31 de janeiro de 2008

O NOME DA TERRA


Nei Duclós

Fronteira é pátria precária
Paiol de força contrária
Paisagem imaginária

Fronteira é flor que se quebra
na sombra da sentinela
Navio que afunda na barra

Fronteira é cisma de guerra
Gatilho preso na corda
Praia com sobra de ferro

Fronteira é embrulho de bala
Palavra bruta na praça
Barulho em forma de trégua

Fronteira é mira na espera
Bandeira em cima da sela
Cintura que ostenta o berro

Fronteira é aceno de pedra
Combate feito na marra
O nome próprio da terra

Fronteira é tropa na sala
Clarim que bate panela
Fogo sem dono na serra

RETORNO - 1. Poema do capítulo Terra, do meu livro "Partimos de Manhã". 2. Imagem de hoje: "Gaúcho solitário", de Glauco Revoredo Guerra.

29 de janeiro de 2008

VIRTUAIS SEM VIRTUDE


Nei Duclós (*)

Informática um dia foi novidade. Lembro que nos deslumbrávamos com as palavras que sumiam na tela para reaparecerem depois. Isso deveria ainda hoje gerar algum espanto, pois não consigo atinar a origem de mágicas consideradas corriqueiras. Na mesma época, ao visitar a Rede Globo no Rio de Janeiro, um amigo jornalista me explicou o seguinte: "Você tecla aqui e Deus faz aparecer aquilo lá". Era o tempo da piada sobre a diferença entre software e hardware. Um deles faz barulho quando jogado no chão, me diziam. Eu ainda não conseguia digerir o conceito de algo real que não poderia ser empurrado com as mãos.

Fazer desaparecer as perguntas é o truque dos ilusionistas, que confiam na capacidade mimética dos consensos e da vergonha que temos de exibir ignorância. Não que eu vá estudar mecânica quântica para saber porque uma rede imobiliária inexistente, ou podre, consegue derrubar empregos e finanças de verdade. A economia é o reino dos sabichões e qualquer dúvida é tratada com indiferença olímpica, pois a situação está posta e não vá perguntar por que existem os juros. Mas o valor atribuído a signos que dependem de certezas graníticas tem a natureza volátil e está preso por um alfinete, como as hélices da rosa-dos-ventos.

Quando comecei a vida adulta, aos 14 anos, fui colocado atrás de um balcão de vidro, transparente, onde pontificavam anzóis e linhas de pesca, além de tesouras de vários calibres, canivetes e facas. Atrás de mim altas redes despencavam em cascatas de véus de noiva. Havia também os chumbos, as latas de café solúvel, as cadeiras de alumínio, os maços de cigarros, os caniços de fibra de vidro. E, por algum tempo, espingardas para colher perdizes, cada vez mais escassas nos campos. Era um espaço totalmente dedicado à economia real, mas havia brechas na bolha aparentemente indevassável.

Uma delas era o câmbio. Vizinhos da Argentina, havia aquela conversão entre moedas antes que a hiperinflação destruísse mais essa ilusão do Terceiro Mundo, exatamente a de ter moeda. A deles até exibia nome de absoluta concretude, Peso. O nosso, Cruzeiro, era mais uma constelação inalcançável, uma travessia por oceanos infinitos, uma cruz que carregávamos até que chegasse os planos cruzados no queixo. Para mim era impossível saber quanto alguém poderia deixar em Pesos o que eu estava vendendo em Cruzeiro. Costumava me atrapalhar e o dono do estabelecimento, meu pai, lançava o olhar para o alto quando vinha checar a operação.

Implico com o câmbio como implico com o dinheiro depositado que fica crescendo à custa do que me escapa. Qual a virtude de uma pilha de notas, que nem existem, mas são apenas representadas pelos sinais que jamais poderão ser jogados no chão? Pois deve haver virtude num produto que se multiplica pelo simples fato de girar de um lugar para outro, independente se está comprando anzóis ou tesouras.

Não é normal querer fazer perguntas quando tanta gente está envolvida num processo encarado com seriedade. Mas basta um alarme na madrugada asiática, um imóvel não quitado no país do dólar, para todo mundo colocar as barbas de molho. Será tarde demais para perguntas se houver um encadeamento de ruínas. Nem vai adiantar teclar aqui, pois Deus, possivelmente, nem vai fazer aparecer qualquer coisa lá.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 29 de janeiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.

28 de janeiro de 2008

NOVAS ATRAÇÕES DO FANTÁSTICO


Apresentamos algumas atrações do Fantástico, da Globo, vistos da planície. O Fantástico é a única chance de um cacófato (zecaca) posar ao lado de uma poeta.

COMO ECONOMIZAR ENERGIA - No lugar de desenroscar duas das seis lâmpadas dos portentosos lustres da sala; ou desligar dvd, tv, microondas, torradeira, nos poucos minutos em que não estão em operação; em vez de apagar as quinhentas luzes que inundam os corredores, ou a quantidade gigantesca de aparelhos por toda a casa escolhida pela edição aristocrata, o mais seguro é tirar do ar sua própria TV e esquecer o sr. Dinheiro e o Fantástico.

DENGUE NÃO DÁ TRÉGUA - Impressionante como essa gente não aprende. Tanta campanha de marketing, tanto anúncio pago a segundo de ouro, tantas folhetos coloridos, filminhos espertos e advertintes, tanto dinheiro público gasto em gigantescas inserções publicitárias, e a dengue continua aí, firme. O povo precisa deixar de ser besta e acabar logo com o mosquito, que precisamos gastar a bufunfa dos impostos em outros troços. Pô. Vejam os pesquisadores estrangeiros; eles estão chegando a uma solução para a doença, então nem precisa mais se esforçar, basta jogar fora a água da caneca. Simples. Que coisa. Que povinho.

ASAS DO EVOLUCIONISMO - Você, um débil mental, precisa de um pirralho, desses hegemônicos muito comuns em filminhos de reclame, para te dizer que, como todo mundo sabe, a borboleta é um inseto. Pois não é, fedelho. Borboleta é o cara que te pôs aí na frente da câmara te fazendo de besta.

SAIBA MAIS COM OS MÉDICOS - A medicina é um espanto. Não sabe coisa nenhuma, nem como curar a gripe ou se o aneurisma vai te foder ou não em qual espaço de tempo. Mas isso não impede que os médicos exibam seu cabelo bem penteado para trás com glostora para te assustar com verdades científicas como esta: o aneurisma te pega dos 49 aos 51 anos, mas também aos 60, mas o cara que morreu tinha 43, então veja o caso da garota de 18 que também se foi. Agora deposite algum na conta do portento.

DÊ PARA OS AUSTRALIANOS - A apresentadora se identifica com a caça ao macho nas baladas e vai atrás das suas iguais, as mulheres que pagam mico em frente às câmaras para oferecer o charme e o veneno da mulher brasileira para os gringos. É batata: quando falam em mulherada, tem matéria de como dar na esquina. Não se contentam em dar. Precisam mostrar como se faz. Para disfarçar, mostram o casal de velhinhos que começou a namorar no carnaval e hoje tem netos. Dar na balada nada tem a ver com isso, mas não importa, né?

BOLA MURCHA É TU – Futebol de várzea serve para ser achincalhado e não servir de insumo e celeiro de craques, como costumava acontecer. Agora os amadores precisam sentir vergonha de suas limitações. Conforme-se em virar apenas consumidor de cerveja diante das televisões. Nada de sair jogando que senão o vídeo vai parar no Fantástico, numa cassetada para todo mundo rir.É mais um capítulo da destruição da auto-estima dos brasileiros, cada vez menos protagonistas e mais macacos do consumo. Enquanto isso, os criativos apresentadores estão triunfantes de tanta bola cheia.

CHIC NO ÚRTIMO – Seja chic, não pague mico. Escolha, entre as trezentas peças do seu guarda-roupa, aquela que vai agradar o entrevistador para o emprego. Estar desempregado não quer dizer nada, você tem roupa sobrando. Basta não ser xangai e ir com aquela écharpe de Paris que a vaga será sua. Não esqueça de passar na livraria e pagar uma nota para comprar o livro sobre o assunto. Leia sem mexer os lábios. Pega mal.

MATE SEU COLEGA ANTES DAS FÉRIAS - O super-consultor ensina: nada de querer ficar 30 dias de papo para o ar neste mundo onde impera o tititi da competitividade. Antes de pegar o adiantamento da sem-vergonhice, pense na família e estrangule, quando ninguém está vendo, o concorrente da mesa ao lado. Isso impedirá que o pessoal lá da firma te substitua enquanto pagas os tubos para ficar num cochicholo na beira do mar, disputando lixo com os urubus.

RETORNO - Imagem de hoje : "O momento do impacto - 2ª noitada do Forja dos Campeões", foto de Hélcio Toth, publicada no Site da Federação Paulista de Boxe.

27 de janeiro de 2008

A VIDA PERGUNTA ÁGUA


Nei Duclós

A vida pergunta água
a dor responde fuligem

O cal endurece as mãos
Num corredor de gatilhos

Todo espelho se quebra
ninguém é reconhecido

O Mal não suporta a sombra
que lhe faz o seu carisma

A ligação cai no colo
O poema lança o grito

Se a fala esqueceu a boca
nossas artérias se abriram

A morte pergunta fogo
Nós respondemos abrigo

Um teto bem mais acima
Dos pés que jamais fugiram

Que não desabe a parede
Nas costas desse conflito

A vida pergunta Sérgio
Todos respondem perigo

RETORNO - 1. Este é o primeiro poema de "Canto para Sérgio Vieira de Mello", um conjunto de 23 poemas escritos logo depois do atentado contra nosso diplomata e ao longo dos funerais em três continentes. O canto faz parte do meu novo livro "Partimos de manhã".

EXTRA

O ASSASSINATO DO PRESIDENTE

Preferi postar este poema do que destacar a Folha deste domingo, que colocou na capa o assassinato do presidente João Goulart pela repressão. Nas duas pontas do crime, estrangeiros: a CIA e o espião uruguaio. No miolo, os brasileiros: Geisel e o delegado Fleury, segundo a testemunha-bomba, o agente encarcerado no Rio Grande do Sul. Antes de sair na Folha, Marlon Assef já tinha me informado, via imprensa uruguaia.

Se for comprovado, dá-se razão mais uma vez a Brizola, que já tinha cantado essa. E fica ainda mais evidente o plano de consolidar a ditadura impedindo que o presidente deposto voltasse para assumir o poder. E coloca-se uma pá de cal na obra de 1964, com todos os envolvidos dentro. Ou enterramos esse regime e seus desdobramentos, ou não seremos mais um país. A grita de Paulo Coelho contra o conferencista que disse, para a gargalhada geral em Davos, que as mulheres brasileiras levantam a saia e mostram tudo, terá chegado tarde demais. Brasil, o rabo do mundo.

P.S. Lamentável o destaque dado pela Folha a um detalhe da entrevista de Emilio Odebrecht. 99 por cento da matéria é sobre os negócios do entrevistado e sua visão sobre a situação econômica hoje. Apenas um por cento é um comentário sobre o fato de Lula não ser de esquerda, o que já é sabido e foi até assumido pelo presidente. Pois isso virou manchete. Com esse tipo de postura, os jornalistas dão munição a quem acha que o PT é perseguido na imprensa.

25 de janeiro de 2008

CARNAVAL ENQUANTO GOVERNANÇA


“Inspetor de qualidade” dizem as costas da xiruzada que lava carro num posto da avenida Paulista. “Governança” diz outro jaleco de algum passeador de cachorro. Aumenta o orgulho de termos cada vez mais carteiras assinadas na área de limpeza, esfregação de bunda em aeroporto, enceramento de piso em mármore de carrara, lambedor de botas e tudo o mais. Mas falta um carpinteiro decente na construção civil. Se aparece um em alguma obra, vem a concorrência e leva embora, diz no Jornal Nacional um engenheiro abismado. Ganham mais do que a maioria dos jornalistas, que desceram vertiginosamente na pirâmide social por força da ditadura.

Agora é moda achar que o carnaval é um exemplo de gestão de qualidade. Esse gigante que é o joãosinho trinta, que criou a fase lapidar do obscurantismo (“quem gosta de miséria é intelectual”), é o parâmetro. Num país onde a educação foi sucateada de propósito, o ressentimento contra quem leu mais de um livro é uma avalanche que vem por todos os lados.

O certo é dar o seu melhor em campo e sacudir a perereca dentro dos princípios fundamentais do rebolado ergonômico. Há um deslumbnramento com a capacidade ditatorial dos chefes de bateria. O cara que resolver fazer um breque por conta, dar um repique que não estiver nos limites impostos da batucada padronizada, cai fora, sob aplausos varonis da nação empertigada, todos fazendo sim sim seu tolinho com milhões de cabeças concordinas.

Está tudo lá: o povo se comporta conforme o figurino, pois tem que cacifar sua própria fantasia, treinar até a loucura os mesmos passos para que tudo saia rigidamente cronometrado como um relógio suíço, obedecer os capangas e chefetes que dominam a área e ainda ter fôlego de mil dromedários, pois não se deve tugir nem mugir para que a escola saia campeã.

É um fenômeno. Enquanto a massa pasta na obediência servil, fazendo o papel de figurante, quem pode pagar ganha destaque. É o japonês prejudicado de movimento, a americana que precisa dar e não sabe como, além dos destaques importados das novelas. As celebridades ocupam o pódio usando o povaréu como tapete, por onde passam todos os aproveitadores, numa época em que otoridades improvisadas tipo esse da novela, o Juvenal Antena, dominam as comunidades

Ou seja, é a estrutura ideal para quem vive numa ditadura. Na periferia de Salvador, gangs dos tais menores expulsam e matam os moradores e isso serve para algumas blitz e matérias de alarme. Por que se chega a essa situação cafageste? Porque os governos estão voltados para outras coisas e a nação vive ao Deus dará, só como um túnel, como diria Neruda. Aí o teterio, o tetame, a bundagem, a pubarada, a paudurescência, a sovaquice, a pernoquera, o com-certezismo, os abadás, os meus reis e tudo o mais invadem as pistas e dão o maior exemplo de eficiência e organização da governança corporativa.

Ora vão todos cagar muita, mas muita pedra.

22 de janeiro de 2008

MAGRELA NOS TRILHOS


Nei Duclós (*)

As bicicletas surgem do nada e se atravessam na frente dos carros. Ninguém usa capacete e costuma-se atirar os veículos em frente aos estabelecimentos comerciais. Deve ser um hábito de direito adquirido, pois muita gente faz isso e não há uma só voz que se levante contra. Também andam na contramão, já que não dispõem de antigo e eficiente apêndice, o espelho retrovisor, obrigatório até os anos 60. Sem saber quem vem atrás e com quais intenções, o ciclista se previne e anda na parte da rua em que pode enxergar o perigo de frente.

Certa vez em São Paulo eu atravessava uma faixa de segurança, com farol (ou sinaleira) favorável a mim, quando uma atleta com sua bike partiu para cima. Ao ouvir a reclamação, virou-se de maneira abrupta e xingou. Estava no seu “deretcho”. O veículo oferecia tudo, desde apliques coloridos até lantejoulas. Mas não tinha lanternas, nem na frente nem atrás, para identificar a presença das duas rodas no breu.

Tudo isso foi erradicado do Brasil, inclusive as placas para bicicletas. Sim, era preciso licenciá-las, sob pena de recolhimento imediato. Naquela época, qualquer veículo de tração animal obedecia a lei. Esses princípios não perderam a validade em outros países. Soube pelo meu filho, há alguns meses morando na Holanda, que em Amsterdam, cidade siderada pelas magrelas, o convívio entre os meios de transporte é amistoso.

Lá, idosos fazem compras praticamente com bicicletas a tiracolo, namoros surgem nos cruzamentos entre milhares de ciclistas, e crianças são criadas a bordo. O cidadão cresce sem precisar de carro. Possui ainda um sistema eficiente de trens, o transporte mais moderno do mundo, rápido, pontual e silencioso. Aqui o trem virou Maria Fumaça.

Quando falam em metrô da superfície em Florianópolis, que seria uma solução caída dos céus para tanto transtorno, tem gente que reclama do possível barulho. Não há nada mais barulhento do que motor a explosão. E o silêncio há muito foi incorporado aos veículos sobre trilhos em países civilizados.

Mas parece que o debate está desaguando para soluções elitistas, como uma infra-estrutura para receber navios de luxo de grande calado. No momento em que apresentam carros movidos a ar comprimido, o ideal de embarcações impulsionadas a petróleo, atracando sem parar, parece ser o prenúncio de mais um pesadelo.

A navegação precisa alcançar a excelência em todo tipo de embarcação. Vi pela milésima vez, neste verão, a reportagem sobre a falta de segurança nos barcos e a impropriedade de se andar sobre eles sem o número necessário de salva-vidas, que normalmente nem são usados.

Num entardecer, dois adolescentes pegaram um pequeno barco e foram verificar uma rede, além da arrebentação. Perguntei ao pai deles, que estava a meu lado na areia, por que os garotos não usavam salva-vidas. O sujeito se ofendeu. “Isso é para quem não sabe nadar”, disse ele, convicto. Ou seja, é coisa de maricas. Macho entra no mar no peito e na raça. Não precisa de uma bóia laranja pendurada no pescoço como um chamariz.

Sabemos que a paisagem do litoral é mutante e caprichosa. Um amigo meu resolveu, numa tarde de esplendor na Lagoa, navegar com alguns amigos. O vento virou e a tripulação quase morreu. Foi salva pelo chato que usava a bóia providencial. Nunca mais ele se aventurou. Agora, só fica na beira da praia, sendo corrido a apitaço pelos salva-vidas humanos, que não querem saber de naufrágio na hora do expediente.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 22 de fevereiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: flagrante registrado por Daniel e Carla Duclós em Amsterdam. Notem como as bikes estão bem estacionados e reparem o detalhe das magrelas para a petizada. Que maravilha.

20 de janeiro de 2008

GODARD: O PENSAMENTO ENFRENTA A VORAGEM


Nei Duclós

O amor se opõe ao estado, e as idéias, ao Império. Para que o amor exista, para que afirme a História encarnada na individualidade, para que não faça parte do poder global que nos devora, é preciso pensar sobre ele e pensar é criar cultura: uma cantata, uma novela, um filme, uma ópera.

No filme de 2001, O elogio do amor, Jean-Luc Godard segue os passos de um pesquisador em volta de seu projeto, que ainda não tomou forma, já que tateia as formas do seu objeto de estudo, envolvido com uma atriz que se recusa a colaborar, um financiamento que enfrenta a burocracia, testemunhas que mercantilizam suas memórias, laboratórios de interpretação frustrantes, diálogos em labirintos, encontros dispersos.

A complicação, em Godard, é fruto da ética. O assunto amor foi amarrotado pela indústria que aprisiona as almas e para encontrá-lo de verdade é preciso mais do que um travelling sobre o bosque que guarda os vestígios de uma antiga batalha, mais do que um passeio noturno na chuva, na noite e no inverno.

É preciso tomar nota à margem da produção em massa, para que o tema se revele na sua essência, fora dos limites impostos pelo desfecho das guerras. É onde o humano sobrevive, de costas para o comércio dos gestos, que o protagonista busca o pássaro arisco de sua aventura mental.

Quando foi que perdemos a capacidade de enxergar? pergunta Godard. Foi quando chegou a televisão e focou os acontecimentos, ou quando o cinema industrial criou uma rede gigantesca e profunda que ensina as massas a ver. Como voltar a ver? Mergulhando no processo que gera as idéias.

Quando vemos algo a que atribuímos ineditismo, quando vemos uma paisagem que decidimos ser nova, estamos é nos referindo ao que já conhecemos, portanto, quando pensamos numa coisa, no fundo estamos pensando em outra, diz Godard. É essa extrema sinceridade, esse congelamento, ou essa câmara lenta sobre como nos comportamos diante da realidade, que ele carrega como apanhador de estrelas cadentes.

Sim, tudo é poético em Godard. Isso não quer dizer que ele poetize suas imagens (a imagem não fala, segundo ele), ou busque a poesia na sua travessia. Ele é poético porque não desiste de uma idéia, a de que somos anteriores ao mundo transformado em mercadoria. Também não quer dizer que ele faça parte da desmistificação ideológica do capitalismo, que isso já provou o quanto é traiçoeiro. Ele busca na literatura, na experiência escrita dos grandes autores, a chave para trazer de volta a humanidade perdida.

Para isso, não se entrega à felicidade que possa existir nas descobertas, nem se deixa abater pela tristeza que há na verdade. Ele palmilha o terreno de virtudes soterradas, corrige homenagens excludentes, procura recuperar o talento perdido em afazeres brutos, e olha para a História que nos acompanha nas palavras, nas paisagens, sem que notemos.

A longevidade de Godard e sua vasta e complexa obra são privilégios dos seus contemporâneos e um farol eterno para os que virão. Nossa época não será lembrada por nada que sai nos balanços de fim de ano, de década ou de milênio. Ficará conhecida como o tempo em que Godard esteve filmando sobre a Terra.

Dessa luz é feita nossa grandeza, tão distante quando nos afastamos de Godard, e tão próxima quando vemos mais um de seus filmes antológicos. Viva Godard e seu legado: a humanidade que perdemos e que ele reconstitui com seu artesanato de ourives, seu olhar de águia noturna, sua paciência de mestre que não dá trégua, não permite defecções e que ama sem vender seu coração.

RETORNO - Imagem de hoje: Jean-Luc Godard, que no seu filme cita mais de uma vez os brasileiros como povo com origens, com alma, opondo-se aos americanos, que "não possuem um nome", já que América é uma denominação que se reporta a vários países.

A IDIOTIA MILIONÁRIA


Uma cabeça como a do Luciano Huck deveria ser guardada em algum sótão, e não exposta num horário nobre, sábados à tarde, ainda mais nesta época, véspera de carnaval. O nariz de gancho, as orelhinhas de burro, a boquinha de siri (que faz esgares espertinhos), os olhinhos que piscam e a voz fake comandam horas de programação em rede nacional. Neste sábado, ele escolheu a “musa” do carnaval paulista, entre monstros siliconados que sacudiam a celulite sob a guarda de progesteronas vencidas, ex-beldades que representavam o papel das marafonas, as que escolhem o material para o mercado.

Não adianta chamá-lo de idiota, como fazem inúmeros blogs. O que sustenta o sujeito é o sistemão. Há interesses explícitos em gerar uma criatura como essa, que no fundo sintetiza o ethos da tigrada, a pseudo-aristocracia cevada pela ditadura, que, de rolex no pulso, acha muito justo o direito de expor os privilégios, e foda-se a “gentalha”. Numa festa filmada e postada no you tube, saradões cretinos rasgavam notas de vinte reais. Diziam que pouco dinheiro para eles é lixo e que mereciam estar lá, num bairro chic, à beira-mar, gastando os tubos.

A renda concentrada em poucas mãos precisa de um esquema completo de corrupção para se sustentar. Isso gera impunidade total, pois a sacanagem está garantida pelos poderes. A toda hora, ó surpresa, descobrem um megatraficante morando em mansão, num desses bairros. É a lógica: a vagabundagem precisa das drogas vindas da fonte e repassam uma nota preta (um deles, por enquanto preso, diz que tem 40 milhões de dólares enterrados no Brasil) para o tráfico.

Esse é o ambiente ideal para surgirem os novos milionários: 60 mil, segundo as estatísticas, brotaram em apenas um ano; eles são agora 190 mil, que detêm metade do PIB nacional. É preciso exibir desprezo ao povo que, sem opção de lazer, liga a TV e fica vendo coisas como o Luciano Huck, também ele um novo milionário, lógico. Arroz de tudo que é festa metida a importante, ocupando lugares especiais em camarotes e outras mumunhas, Huck é flagrado exibindo sua arrogância sem limites.

O dinheiro que falta no teu bolso está na mão dessa canalha. Em vez de haver distribuição de renda em rede, por todo o tecido social, a moeda falsa do real fica em grandes cofres desses milhares de tio Patinhas, rendendo juros, pois é preciso bolos enormes de grana para que a política de remuneração do ócio continue. Não vá inventar de ser um pequeno poupador ou investidor, os meganhas te fodem, te empurram para a escravidão ou a miséria. O que dá lucro é a ciranda financeira e não a poupança.

O Carnaval é a erupção de tudo que é tipo de putaria imperante no Brasil. Começa com o festival de carnes expostas, de tetas sacudintes, rabos rebolantes, bracinhos ao ritmo da bateria, carinhas de pede passagem. Aí tem os sambeiros sorridentes, os gigolôs da bagacera, com suas musiquetas de merda, esse troço que transformaram o samba, que nem mais samba é, cheio de lugares comuns, com letras (?) que atropelam a melodia (?), ou melhor, palavras esdrúxulas mal ajambradas em gritarias a esmo. Aí “dizem” no pé e acabam trocando os joelhos de maneira frenética, que é a maneira de sambar inventada por quem não sabe sambar.

Depois vem os desfiles, com discursos sobre a comunidade e as preleções “históricas” sobre os enredos, sem falar no carnaval de rua que custa uma nota, os milhões de imbecis se aglomerando atrás de sangalos e sangalinhas. Todos dizendo no pé e pedindo passagem. Depois voltam para as cidades inabitáveis, os empregos que não existem, as chefias nojentas, os esgotos a céu aberto, os carrões que atropelam mendigos, e, claro, o marketing mentiroso dizendo que somos uma potência, enquanto a febre amarela avança e as estradas federais ainda não privatizadas despencam diante das câmaras. Cagai pedra!

RETORNO - Imagem de hoje: o cofre do Tio Patinhas.

18 de janeiro de 2008

BANHO DE APITO


Seis bandeiras vermelhas pontificam numa faixa de areia de uns 300 metros. Entre duas delas e a cada 50 metros de cada uma, é proibido tomar banho. Quem se aventurar em território vedado será expulso pelo apito dos salva-vidas, prestimosos na sua ação preventiva. Sobra quase nada de lugar permitido, especialmente quando o dia está esplendoroso e o verão a pleno.

Como os banhistas costumam chegar cedo na areia e escolher livremente seus pousos, é exatamente nessa escolha que a estridência decreta a abstinência. Vemos então como, penosamente, as pessoas que cruzaram serras e planaltos para chegar até ao sopé do morro lavado de sal, obedecem os ditames de uma lógica que não está clara para ninguém. Já perguntei mais de uma vez quais são os critérios, que parecem ditados pelo bom senso, mas mudam de lugar como as bandeiras fincadas a esmo.

Se você insistir, os caras ainda te rogam praga. Ouvi um deles dizer: “Por mim, podem se estatelar nas pedras que eu não estou nem aí”. Nesta estação em que existem inúmeros acidentes, pode pegar mal falar essas coisas de um serviço tão importante. Mas para tantos afogamentos, cabe a pergunta: o que vocês estavam fazendo na hora do perigo?

Não há como se insurgir contra os sarados caras de calção vermelho e camiseta amarela. Pelo menos, por parte da população mais cordata, que sofre de fato o apitaço. Os teimosos, ou por excesso de testosterona, ou pela postura voluntariosa das minorias emancipadas, não estão nem aí. Não obedecem às ordens e até mesmo se aprofundam para lá da arrebentação, só para contrariar.

Enquanto isso, somos deslocados de um lado para outro. Queremos a todo custo evitar o apitaço, que vem de uma autoridade inconteste, que nos coloca como bestalhões irresponsáveis. Talvez o objetivo seja o de impedir o banho do mar para evitar trabalho, talvez seja pior do que isso. Será que apitam para os banhistas compartilharem a mesma sina, de renúncia sob o sol a pino? É possível que tentem repartir os ossos do ofício, como os serralheiros que infernizam a vida dos outros só porque concentraram todas as virtudes no próprio trabalho.

Minha desconfiança tem base. Não faz muito tempo, existiam várias bandeiras, sob a guarda de atletas atentos, a cavaleiro em suas altas casamatas, ao contrário do que ocorre hoje, em que o salva-vida se mistura na areia como um veranista. Com bandeira branca, o banho era liberado; amarela, atenção; vermelha, alerta; e a preta, proibição total. Eram levados em consideração o clima, o vento, a chuva, a força do mar. No janeirão, as bandeiras branca e amarela imperavam. Difícil ter bandeira vermelha, dia de ressaca, ou de prenúncio de tempestade. Ou ainda preta, espécie de ameaça de um apocalipse localizado.

Hoje, segundo a avaliação do rigorosos salva-banho, correntezas suspeitas provocariam choques laterais que nos levariam para o buraco. As ondas que quebram mansas não são mais as crianças do mar. São todas traiçoeiras, se enredam em nossos pés e querem nos carregar, enquanto os bravos rapazes, os quais jamais vi em ação, nadando, ficam em grupos admirando a proibição em massa.

Devemos nos calar e somos tocados para lá e para cá, rebanho insosso de carnes cansadas, mitigando mar enquanto o mar nos é negado. Mas o que nos dá algum sossego é o assédio de algumas garotas, encantadas não só com o físico, mas com o poder dos apitadores. Enquanto se distraem, aproveitamos para cumprimentar nosso velho conhecido, o Oceano Atlântico.

O mar é indiferente ao que aprontam na sua beira. Ficamos bem na beirinha, longe de qualquer perigo. Ninguém precisa nos impedir de peitar a onda. Se alguém for colhido de surpresa, aí sim o fôlego gasto no apito terá sua prova dos nove. Certamente há valor em quem se dedica ao trabalho insano enquanto os outros aproveitam o mar. Mas só naqueles que não demonstram ressentimentos contra os banhistas e estão realmente impregnados de algo que sumiu do mapa, o espírito público.

Que existem, existem, e devem ser homenageados. Os outros, mais vistosos, precisam ser chamados às falas, pois exercem os poderes dos pequenos tiranos, sob pretexto de que estão protegendo as pessoas.

RETORNO - Imagem de hoje: Homer Simpson, o herói de Marge.

16 de janeiro de 2008

AS GRANDES BABAQUICES DO NOSSO TEMPO

São inúmeras, mas como todo tema candente merece uma antologia. Vamos às babaquices que ocupam o pódio:

BOIAR NO MAR MORTO – O sujeito voa 20 mil quilômetros para ficar exclamando “o que é a natureza” ao verificar que o próprio rabo não afunda.

TER UM BLOG – Leste o meu blog? é talvez a pergunta mais inoportuna e recorrente desta época em que todos acham que os outros precisam ficar lendo as abobrinhas que tomam conta da rede. Visitei teu blog, agora visita o meu, iac iac iac.

SER PLATÉIA DO FAUSTÃO – E gritar quando o barrigudo fala em paciência, levantando as mãozinhas. Isso não dá dó, isso provoca guerra.

FAZER HÚÚÚ NOS ESTÁDIOS - É impressionante como centenas de milhares de pessoas, todos os anos, caem na mesmice de fazer húúúú quando a bola passa raspando e é quase gol. Participar da “ola” ou se atirar em massa no alambrado então nem se fala.

PROVAR DIANTE DAS CÂMARAS – “Hum, está muito bom!”: todo segurador de microfone que disser isso deveria pegar uma cana braba, com tratamento dado aos estupradores.

SER PAIZÃO DE FILHÃO - “E aí, campeão?” Essa é a pergunta que todo pai omisso faz no fim-de-semana, depois de deixar o fedelho entregue às baratas e querer aplacar a culpa com aumentativos. É o pai de anúncio de margarina. O genérico é o pai que compra fita pirata e leva uma dura do pirralho.

NAMORAR PARA SAIR NA CARAS – O rodízio de macetas (como dizia meu pai quando se referia aos bailes, que só serviam para “bater maceta”) toma conta das revistas inúteis. Nulidades célebres possuem coisa entre as pernas e as usam diante das câmaras.

JOGAR CONVERSA FORA - É típico de pessoas que ainda usam a expressão “fora de série”, que não quer dizer absolutamente nada. Bocejam no meio do papo. Prestam atenção em que está fora da roda. Estão “de bem com a vida”. Não te conhecem, mas são teus íntimos.

CUMPRIMENTAR DANDO SOCO - O aperto de mão foi substituído pela luta livre. Como não basta ser macho, mas professor de macho (ensinam os outros a ser macho) então o negócio é soquear o interlocutor.

FAZER SINAL COM MINDINHO E INDICADOR EM RISTE – Dobrar o médio e o anular e deixar os outros esticados, enquanto dá gritinhos, era coisa de surfista, agora parece que virou praga.

15 de janeiro de 2008

LER IMAGENS


Nei Duclós (*)

Na leitura, não há diferença entre texto e imagem. A palavra é lida a partir de sua representação visual e qualquer rabisco é passível de leitura. A crítica de arte costuma exagerar e tece uma complicada teia de argumentação e análise quando elabora algo sobre artes plásticas. Prefiro Roland Barthes, autodidata capturado pela universidade francesa, que entendeu ser a franja dos personagens do filme Julio César, de Joseph Mankiewicz, como "a expressão da romanidade". Uma romanidade inventada por Hollywood, claro.

O gênio de Barthes defende a teoria da identidade francesa num simples filé com fritas, um insight que abriu as comportas para entendermos melhor a sociedade de massas e todos os seus inúmeros textos que existem diante de nós e que, analfabetos visuais, costumávamos ignorar. De olhos abertos, agora podemos ver como os Estados Unidos implantam o patriotismo tornando obrigatória a presença da bandeira estrelada em todos os filmes. Hoje, não existe cinema americano sem a bandeira em algum lugar do cenário, quando não tomando conta de todo o espaço disponível, até mesmo em comédia romântica.

O cinema partiu da cena ocasional (a saída dos operários da fábrica, a chegada de um trem, nos curtas dos Irmãos Lumière) para o grandioso (a revolta dos trabalhadores em Os Companheiros, de Mario Monicelli, a destruição de um comboio ferroviário em Lawrence da Arábia, de David Lean). E voltou-se para o minimalismo, não na Nouvelle Vague, que ainda tem algo de épico em personagens como Pierrot Le Fou, de Godard ou os adolescentes de Os Incompreendidos, de Truffaut.


O enxugamento total veio com o cinema iraniano, onde um tênis em fuga pelo esgoto, perseguido pela criança desesperada, num filme de Amir Hashemian, vale mais do que um milhão de palavras. Voltamos ao be-a-bá do cinema depois de longa trajetória, quando atingimos a simplicidade por meio da síntese, e não da omissão ou da insurgência antiespetáculo.

O mundo foi feito para ser visto, e depois, lido. Não teríamos noção da revolução russa só pelos livros. Não fosse Eisentein filmar Outubro ou O Encouraçado Potemkim, mesmo que sejam apenas representações do conflito, não chegaríamos perto do que John Reed descreveu em Os dez dias que abalaram o mundo. Quando, no livro de Reed, Lênin se debruça para infletir sobre a platéia nos seus discursos, é Eisenstein que está nos abrindo os olhos. Imaginamos o que já vimos, e quando lemos, projetamos as criações expostas em mais de um século de Sétima Arte.

Depois de Aurora, de Murnau, descobrimos que não há evolução no cinema, já que antes de 1930 um filme tão soberbo e com visual complexo e magnífico foi concebido e rodado. Hoje, em que as imagens dos blockbusters são a tábula rasa da imaginação, ver Aurora é como revisitar o Renascimento.

O cinema é tão importante que só os gênios deveriam filmar. Ficaríamos livres da mediocridade empastelada, que toma conta de todas as salas. Luchino Visconti, a majestade perdida, teria feito sucessores. Seríamos obrigados, como fazíamos antigamente, a tatear no escuro para descobrir o que os mestres nos traziam.

Estaríamos livres de tanta bandeira, imersos novamente na sala escura a adivinhar preciosidades. Sorte que ainda existem grandes criadores, mas eles estão escondidos pela avalanche de barbaridades.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 15 de janeiro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: cena de Aurora, de Murnau.

14 de janeiro de 2008

TEMPO DI PERDONO


O escritor, poeta e professor Julio Monteiro Martins traduziu para o italiano meu poema "É tempo de perdão", junto com seus alunos de "Lingue e Lettere dell'Università di Pisa": Anna Crippa, Martina Barsanti, Massimo Inghirami, Virginia Lupo, Eleonora Gianni e Sara Scatena.

É uma honra e uma alegria para mim, poeta veterano e tão pouco visto neste vasta latifúndio das letras pátrias, ter mais um dos meus poemas (o outro é "O país perdido", traduzido também por Julio e sua equipe ) para ser lido na língua de Dante. A publicação foi na edição número 30 da Revista Sagarana, editada por Julio, que mora na Italia e é o mais importante escritor brasileiro em atividade no Exterior. A seguir, a versão italiana do poema, seguida do original em português.


TEMPO DI PERDONO

Nei Duclós

È tempo di perdono per il tempo perduto
è la perdita di tempo che ci tiene prigionieri
non il tempo senza valore o il freddo fato
ma il tempo del cuore in caduta libera.

È tempo di perdono per la vita in esilio
tempo di oscurantismo senza ragione
tempo scivolato via in mancanza di un urlo
la parola sepolta nel tempo frantumato.

È tempo di perdono per ciò che potrebbe essere stato
per aver gettato il tempo dalla finestra di vetro
da dove non vediamo il tempo che il vento fa sibilare
e così perdiamo la canzone senza ritmo nè splendore.

È tempo di perdono per la poesia assurda
per la parola che il tempo ripete senza rumore
per il tempo che troviamo lontano dallo spirito
questo tempo non redime lo strano connubio.

È tempo di perdono per dire amico mio
di costruire un falò dei tempi antichi
che si vede da lontano, nel tempo rinato
e che ci faccia guarire il tempo e la sua ferita.

È tempo di perdono nell'anno che si chiude
tempo di comunione anche se finirà
quando abbiamo tempo nell'istante tisico
è solo una stretta di mano al tempo assassino.

È tempo di perdono, vieni a condividere con me
un tempo che desti la pietra insensibile
e che abbia tempo fatto con cura
anche se il tempo divorerà i suoi figli.

È tempo di perdono e non di pentiti
è tempo di preghiera, del pane diviso
luogo comune di un tempo di granito
dove poggiamo il volto del tempo infinito.
_______________________________________________

In lingua originale:

É TEMPO DE PERDÃO

Nei Duclós

É tempo de perdão pelo tempo perdido
É a perda de tempo que nos mantém cativos
Não o tempo sem valor ou a chance fria
Mas o tempo do coração em queda livre

É tempo de perdão pela vida no exílio
Tempo sem razão do obscurantismo
Tempo escoado pela falta de um grito
A fala enterrada do tempo partido

É tempo de perdão pelo que poderia ter sido
Por jogarmos o tempo pela janela de vidro
Onde não vemos o tempo que o vento sibila
E perdemos a canção sem tempo nem brilho

É tempo de perdão pelo poema sem sentido
A palavra que o tempo repassa sem ruído
Pelo tempo que arranjamos longe do espírito
Esse tempo não redime o estranho convívio

É tempo de perdão para dizer meu amigo
De construir uma fogueira do tempo antigo
Que se aviste de longe, no tempo redivivo
E que nos faça curar o tempo e sua ferida

É tempo de perdão no ano que se fina
Tempo de comunhão mesmo que termine
Quando temos tempo no instante tísico
É só um aperto de mão no tempo assassino

É tempo de perdão, venha ter comigo
Algum tempo que desperte a pedra insensível
E que tenha tempo composto no capricho
mesmo que o tempo devore seus filhos

É tempo de perdão e não de arrependidos
É tempo de oração, do pão que é repartido
Lugar comum do tempo, feito de granito
Onde pousamos o rosto do tempo infinito

RETORNO - Imagem de hoje: Estátuas, no Duomo di Milano, foto de Daniel e Carla Duclós.

EXTRA - SAGARANA, 30

"Caros amigos

É com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 30 da revista Sagarana (em língua italiana), no endereço telemático www.sagarana.net .

Neste mesmo endereço é possível ler os textos atualizados da nova seção da revista: Il Direttore, com a tradução e a versão original de um trecho do romance "Artérias e Becos", além de uma seção especial sobre a literatura italiana do período do boom econômico dos anos 60.

Esta nova edição de Sagarana, dedicada à figura de Franco Fortini, oferece aos seus leitores textos de Jean-Luc Godard e de Glauber Rocha, um artigo de Eduardo Galeano e um conto de Rubem Fonseca, textos Dalton Trumbo, Doris Lessing, Norman Mailer e poesias di Neruda, Quasimodo, Fontela e Zanzotto, além da sexta edição da Exposição fotográfica virtual dos maiores fotógrafos dos últimos cem anos (todos os números precedentes de Sagarana estão ainda on-line no mesmo endereço telemático e podem ser consultados).

Ademais, partir desta edição, na seção Archivi, estarão disponíveis para leitura todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana. Esperamos que os ensaios, os contos, as poesias, e os trechos de romances selezionados possam oferecer-lhes muitas horas de agradável leitura.

Cordialmente, Julio Cesar Monteiro Martins"

13 de janeiro de 2008

EXPERTISE DO PLAYER


O player global precisa de expertise para o desenvolvimento sustentável. A estratégia da governança corporativa desse agente up-to-date não se limita à gestão de inputs e outputs, mas aos ditames da era do conhecimento. Num cenário previsto de 15 anos, pode-se determinar o recall de processos envolvidos nessa sinergia de investimentos afins, consubstanciados na alta de insumos em forma de commodities da new age, o que faz de cada player um capacitador de tendências insubstituíveis.

As regras ainda estão sendo definidas, mas o mercado está convencido de que em pouco tempo tudo o que hoje é considerado inserido na revolução digital não passará de peça de museu.

É preciso preparar-se diante desse desafio. O dono do mercadinho da esquina terá que estudar a síndrome dos palimpsestos brocados em fórmulas infra-estruturais do pós-texto de Maquiavel, refeito numa nova composição de gêneros lingüísticos e conseqüências radicais para a compra-e-venda relacionada com o mundo transformado em shopping. Jogar significará mergulhar de cabeça no ar liquefeito das franquias virtuais, onde grupos customizados de palermas pagarão para se sentir inside.

É nesse gap de conveniências off-road que a pusilamidade poderá ser valiosa moeda de troca, que cairá no poço dos desejos das cidades narcotraficadas e geridas à noite por sonâmbulos cocainômanos especializados em dialetos afro-asiáticos de última geração, uma tendência na área do software que está nascendo para superar a divisão entre pixels e bytes.

Tomar o pulso da situação será o mesmo que passar a noite afundado numa poltrona robotizada fazendo caras e bocas para a marafona de plástico, que te cobrará em dólar enquanto te repassa hectolitros de vermuth made in Índia, que entornarás enquanto pensas nos mico-leões dourados da baixa Polinésia. O sacrificio faz parte desse mundo hedonista de prazeres insuspeitos, em que o trottoir da grana será a única vontade universal a gerenciar cadáveres compostos de silicone e balas de goma.

Ser um player global nesse admirável mundo novo é o mesmo do que se transformar num ratinho digital, que faz cuic-cuic na sala dos grandes poderes, que ainda possuem aqueles móveis antigos, queixos cheios de papadas, bigodinhos finos, calvícies precoces, orelhas cobertas de pelos de urso, sovacos fétidos, ternos sebosos, piteiras escandinavas, rum da pior qualidade. Enquanto brincas de viadinho pós-pós eles continuarão metendo no rabo do mundo, que emite gritinhos de iuhúu em passarelas esquizofrênicas.

Todos merecem essa tronfa pois adoram ser o que são, prisioneiros da linguagem inventada à gargalhadas por bandidos que se impõem pelas armas e não pelo poder de convencimento. São hediondos, carrapatos físicos e mentais que grudam em ti e te transformam em sapato de verniz jogado na chuva. Seja bobo, rapaz e saia dessa vida. Mas não vá, só para se compensar, falar em por-de-sol e sabores de amêndoas. Vá se roçar numa tuna, que eu estou mandando.

RETORNO - Imagem de hoje: desenho/pintura/arte de Ricky Bols, enviada por e-mail. O talento de Ricky é uma janela poderosa que nos revela paisagens fora dos atuais sufocos da linguagem.

12 de janeiro de 2008

SOPRO DO PARAÍSO


Nei Duclós (*)

Alguém se debruça na beira do mar e sopra a água até formar ondas. A criatura apóia o corpo todo num só braço. Com o outro, empurra o resultado do seu esforço, encadeando as corcovas salgadas que explodem um pouco adiante, como se cada onda fosse parte de um rebanho. A espuma também vem desse sopro sobrenatural, fruto de um pulmão possante, de uma garganta profunda, de um olhar avesso, aquele em que o branco da córnea substitui a pupila.

Não é a primeira vez que descubro seres em obras na natureza. O pequeno deus que contraria o crepúsculo, iluminando a boca da noite com sua tez laranja, confundindo turistas e camarões, é um deles. Outro é este descrito agora, que faz flexão com o torso enquanto providencia o chocalhar das águas, que bate nos banhistas. Ele usa um vento interior, vindo de suas grutas de veludo. Nada a ver com o Leste ou Sul, rebentos da ilha, já que esse arfar que fabrica a onda obedece a outro expediente.

Confesso que ele só existe no canto da baía, já que o miolo do lugar, tão calmo durante o inverno, agora é um tapume de plásticos e sujeira. Talvez ele queira dar seu recado, já que o esgoto tomou conta do centro da curva, fabricada, possivelmente, por um seu semelhante. Imagino um encontro desses gigantes conversando sobre o estrago feito ao longo do ano e não apenas no verão. Eles sussurram e depois olham ao redor, ressabiados. O que estarão aprontando?

Porque divindades não se recolhem, como nós, depois de uma vida dedicada à sobrevivência. A inutilidade do nosso esforço para permanecer de pé sobre a Terra, quando o destino é deitar definitivamente sobre ela, deve enchê-los de assombro. Por serem eternos, confabulam mudanças para nos pregar sustos. Aprontam tempestades, obedecendo mapas riscados nas pedras. Providenciam avalanches em lugares planos. Salpicam de neve o deserto de nossas esperanças.

Não são cruéis, apenas querem compartilhar suas heranças. Por possuírem poder, sabem desviar a correnteza para que o navio fantasma evite os falsos faróis, colocados de propósito para gerar saques, a partir da costa, em brigues piratas. Mergulham tesouros no mar e de lá não tiram nada. Nem deixam que faísque no fundo alguma ametista, pois isso seria dar razão aos que ainda não desistiram totalmente da aventura. Eles precisam cercar os segredos de todos os cuidados, para assim não atrair os amadores que desvirtuam o horizonte, os pseudo viajantes noturnos, os pássaros de palha.

Eles criam dificuldades para que os heróis, se é que esses ainda existem, possam descobrir suas vocações. Colocam Quasímodos em todos os portais dos mares. Ciclopes vigiando enseadas e sargaços. Fazem chover lava onde se vislumbra oásis. Assim selecionam mortais determinados. Estes, quando ficam prontos, exibem corcéis couraçados na fronte, barbatanas afiadas nas omoplatas, garras que podem libertar Prometeu.

Quando despertarem os heróis, transidos de pavor, pai da coragem, então será a vez de se desencadearem, em bandos, os cantores da eternidade. O som do mar será o poema épico, que só se escuta quando vemos o final do nosso tempo. Fora dessa sinfonia, só existem as ruínas e o vazio perverso.

Por enquanto, estou atento ao sopro que modula a flauta da manhã. As ondas beijam os pés dos passantes, enquanto gotas de orvalho queimam as últimas estrelas. Tudo parece tépido, tímido, como se os instrumentos do dia obedecessem ao um simulacro de dança, de arabesco, de braços imitando cisnes. É que não escutamos ainda a bigorna que pulsa no ventre das baleias. Ela avisa a súmula da reunião dos deuses anônimos, os que assessoram as águias, e apascentam nuvens e tufões. O veredicto é claro.

Somos prisioneiros da poesia, que nos carrega como um ramo de flor sobre o oceano interminável, sabendo que não haverá barca que nos salve, nem mesmo quanto entoarmos o cântico libertário. Nossa sorte será enxergar a melodia nas pequenas coisas, as que renovam nossas chances. Até acumularmos forças para nos aproximar de Deus, que nos recolhe. Náufragos da solidão, seremos soprados ao paraíso pálido, mas ainda intacto.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto do álbum Lençóis Maranhenses, de Irene Schmidt.

SÓ QUERIA ENTENDER


Como o Rio Grande do Sul está parado por falta de investimentos, o governo gaúcho vai gastar 93 milhões em publicidade, sendo que mais de 70% desse total vai para a propaganda do Banrisul. Dá para entender? São 93 milhões, mais de 40 milhões de dólares! Não é uma grana preta, uma bufunfa monumental, que daria para fazer um monte de coisas, ou estou completamente defasado e louco? Parece que o dinheiro servirá para alardear os feitos do governo estadual. Mas que coisa! Por que gastam um ervanário desses para uma coisa volátil que é a publicidade, que não deixa rastros, some junto com os pilas investidos? Nada mais triste do que um anúncio rasgado numa estrada abandonada.

A inflação em dólar voltou, sendo que o feijão aumentou horrores por cento. Mas o presidente aparece na revista Brasileiros sorrindo, e a manchete diz: "De bem com a vida". Ele diz que está bem porque o Brasil vai bem. Vai bem, como, cara pálida, se a inflação em dólar está comendo o que resta dos salários, e logo na sobrevivência, na comida? A carne subiu que é um espanto, claro, precisamos exportar proteína para os países eslavos. O que vai bem no Brasil é a gigolotagem. Nunca ofereceram tantas mulheres gostosas, brasileiras, para o desfile de celebridades que infestam o litoral. Os caras chegam para comer brasileira, está na cara e todo mundo acha o máximo. Venham comer nossas beldades, elas dão para todo mundo, basta deixar um pouco do seu papel pintado por aqui.

Numa viagem corriqueira de ônibus soube que a população no coletivo comentou em peso a festa de putaria e drogas que são os hábitos da alta temporada. O povo vê, o povo sabe. Claro, o povo serve de motorista, faxineira, cozinheira pra essa tropa. Atraem até príncipes e megastars, que chegam insuflados pela publicidade, pelas mentiras sobre estabilidade econômica e progresso social. Nossa paisagem e a humanidade disponível dentro dela estão à venda. Enquanto isso, continuam matando turistas estrangeiros, mas isso é só um detalhe. O negócio é rosetar.

Soube que Robin Williams falou que todo brasileiro é dopado. Num programa de televisão, imitou o andar de um macaco dizendo que era de um brasileiro. Isso é o que somos para essa canalha. Williams foi considerado um dos piores atores de 2007 fazendo o papel de padre que diz barbaridades para os noivos. Fez fama como o professor gay de alunos ricos em Sociedade dos Poetas Mortos. Acharam aquilo o máximo. Achei pura frescuragem, emoção prêt-à-porter, feita sob medida, de encomenda.

Como estamos em 2008, é hora de achar que 1968 não terminou, o sonho não acabou, Raul Seixas não morreu, Elvis vive e o Yoko Ono é mesmo uma farsa. Haja. O que nos espera em 2068? Mais documentários de que 1968 não terminou, o sonho não acabou, Raul Seixas não morreu, Elvis vive e o Yoko Ono é mesmo uma farsa? Ou teremos todos virado, enfim, macacos? Este 2008 também serve para inúmeros lançamentos sobre os 200 anos da vinda da corte portuguesa. Basta ler "Dom João Sexto no Brasil", de Oliveira Lima. Está tudo lá. São 700 páginas sobre o assunto. Mas parece que o negócio é escrever platitudes sobre a Corte e polemizar se a viagem foi benéfica ou não para o Brasil. É a total rosetagem.

Só queria entender, nem precisa explicar. Por que não ler um clássico em vez de perder tempo com modinhas?

RETORNO - Imagem de hoje: estação ferroviária de Domingos Petrolini, no município de Rio Grande, RS. Abandonada, mas as campanhas publicitárias vão ficar tinindo.

9 de janeiro de 2008

CENSURA E FEBRE AMARELA


É recorrente: toda vez que a censura se manifesta de maneira mais explícita, voltam os argumentos de que isso parece uma ditadura. Não parece, é. E é não porque o juiz proibiu jornais e televisões de citarem o nome dos meliantes que surraram uma empregada doméstica sob a justificativa de que ela era uma prostituta. Ou porque foram para cima do Roberto Requião. É porque a censura é total na mídia. O espírito livre (o jornalismo sem amarras nem interesses) está proibido de se manifestar. As honrosas exceções, as reportagens premiadas de denúncia, são apenas um detalhe. O que temos é um gigantesco cala-te boca, que permite coisas como óóó surpresa!, a volta da febre amarela ou o abandono escolar no primeiro e segundo grau, conforme pesquisas divulgadas hoje.

A febre amarela foi erradicada por Oswaldo Cruz, pelo presidente Campo Salles, pela Fundação Rockfeller e por Getúlio Vargas. Nos anos 40, o país todo estava protegido. Voltou porque vivemos sob a ditadura, em que não há denúncias de verdade, de maneira intensa e que cubra todo o território nacional. Temos o foco em algumas capitais, em alguns lugares exóticos do interior e o resto é uma grande área de sombra e instabilidade política. Os coronelões são donos da política e dos jornais e televisões. Um terço do Senado faz parte das composições societárias de meios de comunicação. Assim fica difícil dizer: ei, o rei está nu, tem febre amarela no pedaço.

Como houve um caso detectado, então todo mundo corre para se vacinar (o que deveria ser política pública permanente), enquanto os bem remunerados burocratas vão para frente as câmaras colocar a culpa em quem não se vacina e dizer “com certeza, está tudo sob controle”. Está um bom caceta. Ditadura é pura instabilidade. Vejam o caso da evasão escolar. Fizeram tudo errado para manter os índices de escolaridade. Passaram os pobres as alunos por decreto, entre outras mumunhas. Claro que não arrumaram o esgoto das escolas, nem passaram uma boa mão de tinta, nem cuidaram da infra-estrutura, nem implantaram bibliotecas ou laboratórios de informática.

Ao mesmo tempo, o governo federal, por meio de seu representante máximo, bate no peito, orgulhoso da sua falta de escolaridade. Não me consta que tenha lido algum livro. Não precisa. Veja onde ele chegou, costuma dizer. Depois, as profissões disponíveis não precisam de escola: passeador de cachorro, ambulante, jogador de futebol, modelo, prostituta. Quem consegue escapar da máquina de moer carne acaba sendo capturado pelo Exterior. Os outros países valorizam um quadro bem formado. Nós jogamos fora. Colocamos engenheiros a vender refrigerante, professores com uma sobrecarga brutal de trabalho a troco de nada e assim por diante.

Qual a essência dessa ditadura? Negar o país, enganar o povo, destruir a soberania, entregar as riquezas, transformar o território em espaço globalizado. Para isso trabalham dia e noite. Não cuidam da educação nem da saúde nem dos transportes, coisas que são lembradas nas campanhas eleitorais, e esquecidas logo depois da posse. Se não fosse uma ditadura, teríamos estradas boas, trens modernos e velozes, professores bem remunerados, cientistas em pencas, e a presença constante em todas as mídias de artistas de alto nível, o que não ocorre não por falta de talentos, mas porque a ditadura não deixa.

Aí o presidente almoça ou janta com esses dois gritões, o Di Luciano e Cagardo, que tem suas goelas reproduzidas em tudo que é sistema de som. Chega, porra!

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Oswaldo Cruz em ação, pesquisando. Já fomos melhores.

2. Recebo a edição número 15 do Caderno de Literatura editado pelo jornalista Carlos Alberto de Souza e patrocinado pela Ajuris, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Fui prestigiado com a publicação de três poemas meus, Outubro, Tornei-me Passos e Lição de Travessia, este estampado na contracapa junto com foto de Eduardo Tavares. Uma bela publicação, com destaque para o artigo "Populário Musical do Sul II", de Irineu Mariani. É bom fazer parte de uma cultura, ter sesse sentimento poderoso de pertença, saber que meus poemas foram acolhidos no coração das pessoas e hoje fazem parte do patrimônio do Brasil soberano. É bom ser poeta em qualquer circunstância. Melhor ainda quando nos vemos honrados com uma homenagem tão significativa. Além dos três poemas, também foi publicado um texto sobre o livro Outubro.

8 de janeiro de 2008

CRIMES DE AREIA


Nei Duclós (*)

O guardador de carros mexe com uma série de conceitos formadores da nacionalidade. Um deles é de que o detentor da carruagem estacionada tem à disposição um escravo para cuidar do veículo enquanto toma um banho de mar. Não é outro o motivo do estardalhaço que o motorista faz com o flanelinha depois de lhe repassar uns trocados. O falso servo escancara o sorriso e dispara uma série de cumprimentos da hora, desses em que as pessoas se soqueiam para demonstrar apreço (o velho aperto de mão foi substituído pela luta livre).

A essência da atividade é a chantagem. Ou você paga para estacionar na rua construída com o dinheiro dos impostos, ou seja, ou você compactua com mais uma privatização do espaço público, ou terá seu carro arranhado. É politicamente incorreto reclamar contra esse tipo de abuso, pois a idéia que se faz de distribuição de renda no Brasil é por meios ilícitos. “Meu cartão de crédito é uma navalha” dizia o celebrado Cazuza, arrancando manifestações de delírios de aprovação das platéias.

No fundo, paga-se o meliante para evitar aborrecimento. São apenas alguns poucos dias na praia, para que se incomodar? E assim, uma prática que se consolidou em metrópoles atulhadas chegou enfim à ilha, com a conivência geral. O recado é simples: você é um privilegiado por ter carro, por isso paga o pedágio da miséria. Joga-se com a culpa, pois conseguir atender uma necessidade é sintoma de conivência com o crime da má distribuição de renda, o que coloca o Brasil, potência econômica, no rabo das listas de qualidade humana. A nação é um colosso, mas inabitável.

Já que não existe nenhuma espécie de preocupação pelo ofício que se instala e que coloca centenas de pessoas sob o jugo de apenas um algoz, armado da mais completa cara de pau, então tudo pode. É permitido, por exemplo, jogar interminavelmente frescobol entre os banhistas. Em todas as outras modalidades esportivas, inclusive futebol de areia, existe uma quadra, mas os praticantes de frescobol escolheram o planeta inteiro como sua arena. O bate-rebate é como o pingo d´água das torturas. Como vingança, sempre imagino os jogadores usando a própria cabeça nas raquetes.

Quem leva qualquer espécie de bola para a praia e joga em local proibido para a prática de esportes tem apenas um objetivo: acertar os outros. Todos aqueles dribles, gritos, pulos, são pura encenação. A meta é atingir quem está fora do jogo, normalmente crianças, senhoras sentadas, anciãos desprevenidos. Certa vez, um pai “amigão”, que castiga a redonda para expressar proximidade com o “filhão”, chegou a pegar a bola, soltá-la miseravelmente e encher o pé em direção a um transeunte desavisado. Por sorte o petardo desviou-se rumo ao mar. Mas a vítima chegou a se abaixar, temendo o pior.

São crimes desconsiderados, já que não geram ocorrências nem vão parar na Justiça. Mas expressam o clima de violência embutida nos hábitos mais simples, como o de dirigir-se ao mar. Na areia, é possível ver como os cachorros sarnentos, abandonados e famintos, se refestelam no meio da criançada sem que ninguém os espante. Vivemos num país imóvel, que ao exercer algum movimento se estatela em estradas lotadas e ultrapassagens suicidas.

No Brasil, ninguém se mexe e quem se mexe leva chumbo. Por isso os flanelinhas fazem a festa e os boleiros atormentam multidões. Isso quando não ligam o som em alturas insuportáveis, para atordoar a cidadania.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neta terça-feira no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Regina Agrella.

7 de janeiro de 2008

BRICOLAGENS DOS BLOGS


Agora todo mundo tem blog. Alguns são bons, como o de Luiz Carlos Merten, do Estadão, que fala à vontade sobre os bastidores do cinema e do seu próprio ofício, de uma vida dedicada à análise dos filmes. Ou de Luciano Trigo, no Globo, que entregou as falcatruas dos prêmios literários. E vários outros, linkados de maneira permanente aqui ou não, e que gosto de ler. Mas tem muito blog de bundão.

Ou é blog de paga-pau da política engessada e corrupta, fazendo o jogo dos ditadores da mídia, ou de quem nada tem a dizer e resolve (ou resolveram por ele) ter um blog. Milhares desses coisinhas pipocam nos sites dos jornalões e tevezonas. O objetivo é esvaziar a ferramenta blog, que poderia ser mídia tão poderosa quanto as oficiais. E transformá-la numa coadjuvante, num aplique, numa bricolagem.

Blog é pau, o resto é decadência. Ou você ficou calado a vida toda, engolindo a ditadura de 64 que continua no poder, a troco de nada? Não vai dar o troco? Vai continuar querendo produzir pensamento corretinho, equilibradinho, bem-feitinho, carismático de araque, pisando em ovos, se insurgindo contra o câncer, aplaudindo os bons sentimentos? Tens a liberdade do blog para continuar mentindo? Queres um blog para cumprir enfim teu destino de colunista social? Não vai queimar os navios? Vai engolir em seco?

Num blog bundão, anexam-se as mais diversas inutilidades, tradicionais e emergentes. Um artiguete lamenta que não estamos mais no tempo de Pixinguinha, que foi poupado pelos assaltantes, e sim no tempo de Paulinho da Viola, que sofreu a violência de um chega-pra-lá da bandidagem. Puxa nem respeitam o Paulinho, lamenta o arti-cu-lista, que coloca toda a culpa do narcotráfico. Pus um comentário, dizendo que a fonte da violência não é o narcotráfico, mas o sistema que permite a atuação impune do narcotráfico. Pois deletaram. Não é permitido emitir opinião. Só comentariozinhos água-com-açúcar.

Descobri tardiamente que as pessoas, de tanto mentir, acabam fingindo também quando conversam contigo. Falam o que você quer ouvir, pois fizeram isso a vida toda. No fundo, continuam os cagões de sempre, usufruindo daquelas certezas que fazem a vida mansa e corroem por dentro como um ácido de bateria. Sabemos que ninguém faz a cabeça de ninguém. As pessoas pensam o que querem, como querem. E atribuem frases que você nunca disse ou escreveu. Ou será que eu disse e esqueci? Este blog é tão antigo, está fazendo seis anos, que tudo é possível.

Já disse alguém que o objetivo dos indivíduos que se rendem moralmente ao mundo transformando em mercadoria não é vencer, mas fazer com que todos os outros fracassem. Um dos motivos que impulsionam essa sacanagem é a inveja, que é negar aos semelhantes o acesso a qualquer tipo de vitória. Não existe inveja boa, isso é álibi de invejoso pego em flagrante.

Por mais promessas de solidariedade e amor que exista, o fato é que a maioria das pessoas se detestam. No atacado, todos somos uns doces de côco. No varejo, sobram motivos para nos excluir mutuamente. É insuportável aturar a arenga alheia sobre qualquer assunto. As cabeças estão cheias de entulho, que despejam sobre você. Isso não pode ser dito de um blog, que é gratuito e só é acessado por quem quer. Estamos acostumados a falar sozinhos.

Um blog não tem (ou não deveria ter) por objetivo o prestígio, a grana, o alpinismo social. Tua essência não é mercadoria. Alma não se vende. Isso soa falso, não? É verdade, tudo parece uma grande mentira.

4 de janeiro de 2008

IMPOSTO E GELADEIRA NAS COSTAS


A verdadeira atividade das mega-redes de lojas de varejo é a especulação financeira. Eles vendem juros. O produto – fogão, geladeira, TV - é secundário. A massa de consumidores empobrecidos, que só podem pagar uma merreca de prestação, se submete e fica a vida sustentando a ciranda financeira, agenciada pelos lojões e outros agentes. Tão secundário é o produto que os especuladores se livram dele logo depois do Natal. Os artigos só servem para fisgar os pobretões na armadilha do endividamento. Quando existe um bom número de trouxas no redil, basta jogar na rua o que sobrou. E lá vai o povo carregando geladeira e TV de mil polegadas nas costas.

Faz sentido o pacote de arrocho financeiro decretado pelo governo federal para vingar-se da tunda que levou com o caso da CPMF. Se existe uma palavra que define o atual governo é o ressentimento. Antigamente se chamava recalque. Um governo capitaneado por um recalcado onera ainda mais os cidadãos sob o álibi maroto de que está penalizando a ciranda financeira. Ora, os bancos não sofrerão com nada disso, ao contrário. Quem vai pagar a conta dos impostos mais altos nas operações financeiras são os contribuintes. Vai usar cartão de crédito? Será tungado. Vai vender ou comprar casa própria? Tunga.

Como são medidas lideradas por um recalcado, o pretexto é que se está penalizando os ‘ricos”, isto é, a cidadania que consegue ainda sobreviver. Ao mesmo tempo, mantêm as merrecas-esmolas ditas sociais, pois isso é o populismo que eles tanto condenavam. Feito o serviço, o presidente com a esposa italiana se retira para a Restinga de Marambaia, lugar de 42 praias e de propriedade do povo brasileiro, gerido pela Marinha do Brasil. É seguro, argumenta ele, é um paraíso. Temos de nos preparar para as fotos de pança e sunga e gargalhadas íntimas depois da vingança.

Ou seja, a democracia é uma piada. Não importa eliminar um imposto ilegal como a CPMF, eles dão um jeito de repor as coisas no lugar. Os bancos te raspam os trocos. Deixa qualquer coisa na conta, eles inventam mil despesas e te levam tudo. Nunca lucraram tanto, pudera. Possuem um governo que trabalha junto com eles, faz parte do esquema do arrocho financeiro. Reforma tributária? Quá quá quá. Reforma tributária é esse pacote que eles jogaram nas costas da nação antes de irem refrescar os glúteos.

Leio Sergio Buarque de Holanda sobre o Segundo Reinado e está tudo lá:o rodízio das falsas oposições tendo acesso cíclico aos butins; o financiamento dos votantes, ou seja, a invenção de um eleitorado fictício por meio do dinheiro público (o que acaba gerando uma nova aristocracia); as finanças cacifando a corrupção; entre outros babados. Sérgio Buarque de Holanda expõe as vísceras de um sistema viciado sem jogar pedras, apenas trabalhando a linguagem dos documentos e erigindo esse monumento que é seu grande texto geral sobre a História do Brasil.

O Brasil ainda existe porque gênios como SBH existiram. E suas obras são os pilares de um país que voltará a ser soberano. Basta que erradiquemos de vez essa canalha que empalmou o poder a partir de 1964 e de 1985. Uma canalha que te limpa os bolsos e te coloca uma geladeira nas costas para economizar o custo da entrega.

RETORNO - Imagem de hoje: Em busca de emprego, foto de Regina Agrella.

3 de janeiro de 2008

CORRESPONDÊNCIAS


Algumas cartas mexem demais comigo. Vou colocar no ar algumas delas, para comemorar a leitura, a amizade, a sintonia, o mútuo reconhecimento, a iniciativa de sermos contemporâneos.


CLAUDIO LEVITAN

O multitalento, escritor, arquiteto, poeta, músico, cantor, instrumentista, escritor comenta o primeiro livro da trilogia Diogo e Diana, lançado pela Record.

"Nei: O objetivo desse email é falar sobre DIOGO E DIANA. Que livro maravilhoso! Confirma que somos almas gêmeas, ou que estamos na esfera castañeda da vivência. Nos meus livros, também as bruxas assustam e definem rumos para a descoberta da nossa existência. E uma delas se pendura nas pandorgas dos meninos assoprando destinos e amores.

Mas nada se compara a magia da ilha de Florianópolis que está sendo desvendada por esses jovens adolescentes tão fascinantes! Estou apaixonado pela Diana e pela Suellen, pelas descrições do amor, das diferenças entre o homem e a mulher, pelo carisma do Devoto, pela caça bem sucedida que fizeste dessa fauna tão exuberante de tipos que chegaram na Ilha! Esses 4 jovens nos sucederam e agora estão conseguindo com um jeito mais objetivo enfrentar as "bruxas" desse lugar, lógico, pelas mãos hábeis de um poeta-escritor como o mago Nei e de outro mago escritor e cineasta Tabajara Ruas! Dois fronteiriços à beira-mar!

Hoje consigo entender porque desviei da minha rota para a Bahia naquele remoto 197: fui atraído por um mago que habitava as matas quentes do vale de Blumenau, segui uma outra trilha sinuosa feita pelas mesmas forças do bem e dos deuses para conhecer um desses tipos especiais que habitam esse lugar cheio de segredos e magias, o poeta Nei. O livro é uma preciosidade para o público adolescente tão carente de fantasia e aventuras que desvenda o medo da morte. É um livro pra filme!

Como está sendo recebido pelos jovens de SC? Que respostas estás tendo dos leitores do livro? Eu estou curioso, porque, pra mim, é um livro muito bom para os jovens de todos os lugares, mas, especialmente, aos da ilha que devem se enxergar e se maravilhar com o mundo que os rodeia. Sou um fã do Harry Potter, não sei o que achas da saga da J.R.Rowlling, mas DIOGO E DIANA, não fica devendo nada a saga do bruxinho. Esse livro de vocês está fadado ao sucesso! Parabéns!

Estou louco pra me reencontrar contigo, mas aí por SC, pela ilha, a beira do mar ou da lagoa para viajar nos nossos papos sem fim e saber mais sobre Diogo e Diana (agora virei fã deles também!)
Um grande abraço do teu sempre fã,
Levitan"

LEITORES DO DIÁRIO CATARINENSE

Dois comentários sobre a crônica “Vida nova”, que é o post imediatamente anterior a este.

"Nei,
Excelente a tua coluna do dia 31, no DC. Bem, desapegar-se de tralhas guardadas que não vão ter mais serventia já é um começo. Mas a mudança na vida só acontece mediante a transmutação interior; esta é a verdadeira alquimia. E é a parte mais dificil e dolorosa da mudança. Um abraço e feliz 2008, da assinante do DC, MTeresa/."

"Prezado Jornalista:
Cumprimentos pelo texto "Vida Nova", publicado no Diário... às vésperas do foguetório para 2008. Estava no Hotel, com a mulher e filho. No holl, o jornal estava por sobre a mesa de centro. Meu filho, de 3 anos e 4 meses notou a borboleta próxima ao casulo, ilustrando a crônica. Passei os olhos no texto. Desculpe..., é belíssimo.

Aos 15 anos fizemos na escola, no 1º ano do 2° Grau, uma "ficha de leitura" de "Outubro" (...) .Antes de enviar a mensagem, fui atualizar as informações a respeito do escritor o qual pensou ser engenheiro, cursou História e Jornaismo... E, nascido no dia 29 de outubro, mesmo dia do Edmund Halley, o astrônomo do cometa...

" O passado se presta a inúmeros equívocos. Um deles é que podemos nos livrar de nós mesmos, como borboleta que abandona a lagarta seca. " ( Nei Duclós )
Parabéns.
Rafael Filho."

GIBA ASSIS BRASIL

O cineasta do clássico “Deu pra ti anos 70”, entre outras obras, e editor de “Saneamento Básico, o filme” comenta o artigo que publiquei aqui sobre este filme de Jorge Furtado.

"Nei:
Não gosto de retribuir elogios, parece coisa de "compadres", no mau sentido. Mas, como nunca cheguei a te conhecer pessoalmente, e considero isso uma grande falha que ainda pode (espero) ser corrigida, acho que tenho a obrigação de aproveitar a oportunidade pra dizer que admiro teu texto há muito tempo, desde que eu era pré-vestibulando de jornalismo e em seguida aluno da Fabico, desde "Outubro", provavelmente o primeiro livro de poesia que eu li sem ser por obrigação colegial (e antes mesmo de o poema-título ter sido musicada pelo Nico e gravado em cassete pelo Saracaura), tempos da Folha da Manhã, da Pedra Mágica e da Paralelo. Não preciso concordar com tudo que tu escreveste sobre o "Saneamento" (aliás, discordo radicalmente do teu ponto de vista sobre campeonatos por pontos corridos, mas futebol é pra isso mesmo) pra perceber que nenhum auto-proclamado crítico conseguiu ir tão fundo como tu foste naquela análise. Parabéns e obrigado - não por ter gostado do filme ou por ter elogiado o meu trabalho, mas por manter o pensamento sobre cinema como uma possibilidade concreta, em tempos tão apressados e superficiais.

Abração e um 2008 cheio de saúde e realizações.
Giba Assis Brasil"

RETORNO - Imagem de hoje: monumental Duomo de Milano, fotografado na virada de ano por Daniel e Carla Duclós, correspondentes do Diário da Fonte na Europa.