29 de novembro de 2013

JARDINEIRO



Nei Duclós

Faço versos porque é um serviço
básico, que tua omissão acumula
Jogas palavras no lixo, eu deixo
que sumam, a poesia tem outro
insumo, a fala incorporada à vida

Faço o papel de vagabundo, juros
de um capital extinto, o sentimento
Junto-me aos pares no subúrbio
famílias de feras celebram o fogo
ateado em minhas vestes puídas

Quem se importa se existe a indústria
potes de pensamentos, mel de gordura
e ninguém atenta na autoria, isso tudo
já existia antes, na fábrica de intestinos
que produz a solidão de caros perfumes

Faço poesia, como o jardineiro pega firme
um quintal bruto e o transforma em flor
e trilhas onde se perdem os amantes
Por isso tenho esse jeitão sem equilíbrio
de um gigante que despenca no abismo
  



28 de novembro de 2013

NILTON SANTOS, UM TALENTO DE FIBRA



Nei Duclós

Nilton Santos não dava carrinho, por isso tinha os meniscos intactos. Não repetia jogada, por isso era a Enciclopédia do Futebol. Reconhecia a genialidade dos seus pares, por isso abriu as portas do Botafogo para Mané Garrincha, que tinha sido recusado em outros clubes. Era uma rocha em campo, veterano que dava o exemplo. Sua longevidade foi um recado daquele futebol que assassinaram: ele é o exemplar mais completo do Brasil soberano dentro de campo, que conquistou duas Copas do Mundo com talento e bravura, junto com seus pares.

Tinha o perfil de um atleta sóbrio, dedicado e que buscava a perfeição. Nunca vimos Nilton Santos pagar mico para a indústria do espetáculo que se formou ao redor daqueles escretes sem igual. Ele não dava bandeira. Sua bandeira era o futebol brasileiro, que cumulou de glórias. Por isso foi escolhido o melhor lateral do mundo em todos os tempos. Sinal de que não haverá outro que se aproxime. Ele ocupa a galeria dos homens de fibra do país que foi traído, que com sua grandeza deslumbrou o mundo e encantou populações e reis.

O fato de não ter sido destaque no noticiário de um dia cheio de eventos pontuais, como a final da Copa do Brasil ou a morte dos operários no Itaquerão, diz tudo sobre o que fazemos com a memória. Abrimos mão da glória e a substituímos pelo eterno presente. Mas Nilton Santos sobrevive. Ele sempre virá à tona, como exemplo maior de uma arte que costurou um país e o projetou para a eternidade.

27 de novembro de 2013

ENTRAMOS EM CAMPO

Na noite de 26/11/2013, aconteceu no Hotel Majestic em Florianópolis o lançamento do segundo livro de Polidoro Junior, que aparece aqui na foto comigo exibindo um exemplar de "Um Jogo Inesquecível". Sobre esse trabalho sobre o Santos 2 x Avai 1, que teve pesquisa de Ida Duclós , programação visual de Luiz Acacio de Souza e onde fui editor de texto, escrevo na abertura (trecho):

UM RITO DE PASSAGEM



Nei Duclós

O jogo no estádio Adolpho Konder na tarde de feriado de Assunção de Nossa Senhora, 15 de agosto de 1972, transcende o mero acontecimento esportivo e se instala no território minado da lenda, na história de um lugar em transformação e no momento decisivo em que craques e dirigentes se definem perante uma plateia emocionada e atenta. Para compor a narrativa deste livro foi preciso encontrar os vetores que definiram aquele jogo como inesquecível. Isso se fez pesquisando o entorno em que ele aconteceu, os detalhes de cada lance e, o mais importante, os pensamentos e emoções que ainda habitam os personagens que ali deixaram sua marca.

O confronto se definiu como um rito de passagem, ponto limite entre duas realidades que se opunham, e que se mostram claramente. Primeiro, coincidiu com o momento de ruptura de Pelé com seu berço. O Santos se preparava diante da possibilidade de ficar sem seu Rei, que voaria para o estrangeiro. Segundo, foi o batismo de fogo de uma equipe local que acabou vice-campeã estadual naquele ano e campeã no ano seguinte. Terceiro: foi a avaliação de craques de fama limitada a Santa Catarina e que provaram nesse jogo terem qualidade de nível nacional. E quarto: foi quando Florianópolis começou a deixar de ser pacata e provinciana para começar a ser o que é hoje, um caso de amor internacional, um ímã de atração de turistas e de novos habitantes.

23 de novembro de 2013

NÃO CABIAS NO MAR



Nei Duclós

Não cabias no mar, luz do espanto. Todas as palavras sumiram com teu lance em direção a mim, coral submerso.

Querias aventura, só tenho sentimento. Talvez aprenda um dia a viagem do coração que finge indiferença.

Bateste o sapato na varanda. Tinhas ido ao pântano conversar com pássaros. Trouxeste um novo canto, que assobias no meu ouvido.

Perdoa o amor que dividimos. Não sei onde estávamos com a cabeça. Talvez no lugar mais perigoso, o coração.

Éramos dois, agora somos um. Ninguém diferencia rostos que se beijam.

Quando a Lua cheia se foi, deixou um rasgo no céu que tento consertar pondo o curativo do teu sonho.

O amor é uma experiência.Depois passa.Dá lugar à auto-suficiência. É quando rimos dos sonetos e das frases românticas. E voltamos a ser a estalar os dedos. Até sangrarem noite adentro.

Quando consentes posso ver, disse ele.  Quando consinto, do verbo sentir, disse ela.

É bem vagarosa essa tua vontade de descer o que te protegia. Escaldada, talvez, de outros ritmos. Mas é possível que seja só o prazer de me ver te acompanhando até que tudo caia sobre o piso.

Demorei porque precisava reciclar minhas torres de marfim, arrumá-las para te receber. Agora sim, cruze a casa com tua saída de banho.

O céu é o piso da Lua. Cada lugar tem seu forro. A praia é para onde o sol se esconde atrás do morro.

Fazer poesia é fácil. Basta enfileirar algumas palavras. É como matar formigas.



O TEXTO TELEVISIVO




Nei Duclós


Foi preciso que um jornalista veterano, Fernando Gabeira, fizesse a pauta óbvia: qual o impacto da liberação da maconha no Uruguai e quais seus principais aspectos, do ponto de vista das autoridades, dos consumidores e do povo em geral? No seu programa na Globo News, Gabeira faz como no noticiário europeu, sem a obrigatória passagem do repórter, focando o principal, deixando a fonte falar sem interferência, só quando for necessário aparecer a pergunta. Gabeira “some” ao longo do programa e só no final senta-se em frente à sua câmara (ele mesmo produz as imagens) numa espécie de assinatura visual do trabalho. Elegante, preciso, discreto, eficiente, informativo.


O texto televisivo assim ganha credibilidade e não se esgarça na aparição reincidente das mesmas figuras carimbadas seguradoras de microfone. Com os novos recursos digitais, microfone ficou obsoleto. Ainda é usado porque não sabem fazer de outra maneira. O gesto mais artificial que existe e o que sobra em programas de auditório: alguém dirigi o microfone que está em sua mão para a boca gargalhando de maneira cretina. No noticiário, o que temos é a realidade atrás dos ombros doas seguradores, que pontificam sem parar, entre alguém que está no link para outro que está no estúdio.

Certa vez trabalhei em televisão e fiquei impactado com o estrelismo de todos, até do office boy. Todos protagonistas de um ego demolidor, impermeável a qualquer observação ou crítica. O chefe de reportagem mandava cobrir todos os dias o sindicato para o qual fazia a assessoria. O apresentador (que também fazia propaganda no varejão dos eletrodomésticos) se achava o editor chefe, e, apaixonado pela própria voz, entrava na redação para dar ordens. O repórter esportivo fazia merda e se garantia porque ganhava mal e se você pedisse mais qualidade batia na mesa com suas enormes manoplas. O correspondente no Exterior selecionava imagens das TVs estrangeiras e ficava pontificando, jamais fazia uma única reportagem, nunca saía à rua. Quando pautei algumas saídas teve um faniquito.

Fiquei impressionado com a quantidade gigantesca de pessoas numa redação de TV para produzir um noticiário ruim e ridículo. A pauta era feita com recortes de jornal (hoje devem chupar da internet). A matéria era derrubada em dominó: quando passava por um dançava na etapa seguinte. Assim uma pauta boa morria nos pauteiros, ou no chefe de reportagem, ou no repórter , ou no editor de ilha e finalmente no apresentador. Quando furava o bloqueio ficavam impressionados com a repercussão. Esse foi o mundo da televisão que conheci, onde eu era execrado por ser “da escrita”, pecador, portanto.

Eu mandava reescrever “cabeças”, as aberturas de matérias, pois achava uma bosta. Eles diziam que isso não existia em televisão e que eu não entendia nada porque era da escrita. Replicava que eu não entendia, mas tinha que reescrever senão não ia ao ar. Ficaram muito, mas muito putos. Aproveitaram a reengenharia, a eliminação de intermediários para sentarem diretamente no colo dos patrões acusando o diretor de redação. Conseguiram. É preciso intervir nas TVs, desde as concessões até o estrelismo, que é conivente com os sucessivos poderes. O ego substitui a reportagem. A publicidade paga todos os espaços e você paga TV a cabo para ver anúncios.

Gabeira vai para a rua. Mostra o Uruguai da maconha liberada, as apreensões, os ataques, as defesas, as perspectivas. Uma situação que tem tudo a ver com o Brasil, pois é um país da nossa fronteira que agora atrai comércio e consumidores da erva. Ele fez também um excelente programa sobre os andarilhos das estradas brasileiras. Vários programas da Globo News são idênticos. Todos sentados em suas poltronas pontificando. Aprendam com o repórter veterano. Tirem a bunda da cadeira e parem de fazer gestos com as mãos falando abobrinhas.

22 de novembro de 2013

SALTIMBANCO



Nei Duclós

Tempo acumulado é fome
de mais tempo. A vida
aumenta com a idade
Intensa escassez, fonte
de esperança, ânsia
sem base

Não há adeus antes
do tempo. Entesouramos
vida breve, fraude
em mágica transparente
permanência de peles
descartáveis

Quando dizem velho
não vemos o tempo
grafitando o rosto
mas a pena do olhar
de quem fica à parte.
Devassamos pedras

Tempo é pintor
de paredes, artista
de circo, saltimbanco   
Deus, consciente,
põe a mão
em nosso ombro



RETORNO -Imagem desta edição: obra de Helder Bandarra.

20 de novembro de 2013

O ALVO NO ARAME



Nei Duclós
-- Voltaste ao circo, disse a equilibrista.
- Senti saudades, disse o atirador de facas.

- Pensei que tinhas te adaptado à cidade, disse a equilibrista.
- Estava tudo indo bem até que vi uma foto em que caías no abismo, disse o atirador de facas.
- Chegaste a tempo, disse ela.

- Minha coleção está incompleta, disse o atirador de facas.
- Eu sei, disse a equilibrista. Guardo uma peça para a próxima traição.

- Voltarás a ser meu alvo? disse o atirador de facas.
- Se prometer que desta vez acertarás, disse a equilibrista.

-  Ganhas a vida errando o alvo, disse a equilibrista.
- É minha forma tosca de dizer que te amo, disse o atirador de facas.

- Bolei uma nova atração, disse o atirador de facas. Acerto o arame para te ver caindo.
- Bonito, disse a equilibrista. Mas tem uma condição. Se eu sobreviver, casamos.