Nei Duclós
É em torno das representações do mundo infantil que gira o
drama de Falling Down (Um dia de fúria), o clássico de Joel Schumacher de 1993,
sobre o americano desempregado que surta ao tentar participar do aniversário da
filha, fruto de um casamento desfeito que parecia perfeito. Para isso ele cruza
a cidade cercada de inúmeras fronteiras pulando cercas, como fazem as crianças,
e destruindo tudo o que encontra, como os moleques indisciplinados e soltos nas
ruas. Ele compra o globo transparente de presente para a filha, atravessa a pé bairros
pichados pelo infantilismo transgressor dos jovens migrantes, usa armas que a
meninada pobre sabe como funciona graças à TV, e por isso é confundido com
herói de filme de ação. O desfecho é exatamente essa evidência, quando ele saca
um revólver de plástico no duelo final, que trava diante de um policial que
perdeu a filha de dois anos porque a esposa não assumia seu lado adulto e
abandonara o rebento em função das obsessões de um casamento rotineiro. O duelo
é travado em meio à multidão de crianças e seus pais que se divertem com
inúmeras atrações de um parque de diversões.
“Você se rebelou porque mentiram para você?” pergunta o
policial Robert Duvall para o surtado Michael Douglas (ambos em performances
antológicas). “Mas eles mentem até para os peixes. Isso não é motivo para você
sair atirando em todo mundo”. Os adultos mentem para as crianças. Tanto, que a viúva
do alucinado que tentou sequestrar a própria filha é aconselhada a não dizer a
verdade para a criança. “Hoje é aniversário dela, deixe para contar amanhã”,
diz o policial. Qual a sequela dessa mentira para o resto da vida da menina?
Divertiu-se enquanto o pai baleado era recolhido do mar, boiando? O filme
ultrapassa sua moldura e se transforma numa referência da fase culminante da
crise econômica mundial, quando tudo vai por água abaixo, principalmente a
identidade das nações reféns de um sistema financeiro ditatorial.
O policial Duvall está no seu último dia de trabalho, pois
fora pressionado pela mulher a deixar de exercer a profissão que adora. Saiu das
ruas e assumiu uma função burocrática. Por isso é criticado pelos colegas e o
chefe, que o acha covarde. Mas ele é o único que mantém a lucidez numa
conturbada vivência policial que se guia pelo preconceito étnico e as ideias prontas
sobre os crimes. Para solucionar o drama, o policial duro, honesto e quase
aposentado raciocina lendo o mapa da cidade palmilhada pelo criminoso. E mata a
charada.
O policial é o único representante adulto de um mundo tomado
pelo individualismo e a doença do infantilismo tardio. As pessoas querem viver
num mundo ideal quando tudo já descambou. Querem se manter lúcidos agarrados a
ideias antigas. Estão cegos ou pela rotina ou pelo ódio. É fácil, nesse
ambiente injusto, que o individuo assuma o papel de justiceiro e vingador e pratique
o que mais combate. Eu sou então o bad guy? se pergunta ele, abismado. Fez tudo
certo, ajudou a construir mísseis para defender a pátria, foi pai exemplar,
sustentou a família. O que deu errado?
O mundo deu uma volta no parafuso e desmascarou o álibi da
civilização perfeita. Estávamos afundados na barbárie enquanto a industria do
espetáculo nos enchia da falsa inocência, de comportamentos irresponsáveis, brinquedinhos
e distrações. O ódio medra nesse play ground sinistro. Quem entra em parafuso é
o retrato da ingenuidade perigosa e obsessiva: camisa branca apertada no
colarinho, gravata, óculos, cabelo cadete, olhar duro. Ele se sente apoiado
pela ira justa, pois vê seu país tomado pelos estrangeiros e pelo privilégio de
quem jamais defendeu a América (velhos milionários jogadores de golfe, cirurgiões
plásticos morando em mansões, bandidinhos pé de chinelo tacando o terror na
cidade).
Mas quando a ira justa ultrapassa o limite (como a lei ou
a ética) torna-se indigna. A indignação então vira ódio, caso de polícia. Quem
contrai a doença política do ódio sente-se traído e vai à forra. O problema é
que a violência, no cercadinho do individualismo, é como uma perigosa doença
infantil. Vimos isso todos os dias nas ruas das grandes cidades, nos tiroteios
contra estudantes, nas balas perdidas, na transgressão pura e simples. Estamos
condenados e só o amadurecimento poderá apontar alguma saída.