito, no meio ambiente e no futuro de todos nós.

13 de maio de 2008

CONQUISTA COLETIVA


Nei Duclós (*)

A repetição exaustiva de eventos chama-se redundância e não informação, que sempre foi um artigo escasso. A pepita, a luz do entendimento sobre os fatos, jaz no fundo do rio por falta de bateias, aquele instrumento solo que sumiu diante da lavagem mecanizada dos detritos. Procurar saber dá trabalho. Melhor é se entregar à ilusão de que estamos bem informados, enquanto não conseguimos explicar o grande vazio provocado pelo consumo de gordura trans do noticiário.

A preguiça de ir atrás resiste, mesmo na atual fase de excesso de oferta de pistas para chegarmos ao ponto. Talvez a reprodução em massa do supérfluo tenha aprofundado nossa natural falta de empenho para conseguir nutrição verdadeira. Ou o acesso ao básico por meio das ferramentas de busca tenha suprido tudo que almejávamos nesta vida de negaças e subterfúgios. Ficamos devendo quando queremos descobrir o essencial, que só é visível para os olhos de quem não desiste no primeiro round.

Isso exclui aquelas obsessões que geram chatos especializados em Napoleão, por exemplo. Ninguém pode debater com um renitente colecionador de detalhes sobre seu objeto de estudo. Qualquer coisa que se diga enfrentará o sorriso alvar das certezas. A informação não é a batalha de Waterloo dos leigos. Não somos derrotados por sabermos pouco ou nada sobre o que procuramos em vão, na pilha de coisas que escondem o ouro. Nem santos por persistirmos por décadas na caça às verdades em fuga.

O quem nos faz especiais é reconhecer que poderemos esquecer quase tudo o que pesquisamos exaustivamente. É ser civilizado o suficiente para repartir o que temos sem demonstrar arrogância. Ou ainda, saber se levantar depois de ser derrubado por uma pergunta tosca, a que nos desarma por desmascarar o acúmulo de sabedoria que cevamos por décadas. Uma dúvida bem formulada pode nos fazer o bem, mesmo que a sensação seja a de perder a auto-estima para sempre. Ser humano é levantar-se todos os dias.

Investir sobre um assunto requer não a paciência dos sabichões, mas a capacidade de encarar nossa natural miopia como um aliado. Quanto mais sinceros formos, melhor para todos. A vontade de acertar, junto com a honestidade , poderão nos levar com segurança até um local inédito, ainda não vislumbrado pela atenção de bilhões de olhos. A responsável pela química certa dessas qualidades é a ousadia. Construir um caminho reconhecível no caos movediço das teorias e dos vestígios gera espontaneamente a graça de profetizar o oculto, de insuflar alma imortal no barro coletivo. O único perigo é ser apontado como alguém “à frente do seu tempo”, como se o tempo não se bastante em cada instante desta vida dura.

Dizem que inúmeras descobertas foram feitas por acaso. Talvez a verdadeira pesquisa esteja a cargo de outro alguém, que nos usa sem se expor. Quando menos esperamos, brilha o veio que estava disfarçado sob o limo. Quanto mais gente estiver engajada nesse jogo, menos teremos de nos preocupar com a superficialidade das notícias. Abandonaremos assim a ansiedade de querer saber apenas apertando um botão. Voltaremos às rodas de conversa, ao rodízio das palavras ditas em voz alta e semeadas em colunas de silêncio.

Haverá menos pressão e a gana por novidades cederá para o que realmente interessa. É possível que tenhamos a sorte de vermos toda essa roda vida de inutilidades ganhar novo rumo e partir para o conhecimento sincero, conquistado com alegria.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 13 de maio de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Garimpo, de Portinari, de 1938.

11 de maio de 2008

AS DESRAZÕES DA PUBLICIDADE


Campanha milionária está defendendo o direito das concessões públicas de TV serem loteadas pelos monopólios de cerveja. Distorcem tudo, claro. Dizem que a lei do Congresso a ser votada quer cercear a liberdade de expressão, pois é a publicidade que, quá quá quá, garante a sobrevivência dos veículos, e não a cidadania tungada em todos os seus direitos. É um falso argumento. Podem anunciar, mas não tomar conta de todo o espaço, nos encher o saco com zilhões de minutos caríssimos mostrando mulher pelada e saradões imbecis celebrando o fato de serem idiotas e mamando em latinhas coloridas.

Como não fazem concessões, então é melhor proibir mesmo. Pior é que querem impedir apenas até as 21 horas, o resto do tempo estaria livre. Pois não querem. Precisam mostrar o quanto devemos nos encher de mijo pôdre, pois é disso que se trata. Já existe uma reação, na indústria, contra a padronização das cervejas fabricadas às toneladas. Cervejarias artesanais brotam por todo o canto, especialmente aqui perto, no Vale do Itajaí. Para onde vai a produção? Para o Exterior, claro, ou para alguns nichos finos nacionais. Mas, mesmo nas marcas de massa existe alguma coisa boa. E também depende do local. Na Família Mancini tomei um chopp de marca notória excelente. O resto, de bom, vem de fora. Falam maravilhas de marcas alemãs e até canadenses.

Cerveja não é ruim, o péssimo é essa imensa quantidade de reclames. Dá dó ver como o Zeca Pagodinho, tão fininho que era, inchou com a cervejada toda (sim, sei, ninguém tem nada com isso), colocando seu talento a serviço do comércio puro e simples. O pior é quando colocam as baixarias machistas, como boazuda e gostosa, como foco principal das campanhas. Tem que impedir essa brutalidade toda. Quando lançam nova marca, então, nos entopem de publicidade.

A overdose do dia das Mães chega ao fim. É insuportável. Agora fazem teatrinhos comportamentais com filhinhas moderninhas e mães sempre enxutas. A barra corporal que é a maternidade não cabe nos filmecos que vendem tudo que é tipo de joça. O pior é a grande campanha contra a paternidade que existe atualmente. Vejam os filmecos sobre cópias piratas. É sempre um pai estúpido que alegremente presenteia os filhos com filmes piratas, ou que é chuchado pela bandidagem. É moda desmoralizar pai, inclusive quando os mostram “grávidos” ou em comerciais de margarina (agora em menor volume). Pai babaca pode, pai mesmo, picas.

É preciso destruir a família, e mostrar o sucateamento familiar como coisa boa e normal. Na “nova” família mostrada no Globo Repórter, não teve espaço para a familiar nuclear tradicional. Pais gays pode, papai e mamãe com filho biológico, não. É uma fofura sem fim. Claro que tudo cabe no universo familiar, inclusive a família mosaico, feita de filhos de vários casamentos. O que não polde é erradicar o tradicional, como se fosse um pecado. A exclusão do que é clássico em favor do que é emergente tem tudo a ver com a destruição de comunidades, sociedades, nações.

Hoje se invade país com um desplante sem fim. Retomaram o Líbano para a guerra. No Iraque, todo dia tem uns trinta mortes em diversas batalhas. O Haiti está sob protetorado americano, com brasileiros ajudando no serviço. Tortura em Guantanamo, a prisão americana instalada em Cuba. No Brasil, criamos agora os guetos étnicos, como a tal Reserva da Raposa. Daqui a pouco vão promover quilombo como nação à parte. O objetivo é retaliar o país, separá-lo em postas, pois no fundo gostas.

O Brasil é uma excrescência na atual maré alta do hipercapitalismo global. Onde já se viu tanta riqueza, tanto território, nas mãos de um bando de panacas que não sabem se defender? Cerveja no final da tarde para os brasileiros escravos do consumo e ermos de soberania. Bastante mijo pôdre. Dá-lhe.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: rótulo de antiga marca de cerveja catarinense. As cidades eram servidas por produção local, limpa, honesta. Em Uruguaiana tinha a P.O. Mas aí vieram os grupaços poderosíssimos e transformaram tudo num xarope intragável. As exceções são as sobreviventes, que foram compradas (muitas se estragaram nessa migração) e as emergentes, surgidas a partir da exaustão diante das porcarias que dominam o mercado.

2. Clovis Rossi comenta na Folha deste domingo "O pacto Lula/Bush", que comentei dias atrás. Ele destaca "o silêncio denso em todos os quadrantes político-ideológicos" sobre o assunto" e escreve: "Fica claro que é uma fraude o discurso anti-elite que Lula ainda adota (...) Ninguém é mais elite do que a elite das potências. E ela adora Lula". Acrescento: Lula sempre foi um empregado das multinacionais. Sua insurgência é excludente: vigorava apenas para os privilégios da classe média ao qual pertencia, na época em que ganhava salário nas montadoras. Negociava com seus patrões, enquanto, aproveitando a carona da época, posava de anti-ditadura. Ajudou a limpar o terreno para que o coronelato civil antigo e emergente (do qual se tornou um dos seu próceres) assumisse todo o poder. No fundo, não há contradição, mas coerência. Pedir licença para governar, mantendo intacta a política econômica do vendilhão FHC, foi apenas o resultado natural de uma vida dedicada à traição política. Para isso Leonel Brizola e o trabalhismo histórico, que serviu de repasto para o traidor, foram usados. Hoje dá dó ver o partido fundado por Brizola se enredar nesse tal Paulinho, mais um para-quedista da trágica política de alianças adotada pelo PDT. Enquanto o trabalhismo não se concentrar nos seus próprios quadros, não sairá do atoleiro.

9 de maio de 2008

TERCEIRA IDADE

Completo 60 anos em outubro, se tudo der certo. É uma fase interessante. Há tolerância na fila dos bancos, já que minha aparência, segundo o depoimento de vários habitantes da ilha, é de oitenta anos. Mas não no posto de saúde, onde não alcancei o nível de privilégio para ganhar uma vacina contra a gripe de graça, por exemplo. Médicos, nem pensar. A medicina trabalha com copos perfeitos, sarados. É como faxina: só aceitam limpar tua casa se ela estiver limpa. Só concordam em cuidar de você se sua saúde for a de um touro. Assim mesmo, tenho sido bem tratado nas emergências, já que sou alérgico a picada de abelha e vivo aqui no ermo.

É mortal a maneira como te tratam. Você puxa a carteira de motorista e todos se assombram: “Mas você AINDA dirige? Com prudência, devagar e sempre, não é mesmo?” Se por acaso você não entende uma palavra ou frase, eles te repetem didaticamente, escandindo as sílabas. Se você desce do carro, sempre tem um boi corneta para te segurar o braço. Ter o peso errado também influencia as reações. Te convidam para almoçar e você escolhe sentar perto da parede. Então todos se levantam e puxam a mesa para o meio da sala, pois, claro, você não caberá naquele cantinho.

Todos os dias sou lembrado que já completei noventa anos (aumenta sempre). Falam de maneira diferente. Te dão tapas nas costas, como se fosse um gesto de solidariedade. Falam aos arranques, como se estivéssemos na varanda sentados na cadeira de balanço. Qualquer manobra do carro desperta um xingamento onde “gordo e véio” é apenas o início. Se você encontra alguém que não vê há anos, e que também exibe as marcas da idade (mas isso não conta), prontamente a pessoa diz: “Te reconheci pela voz!” É de uma fofura sem fim.

Como estás todo errado, então sobram conselhos, advertências e lições. Precisa caminhar é a mais freqüente. Praticar exercícios. Replico: não existe atleta com oitenta anos. Mas não desistem. Vi esses tempos um gordo gigantesco, com uns duzentos quilos, se abaixar todo até estalar os joelhos. Alguém falou para o coitado fazer esse tipo de alongamento. Corre o risco de romper os meniscos, mas isso não importa. O certo é demonstrar que estás com vontade de ser da tchurma.

Olho no espelho e vejo um guri. Relevo todas as marcas, as bolsas embaixo dos olhos, o início do enrugamento total. Presto atenção no rosto de menino que sobrevive. Ensaio um sorrisão daqueles e tudo se ilumina ao redor. Ninguém enxerga tua vivência, querem mesmo é denunciar que estás vivendo além da conta. Agora tem que deixar tudo para os outros. A juventude triunfante em todos os escaninhos da realidade. Enquanto isso, o depósito de velhos que é a fila das repartições, lotéricas e instituições financeiras fica maior do que a fila normal. Esses dias uma senhora abandonou a fila da terceira idade e pegou carona na agilidade da outra. Foi admoestada. Teve que mentir: “Mas eu estava nesta”, disse ela, pobrezinha.

Perseguem demais das pessoas. Tudo gira ao redor da aparência. Imagino como será daqui a alguns anos. A impaciência no trânsito, a barbárie do comportamento coletivo, o território cada vez mais coalhado de gente...deixa para lá. Nos últimos meses, estive em São Paulo. Só andei de táxi (não tive tempo para encontrar os amigos; foi barra). A cidade gigantesca assusta com seus milhares de novos edifícios, todos mais altos do que os outros. Engarrafamento em qualquer hora do dia. Mas há respiros. Um fim-de- semana perto da igrejinha do Divino, por exemplo, ali perto da Paulista. Lembrei quando cheguei em São Paulo pela primeira vez.

Quando eu era guri, mesmo.

RETORNO - Imagem de hoje: eu, eterno guri, encostado na parede da minha casa em São Paulo. O que vale é a versão, não o fato.

NOTÍCIAS DE BEBETO ALVES

"Caros, O novo disco Devoragem já está á disposição em seu formato digital no hotsite Devoragem contido na home do meu site oficial . O site passou por algums transformações em função do novo trabalho, como muitos já sabem. Agora, com uma secção especial para imprensa e para as pessoas poderem acessar o que esta sendo falado pela própria imprensa sobre o trabalho. Um texto muito bacana do Arthur de Faria, novas fotos, incluindo algumas feitas por mim outras coisinhas, surpresas e etc.
No hotsite Devoragem, vcs podem acessar um pedacinho de cada musica clicando no nome delas, o link para a venda digital, as letras das musicas, um video sobre o projeto e um ensaio fotográfico.

O formato digital do disco facilita o acesso para muitos que tem dificuldades de encontrar o disco fisico. Ali se pode comprar uma faixa isolada, ou o disco cheio por um preço extremamente acessivel, razoavel. Bom, se vcs forem a fim, divulguem este trabalho, passem adiante essa informação. Valeu!! bjão. BAlves."

8 de maio de 2008

O DESESPERO É UMA FLOR


Nei Duclós

O desespero é uma flor
que come carne
e arde no meu peito de pastor

Levei uma surra de navalhas
preso num eterno elevador

Num sanatório de sonho
tenho a mão sangrada
Quero o silêncio
de uma estrada nova e calada

Quero a luz do sol e o fim do nojo
quero maio o ano todo
e a dor como um papel em branco

RETORNO - 1. Poema do livro Outubro e que foi musicado por Claudio Levitan. 2. Imagem de hoje: desenho de Ricky Bols.

O DESESPERO É UMA FLOR



7 de maio de 2008

OS TRAIDORES DEIXAM PISTAS


Reproduzo abaixo trechos da reportagem publicada na Folha de hoje. É para você, fofo, que adora ter emoções diante de Lula. Para você que acha Lula a coisa mais importante da natureza em festa. Para você que ainda não deixou cair a ficha de que continuamos na ditadura. Para você, que se acha ainda de esquerda. Veja que tipo de sujeitos governam o país. E não me venha dizer que a Folha persegue Lula. São documentos oficiais do governo americano. Não tem que tugir nem mugir.

Agora, se você acha que Lula fez o que era certo ao trair as lutas populares e a soberania do país, então você merece o governo que tem. Um governo que fala pela boca mole do ministro da Justiça sobrevoante de selvas, enquanto a Justiça inocenta o mandante de um crime hediondo, o mesmo pelo qual tinha sido condenado a 30 anos. Como pode? pergunta a cidadania em pânico. Pode, porque continuamos em plena ditadura. Vejam o que a Folha revela, coisa que o Diário da Fonte comentou há anos, já que a traição estava registrada na Internet (mas agora é oficial):

Documentos mostram como Lula se aproximou dos EUA
Telegramas descrevem diálogo com embaixadora e papel do ex-ministro José Dirceu . Registros diplomáticos mostram que preocupação foi enviar mensagem de confiança a investidores e negar possíveis "surpresas" (Reportagem de Claudio Dantas Sequeira).

Documentos liberados pelo governo norte-americano mostram que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva priorizou a relação com os Estados Unidos, desde que foi eleito em outubro de 2002. Os bastidores dessa aproximação com a administração de George W. Bush estão em telegramas diplomáticos divulgados ontem pelo jornal "Valor Econômico".
A primeira preocupação de Lula foi enviar uma mensagem de segurança aos investidores estrangeiros. Depois ele assumiria papel de moderador na América do Sul, buscando amortecer o impacto da retórica antiamericana do presidente da Venezuela, Hugo Chávez.
Apenas três dias depois de ser eleito, Lula se reuniu com a então embaixadora dos EUA no Brasil, Donna Hrinak. A conversa foi relatada por ela ao Departamento de Estado norte-americano.
"Lula salientou repetidamente que queria trabalhar com os Estados Unidos, em geral e na Alca", escreveu Hrinak. Ao presidente, ela salientou que seria importante evitar "surpresas desagradáveis", especificamente uma mudança da política econômica herdada de FHC. "Lula imediatamente respondeu que não haveria "nenhuma surpresa". Que não seria "ideológico'", observou a embaixadora.
(...)"Enviar uma mensagem de confiança era uma necessidade naquele primeiro ano tão difícil", disse à Folha o ex-embaixador Roberto Abdenur, que serviu em Washington. "Não se tratou de submissão. Lula sempre foi muito lúcido sobre que tipo de relação ter com os EUA", explicou.
(...)Para Abdenur, a desconfiança das autoridades americanas e dos investidores só se dissipou completamente a partir do seminário a empresários no luxuoso hotel Waldorf-Astoria, em junho de 2004.
"O secretário do Tesouro dos EUA, John Snow, se dirigiu a Lula para cumprimentá-lo pelo discurso. No dia seguinte, ele divulgou nota elogiando a política econômica do governo Lula", lembrou Abdenur.
Em memorando desclassificado pelo governo americano, Snow relatou detalhes da conversa que teve com o presidente brasileiro. "Lula disse que o Brasil está seguindo a política externa mais agressiva de sua história. Ele quer usar seu bom relacionamento com figuras regionais como uma força pela estabilidade e pela democracia na região", escreveu.
O papel do ex-ministro José Dirceu (Casa Civil) é registrado com destaque nos documentos do governo americano. Dirceu estabeleceu um canal de interlocução privilegiado com Rice, em uma estratégia de Lula para agilizar os contatos.
Para a Casa Branca, haveria certa resistência na cúpula do Itamaraty sobre uma relação amistosa com os EUA.
O trabalho de Dirceu se concentrou basicamente em criar laços com investidores estrangeiros e amenizar a tensão nas relações dos EUA com a Venezuela. Em março de 2005, Dirceu se reuniu em privado com a secretária de Estado americana, por cerca de 15 minutos.
Um telegrama registra: "Dirceu afirmou que Lula já tinha aconselhado Chávez sobre a necessidade de ser mais cuidadoso em sua retórica. Ele acrescentou que o Brasil não acredita que Chávez esteja apoiando as Farc".

RETORNO - 1. Entendi. Não foi submissão, foi lucidez. Então, tá. Conta agora aquela do Delfim Netto fanho. 2. Imagem de hoje: o Amigo da Onça, imortal criação de Péricles.

6 de maio de 2008

O BRASILEIRO ARANHA


Nei Duclós (*)

Sabor de picanha criado em laboratório; ideologias sob medida; religiões de resultados; máquinas que não duram um semestre: o conceito de descartável contaminou todas as atividades humanas e chega com força na literatura, na moral, nos princípios. Nacional e mundial são palavras obsoletas, devoradas pela idéia de global, que significa não ser de lugar nenhum. O único lugar habitável é o dinheiro.

Memória, poesia, sonho também ocupam a vitrine de badulaques. Com um agravante: descobriram o DNA da emoção. O poder seduz e vampiriza almas para atingir a essência. O real é apenas conseqüência. Se agora é possível dominar a medula virtual que comanda o espetáculo, então o circo todo está contaminado.

Essa situação nos remete a uma cena famosa, que consta no livro “Porta para o infinito”, do brasileiro (nascido no interior de São Paulo) Carlos Aranha, que assinava com o nome artístico Carlos Castaneda. O mestre Juan Matus ensinava a idéia de nagual, que engloba o incognoscível, e o tonal, que reúne tudo o que pode ser visto e entendido. Deus está no nagual? perguntou o aprendiz. Não, disse o bruxo, Deus também faz parte da mesa do tonal (e incluiu o saleiro no acervo de objetos na frente do aluno, para representar o que havia dito). Tudo o que imaginamos, tocamos, conhecemos está nesse círculo apontado por Don Juan. O resto é o Outro Lado que nos cerca. “Você está rodeado pelo infinito”, disse o professor para o aluno abismado.

Por um tempo (enquanto o autor vendia bastante) virou moda esculachar Castaneda, como se ele fosse o símbolo dessa enganação que tomou conta do imaginário e da cultura internacional. Clones verdadeiramente vigaristas aproveitaram, para o mal, as revelações desse antropólogo desconhecido, apesar de famoso. Por ser Aranha, ele pertencia a tradicional família paulista (com um ramo no Rio Grande do Sul). Aos 15 anos foi enviado para Buenos Aires e de lá para a Califórnia. Um dia, confessou que o tio, político de grande prestígio, seria candidato a presidente no Brasil. Mas Oswaldo Aranha, como se sabe, foi colocado de lado em favor do marechal Lott, que perdeu para Jânio Quadros.

Naturalizado americano, seguiu os conselhos do mestre e apagou a história pessoal. Aos poucos, juntando os cacos de sua biografia partida, a velha história de que teria nascido no Peru (sustentada pela revista Time nos anos 60), cai por terra. Confundido com um homônimo, devido ao Castaneda, o brasileiro Carlos facilmente virou hispânico, um equívoco comum na percepção ianque. O sobrenome Castaneda fazia parte de um código familiar e fora adotado pelo avô materno, que criou o neto numa fazenda.

O tempo encarregou-se de transformar seus livros, que enfeixam uma tese antropológica surpreendente, em mais um vetor de alienação e auto-ajuda. Tudo o que está revelado, como a sofisticada cultura de povos ancestrais dos continentes americanos, e o pulo dado quando houve a Conquista, acabou numa região de sombra.

Enjeitada pela universidade que a gerou, a obra de Carlos guarda desafios importantes para o futuro. Nela, há espaço para o nagual, um lugar que a avalanche descartável não atinge. Enquanto isso, ele é fonte (jamais citada) de inspiração para inúmeros filmes e livros. Pois quem leu Castaneda sabe de onde George Lucas tirou a idéia da Força e de todos os ensinamentos dos Jedis.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 6 de maio de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Mais informações sobre o assunto acima neste endereço. Sempre na vanguarda, o site Consciencia (média de sete a oito mil visitas únicas/dia), de Miguel Duclós, levantou esta lebre da origem certa de Carlos Castaneda. 3. Imagem de hoje: Carlos Aranha, mais tarde Castaneda.

4. "Brizola: Tempos de Luta" ganhou o prêmio de melhor montagem no festival de cinema de Recife, encerrado domingo. A montagem do documentário de Tabajara Ruas foi feita por Ligia Walper. Soube, pelo blog do Luiz Carlos Merten, que cobraram de Taba um filme menos a favor de Brizola. É muito engraçado. São profundamente tendenciosos contra Brizola e como são tendenciosos, acham que os outros são ou devam ser iguais a eles. A opção de Tabajara Ruas foi filmar o mito e não se perder em picuinhas pessoais, que envenenaram a biografia do grande estadista. Destacou a obra e resgatou a grandeza do herói que se foi. Nada mais cinematográfico, nada mais cultural. Mas querem, claro, que falem mal da fazendinha do Uruguai.