26 de agosto de 2019

FALSO RECATO


Nei Duclós


Escrevo para ti sem que ninguém saiba
Nem mesmo tu, namoro sem futuro
Escondida em tua esfinge trêmula
Sei onde mora teu desejo
Olhe para mim, falso recato
Charada em papel de almaço
Canção de realejo em remota praça

NOVO CONTINENTE

Nei Duclós


Éramos amigos antes da política
Éramos irmãos, éramos amores
Tinhas uma flor em cada despedida
E um coração nos sons de uma visita

Disseram que era errado beijar se houver conflito
E dar as mãos se houver necessidade
Exigiram a prestação da identidade
Decorar a lição, provar fidelidade

E eu que te queria fiquei na solidão
E tu que eras minha agora és partidária
Não abrimos a boca sem que nos contestem
Amor só entre iguais, modorra de uma peste

Vamos fugir negando essas bandeiras
Voar em direção do livre pensamento
Cruzar o mar sem contrariar o vento
Voltar a descobrir um novo continente



METEORO

Nei Duclós

Nenhum meteoro atingiu a terra
Foi ela mesmo que ficou mais densa
E seu fogo recolheu-se para o centro
Mudou o ambiente amigável aos gigantes
E os dinossauros foram extintos
junto com outras grandes criaturas
Não havia mais clima
Agora a terra ameaça explodir-se
Porque chegou novamente ao limite
Somos esse meteoro de desavenças
Venha impor a paz, açucena
Com tua doçura sem o sal da profecia


PARTIR

Nei Duclós


Partir, dizem os sinais
E as bagagens se acumulam pelo cais
Todos vestem roupas de sair
Deixando o próprio coração para trás

Medo da guerra, medo da miséria
A falta de confiança é geral
Não há futuro na pátria que já era
Embarcam no adeus, a fuga contra o mal

Mas eu fiquei porque não estás de mudança
Abandonada na rua sem vizinhança
Buscas o pão mal rompe o alvorecer
Criança ao colo tens tempo para as flores

Arrancas no caminho as ervas daninhas
E o viço das miosótis esplende em tom diurno
És jardineira, vestido com cintura
Algodão prudente sobre a pele nua

Te imagino minha nessa solidão que tarda
Sigo pelo olhar teu andar enxuto
Só tenho a poesia, último cartucho
Quando explodir o mundo cubro a retaguarda



LÁ DENTRO

Nei Duclós


Amor jamais é um erro
Não gera arrependimento
Cria um mundo paralelo
Que é o mundo verdadeiro

Fora da sua fronteira
Existe dor e remorso
Lá dentro mora o desejo
A paixao e a inteligência

As almas que se apaixonam
Vivem o sonho mais denso
Não acaba. Só dá um tempo
Amor, volte para sempre



ÚLTIMO BANHO

Nei Duclós


Com os pés sujos de areia
Os joelhos gastos de uso
A pele antes do chuveiro
O cabelo, ombros, tudo

Dizer no meio do agarro
Que gostas do corpo alheio
Liberto de outros dengos
Barro com lã te desenha

Esperar que recomponhas
O gesto no tempo feio
A beldade que se entrega
Sabe o estrago que arrebenta

Sair depois a passeio
Cumprimentar os passantes
Com a cara de tratantes
Amor que dispensa espelho

Olhar o mar visitante
Aonde brota a lua cheia
Tomar o último banho
A convite das sereias

Dormir então de olho aceso
Alerta aos movimentos
Se acordas estou atento
Não perco nenhum momento


A INTELIGÊNCIA

Nei Duclós


Queria teu rosto tomando conta
do meu espaço.
Mas chamaria a atenção
e tiraria pedaço.

Jamais perdoam a admiração
pelo que tens de flor,
da tiara ao sapato. O espanto
da tua inteligência. o amor.



GETÚLIO EM AGOSTO


Nei Duclós

Um tiro no coração
Nas fuças da nação
Um tiro no coração
Logo depois da reunião
Um tiro no coração
Para que saibam a razão
Um tiro no coração
A morte em sua mão
Um tiro no coração
Está exposto o caixão
Um tiro no coração
O povo puxa o cordão
Um tiro no coração
Pai com gesto de irmão
Um tiro no coração
No agosto da traição
Um tiro no coração
A dor de baixo calão
Um tiro no coração
O corpo abraça o torrão
Um tiro no coração
Quem lhe tira a decisão?
Um tiro no coração
Fica eterno esse bordão
Um tiro no coração
O sangue brota do chão

Presidente
Getúlio Vargas
Presente!
 

PERDI MEU TEMPO


Nei Duclós 

Perdi meu tempo, o Tempo levou
Ficou obsoleto o que tanto me tomou
Agora fica limpo o cenário final
O corpo não descansa em piso terminal
Prefiro estar corrente do que fingir espanto
Saio do meu canto e desafio o piano
Não tenho com isso nem o mínimo lance



A REVELAÇÃO


Nei Duclós


Eram muitos deuses porque o trabalho árduo
de vestir a terra de canais e monumentos
Mais os altares e as montanhas imitando templos
Com suas torres e terraços amplos
Precisava de mãos e da vontade dos gigantes

Eles então criaram a obra
Que hoje é só vestígio de ancestral espanto
Deixaram as pedras com formas ignotas
E rostos enormes de olho no horizonte

Tudo o que hoje pisamos é sagrado
Deuses provisórios se esforçaram
Para merecer a grandeza da primeira santa
E anunciar pela voz do arcanjo
a vinda de um Deus, síntese e convênio
Nascido de uma estrela de oriental comboio

A revelação é nossa epifania
Herdamos o eco de um Amor sem fundo
Não dá pé esse mar de corais extremos

Diante da criação somos todos mudos
a oração contrita expressa num mergulho
Deus está vendo e vive no comando
Aguarda o tom humano que resta neste mundo


HABITAR

Nei Duclós


Os espíritos se identificam
Na escassez das chances
O mundo não existe
Para a invasão recíproca
O normal é o isolamento
Somos casas sem número
Teu olhar fica restrito
Às minhas janelas de vidro

Dentro de ti habita
Alguém que me surpreende
Aproxima-se o desconhecido
Tuas peças sem liga

É mais do que estranho
O que sinto
Piso no lenço distraido
Somes na escuridão

Fica para depois
Ocupar a sala onde mora
Teu olhar de prisão, aflita.



20 de agosto de 2019

REENCONTRO

Nei Duclós


Um rosto conhecido
No século novo
Cercado por multidões
E cidades frias

Antigos verões
De nossas famílias
Banhos de sol
Expunhas o espírito

À noite na varanda
O amor de véspera
Não havia mais portões
Para a dose certa

Emerges agora
Na tarde chuvosa
Mal me enxergas
Coração de memórias



CAIO NA ARMADILHA

Nei Duclós


Acerto sem querer, acusas o golpe
Num súbito suspiro sufocado
Tens o peito tenso pelo impacto
do que eu disse, ao atingir o alvo

Agora essa ressaca
Em que aguardas a repetição do ataque
Mas eu não vi como fui certeiro
E me distraio te deixando brava

Mulher navega em outro território
Numa estratégia de diversa caça
Costura o rumo que deixei à solta
E me recebe como quem não sabe

Eu caio na armadilha, preso na graça
Que exalas fingindo não saber que matas



FERIDO

Nei Duclós


Tarde demais, beleza da minha terra
Sempre te quis, bouquê de flor e ervas
Estavas no salão, rodeada pela glória
Agora o amor bate em nossa porta
Soldado ferido depois do fim da guerra

O tempo acolhe o terminal estranho
Ele se arrasta procurando abraço
Tens o rosto colhido pelo drama
Somos os dois mais íntimos remorsos
Separados como o sonho numa jaula

Vou para ti com o poema ainda moço
Te apaixonas pelo esboço da palavra
Sopro do anjo que também se atira
Na piração de não ser correspondido

Por minha mão ele força sua fala
Para alguém que conheceu na infância
Que é mulher com o teu mesmo destino
De ser paixão que busca o compromisso



DOCE ALIMENTO


Nei Duclós 

Um verso é todo o poema
Uma palavra, um telefonema
Ou teu silêncio
Quando Deus desperta no alto da montanha
E os pássaros fogem dele
Para se abrigar em tua janela

Teu corpo que se soma à inteligência
É tudo o que oferece o sonho
Ponho de lado o teclado, a caneta
Enquanto desenhas o verbo no vento

Não precisamos de outra versão
Que não seja o amor, fogo que nos alimenta



18 de agosto de 2019

ALTAS HORAS

Nei Duclós


Grude feminino a altas horas
Quando me dava por perdido
Cheiro de surpresa, beijo maritimo
Tua leitura é uma voz que reverbera
dentro de mim, rainha da memória
Beldade viva que derrama açúcar
E que ao abraçar se põe à mostra

Lembro a cidade que tinhas na mão
Nos bailes sonoros e esplêndida praça
Fui espiar tuas pernas quando na quadra
Ostentavas o monumento de tua glória

De saia muito curta e largo sorriso
Desafias o juízo de quem te adora



TEMPO INSONE

Nei Duclós


Sigo os passos da noite
Acordando a toda hora
Os anjos pedem história
Os sonhos não dão sossego

Quando o claro se anuncia
Meus pássaros estão exaustos
Durmo quando já é dia
Fazendo tudo ao contrário

Perco a rotina das horas
Não atendo as desavenças
Me sacodem com sol posto
Foi a noite, explico tonto

Dormir direito com a lua
Embalado por estrelas
Só se não houver defeitos
Nem remorsos, nem lembranças

Insônia é um treinamento
Para a vigília da guerra
Quem vem lá? pergunto afoito
O último sentinela

Explode o tempo no jeito
De me deixar nesse alerta
Ficarei de sobreaviso
Garanto a paz que não veio



16 de agosto de 2019

O SOPRO RECOMEÇA


Nei Duclós

Só fiz o bem
E o mal foi um conselho
Aprenderei
Conforme vai o tempo
E voltarei
O sopro recomeça

Só fiz o mal
E o bem foi um tropeço
Acertarei
Se houver a nova chance
Lá estarei
Se for a flor que sangra

Só fui amor
No mundo indiferente
Me plantarei
Rebento no deserto
Combinarei
Corcéis do vento leste



15 de agosto de 2019

A DOR E A GRAÇA

Nei Duclós


Tudo o que é sério provoca riso
Toda comédia é fruto de um drama
Todo choro soa falso
Toda gargalhada é mal vista

Chamam de humor quando o certo é a graça
Chamam de dor quando a verdade ataca
Gosto de ver o que faz o palhaço
com sua tragédia. Tropeça para alçar voo

A vida é um circo para exibir o trapézio
um salto bruto que a rede não segura
Fomos devorados pelos leões da jaula
A lona pegou fogo, garantiu a manchete

A morte parece estar sob controle
na arte que mostra os dentes e a lágrima
mas é só um treinamento que a Monstra
dança como bailarina nos cavalos

A memória captura as perdas
mas depois tudo some pelo ralo
Fica o poema, serragem de picadeiro
que a chuva transforma em lama tóxica



14 de agosto de 2019

A CARA E A CORAGEM DO MEDO


Nei Duclós

Medo e inevitável para quem está vivo e passa por radicais transformações do berço ao desfecho. Mas cara e coragem para enfrentá-lo ou aprender a conviver com ele são opções. Você põe a máscara para sobreviver, mas isso tem a ver com o mundo de fora. Dentro a carapuça não cabe, você se vê inteiro, enxergando a morte como uma longa sucessão de perdas desde cedo. A escritora Aline Bei, que ganhou o Prêmio São Paulo 2018 como Livro do Ano na categoria estreante, expõe no seu romance O Peso do Pássaro Morto (Editora Nós, 2017, R$ 36 com a autora, frete incluído) esse tecido que embrulha a infância numa embalagem pesada do mundo adulto, e a vida adulta num celofane transparente de sentimentos dolorosos.

A estrutura do livro, em que cada capítulo corresponde a uma determinada idade (8, 17, 37, 48, 49, 50, 52), com a linguagem apropriada a essa marca do tempo, é um monólogo de solidão, abandono, desespero em busca do amor, que sempre falta nas relações familiares e profissionais. Tem tudo para ser um livro pesado, mas é leve pela maneira encantadora que Aline imprime em cada solução de linguagem, sempre surpreendente, em que as frases são expostas nas páginas em peças interligadas, orientando a percepção que fazemos de tão rica narrativa.



Como o livro é mais inteligente do que a resenha, é preciso não ousar inventar a pólvora e deixar que flua a contundência estudada da autora, um texto fragmentado e ao mesmo tempo inteiro, num ambiente quântico em que as realidades convivem aos saltos, esclarecendo a alma da personagem, dividida entre a frustração profissional, a memória afetiva, o embate com as rotinas, o recolhimento autoimposto e a crueza de dizer o que não pode ser silenciado.

Grande livro. Um assombro de talento e trabalho com a linguagem. Vejam isso: “...uma casa empilhada no meio de tantas outras naquela rua feia que por várias noites a lua esquecia de passar.”

A vida não tem cura. Escrever poderia salvá-la, mas quem evita a carta perdida que some no quintal abandonado? Aline não nos dá esperança, a não ser na literatura brasileira contemporânea.




10 de agosto de 2019

FIM DO DIA

Nei Duclós


Acumulei assuntos para dividir contigo
Mas estavas ocupada alimentando os bichos
Nosso quintal imenso já era domínio da lua
E as estrelas forçavam a entrada na arena

Aos poucos o galpão aquietou-se
E nosso pouco gado conformou-se com a cerca

Voltaste suada com os baldes e panos
Restos de ração nas botas de borracha
Eu tinha feito o fogo e esquentava a janta
Não pediste ajuda mas eu te dei o banho

Foi quando um pé de vento chutou o telhado
Chove esta noite, disseste entre bocejos
E dormimos juntos, como sempre fazemos

Deixei os assuntos para o dia seguinte
Depois do aguaceiro
O rádio pega bem as últimas notícias
Tem um chiado, mas ainda escuto perfeitamente
 

5 de agosto de 2019

BRANCO DE LINHO

Nei Duclós


Não esqueça do poema
Convite a céu aberto
Sem divisões de renda
Ou alguma preferência

O verso só junto à nuvem
Poeira que o corpo avista
Palavra que nos ensina
A compor sem instrumento

Maestro de sinfonia
Pião de eterno rodízio
Que giramos sobre a mão
Como no perdido tempo

Quando o tempo ainda havia
Na infância que se perdia
Roupagem de linho branco




OBRA DE ARTE

Nei Duclós


Vida é arte
Obra é o que fazemos dela
Expomos as formas e a alma
Impregnados pelas cores das horas

Embaixo a assinatura
Com tinta invisível

Deixe de lado, missioneira
Tua rotina longe das telas
E me desenhe

Eu, pássaro que se debate
Nas grades de tua astuta gaiola



SONORO ESPÍRITO


Nei Duclós

Falo perto quando posto amor
Longe se for desabafo
A palavra pousa ou atropela
Conforme o piloto, o poeta
Ou quem decide dizer o que lhe toca

Falo baixo para driblar o ruído
Se quero chegar ao privilégio, teu ouvido
Ou grito para anunciar a amizade
Do outro lado da rua

Escuto teu sussurro
Embalo teu discurso
Fica no ar o sonoro espírito
Como as nuvens que velam o precipício