Todo mundo já falou sobre Tropa de Elite, de José Padilha. É preciso abordá-lo pelo que é: um filme. Parece óbvio, mas quem disse que a vida é fácil? Ser um filme não quer dizer que nada tenha a ver com a realidade, com a polêmica, com a ideologia. Tem tudo a ver. Mas você estará mais perdido do que fogueteiro em fuga se não enxergar primeiro que se trata de obra cinematográfica, antes de ser o que sugere ser, ou seja, uma denúncia sobre a falência do Estado ou um mergulho na sociedade de classes, ou ainda um documento sobre corrupção e cumplicidade com o crime, ou pior, tomando o assunto pelo avesso, um estímulo à tortura e à matança geral.
Que filme é esse? Ele se sustenta numa coluna mestra: um narrador que participa da ação e enxerga as próprias contradições. O capitão Nascimento, personagem tão poderoso quanto o vilão (e mais tarde herói) Antônio das Mortes, de Glauber Rocha, é uma criatura inspirada em narradores clássicos do filme noir, que se baseavam em grandes escritores policiais como Dashiell Hammet e eram interpretados por atores antológicos como Robert Mitchum ou Humphrey Bogart. É desse paradigma que vem a visão crua dos fatos, a consciência ética misturada com cinismo, alimentadas pela impotência diante do Mal, assumido parcialmente no desfecho das tramas sinistras.
Esse personagem mudou de roupagem nos últimos anos, mas está mais presente do que nunca no cinema americano. São anti-heróis sem medo de morrer, obcecados por uma missão, um objetivo, e que apostam em si quando todo mundo deu de barato que estão perdidos. Há milhares de exemplos e basta citar “Duro de Matar”, com Bruce Willis, ou “Máquina Mortífera”, com Mel Gibson, para ver que a indústria audiovisual dos países ricos cuida da imagem dessa cidadania isolada e armada, que dentro ou fora das instituições assume o risco de decifrar o embrulho e transformar-se de coadjuvante em protagonista.
Mesmo que ele não desperte nenhuma aprovação dentro dos princípios humanistas, é inegável que tem carisma e exerce irresistível atração na cidadania afundada em rotinas de escravidão e miséria moral. Exercer uma atividade épica, objetiva, clara e sem retorno é a fantasia das pessoas amarradas a vidinhas supérfluas ou à mercê de toda espécie de tirania. O Brasil não tinha nada igual, até surgir o capitão Nascimento, brilhantemente interpretado por Wagner Moura.
O narrador onisciente, tão fora de moda por um tempo, quando se buscou romper com a composição romanesca tradicional, mas hoje mais presente do que nunca, conduz a história como quem não tem mais nada a perder. O personagem dói de tanto ver. Por ter cumprido sua missão, a seu modo e da forma errada, ele agora tem o território livre para dizer o que pensa, da maneira como quiser. Ele entrega todas, a começar pelos próprios companheiros de farda. Entrega de comandante ao praça, denunciando um sistema de corrupção que cuida de si próprio, deixando a segurança pública de lado. E descobre porque esse sistema não permite que nada decente medre na carreira policial.
Só esse enfoque faz do filme de Padilha uma explosão nuclear no bom-mocismo do cinema nacional. Diante da sucessão de filmes em que as pessoas tiram a roupa para mostrar como somos sexy, Tropa de Elite empolga as massas porque trabalha uma qualidade em desuso, a coragem, e constrói uma trama épica no país da dispersão nos detalhes, dos artificialismos pessoais.
Mas estamos falando do filme. Em torno do narrador, se contorcem as situações de risco, desde os tiroteios na favela até as aulas na faculdade. Estas, concentradas nos estudos do Mestre Foucault, não consegue enfrentar uma discussão séria com seus oponentes, já que os estudantes se guiam por um consenso ideológico sem contestações. A voz discordante, do policial que tenta ser advogado, ou seja, encontrar o caminho da Justiça na sua vocação de lutar contra o crime, acaba se reduzindo a pó diante de uma situação de guerra.
Tropa de Elite é sobre uma guerra coletiva, longe daqui (no cinema), aqui mesmo (ao nosso redor), para usar o título de uma peça de Antônio Bivar. É um filme que sobra. Não cabe em ataques ou defesas. É tremendamente dialético, inteligente até o osso, brutal até a exaustão, imoral, impróprio, desajustado. E super bem feito, com câmara em movimento sem frescuragens, apresentação didática dos problemas, definição antológica dos personagens (o que é aquela oficina de catraias policiais?!). É um filme de ação, sobre o Brasil que enxergamos só em parte. Agora podemos ver de frente e no final levar aquele tironaço no meio das fuças.
“Tropa de Elite, osso duro de roer. Pega um pega geral, também vai pegar você”.
Que filme é esse? Ele se sustenta numa coluna mestra: um narrador que participa da ação e enxerga as próprias contradições. O capitão Nascimento, personagem tão poderoso quanto o vilão (e mais tarde herói) Antônio das Mortes, de Glauber Rocha, é uma criatura inspirada em narradores clássicos do filme noir, que se baseavam em grandes escritores policiais como Dashiell Hammet e eram interpretados por atores antológicos como Robert Mitchum ou Humphrey Bogart. É desse paradigma que vem a visão crua dos fatos, a consciência ética misturada com cinismo, alimentadas pela impotência diante do Mal, assumido parcialmente no desfecho das tramas sinistras.
Esse personagem mudou de roupagem nos últimos anos, mas está mais presente do que nunca no cinema americano. São anti-heróis sem medo de morrer, obcecados por uma missão, um objetivo, e que apostam em si quando todo mundo deu de barato que estão perdidos. Há milhares de exemplos e basta citar “Duro de Matar”, com Bruce Willis, ou “Máquina Mortífera”, com Mel Gibson, para ver que a indústria audiovisual dos países ricos cuida da imagem dessa cidadania isolada e armada, que dentro ou fora das instituições assume o risco de decifrar o embrulho e transformar-se de coadjuvante em protagonista.
Mesmo que ele não desperte nenhuma aprovação dentro dos princípios humanistas, é inegável que tem carisma e exerce irresistível atração na cidadania afundada em rotinas de escravidão e miséria moral. Exercer uma atividade épica, objetiva, clara e sem retorno é a fantasia das pessoas amarradas a vidinhas supérfluas ou à mercê de toda espécie de tirania. O Brasil não tinha nada igual, até surgir o capitão Nascimento, brilhantemente interpretado por Wagner Moura.
O narrador onisciente, tão fora de moda por um tempo, quando se buscou romper com a composição romanesca tradicional, mas hoje mais presente do que nunca, conduz a história como quem não tem mais nada a perder. O personagem dói de tanto ver. Por ter cumprido sua missão, a seu modo e da forma errada, ele agora tem o território livre para dizer o que pensa, da maneira como quiser. Ele entrega todas, a começar pelos próprios companheiros de farda. Entrega de comandante ao praça, denunciando um sistema de corrupção que cuida de si próprio, deixando a segurança pública de lado. E descobre porque esse sistema não permite que nada decente medre na carreira policial.
Só esse enfoque faz do filme de Padilha uma explosão nuclear no bom-mocismo do cinema nacional. Diante da sucessão de filmes em que as pessoas tiram a roupa para mostrar como somos sexy, Tropa de Elite empolga as massas porque trabalha uma qualidade em desuso, a coragem, e constrói uma trama épica no país da dispersão nos detalhes, dos artificialismos pessoais.
Mas estamos falando do filme. Em torno do narrador, se contorcem as situações de risco, desde os tiroteios na favela até as aulas na faculdade. Estas, concentradas nos estudos do Mestre Foucault, não consegue enfrentar uma discussão séria com seus oponentes, já que os estudantes se guiam por um consenso ideológico sem contestações. A voz discordante, do policial que tenta ser advogado, ou seja, encontrar o caminho da Justiça na sua vocação de lutar contra o crime, acaba se reduzindo a pó diante de uma situação de guerra.
Tropa de Elite é sobre uma guerra coletiva, longe daqui (no cinema), aqui mesmo (ao nosso redor), para usar o título de uma peça de Antônio Bivar. É um filme que sobra. Não cabe em ataques ou defesas. É tremendamente dialético, inteligente até o osso, brutal até a exaustão, imoral, impróprio, desajustado. E super bem feito, com câmara em movimento sem frescuragens, apresentação didática dos problemas, definição antológica dos personagens (o que é aquela oficina de catraias policiais?!). É um filme de ação, sobre o Brasil que enxergamos só em parte. Agora podemos ver de frente e no final levar aquele tironaço no meio das fuças.
“Tropa de Elite, osso duro de roer. Pega um pega geral, também vai pegar você”.
RETORNO - Assista à entrevista de José Padilha na Folha.