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31 de julho de 2010
A VOLTA DO SUBMARINO AMARELO
É vedado a qualquer cidadão o direito de ignorar The Yellow Submarine (1968), dirigido por George Dunning e escrito por Lee Minoff. Não é permitida para pessoa alguma a justificativa de que ainda não assistiu ou que viu e esqueceu. Não porque haja alguma lei escrita para assistir compulsoriamente esse filme, mas porque ele extrapola o status reconhecido de obra-prima da animação, da arte e da narrativa. Ele é mais: permanece à margem do tempo, lá onde os relógios se estabilizam, com recados decisivos sobre a cultura contemporânea e profecias que se concretizam ao nosso redor.
Como as pessoas vêem uma ou mais vezes e depois conservam na memória, é mais prático pegar a narrativa na seqüência em que é apresentada, para podermos decifrar seus desígnios, já que desfrutamos da vantagem de termos sobrevivido (em termos) ao massacre vitorioso do Mal, tão bem definido nessa viagem que os quatro Beatles empreendem, orientados pelo capitão Pimenta, e acompanhados pelo Homem de Nenhum Lugar, aos confins da mente subjugada e dos sentidos inutilizados pela barbárie.
O filme começa com a inutilidade da vida urbana, composta de pessoas solitárias (look all this lonely people, como nos diz Paul Macartney na canção primorosa). O simbolo dessa humanidade que mora numa cidade cinza, a Liverpool industrial, é Eleanor Rigby, que morreu na igreja e não teve ninguém assistindo ao seu funeral. O próprio Padre McKenzie, que também é um cidadão isolado, limpa as mãos sujas de terra depois do enterro e se recolhe.
Nesse ambiente onde nada acontece, vaga a figura naif, ingênua, de Ringo Star, um suicida em potencial que é salvo por seu humor corrosivo (“poderia me atirar no rio, mas parece que vai chover”). Ringo se dirige ao seu reduto artístico e pessoal, um casarão onde mora com os companheiros e que representa a liberdade da criação e do pensamento. Mas antes de chegar lá, é perseguido por um submarino amarelo, que vaga pelas ruas seguindo seus passos e não é visto por mais ninguém.
Ringo foi escolhido pelo capitão Pimenta, que dirige a nave, pelo que ele representa: por ser o único que se aventura fora da mansão, expõe sua mente aberta à esperança de que algo possa mudar no mundo real, enquanto os outros três se confinam num lugar onde se concentram todos os elementos culturais tradicionais e de vanguarda. Paul se identifica com o bom-mocismo, John com a transgressão (fantasia-se de Frankestein) e George com a cultura oriental. É Ringo que introduz a encrenca para dentro de casa e que envolve os outros na missão urgente convocada pelo velho marujo.
Todos os que viram o filme sabem do que se trata: uma viagem aos confins da mente, lá onde existe uma terra, a Pepperland, que foi dominada pelo Mal, representada pelos Blue Meanings, que numa tradução livre podem ser identificados como as Mentalizações do Mesmo. Na terra da pimenta, que significa o sabor da música, da cultura, da sensibilidade e do amor, os bandidos jogam maçãs verdes (a sedução que não se completa, não amadurece, não cumpre seu destino) sobre as pessoas e as reduzem à imobilidade e ao engessamento espiritual e físico.
A tristeza toma conta de tudo, gente e paisagem, enquanto a retreta, a banda dos corações solitários do Sargento Pepper, mantém-se sem som numa redoma de vidro inquebrável. Haveria, no universo cinematográfico, algo mais representativo da situação em que vivemos hoje? Os cães azuis e ferozes são o baticum que atacam os músicos e fazem a ronda carnívora ao redor dos instrumentos, jogados a céu aberto para apodrecer. O resultado é a repressão, o mutismo, a surdez e a lágrima. É como estamos hoje.
Os rapazes de Liverpool são, significativamente, clones dos membros da banda derrotada. É preciso que as novas gerações assumam a tradição para libertá-la do Mal que tomou conta de tudo. É preciso resgatar aquele som antigo, aquele número conhecido por todos e que sempre funciona e colocá-lo numa nova roupagem musical. A farda espalhafatosa e fora de moda vestida pelos Beatles é esse gesto de assumir o passado para superá-lo, já que jamais serão os mesmos de antigamente, mas uma novidade cevada no sabor da tradição e na ousadia das experimentações. De Rimsky-Korsacov a Stravinski, da retreta à orquestra, da canção á sinfonia, da melodia à atonalidade, do dobrado ao rock. É o que são os Beatles, alegria e orgulho de nossas vidas.
Pode ser acusado de ingenuidade a solução cinematográfica de atacar o mal com canções de amor ou hits deslumbrantes de instrumentos revigorados. Mas para quem, como nós, já experimentou de tudo, do velho ao novo socialismo, do capitalismo metido a ético ao capitalismo bruto, das utopias renegadas e desmoralizadas, não tem como escapar. Está tudo na mente, avisa George. Ou mudamos o modo de pensar e sentir, conectando-nos com o acervo cultural eterno da humanidade, e interferindo nele, ou continuaremos como os cidadãos imóveis de Pepperland, a serviço dos jogadores de maçã verde, dos guardas truculentos, do chefão psicopata e dos cães devoradores.
A tecnologia do dvd nos permite parar por alguns momentos em detalhes. Na viagem do tempo dentro do submarino, o ano mais longínquo que aparece é 2009. Nossa época é a do Nowhere Man. Somos de nenhum lugar e acumulamos conhecimentos inúteis. Escrevemos e lemos sem parar e queremos participar de todos os jogais mentais da cultura sem sentido. Estamos abandonados no lugar nenhum. Mas eis que surgem os artistas que vieram nos salvar. É Ringo, sempre ele, que se sensibiliza pela solidão do homem que não sabe o que fazer com o que sabe. E lhe dá guarida e um motivo para continuar vivendo.
É esse personagem, nós, que está acorrentado à cadeira do chefe dos Blue Meanings. Somos os ultimo reduto onde a vitória do Bem pode ser alcançada. Mesmo que tudo ao redor volte à vida, é dentro de nós que se dará a batalha final. Mas os bandidos acabam assumindo o colorido que veio para repor as coisas no lugar. Sabemos o desfecho: eles clonaram a revolução e usaram de todo o seu poder para impor novamente o cinza fantasiado de azul, a tristeza no mundo escravo.
A aparição no quarteto no final, “fora” do filme, é fundamental para entendermos o recado. John vê Blue Meanings ao redor dos espectadores e diz que só há um jeito de escapar: cantando. Mas cantando o quê? Uma canção que fala do alfabeto e dos números básicos. Um, dois, três, a,b,c. Dominando os fundamentos da linguagem, é possível, por exemplo, modificar a luva dedo-duro, usar suas letras (glove) para formar outra realidade (love). Ou seja, precisamos dos fundamentos da palavra, da ciência e da cultura para enfrentarmos o fôlego do Mal, que está sempre presente. A teoria da relatividade, a linguística, a meta-poesia (que está presente em todos os diálogos), tudo conflui para uma postura libertária profunda. Não adianta espernear, sentir saudade ou lamentar. A luta é sempre aqui e agora.
All together now.
30 de julho de 2010
O COPY DE 250 MIL DÓLARES: CINEMA É TEXTO
Copidescar 600 páginas em duas semanas ao preço de 250 mil dólares é uma pedreira tentadora que coloca o escritor contra a parede no recente The Ghost Writer (2010), de Roman Polanski. O craque das letrinhas foi convidado pela sua notória perícia em tirar leite de pedra, ou seja, transformar biografias medíocres de vidas famosas em sagas literárias de sucesso.
Neste caso, trata-se da autobiografia de um ex-primeiro ministro britânico, um Tony Blair genérico, que pretende, com o livro, intensificar seu marketing depois de deixar o cargo, um projeto que balança quando é acusado de crimes de guerra – teria entregue para a tortura da CIA cidadãos britânicos identificados como guerrilheiros afegãos (um deles é morto em função da prisão ilegal).
Há inúmeros interesses em jogo, além dos políticos. Principalmente da editora, poderosa, novaiorquina, que precisa de resultados (vendas), e tem pressa, já que foram investidos 10 milhões de dólares no lançamento. Há grande risco de tudo ir para o ralo, pois o autor do manuscrito (considerado mal feito) aparece morto, afogado, na praia de uma ilha perto de Nova York, onde tinha sido confinado para fazer o livro. O pior é que o afogamento está cercado de suspeitas sobre um possível assassinato, apesar de o caso ter sido engavetado apressadamente pela polícia. Os editores precisam de alguém brilhante, e rápido. Um copydesk de luxo.
Há interesse também dos assessores que cuidam da sobrevivência física e política do chefe. E de forças ocultas, que agem o tempo todo nos bastidores, enchendo o filme de mistério e suspense, manipulados com maestria pelo cara que já nos assustou bastante ao longo de sua magnífica carreira de cineasta.
Polanski trabalha como Edgar Alan Poe no conto célebre em que a mensagem secreta só se revela quando o pergaminho é aproximado do fogo, fazendo aparecer o texto oculto nas entrelinhas da mensagem oficial. Não é apenas o desfecho que encerra uma surpresa, mas a narrativa inteira. Toda certeza projeta sua sombra ou é resultado dela. O próprio ex-primeiro ministro (interpretado por Pierce Brosnan) é uma sombra de si mesmo. O verdadeiro ghost-writer, que aparece morto, que não tem rosto no filme, vira fantasma antes de terminar o trabalho. O copydesk (Ewan McGregor) é também um fantasma, que jamais aparece, pois seu texto está a serviço dos outros. Não é um escritor de verdade, como lhe diz a esposa do chefe, por sua vez uma apagada personagem de bastidores, confidente e orientadora da carreira política do marido.
Todos os personagens obedecem a essa lógica de um cenário palmilhado apenas por espíritos que andam. O ex-amigo dos tempos da universidade não é apenas um professor emérito especializado em democracia. Os empregados coreanos da mansão oculta na neblina ficam atrás das portas e deslizam pelos pisos de salas enormes e vazias. A chefe de segurança é a amante não assumida do patrão poderoso e convive com as alfinetadas da sua concorrente, a mulher oficial.
Mas o fantasma mais assustador é Eli Walach no papel do velho e solitário morador que tem boas informações no caminho da investigação do crime. Aos 95 anos, o ator secular e inesquecível faz uma ponta magnífica, encarregando-se de grandes frases, como esta: “Não tenho mais idade para perder tempo com a polícia”. O script, de autoria de Robert Harris, super bem trabalhado, tem sacadas hilárias como a do acusador tranqüilizando o copy de que não será assasinado, já que seu antecessor já teve esse destino: “Eles não podem afogá-los como se fossem gatinhos”, diz.
O filme é texto. Personagens escritos para aparecer de determinada forma se revelam opostos quando iluminados por uma leitura livre. Isso não significa que a narrativa se enreda em pormenores fúteis de falsos suspenses. Como se trata de uma investigação de crimes, é preciso que a ética esteja sempre presente e de maneira transparente, Por mais ameaçado que esteja o escritor, ele sempre diz o que está fazendo. Quando mente, é pego em flagrante.
É da essência da profissão. Você não pode mentir, sob pena de perder o contato com sua arte. Mas neste mundo mau, todos mentem, inclusive ou principalmente quem escreve. A não ser que o autor consiga enfrentar o pesadelo usando seus códigos para difundir a denúncia. Mas cuidado, que há um carro parado logo ali adiante e ele pode acelerar assim, de repente, e vir com tudo. Ou alguém atrás de uma coluna pronto a empurrar o perguntador no meio das ondas.
RETORNO - Imagem desta edição: momento culminante de "The Ghost Writer", em que Ewan McGregor, no papel do escritor, revela que matou a charada.
29 de julho de 2010
CID, O PIANISTA
Nei Duclós (*)
Um os meus filmes favoritos é "El Cid" (1961), de William Wyler, com Charlton Heston e Sophia Loren. Duas cenas são marcantes. Uma , a do casal em fuga que acorda no ermo, sai para fora da cabana onde está escondido, e é rodeado pela nação em armas, o povo que veio convocar o herói para a luta. “Pela Espanha!” grita El Cid, enquanto a mulher se desespera, pois sabe que a vida conjugal está ameaçada pelo conflito. Outra cena é quando, vindo da campanha vitoriosa, El Cid encontra alguém que está acima dele na hierarquia e este, em agradecimento, se curva. Ao que o mito responde: “De pé! Um rei nunca se ajoelha”.
O amor que escapa dos dedos, a solenidade diante da missão maior, o desprendimento para com a vida, a entrega, esses são os recados dessa obra, hoje inacreditável vista de longe, no espaço do tempo transcorrido. Perdemos o sentido do épico e até mesmo dos amores verdadeiros, como a arte de viver a vocação a que somos convocados desde o berço. No mundo em pedaços e em ruínas, mascarado por estatísticas de riqueza e crescimento, e assolado pela fúria de problemas aparentemente insolúveis, não temos mais parâmetros para exigir que um rei se levante, nem esperança que um exército venha bater à nossa porta por sermos insubstituíveis na tarefa complicada de costurar uma nova ordem.
Outro filme impressionante é O Pianista (2002), de Roman Polanski, que deu o Oscar a Adrien Brody no papel do polonês que sobrevive à perseguição nazista na II Guerra Mundial. Sua nação, seu povo, seu mundo são reduzidos a pó e ele volta marcado para sempre pela destruição em massa. Mas mantém a sua arte, que cultivou sempre e que o ajudou nos momentos mais cruciais. Manteve-se intacto, apesar de tudo, pois tinha essa grandeza permanente nos dedos, que interpretavam sua cultura, determinação e sensibilidade.
Esses dois filmes me ocorrem a partir de uma notícia triste demais, a morte do maestro Cid Guez, que eu conheci ainda menino, já encantando a todos com sua competência no teclado e que embalou gerações e semeou o amor à música ao longo de seus 74 anos. Como o homônimo El Cid, se comparava aos grandes e foi fiel à sua terra. E como o pianista de Polanski, sobreviveu ao massacre contando apenas com sua arte. Percorreu um longo caminho e foi-se neste inverno tardio, levando de volta para a origem a mestria que nos encanta e o espírito que nos abraça.
Em 2005, quando voltei a Uruguaiana, reencontrei o maestro. Foi uma alegria ver na ativa um mito da minha mocidade, um talento que sempre admirei. E me perguntava: por que não gravou mil discos, porque não foi até os confins do mundo para ser celebrado? Esse é o mistério que Cid Guez leva com ele, esse desprendimento.
Ele não se ajoelhou diante da indiferença e da brutalidade do tempo. Certo de sua identidade, exerceu mais de uma arte, sempre com a mesma competência, se mantendo firme, sem se desviar do seu caminho. Cid Guez dedilhou a música que fica em nós como um sinal, um brilho no escuro, para que possamos voltar a esse lugar perdido, a esperança.
RETORNO - 1.Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana, editado brilhantemente por Vera Ione Molina e Ricardo Peró Job. 2. Imagem desta edição (só para o Diário da Fonte): instante privilegiado na Feira do Livro de Uruguaiana em 2005: recebo o aperto de mão do maestro Cid Guez.(Foto de Rubens Montardo Jr.)
28 de julho de 2010
RESPEITO
Nei Duclós (*)
Professor não manda mais nada em sala de aula, dizem reportagens sobre situações limite por todo canto do país. São desrespeitados, agredidos e às vezes assassinados. Há o argumento de que se trata de exceções, mas os casos repetidos mostram a chamada alunocracia impondo a algazarra, a dispersão e a falta absoluta de aprendizado. Testemunhos revelam que, em muitos casos, o tráfico se instalou dentro da escola. Não há nada a temer: ninguém é punido ou sofre reprovação e o analfabetismo continua. Ir ao colégio parece ser uma atividade restrita à merenda escolar e a um encontro social. Livros, cadernos, tarefas, comportamentos, tudo faz parte do passado.
O que há de verdade ou exagero nesse quadro ameaçador? O fato é que entre 2001 e 2008 o número de professores das redes municipais e estaduais diminuiu cerca de 50%, segundo o Centro de Pesquisas Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Casos bem sucedidos de municípios modelo em educação não apagam do quadro o temor de que o país perdeu o controle sobre a formação das novas gerações.
Essa política suicida teria um motivo, segundo algumas análises, a de que a violência e o despreparo são gerados pela desconstrução da educação tradicional, onde a má remuneração dos professores ocupa o palco principal. Métodos clássicos de ensino não deveriam ser simplesmente abandonados. No lado oposto, o discurso de justificativas entroniza a palavra democracia como panacéia. Esquecem que as atividades humanas são regidas pela dialética básica.
Não pode haver progresso se os novos enfoques se cristalizam e viram paradigmas irremovíveis. Não pode haver respeito se for erradicada sua fonte, a autoridade e a hierarquia. Elas surgiram da necessidade de ordenar o caos, para solucionar conflitos em sociedades tradicionais. A disciplina se formatou porque era preciso, não porque as gerações passadas fossem perversas. Parece estranho, mas antigamente as pessoas também pensavam.
A liberdade humana não é espontânea, ela precisa ser criada. Sem os instrumentos básicos, onde entram com força a alfabetização e o respeito aos mais velhos, não é possível ser livre. Sem disciplina há submissão a todos os eventos, principalmente crimes. É preciso que se diga isso, fora dos limites ideológicos. Nada substitui o bom senso, aquele equilíbrio que consegue superar a insânia e o sofrimento.
RETORNO - Crônica publicada no dia 27 de julho de 2010 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: tirei daqui.
27 de julho de 2010
O “PAGADOR DE PROMESSAS” ARGENTINO
O filme “O Caminho de San Diego” (de Carlos Sorin, 2006) é “O Pagador de Promessas” (de Anselmo Duarte, 1962) argentino. Há diferenças radicais entre os dois filmes, mas os pontos em comum são inúmeros. Começa que a principal diferença é sua grande semelhança: enquanto Anselmo reporta a chegada do devoto às portas fechadas da Igreja de Santa Bárbara, Sorin refaz toda a saga até as portas fechadas do clube onde está “São Diego” (Maradona). É uma questão de foco: o brasileiro preferiu contar o desenlace, trágico, enquanto o argentino focou na peregrinação, solidária ( povo argentino apresentado em toda sua escassez, ingenuidade e fé).
A “cruz” de Benitez, o fanático pelo número 10 da seleção argentina, é uma estátua do ídolo, que ele esculpiu numa raiz de timbó, desencavada por uma tempestade na remota selva de Misiones, no norte do país. Não é pesada como a do Zé do Burro, mas obedece ao mesmo quebranto: as duas cruzes estão relacionadas com a cura. Uma, do animal que presta serviços ao fiel e que por pouco não morreu, e a outra, do ex-jogador que pode morrer por insuficiência cardíaca.
O pedido de cura é feito para os santos pagãos. A santa pagã de Anselmo é Iansã, equivalente de Santa Bárbara, enquanto o santo pagão de Sorin é Gauchito Gil, equivalente de Maradona. Benitez põe a mão na cabeça de Guachito e pede a cura de Maradona. Quando o ídolo foge da clínica para ir até o campo de gole, sinal evidente de melhora, os caminhões na estrada buzinam sem parar. Assim, o filme argentino faz uma ligação com a crença de que se deve buzinar quando se passa em frente ao santuário de Gauchito, para que a viagem siga em frente sem problemas.
Mas acontece uma complicação na trajetória. O caminhão do brasileiro que leva Benitez precisa parar diante de um bloqueio provocado por trabalhadores de um curtume que vai fechar. Só mostrando a estátua de Maradona foi possível convencer os líderes de que poderiam passar. Esse episódio significa que agora fica livre o caminho para que Diego possa se recuperar e continuar vivo, eterno, como dizem ao longo da narrativa. É o povo que tranca a estrada por pressão econômica e a libera por necessidade de transcendência (a santidade representando a superação das dificuldades)
Carlos Sorin tirou toda a carga pesada que Anselmo Duarte colocou no seu filme, baseado em peça de dias Gomes. Benitez encontra apoio por onde vá, não só dos seus irmãos argentinos, mas também do motorista brasileiro. E quando consegue colocar sua cruz nas mãos de San Diego, recupera a esperança, representada pelo bilhete de loteria que recebe de graça de um cego ajudado por ele. Mas nem por isso o filme argentino deixa de ser, como o Pagador brasileiro, uma denúncia social pesada.
O povo despossuído é representado por Benitez, desempregado de uma empresa que corta madeira na selva. Ele não tem um tostão, precisa sustentar mulher e três filhos, mora num casebre, não sabe ler nem escrever. Esculpe a estátua com ajuda de um velho índio artesão, porque viu na madeira derrubada do timbó um gesto característico de Diego. Uma cena importante é a do seu diálogo com o padre que trabalha na pobre região missioneira. O cura decifra a missão de Benitez, explicando que ele viu o que desejava ver e foi agraciado pela sorte de ter encontrado a raiz tão parecida com Diego porque sua fé o levou a isso.
Bem diferente do padre de O Pagador, que fecha as portas da Igreja e acaba tendo de engolir a pressão popular, que colocou Zé do Burro, com cruz e tudo, dentro do templo de Santa Bárbara.
Benitez não correu o mesmo risco de Zé do Burro, que foi pagar sua promessa junto com a mulher. A família do argentino fica em casa e ele assim está imune a ataques a seus parentes próximos na jornada que decide empreender pela cruz geográfica do seu país. Seu contato com a prostituta é light, ao contrário da do brasileiro, que se envolve com a prostitua, o gigolô e o jornalista sem escrúpulos. A mídia, em Sorin, ocupa um lugar importante, reportando o que se passa com Maradona ao longo do filme. Mas não prejudica Bentiez, como acontece no filme de Anselmo.
São muitas identificações, que saltam aos olhos. O Pagador de Promessas é uma obra-prima. O de Sorin, um grande filme, dessa safra admirável do melhor cinema do mundo atualmente. Os argentinos fazem filmes ruins também, mas disso prefiro não falar. Quem quiser ver Plata Quemada, de Marcelo Pinñeyro, que veja, mas depois não diga que eu não avisei. Eu desisti nos primeiros 15 minutos.
RETOIRNO - Imagens desta edição: a foto maior é Tati/ Inacio Benitez e sua cruz para San Diego e a menor a do Zé do Burro/ Leonardo Vilar, para Santa Barbara.
25 de julho de 2010
CASULO
Nei Duclós
A lente não capta
o verdadeiro traço
Do retrato oposto
Ao que és de fato
É preciso olho
Para enxergar-te
Flor que emerge
No fim do verbo
Rompes, rosa,
promessa escassa
contra o espinho
que nos cerca
Improviso o cálice
de remota carga
abrigo vivo
de uma perda
Cubro de pétala
o tempo amargo
Rompo a pele
de um esporo
Coração de pedra
medra no sinal
vermelho, vaso
pronto na véspera
Espero outro sopro
do mesmo inverno
na manhã que pulsa
no corpo mudo
Driblo a dor de ficar
imóvel, enquanto forço
a viagem do amor
no vórtice do casulo
RETORNO- 1. Imagem desta edição: foto de Ida Duclós.2. Nos primeiros 20 minutos da postagem, o poema foi sendo trabalhado mais de uma vez. A versão final, claro, é a que está acima.
LUÍS ANTONIO, O GÊNIO QUASE OCULTO DO SAMBA
Por que o carioca Antônio de Pádua Vieira da Costa é um nome absolutamente desconhecido do público? Sua biografia, que vai de 1921 a 1996, não deveria circular apenas entre especialistas e a velha guarda do samba. Toda vez que algumas de suas maravilhosas músicas são interpretadas, lembradas ou difundidas, sabemos que elas fazem parte das nossas vidas.
Basta dizer que, junto com inúmeros parceiros, é autor, entre muitos sucessos, de Lata Dágua (“Lá vai Maria/ sonhando com a vida no asfalto/ que acaba onde o morro principia”), lançada por Marlene, e Barracão (“tradição do meu país”), imortalizada por Elizeth Cardoso, ou Sassaricando “todo mundo passa a vida no arame”), um assombro popular de Virginia Lane. Mas isso ainda diz pouco. Ele foi gravado pelos maiores artistas da música brasileira e internacional, de Elis Regina a Lalo Schifrin.
Era tão eclético que compôs hits inesquecíveis como Eu Bebo Sim, de canções românticas que marcaram época, como O Poema do Adeus (“Então, eu fiz um bem, dos males ,que passei”) ou Mulher de Trinta (“Você mulher/ Que já viveu/ Que já sofreu/ Não minta”) imortalizadas por Miltinho. Além disso, foi um dos pilares do chamado sambalanço, uma inovação que namorou com a bossa nova, como atestam jóias como Menina Moça (“confissões não ouça/ abra os olhos se quiser”) .
De quebra, é autor de hinos do samba, como Levanta Mangueira (“Mostra que o samba nasceu em Mangueira”), ou militares, como o da Aman, Academia Militar de Agulhas Negras. Pouca gente liga Vieira da Costa com o gênio musical que adotou o nome artístico de Luís Antonio, tão notório (porque sua obra se impõe a todo momento) quando oculto (é filho de quem? Onde estão suas fotos?). Sabe-se pouco dele, ou pouca coisa de sua vida está disponível.
O fato, que talvez tenha contribuído para permanecer até hoje na sombra, é o de ter seguido carreira no exército. Foi tenente de infantaria e integrou em 1945 a Força Expedicionária Brasileira na campanha da Itália. E chegou ao posto de coronel. Queria preservar a farda, seu ganha pão, não dar bandeira, por mais bizarro que isso possa parecer. Mas parece que conseguiu. É comum citar Luís Antônio como o compositor de tantas músicas, mas nunca se viu um programa especial sobre ele, pelo menos não que tenha tido destaque. Tratado pelos conhecidos como Coronel, ou Negro Antônio, o flamenguista Luis Antônio é citado mais de uma vez por Stanislaw Ponte Preta em crônicas reunidas em livros como “Tia Zulmira e eu”.
Amigo íntimo de João do Barro, o Braguinha, Luis Antonio é autor do capítulo A Canção carnavalesca , do livro História do Carnaval, de Hiram Araújo, mas não quis assumir o crédito. Ele era considerado modesto, mas a verdade é que plantou seu esconderijo ao longo da vida. Talvez não quisesse ser tão bem sucedido nesse apagar de pistas pessoais. Mas é comum o Brasil devorar seus melhores filhos e jogá-los na vala comum dos esquecimento. Mesmo que se trate de alguém tão notório e que deslumbrou a todos com seu enorme talento.
Entre seus parceiros, se destacam Klecius Caldas, Oldemar Magalhães, Jota Jr. e Djalma Ferreira. Alguns dos seus poucos perfis disponíveis na internet, como o do clicmusic, ou o do dicionário Cravo Albim revelam que ele "nasceu em 16/04/1921 01/12/1996, foi compositor desde os 14 anos, estudou no Colégio Militar e na Escola Militar de Realengo, passou a compor profissionalmente em 1948, e sua primeira canção gravada foi Somos Dois (com Klecius Caldas e Armando Cavalcanti), por Dick Farney. Em 1951, fez sucesso com o samba de Carnaval de cunho social Sapato de Pobre (com Jota Junior), na interpretação de Marlene, então, no auge da fama. Em 52, Marlene gravou Lata DÁgua (nova parceria com Jota Junior), o maior sucesso de sua carreira."
""Em 1953, obteve êxito com "Barracão", gravado pela cantora Heleninha Costa pela RCA Victor e com "Zé Marmita", um samba com tema que aborda o drama social dos operários "pingentes" dos trens da Central, que viajam pendurados para fora dos vagões. No mesmo ano, Ademilde Fonseca gravou o samba "Se Deus quiser". Em 1954, teve gravados os sambas "Patinete no morro" por Marlene; "Floresta de chaminés", por Carmélia Alves e "Arranha céu", este em parceria com Oldemar Magalhães, por Heleninha Costa. No ano seguinte, Jamelão lançou o samba "Bica nova", parceria com D. Palma e Elizeth Cardoso o samba "Subúrbio". Em 1956, Risadinha gravou o samba "Esquina da vida" e Dora Lopes o samba canção "Tanto faz", ambos de sua parceria com Ari Monteiro.
Em 1958, outro sucesso com "O apito no samba", em parceria com Luís Bandeira gravado por Marlene no seu LP "Explosiva" pela Odeon e regravado depois, entre outros, por Gracinda Miranda e Trio Melodia e Os Vocalistas Modernos. A partir do fim dos anos 1950, começou a compor dentro de um estilo que a crítica batizou de "samba moderno" ou "sambalanço". Um desses sambas é "Recado" um dos mais gravados em 1959, por Maysa, Luís Cláudio, Luís Bandeira e outros, parceria com Djalma Ferreira, lançado pelo então "crooner" do grupo de boate Milionários do Ritmo, Miltinho.
Canções como "Menina Moça", "Mulher de Trinta", "Poema do Adeus", "Poema das Mãos" e, em parceria com Djalma Ferreira, "Recado", "Lamento", "Devaneio", "Cheiro de Saudade" e outros, todas lançadas por Miltinho, foram regravadas logo a seguir por diversos intérpretes, como Helena de Lima, Dóris Monteiro, Cauby Peixoto, Maysa, Elizeth Cardoso e muitos outros.
Outros sucessos são "Luz de Vela" (Helena de Lima), "Quero Morrer no Carnaval" (Linda Batista), "Bloco de Sujo" (As Gatas), "Levanta Mangueira" (Zezinho) e "Eu Bebo Sim", com João do Violão (Elizeth Cardoso) essa, seu último sucesso. Em 1962, o palhaço de circo Carequinha gravou o samba "O engraxate". A partir da década de 1960, compôs poucas músicas. Em 1973, Elizeth Cardoso lançou com sucesso "Eu bebo sim", uma parceria com João do Violão. Seu maior parceiro foi Djalma Ferreira com quem compôs, entre outras, "Recado", "Lamento", "Mulher de trinta" e "Poema do adeus". Em muitas de suas composições expressou a preocupação social com os desfavorecidos e em retratar a vida dos subúrbios da cidade do rio de Janeiro.
Luís Antonio era um dos compositores militares do Brasil. Ele e Jota Júnior (Joaquim Antônio Candeias Júnior), ambos capitães, já tinham feito sucesso com o samba "Sapato de pobre", cantado por Marlene.Servindo na Escola Especializada da Academia Militar, os dois passavam diariamente por um morro ao pé do qual uma bica d'água servia aos moradores. A inspiração nasceria ao verem a cena que descreveram na composição: uma mulher grávida equilibrando uma lata na cabeça, enquanto levava uma criança.""
RETORNO - Os últimos cinco parágrafos, e que estão sob aspas duplas, foram tirados dos sites citados acima. Esta é uma pesquisa limitada pelo pouco que pude acessar pela internet. Deve ter inúmeros textos ótimos sobre João Antônio em livros de especialistas, que não li ainda. Mas fico impressionado que não exista nenhuma foto dele localizável na rede. E nenhuma matéria especial num grande jornal que dê para acessar num clic. Pode ser que exista.
Ficam muitas perguntas. Quem eram seus pais? Qual sua contribuição em cada canção? Onde fez letra, onde fez a melodia, onde participou de ambas quando havia parceiro? Braguinha fala que ele compunha paródias, ou seja, há ainda muito o que descobrir. Publicou livros? Tem algum caderno inédito de poesia ou melodias? Noto que ele sempre foi tratado como personagem periférico, apesar de ocupar uma posição central na música brasileira por décadas, pela qualidade e abrangência do trabalho, que deixaram marcas . Quem era Luís Antonio, o gênio quase oculto do samba? Cartas para a redação.
23 de julho de 2010
HISTÓRIAS MÍNIMAS: PESSOAS EM BUSCA DE UM ROSTO
O filme Histórias Mínimas (2002), de Carlos Sorin, é a busca da identidade própria empreendida pelas pessoas pertencentes a um povo a céu aberto, na Patagônia argentina. Casas esparsas, estradas desertas, falta de energia elétrica, dispersão, imobilidade e isolamento formam o cenário cercado pelo mundo em transformação, onde as profissões se extinguem, os produtos perdem a qualidade e os caminhões passam indiferentes à humanidade à margem da rodovia. Alguns personagens precisam se movimentar e fazem um esforço para sair das travas que os prendem a um lugarzinho remoto e partem pela estrada rumo às soluções dos seus impasses.
A mulher com marido ausente não tem espelho, a televisão que a atrai para um concurso de prêmios. A TV reflete lugares exóticos (o Brasil, claro, ou os saradões de Los Angeles, ou ainda os dramalhões das novelas, distantes da vida prosaica). Ao ser sorteada num programa que ela vê no armazém que tem um aparelho de TV, ela decide viajar. Lá, acaba ficando com um estojo de maquiagem, onde finalmente consegue se enxergar. Seu rosto iluminado na tela na hora em que ganha o prêmio principal (que trocou pelo estojo) revela o rosto que tinha perdido numa vida anônima. E seu rosto refletido no pequeno espelho que veio junto com os cosméticos mostra sua beleza, que estava oculta pelo ermo. Para isso foi feito o filme: para revelar seu rosto, e a das pessoas que a cercam.
Há também o caixeiro viajante, que não tem pouso, um lugar onde possa se encontrar. Vive trafegando por paisagens assombradas pela solidão sem fim, sozinho, sem mulher e sem filhos, tentando se amparar numa subliteratura, aquela que prega a oportunidade na crise. Sente-se poderoso com esse apoio, mas no fundo amarga um vazio do tamanho dos campos frios e batidos pelo vento que enxerga pelos vidros do seu automóvel. Sua ação para romper esse ciclo é fazer a corte a distância a uma viúva, que tem um filho de nove anos. Tentar acertar o bolo de aniversário para o garoto e assim ficar bem com a viúva é uma sucessão hilária de momentos dramáticos.O vendedor abandonado procura uma família, uma identidade própria, já que trabalha num mundo econômico em decomposição, com sua profissão sendo empurrada para a auto-ajuda e a venda de quinquilharias.
E há o idoso que busca ser perdoado pelo cão que o abandonou depois de ele, velho, ter cometido um crime. O cachorro se chama Malacara. Na Argentina, é um mito, sinônimo de fidelidade e heroísmo animal: o cavalo que salta o abismo salvando o dono de um ataque mortal de índios, como aconteceu com Jonh Evans, migrante galês que fez um túmulo em homenagem ao companheiro, que morreu em 1909. Fazer cara de mau, torcer a cara é bom para afugentar os inimigos, montar guarda, garantir a segurança do dono. Mas, e se o cão fiel acaba se voltando contra seu parceiro humano, e o condena por ter atropelado alguém na estrada sem prestar socorro? O cachorro não reconhece mais o rosto, a identidade do dono e por isso o abandona.
A saga do velho que parte escondido do filho e da nora em busca do cão perdido costura essas histórias íntimas de pessoas obscuras, que trafegam ao longo da estrada onde uma bióloga, talvez a representação do próprio cineasta, especialista em vida , recolhe quem parece estar indo a pé na luta determinada por uma saída. O velho precisa achar Malacara, o cachorro que o culpou mesmo que presenciado apenas um acidente. Na metáfora de Carlos Sorin, é a dificuldade de ver que provoca o atropelamento involuntário. É sobre cinema, como sempre: não poder enxergar acaba destruindo a identidade e gerando uma culpa que parece irreversível.
Mas é preciso reencontrar o cão, localizado por um motorista de ônibus. Ir buscá-lo, mesmo que as pernas estejam trôpegas, a pressão excessivamente baixa e de companhia exista apenas uma cuia, uma bomba, um punhado de erva mate e uma garrafa térmica cheia de água quente. Na sua trajetória, ele encontra o povo perdido como ele e que sobrevive e o ajuda no encontro com o animal perdido, que enfim se realiza. A Patagônia assim, que estava fora do olhar do cinema, se insere nesse abraço entre a Sétima Arte e a paisagem humana, urbana e geográfica. São pessoas daquele lugar identificadas com o povo argentino, ao qual pertencem. E é o cinema que faz esse inventário, essa comunhão.
É como costumo dizer aqui: esse admirável cinema argentino! Esses diretores, atrizes, atores, roteiristas, câmaras são enxutos, precisos, originais e quando menos se espera, nos fazem chorar. Era mesmo o que nos faltava. Logo os argentinos!
22 de julho de 2010
FAÇA O QUE QUISER
Nei Duclós
Tudo é vencido em mim, antigo
Confidente
Que o tempo reserva na aparição
De um soco
Época sem refrões em corredores
tontos
Onde se quebram as louças de um
acordo
Nada faz sentido em mim, escassa
Babilônia
Encontrada no jarro podre de um
recanto
Gruta de ferrugem a envenenar o
Vinho
De uma literatura suja como alguém
Em coma
Todo encanto se desfaz num céu de
ferimentos
Quando profiro a oração convicta dos
Contritos
E ninguém escuta a não ser a solidão
Dos trilhos
Onde trafega uma procissão de
monstros
Nenhum coração resiste enquanto houver
Silêncio
Nem voz poderá ser minha se estiveres
Longe
Trago na bagagem uma confissão de
Gritos
Faça o que quiser desde que eu possa
Ver-te
RETORNO - Imagem desta edição: Corredor, de Ricky Bols.
21 de julho de 2010
“LAS VIUDAS DE LOS JUEVES”: CINEMA É NAÇÃO
Cinema não é só espetáculo. Nem apenas informação, cultura e arte. Cinema é nação. Todo filme é sobre cinema e todo cinema é sobre um país. Não existe identidade dos EUA fora do cinema americano. Nem Itália sem Dino Risi , Visconti, Fellini ou De Sica. Godard é a França e Almodóvar, Espanha. Você conhece o Irã pelos filmes iranianos e no momento em que os cineastas chineses formataram uma idéia da China que procurava a liberdade da expressão, o governo de Pequim fez grossa intervenção, a exemplo do atual governo iraniano em relação aos filmes produzidos no país. A ditadura chinesa substituiu as lanternas vermelhas pelas adagas voadoras, pois era preciso impor uma idéia sólida de China imperial e milenar, para justificar uma política invasiva mundial.
O Brasil já teve cinema nacional, no tempo da Atlântida e, mais tarde, do Cinema Novo. Hoje tem um queijo suíço, uma entidade perversa cheia de buracos pornográficos e absurdamente violentos. Uma nação só se faz com cinema, que define o perfil nacional, é fruto de suas políticas públicas, do comportamento da sociedade e dos rumos da economia e da política. Nós consolidamos uma ditadura, por isso baixamos as calças nos primeiros cinco minutos de projeção. Não existe o épico num país que precisa escolher entre Serra e Dilma.
Os Estados Unidos redefinem seu papel hegemônico. A França foca em seus filmes o problema da educação e dos migrantes. Os espanhóis no comportamento. Os argentinos no sucateamento da nação e na reação popular à pirataria internacional. Por ser parte de uma sociedade que vai às ruas para expulsar presidente a panelaço, o cinema argentino é uma obra de resistência e liberdade. Tem um cinema primoroso, que é a própria nação procurando se costurar diante da barbárie do que chamam capitalismo e é apenas pirataria.
Há algumas cenas em Las Viudas de Los Jueves (2009) de Marcelo Piñeyro, lapidares. O filme, baseado em livro de Claudia Piñeiro (não há parentesco), se passa num condomínio de luxo habitado pelos predadores da economia atual, os laranjas das perdas internacionais, que se locupletam com a invasão do dinheiro especulativo e das multinacionais. Como a história se passa em 2001, quando a Argentina foi mais uma vez à bancarrota, um dos moradores treina dizer para a mulher a verdade: que perdeu o emprego e está zerado no banco.
“Não quis te falar antes para não te preocupar”, diz o covardão pra uma cadeira vazia. “Mas gostaria de vender a casa e nos mudar para um país sólido. Você gosta tanto de Miami, por que não vamos para lá?” A situação precede a grande quebra geral de 2008, quando os bandidões foram flagrados nos créditos podres, levando as nações para a inadimplência, um buraco de onde ainda não saímos. Não existe país sólido, mas não há duvida que na periferia do sistema, onde nos situamos, junto com a Argentina, o esgarçamento é muito mais amplo e profundo.
Outra cena importante é quando uma família de sobreviventes vai escapar do condomínio e é aconselhado pelo porteiro (que é um criminoso chantagista) e ficar, pois é mais seguro, já que o povo está nas ruas quebrando tudo e há comandos trancando as estradas. A família decide ir embora, pois há mais segurança no caos urbano e social do que numa prisão de luxo, onde as pessoas se entredevoram no vazio e na superficialidade espiritual e econômica. Não há fundos na nação para sustentar essa diferença brutal entre as classes sociais e tudo acaba numa violência contra os próprios protagonistas. Não há saída pelo aeroporto, pois tudo está contaminado. As pessoas precisam se juntar à população em pé de guerra, lutar pelo país que está sendo destruído e não buscar refúgio onde a crise irá pegar todo mundo.
Há muitas outras cenas neste filme admirável, que é mais uma prova da maestria de Piñeyro na elipse, pois o filme foca o condomínio, mas as verdadeiras causas do sofrimento pulsam fora de cena, estão expostas nas ruas, que aparecem em alguns flashes de televisão e nos jornais. Ele já tinha feito isso em Kamtchaka, analisado aqui dias atrás. A repressão e a tortura rondam sem jamais aparecer diretamente, apenas se refletem no pânico pessoal e coletivo.
O mesmo ocorre em Las Viudas de Los Jueves, em que a bancarrota e a inadimplência invadem os funerais, as vidas competitivas, o desespero de adultos e adolescentes, uma situação com desfecho trágico que é tratado de maneira desdramática pelo diretor. Ele coloca no mesmo patamar cenas do presente e do passado, gerando um pouco de confusão. Mas aos poucos a narrativa fica mais clara e contundente. Foi necessário não fingir surpresas no final e colocar de cara o que ocorreu com os personagens principais. Assim a atenção fica seguindo as ações e os motivos do drama, denunciado de maneira lapidar por mais esta obra do admirável cinema argentino, o melhor do mundo na atualidade.
ESPÍRITOS
Nei Duclós (*)
Há fantasmas que respiram. Não se contentam em aparecer no canto do olho exausto, lá no território cada vez maior das ilusões visuais. Outros se formam no ar, aproveitando alguns sinais soltos, como um galho fino que se desprende e risca o cenário onde procuramos calor no inverno irreversível. Apoiadas pelo vôo de insetos maiores, sobreviventes de um verão remoto, essas evidências acabam formando um corpo em movimento, numa cena perdida. Ela não faz parte da memória, e sim da imaginação de alguém que não somos, mas existe, num dos inúmeros lados do poliedro do universo.
Sentados no sofá, a respiração quase imperceptível no outro extremo da sala nos faz virar bruscamente a cabeça. O foco então se firma no aparato doméstico: pia, fogão, geladeira, estante, e nada mais. Para onde foi aquele aceno que tentava puxar conversa e agora deve estar amargando seu passeio solitário numa alameda ainda não capturada pelos pintores? Que mistério é esse, situado fora do cânone, do Olimpo dos enigmas aceitos?
Aprendemos que o universo é múltiplo, a anti-matéria existe mas não dá as caras (ou dá?), um fóton pode ter outra natureza além da emanação de energia e todas essas portas abertas para especulações variadas. Os cientistas são ladinos, gostam de deixar algo pendente para não serem desmoralizados novamente por teorias da relatividade, das cordas ou dos buracos de minhoca. Aparentemente, está tudo dito e o que fica implícito é assunto confinado aos especialistas. Nós temos de nos conformar com o que percebemos, e imaginar a chave para descobrir do que é feito nossa passagem pela terra.
Minhas conversas sobre ciência nunca vão adiante porque não acredito no big bang, na estrutura do átomo ou na gravidade. Li recentemente um renomado cientista dizer que, para ele, a gravidade não existe, é apenas sintoma de uma qualidade inerente à matéria, ou algo assim. Agora estamos liberados para achar estranho que corpos celestes se atraiam e se afastem mutuamente, num conflito que deixa as coisas suspensas no éter. E se dissermos que os astros são criaturas obedientes a outros princípios, como o deslizamento sobre superfícies invisíveis? Poderão rir até não poder mais.
Talvez só os fantasmas nos escutem. Os espíritos, que vivem no que parece ser penumbra e que para eles deve ser dia claro.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 20 de julho de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: obra de Goya.
19 de julho de 2010
EM BUSCA DA IDENTIDADE PERDIDA DA LINGUAGEM
Nei Duclós
A poesia é a linguagem em busca da sua identidade. Para cumprir seu destino, deixou de lado o amplo espectro dos temas e concentrou-se na sua própria ciência: modernidade pelo avesso, já que o único exercício é recuperar a magia perdida ou dispersa na selva minada pelo jornalismo, a publicidade, a mídia eletrônica, a diplomacia, a advocacia, o cinema ou a música. Não é buscar a fórmula exata, mas a palavra-chave, reinstauradora do verbo.
Pois no caos – que podemos batizar de discurso, linguagem em ruínas – fazer poesia é inventar a carne. Morder, por enquanto – nessa transição de signos -, a “carne intermediária”, de que nos fala Paulo Henriques Britto no livro Mínima Lírica .Aquela que existe entre a “casca e o caroço” da vida, em que “a língua elabora a doce palavra”. Ou promover o “curto-circuito da frase”, opção de Rubens Rodrigues Torres Filho em Poros. Trata-se de uma luta de arma branca: a poesia não encontra nos mísseis sua metáfora mais contundente, mas na faca, na lâmina. O corte fala melhor do que a bomba. Por isso os poetas não apertam botões, eles ainda afiam espadas e continuam carregando os mesmos detritos: “Há algum tempo coleciono cadáveres” (Britto); “Longas, frias, vazias – certas letras somem ao olho que tombado cai” (Torres Filho).
Mas cada poeta briga de maneira diferente pelo seu pedaço, instaura estruturas expostas, territórios ocultos. Torres Filho, por exemplo, procura infeccionar a linguagem com um tom épico, exatamente para diferenciá-la da selva selvaggia: “São ágeis palavras circundando fatos ariscos e permeáveis lunetas onde se aninham os astros imponderáveis” ( em Certos Momentos). Ou: “Entornas a âncora das viagens que te desenham na água”. Britto prefere outro caminho, o do desencanto feito revelação: “Por isso não tive Pátria, só discos” (Geração Paissandu). Ou: "Nem tudo o que fui se aproveita" (Queima de Arquivo).
Mas os dois poetas tem um ponto em comum: o da esgrima exausta com o discurso, a busca da fibra luminosa na armadilhas montadas pela morte da linguagem. Sobram exemplos: para Britto, a poesia é a “fala esquiva, oblíqua, angulosa – do que resiste à retidão da prosa”; ou “a palavra é coisa feita, de uma matéria turva e densa, impura”. E para Torres Filho, o “ocioso exercício” é “marcar, assim o signo papel, maculá-lo com a letra incruenta”; ou “o poema só quer ser feio e não dar nenhum recado”.
O resultado deste embate, sua síntese, é absolutamente impossível dentro da jaula de um livro. Acuado, o poeta propõe sua própria saída: “Escrever, sim, mas como quem grafita”, diz Britto. E para Torres Filho, que enche sua poesia de tambores, o resultado só pode ser este: “Cai o poema, filigrana grave, precipitado na página alvura”. A gravidade do trabalho poético ganha uma dimensão própria no Brasil, onde destruir a linguagem passa por dois corredores: o excesso de oferta do discurso – obsessivo e redundante – e o deboche em relação ao poema.
Na terra do repente e do improviso, dos poetas incuravelmente românticos, do vazio sinfônico do niilismo temperado pelo talento, sobra espaço para a construção de pequenas pontes, da invenção de espelhos ao longo da estrada – para que o discurso se parta diante da própria imagem -, da convivência com a armadura da linguagem – carne difícil em meio ao mar de falsidades.
Sobra espaço também para a crítica, que pode selecionar uma rota de inúmeros sinais colocados pelos poetas. A função da crítica é de absoluta traição: não se render às facilidades do discurso, a quem pertence, como espólio de guerra – e, como o poeta, expor-se na construção do verbo. Subversão também exposta ao deboche, às sobras do discurso. Só assim a crítica poderá iniciar sua própria luta: a de descobrir a identidade perdida da sua linguagem.
RETORNO – 1. Ensaio publicado na seção Leitura, página 6 de Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo, do dia 29 de junho de 1989. O editor do Caderno 2, na época, era José Onofre. 2. Os dois livros fazem parte da coleção Claro Enigma, editada pelo poeta e crítico Augusto Massi.
QUAL EDUCAÇÃO?
O rolo é grande e aparentemente irreversível. Estudiosos ficam surpresos que, nesta época de “democratização” educacional, a violência nas escolas tenha se disseminado tanto a ponto de existir uma alunocracia, em que os professores são vítimas de crianças e adolescentes tiranos. Para mim, o motivo é óbvio, mas o problema é argumentar num ambiente político e social contaminado como o nosso. Hoje, tudo o que não é petista é tucano e vice-versa, e tudo o que não for dito em tom fanho e professoral é amadorismo.
Vamos pegar no osso. Nascemos zerados. Não existe DNA cultural, por exemplo, nem o Bom Selvagem. Ou seja, a capacidade de tocar cavaquinho e cantar pagode não está na cadeia do ácido desoxiribonucleico. E se os nativos nus da Polinésia eram amistosos não significa que o DNA deles tivesse essa informação química da bondade nata. Simplesmente havia um sistema cultural que os apresentava assim. Cultura, ensinam os mestres, é o conjunto de hábitos voltados para a sobrevivência. Alguns elementos são universais, como o tabu do incesto, a troca de informações e a relação com as mulheres, ou seja, a procriação. O resto é pura diversidade.
É simples. Se o garoto pobre do Brasil é levado com um ano de idade para a Itália ou Suíça ele não vai pedalar que nem o Robinho, ele vai esquiar em Aspen. E se o italianinho for criado no Brasil e tiver capacidades natas para desenvolver seu talento para o futebol, vai fazer a Europa se curvar novamente para o Brasil. Existe a vocação e o talento, mas não o fator determinante da cultura local impregnado na cadeia biológica. Parece bizarro ter de dizer isso, mas é que o equívoco tem levado à alunocracia.
Acredita-se que se o aluno for empoderado para ser livre e fazer o que quiser, ele naturalmente, como bom selvagem que é, irá manifestar suas capacidades inatas que traz no tal DNA cultural, que seria a soma de experiências do ambiente social fazendo parte da cadeia ´genética. Não é assim, como sabemos. Pertencemos ao mundo animal e fomos formatados assim por milhões de anos. Não seriam décadas de PC (Politicamente Correto) que iriam mudar isso. A formação proporcionada pelo ambiente é que nos transforma em seres culturais. E o papel do professor, ungido pela autoridade pessoal e do saber (ele ensina a aprender) é fundamental. Senão todos ficam reféns da algazarra.
O problema é que fomos sucateados com a chamada Reforma da Educação do golpe de 1964, acrescida de outras modificações ao longo dos anos, que acabaram com a educação clássica, aquela que tinha vindo do Império e se modificado para melhor na época do Brasil soberano (1930-1964) graças a grandes educadores. Na minha infância e adolescência, peguei um sistema tradicional, mas sem palmatória ou cascudo. É preciso instrumentar a criança para que ela possa ter acesso ao básico. Assim poderá ser livre. Se for deixada em estado bruto analfabeto, porque temos adultos irresponsáveis, ficará prisioneira da ignorância e da soberba.
Por isso proponho aos candidatos, envolvidos na perda de tempo descobrindo, ó supresa!, como a educação é importante, que lutem por uma política econômica que não destrua o país ou tungue sua população. Assim, poderemos voltar a ter uma educação eficiente. Não fiquem, portanto, sugerindo a Educação como panacéia. A continuar do jeito que estamos agora, à mercê da pirataria especulativa internacional e da corrupção interna e externa, as escolas continuarão, em sua maioria, um lixo. Não adianta posar de educador.E a culpa não é porque temos uma política neoliberal num estado ou mimamos a rede pública de professores em outro. É porque vivemos num país escravo e não importa o partido se isso não for mudado
Com uma política econômica voltada para o país e sua população, quero a volta do Pré como alfabetização pelo método silábico, o Primário como ensino da leitura e escrita e das quatro operações, o Ginásio para o estudo de línguas e dos fundamentos das ciências, o Científico para o aprofundamento das exatas e biológicas e o Clássico para o aprofundamento das humanas. Assim não teremos analfabetos no ensino médio, nem burros titulados no final da universidade, como acontece hoje, aos montes.Assim, academia não será apenas a de ginástica ou ginásio uma palavra ligada a um só significado, o lugar onde jogam bola.
A grande confusão é que nos últimos anos, com o projeto Genoma e também a descoberta de regiões do cérebro que comandam emoções, ficou parecendo que a vivência faz parte do DNA. Não faz. A cultura é exógena. O que é endógeno são as capacidades inatas, bem diferente. É um equívoco idêntico ao do início do Darwinismo. Começaram a medir cabeças para constatar a evolução humana, quando Darwin tinha falado outra coisa. O evolucionismo não provava a sofisticação européia superior aos nativos de outros continentes. Com Malinovski, ficou provado que na Polinésia existe um sistema cultural tão sofisticado quanto ao da Inglaterra. Da mesma forma, a genética não comprova que a alegria nasce com o brasileiro ou a seriedade com o suíço. É o entorno que faz todo o serviço.
RETORNO - Imagem desta edição: pintura de Fulvio Penachi, de 1955.
18 de julho de 2010
KAMTCHAKCA E O CINEMA POLÍTICO
Fora Buenos Aires e a Patagônia, tudo na Argentina parece a minha terra, Uruguaiana e arredores, situada bem na fronteira. Sempre que vejo um filme feito pelos hermanos me dou conta que a paisagem, as calçadas, as cidades do interior, as pessoas, as roupas, as expressões, tudo faz parte da minha vida. Bem que os portoalegrenses me avisaram quando cheguei na capital gaúcha e abri minha grande boca: me perguntavam sempre se eu não tinha nascido no lado errado do rio Uruguai.
A verdade é que não há barreiras entre aquelas crianças que os geniais cineastas argentinos filmam e minha infância ou juventude. Eu estou lá e por isso, talvez, ache que o cinema nacional hoje, com suas putarias e violências, com alguns oásis como Sergio Rezende, está mais distante do que um Juan José Campanella e suas obras-primas (Clube da Lua, entre outras) , ou um Marcelo Piñeyro e seu
Kamtchakca (2002).
Ma não é por me identificar plenamente com o cinema argentino que o considero o melhor cinema do mundo atualmente. O topo já foi dos americanos nos anos 40 e 50 (graças principalmente aos imigrantes europeus corridos pelo nazismo), dos italianos e franceses nos 60 e 70, nos chineses e suas lanternas vermelhas nos 80 e início dos 90, dos iranianos e seus jarros nos 90 e agora é desses caras que não perdoaram a ditadura e lutam contra ela todos os dias, ao contrário de nós, que deixamos nos absorver pela tirania e por isso vemos o país resvalando inapelavelmente para o fundo do poço.
Kamtchakca é a saga de uma família em fuga e que acaba se esgarçando. Por força de uma situação política de sufoco, que aparece em alguns flashes na televisão e no rádio e é apenas sugerida pelo pânico dos protagonistas, que procuram escapar. Mas não há mágica possível quando se trata de uma ditadura que envolve a todos e destrói o tecido da nação.
Com a tecnologia, perdemos a embocadura da cronologia cinematográfica, já que temos acesso a todos os filmes ao mesmo tempo. Não ficamos esperando lançamentos ou sentimos saudades de filmes antigos. Além de ir ao cinema, basta comprar ou alugar dvds ou fazer downloads legais de filmes de domínio púbico ou que são colocados na rede pelas próprias produtoras. Isso nos permite ver no espaço de algumas horas, além de Kamtchakca, um thriller político de primeira água como King´s Game (2004), de Nikolaj Arcel, feito na Dinamarca , ou Waltz with Bashir (2008), de Ari Folman, uma animação impressionante, de produção e direção israelenses, sobre o massacre dos palestinos na guerra do Líbano.
O cinema político é a resposta ao noticiário, à cobertura da mídia, à História formatada em suas inúmeras versões. Os filmes em questão trabalham a investigação de personagens que procuram saber a verdade sobre os bastidores da tomada do poder na Dinamarca, o que de verdade aconteceu no envolvimento israelense dos massacres do Líbano ou o que houve com famílias da classe média argentina que de uma momento para outro foram tratados como animais e inimigos da nação. São temas explosivos demais para caber na produção jornalística diária.
Sem memória, o ex-combatente da Valsa com Bahshir vai atrás dos companheiros da guerra para saber por que esqueceu as cenas do massacre, onde esteve presente. É pressionado por pesadelos e acaba descobrindo que sepultou as lembranças porque identificou o horror presenciado com o horror herdado, já que os pais estiveram em Auschwitz. O filme assim traça um paralelo entre o nazismo e o que ocorre no Oriente Médio. E o filme dinamarquês é um modelo de cinema sobre política e jornalismo, com dois repórteres indo atrás de uma história sinistro de manipulação da opinião pública e do Parlamento. O objetivo era o acesso ao cargo de Primeiro Ministro. “Isso tudo será esquecido em duas semanas”, diz o vilão para o jornalista. “Duas semanas são suficientes”, responde o repórter. Magnífico diálogo.
Kamtchakca traz para a cena esse ator que não canso de celebrar aqui no Diário da Fonte, Ricardo Darin, o cara que demora demais a receber um Oscar. Neste filme, o grande ator exerce novamente seu ofício exibindo a capacidade de provocar emoção sem mover uma linha do rosto. Um exemplo de concentração e talento, raros entre os atores alimentados a maizena de hoje. Darin faz o papel do pai dedicado que precisa fugir dos filhos, junto com a esposa (interpretada maravilhosamente por Cecilia Roth), deixá-los na mão do avô e partir para o nada, aquela estrada sem fim que o cinema já nos acostumou a mostrar como o limite de uma narrativa e que em Piñeyro é o limite de muitas vidas. Fica a resistência, o pequeno lugar onde nos refugiamos para conseguir reverter o jogo imposto pela maldade.
Cinema político contemporâneo: a mil! Precisa ser visto, disseminado, celebrado. Para que todos aprendem antes que novamente a noite aconteça.
RETORNO - Imagens desta edição: na foto maior, Darin cria a metáfora da resistência num jogo com o filho, em "Kamtchcka". Na segunda foto, Anders W. Berthelsen e Søren Pilmark se enfrentam em "King´s Game", com uma inimizade estimulada pelo diretor, mas a má impressão acabou junto com as filmagens, quando então ficaram amigos; e na terceira foto, uma cena do impressionante "Waltz with Bashir".
ESCOLHA
17 de julho de 2010
EXPEDIÇÃO
Nei Duclós
Nas montanhas geladas procurei
o anjo enterrado do poema
Encontrei estátuas de carne
ainda intactas de antigos
navegantes. De boné ainda
postos, de olhos sedentos
e o rosto calmo como a bater ponto
numa indústria impossível
instalada no alto da avalanche
antes da queda
A nuvem daquela paz que o vento
tinha colocado na minha busca
me fez esquecer o que procurava.
O poema no fim ficava abaixo
de qualquer achado e eu tinha
que me contentar com a espera
de navios enviados antes
do inverno para me salvar.
Lá fiquei até que os corpos
rolaram direto para meu ponto de partida
RETORNO - Imagem desta edição: uma das muitas fotos dos Alpes, de Daniel Duclós.
16 de julho de 2010
AMOR
Nei Duclós
Amor não se preserva
Amor veio de quebra
Amor, nada se leva
Amor, ninguém sossega
Amor jamais espera
Amor é quando neva
Amor de vida breve
Amor não se despede
Amor, nenhum projeto
Amor longe da rédea
Amor preso se ferra
Amor, estranho verbo
Amor, cisco de estrela
Amor, sorte na certa
RETORNO - Imagem desta edição: Eros e Psique, de Canova.
IDADE DA PÓLVORA
Nei Duclós
Tudo cabe
no paiol de imagens:
o mágico, a lógica
a linguagem na flor
da idade
Nada cabe nesta sala
nosso amor, nossa fábrica
Para viver
precisa baixar o vale
como os rios sem nome
e a fome das águias
A solidão é de quem
ataca. a tocaia na mão
com um tacape
A escuridão é teu passo
possível autor
da claridade
RETORNO - Mais um poema do livro "No mar, veremos" (Editora Globo, 2001).2. Imagem desta edição: Praia aérea em Viena, de Daniel Duclós.
14 de julho de 2010
CORREIO LUMINOSO
Nei Duclós
Qualquer grito se parece com meu nome
nas ruas de solidão e de sonho
Qualquer gesto é um amigo
vindo não sei de onde
Qualquer dia é um aviso
Uma carta que não chega
Assim também o poema
que no gás néon se queima
RETORNO - Poema do livro No Mar, Veremos (Ed. Globo, 2001). 2. Imagem desta edição: Court Square no centro de Greenville, Carolina do Sul, EUA. Foto feita na mesma locação usada por George Clooney no filme "Leatherheads" (O Amor não tem Regras).
FOME
Nei Duclós
Homenagem a um morto me emociona
Flores esparsas sobre o acostamento
Assim como o beijo em casamento
Ou procissão com anjos de carona
Resgate de naufrágio me arrebata
Corpos rasgados de tanto sofrimento
Teceram velas no rumor do vento
Sobreviveram com a fortuna intacta
Final de uma guerra me consome
Soldados se apossam em silêncio
Ruas desertas com tiros na parede
É que minha alma sempre sente fome
De algo além da barca de Caronte
Quero Ulisses retomando o remo
RETORNO - Imagem desta edição: A Barca de Caronte, de Luca Giordano.
13 de julho de 2010
ESTRELAS DA CONEXÃO ENTRE CÉU E TERRA
Escola, disse aqui esses dias, quando escrevi sobre o filme francês Entre les murs, serve para o ensino e o aprendizado do uso da língua, passaporte para todas as outras matérias. Esa conceituação cabe perfeitamente no filme indiano Pedras preciosas como estrelas na terra, minha tradução livre de Taare Zameen Par (2007), dirigido e interpretado pelo ator cult Aamir Khan, considerado um perfeccionista e desde a primeira infância envolvido com cinema, por obra dos negócios familiares; escrito pelo também consideradíssimo Amole Gupte (quem consulta o supersite IMDB vira especialista em cinema indiano desde criancinha); e estrelado pelo fenômeno de nove anos Darsheel Safary, que ganhou todos os prêmios no seu país no papel do garoto disléxico, que quase se suicida e é salvo pelo professor de arte.
O filme é uma graça suprema e não passa em lugar nenhum no Brasil porque estamos entupidos de blockbusters, onde roda dinheiro fácil. E porque destruímos a infância, rebentamos com a inocência e devoramos o nosso futuro às gargalhadas e tiros. Em contrapartido, o filme indiano tem de tudo: é drama, é musical, é didático. Ensina como trabalhar a individualidade no que ela tem de escassa para descobrir o que nela sobra. Mostra que nenhuma exclusão é saudável ou vai consertar quem quer que seja. Ao contrário, vai intensificar o problema e levar a um desfecho trágico. E contrapõe a vocação e a sensibilidade ao pragmatismo cego de quem quer formar robôs competitivos.
Naif demais, óbvio demais? Como precisamos dessas obviedades que foram jogadas fora! Infelizmente, de repente nos sentimos superiores, por dentro, modernos e progressistas. Somos um bando de cínicos, isso sim. Muitas de nossas escolas estão na mãos de traficantes. Cada vez mais, a alunocracia impõe o terror aos professores, empurrados para a miséria e o sufoco. Escola aqui é lugar de merenda e conversa fiada. O discurso educacional se esmera em ser correto enquanto a realidade das pixações, da violência e do despreparo impera.
Bem oposto à Índia, que exporta alunos preparados no seu rígido sistema de ensino. Tem formando e pós-graduando indiano em tudo que é lugar. Eles estão com tanta presença no sistema de ensino, que podem se dar ao luxo de trabalhar algo mais amplo, mais preciso, mais significativo, mas voltado para o futuro que é abordar os alunos especiais, que devem ser incluídos nas escolas normais e não serem confinados em guetos. Mas chega de peroração. Vamos ao cinema.
Esta obra indiana é sobre conflitos de percepção entre o mundo adulto e infantil. Enquanto no francês Le Petit Nicolas (2009), baseado na obra do escritor René Goscinny e do artista Sempé, dirigido por Laurent Tirard, trata de mundos paralelos entre a infância e o mundo adulto, os indianos falar sobre os pontos de interseção entre esses dois universos. Nicolas é uma representação baseado na memória, já que o livro original que gerou a série e agora o filme, de 1960, resgata o rígido sistema escolar dos anos 40, suas brincadeiras, suas histórias e seus encantos e problemas.
A narrativa é feita pelo personagem mirim. O autor escreveu como se fosse a história ideal que gostaria de ouvir quando criança. Isso cria uma atmosfera de sonho em todo o filme, levando-o para o humor, garantido pela independência entre as duas visões de mundo, dos adultos repressores e dos alunos em outra, tudo dentro de normas duras e famílias nucleares tradicionais. Fico me perguntando se não foi melhor assim: só quando há limites é possível saborear a transgressão, só quando há disciplina dá para sentir o gosto da liberdade.
Na hora que libera geral e as aulas ficam lúdicas, por vaidade e preguiça dos adultos irresponsáveis, no recreio a garotada sai dando tiro, no mínimo. No filme indiano O professor de arte faz todo mundo dançar e pular, mas há um entorno de rigidez. Não se trata da dança o tempo todo, mas de um necessário contraponto ao que existe ao redor. Tudo é dialético e não se pode puxar demais para nenhum dos lados. No fim, o ensino inovador da arte serve para fazer a escola tradicional respirar, mas não a destrói, ao contrário, a atualiza e a preserva.
A escola mostrada no filme indiana é só para meninos, todos usam uniformes, são obrigados ao asseio, a limpeza, ao bom comportamento e ao estudo brutal das disciplinas. Isso cria um problema, pois o protagonista disléxico vive em outro mundo e precisa ser amparado pelo brilhante professor de arte para aprender a ler e escrever e assim poder convencer os outros professores de sua capacidade e finalmente mergulhar no que gosta, pintar.
Não é um caminho fácil. O professor se esforça para convencer o diretor, os outros professores e a família do garoto que há uma solução para o problema. Claro, consegue, o filme tem happy e end e exagera nas interpretações over e nas situações exageradamente emocionais (foi feito para chorar, enquanto Nicolas, para rir). Mas é um trabalho maravilhoso dos realizadores dessa obra, que deveria ser visto no Brasil para servir de parâmetro. Não para alimentar discursos, que disso estamos fartos. Mas para estimular os bons exemplos, em que os adultos abrem mão de sua percepção viciada e veem melhor o que as crianças nos trazem. Só o cinema, arte que se enxerga o tempo todo, poderia se sair bem dessa.
RETORNO - Imagens desta edição: na foto maior, o olhar adulto do professor de arte (Aamir Khan) sobre o garoto especial (Darsheel Safary); e na foto menor, o personagem Clotaire (Victor Carles, num papel coadjuvante que se destaca) centraliza as interpretações brilhantes dos pequenos atores.
BIZARRICES
Nei Duclós (*)
Vivemos no mundo bizarro. Um polvo que aponta futuros vencedores de futebol ganhou fama e prestígio. O megaídolo do rock se transformou, de uma hora para outra, em anjo mau da falta de sorte. Corpos são esquartejados depois de assassinatos em carros de luxo. A idade da inocência faz pós-graduação em ruindade. Leis viram letra morta. O voluntarismo impera, de chicote na mão.
Prudência agora é pecado. Solidariedade, insumo publicitário. Militantes das campanhas eleitorais se engalfinham para decidir quem “tomará posse”, expressão que só existe no Brasil para cargo público. A fé move patranhas. O analfabetismo ganhou o púlpito. Aprova-se por decreto. Ninguém pode entrar numa avenida na vaga deixada pelo passar incessante de carros, pois quem já vinha trafegando se sente no direito de dirigir perigosamente para cima do invasivo e jogá-lo no acostamento, de onde jamais deveria ter saído.
Todos estão sob suspeita. No momento em que o olho branco coletivo é jogado para cima de uma vítima, não há mais volta. Olho branco, aquela condenação muda e prévia que se expressa num cerco absurdo à pessoa escolhida, não reverte. A tecnologia da informação alimenta fogueiras medievais. A crítica deu lugar ao achincalhe. O insight ao plágio. O amor foi abafado numa colcha imunda de boas intenções abraçada aos mais torpes interesses. A loucura ronda as casas e entra pela sala.
Estamos de mãos amarradas. Bandidos escolhem o alvo e ninguém pode impedir. As boas obras se diluem numa rede de retrocessos, intrigas, indiferença. O país está às moscas, mas os arautos do bem pagam os tubos, com dinheiro alheio, para dizer que estamos crescendo e o mundo se espanta diante de tamanha performance . Os governantes julgam que os estrangeiros são tão submissos quanto nós. O que acontece é que os adventícios adoram as riquezas que distribuímos generosamente, principalmente os juros que pagamos por papel pintado especulativo.
Então eles batem amigavelmente nas nossas costas e dizem que querem conhecer as mulheres brasileiras. Como há excesso de xingamentos, ficamos sem jeito de dizer para esses interessados que, quando vieram, providenciem a própria mãe na bagagem. Mas somos um país família. Não podemos nos entregar ao mundo bizarro. Pega mal.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 13 de julho de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: tirei daqui.
12 de julho de 2010
BANQUETE CULTURAL NA REVISTA SAGARANA NÚMERO 40
“Caros amigos e amigas, é com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 40 da revista Sagarana, em língua italiana, no endereço telemático www.sagarana.net .
Esta edição apresenta apresenta uma entrevista exclusiva do Prêmio Nobel Dario Fo, "Il riso e la comicità per conoscere la realtà", e um ensaio inédito na Itália, de Cecília Meireles sobre Veneza, "Città liquida", um artigo de Pascual Serrano, "La mente che oggi farebbe paura a Berlusconi" e os textos "Senza filtro", de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière e "Al di lá di Gutemberg" di Enrique Vila-Matas, ambos sobre a questão da revolução informática e da literatura.
Em Narrativa são presentes uma tradução inédita de um trecho de um romance de Carlos Heitor Cony, um trecho erótico extrato de um romance de José Saramago, um conto de Raymond Carver e trechos de romances da Prêmio Nobel Herta Müller e de Alberto Moravia, além de textos inéditos de autores contemporâneos como Etgar Keret, Raffaele Taddeo e Aram Kian.
Em Poesia, "Purgatorio de L'inferno" do grande poeta italiano falecido recentemente, Edoardo Sanguineti, uma tradução inédita de "Amore dopo amore" de Derek Walcott, além das de poesias inéditas de Paul Polanski, Jacek Kaczmarski, Martin Espada, Richard Wright e Warsan Shire. E estão presentes também os contos e as poesias de autores novíssimos na seção Vento Nuovo.
Neste mesmo endereço telemático poderão encontrar a seção Il Direttore atualizada, com o conto inédito Scintilla, de Monteiro Martins, e na seção Scuola todas as informações sobre os projetos da Scuola Sagarana para o 2010/2011, em Pistóia, na Itália. Ademais, na seção Archivi, estão disponíveis para leitura todos os números anteriores da revista e todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.
Esperamos que os os ensaios, os contos, as poesias e os trechos de romances selezionados possam oferecer-lhes muitas horas de agradável leitura.
Cordialmente, A Redação de Sagarana”
RETORNO - Imagem desta edição: Dario Fo.
11 de julho de 2010
DARÍN EM “LA SEÑAL”: MULHER É CINEMA
Implicaram com La Señal (O Sinal, 2007), dirigido pelo Ricardo Darín (em parceria com Martin Hodara), ator fundamental do cinema argentino contemporâneo, que brilha em vários filmes de Juan José Campanella. Considerado confuso em sua trama onde entram todos os elementos clássicos do noir, o filme precisa ser visto, para ser entendido, na sua natureza, ou seja, uma obra sobre cinema. Se existem dúvidas sobre a validade desse enfoque que costura meus ensaios, neste não deve pairar nenhuma, pois em cada segundo está explícito o foco narrativo: tudo aqui é sobre a Sétima Arte.
Nem precisaria dizer, pois está na cara dos atores, dividida pela linha de sombra entre claro e escuro, nos cenários, personagens, situações, seqüências, imagens, diálogos, que brotam diretamente daquele tipo de filme que era considerado de segunda categoria, por serem pobres na produção em preto e branco e que viraram cult pela grandeza que atingiram, se transformando em momentos inesquecíveis. Pode-se dizer que O Sinal é o excesso dessa evidência, desse resgate, dessa memória cinematográfica em tempos bicudos, pois hoje o que se faz é destruir o que foi feito, para no seu lugar ser entronizado um monumento ao obscurantismo.
Não foi a vanguarda que fez esse serviço, foi a própria indústria, que devorou as transgressões e desconstruiu a herança outorgada pela maestria de grandes cineastas. O Sinal poderia ser visto como uma volta ao passado, um anacronismo, um trabalho fake em todos os sentidos, pois o que aparece não é a América da depressão ou dos gloriosos anos 40 e 50, nem as personagens parecem verossímeis nessa Buenos Aires de 1952, quando Juan Perón estava no poder e Evita, sua mulher, agonizava lentamente enquanto a multidão em desespero rezava pela sua impossível recuperação. Mas, como é sobre cinema, o filme dribla essa má vontade da percepção, e se impõe como um trabalho de ruptura contra o eterno presente a que fomos condenados.
“A mulher pesa 40 quilos e não a deixam morrer” diz o detetive Corvalán, interpretado por Ricardo Darín, referindo-se a Evita. A primeira dama argentina é o rádio, a mulher a ser evitada pelo pragmático profissional que ganha a vida fotografando pequenos crimes domésticos, traições em sua maioria. Corvalán não quer ser traído pelas ilusões que tomam conta da política e da sociedade. Ao contrário de seu sócio (interpretado por Diego Peretti) do escritório de detetives, que é engajado na partido do governo e considera o mito Evita como uma coluna do templo nacional, Corvalán quer distância desse circo, e também das armadilhas da tradição, outra ilusão encarnada pelo pai doente tocador de bandoneon, aposentado de uma atividade sinistra, talvez a de matador, talvez a de detetive particular.
Afastando-se de tudo o que lhe parece falso, Corvalán procura manter uma relacionamento frio com a amiga, professora de piano, com quem vai para a cama e que o trai com seus alunos. Amargando o impacto dessa revelação, quando flagra o namorado da amante numa volta pela sua rua, Corvalán não tem nem o consolo da ilusão do jogo, já que aposta nos cavalos errados e nada ganha com os números da loteria. É nesse quadro de decepção que vê o elemento obrigatório das histórias de detetive: a mulher fatal (interpretada por Julieta Diaz), que o contrata para uma missão misteriosa e complicada. Ela é aquele sinal que muda tudo e faz com que os protagonistas se comportem de uma outra maneira.
Essa é sua perdição. Não entenderam como um sujeito pragmático, lúcido e que não se deixava impregnar pelas ilusões, pode ter caído de maneira tão completa nas tramas da fêmea que o enganava e o levou para um ciclo de conflitos extremos, com o desfecho previsível. Acenou para ele com a mais radical das ilusões, o dinheiro farto e acessível num cofre do mafiosos. Para lá se dirigiu Corvalán, pois estava condenado na opção que fez. “Ninguém me obrigou a nada” disse, quando se viu perdido. Ele foi atraído pela penumbra de um cinema, onde deu o primeiro beijo na sua cliente, ao som da música envolvente, dessas de filme de matiné, que embalam o sonho, mas oferecem inapelavelmente a ressaca na hora de sair da sala.
Eis uma composição de elementos cinematográficos que se oferecem ao espectador como uma charada e deve ser decifrada pelo que é, filme sobre cinema. Podemos escapar de tudo, ser donos de nossas vidas, cumprir formalmente nossos destinos, formatar hábitos, ficar distante das armadilhas, já que estamos preparados e usamos esses chapéus, vestimos esses ternos, dirigimos essas carros lustrosos, por ruas chuvosas e acendemos um cigarro atrás do outro. Mas não devemos cair na tentação de entrar numa sala de cinema, pois esse será a tragédia mais prazerosa que poderá nos acontecer, quando enfim nos livramos da casca dessa realidade insuportável e morremos nos braços de um amor inatingível.
O que fizemos de nossas vidas, prezado e brilhante Ricardo Darin? Tu, que és do ramo, sabe como ninguém. Fomos ao cinema.
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