O PORTAL ÚMIDO
Nei Duclós
Talvez pintem outras idéias
e o quarto se reacenda
e voltem meus companheiros
e a terra ainda me entenda
e o campo seja colheita
e o mar início da veia
e o sol me reconheça
como amigo verdadeiro
e que eu retome a batalha
nesta arapuca de espelhos
e de miragem, apenas
o que de fato não queira
Talvez pintem outras verdades
e um clima de terra alheia
novos poemas, o óbvio
de uma canção de fronteira
(Do livro "No Mar, Veremos", Ed. Globo, 2001)
Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
24 de agosto de 2003
21 de agosto de 2003
20 de agosto de 2003
Primeiro, incorporar. Depois, reescrever, reescrever.
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19 de agosto de 2003
SERGIO VIEIRA DE MELLO
SERGIO VIEIRA DE MELLO
(1948-2003)
O Brasil perde seu maior estadista
Ninguém ficou sabendo, claro, a não ser meia dúzia de pessoas, mas eu lancei Sergio Vieira de Mello para a presidência do Brasil no auge da campanha do ano passado. Cheguei até a fazer um cartaz, para surpresa dos que me rodeavam. “Ah, aquele da ONU”, diziam. Eu estava já convencido em votar no Lula, mas desconfiava que Lula não tinha o estofo de estadista de Vieira de Mello, um especialista em conflitos e o mais brilhante brasileiro da minha geração. Nesta altura das trapalhadas do governo Lula, a perda de Vieira de Mello na guerra estúpida inventada pelo Bush é mais do que uma tragédia, é uma revelação.
Por acaso vocês viram, antes da sua morte, alguma vez na televisão uma entrevista com Vieira de Mello? Mas com o pessoal do Karametade, viram, pois não? Já leram alguma vez o Vieira de Mello falando sobre o Brasil na imprensa brasileira? Mas sobra entrevista com as nulidades de plantão. Pois agora perdemos nosso grande estadista, o brilhante diplomata cheio de coragem, doutor em filosofia pela Sorbonne, que soube reiventar o Timor Leste do nada. Agora é a hora de cobrir os espaços da mídia com sua biografia, já que nossa imprensa é incapaz de reconhecer seus maiores contemporâneos e só descobre a verdadeira grandeza depois que a perdemos.
Vieira de Mello era meu candidato à presidência em 2006. Perdemos mais esta. Para a brutalidade de Bush e para a violência do Oriente Médio, que só acabará quando erradicarem o petróleo do topo da lista de prioridades energéticas.
A seriedade, coragem e inteligência de Sergio Vieira de Mello são fontes permanentes de inspiração para nós, que aqui ficamos. Ele era o Brasil que precisamos ser. Foi-se no auge da sua vida e deixa no mundo a imagem de seriedade que nós podemos ter na comunidade internacional.
É hora de abraçar as pessoas que realmente contam, dar-lhes crédito e não deixá-los ir sem que saibam o quanto os admiramos.
Agora, dou crédito ao Jamil Chade, da Agência Estado, transcrevendo sua reportagem quando Vieira de Mello deixou tinindo o Timor Leste:
Diplomata preparou
Timor para novo país
Brasileiro Sérgio Vieira de Mello atuou dois anos e meio como o chefe da missão das Nações Unidas
Jamil Chade
Agência Estado
No último dia 20, o Timor Leste se tornou o mais novo país do mundo. Para muitos diplomatas e funcionários da ONU, um dos principais responsáveis pela transição dos timorenses para a independência foi o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que por dois anos e meio atuou como o chefe da missão das Nações Unidas no Timor.
"Sérgio Vieira de Mello não foi apenas o governo do Timor por mais de dois anos. Foi ele quem conseguiu estabelecer as regras para a formação do novo governo, conseguiu a confiança da comunidade internacional e comandou um dos maiores sucessos da ONU nos últimos anos", afirma um assessor das Nações Unidas no Timor. Com a independência do país, Sérgio Vieira de Mello foi substituído pelo diplomata indiano Kamalesh Sharma, que terá a função de, nos próximos 12 meses, ajudar a nova administração do Timor a operar.
Críticas
Uma das críticas à atuação da ONU era de que a organização estaria deixando o Timor na condição de um dos dez países mais pobres do mundo, com um PIB per capta de somente US$ 478 por ano, expectativa de vida de apenas 57 anos e com metade da população vivendo com menos de US$ 0,55 por dia. As Nações Unidas, porém, afirmam que o mérito do brasileiro não foi no campo econômico, mas no fato de ter transformado um país arrasado pela guerra em um local onde a cada dia o poder Judiciário e a democracia se fortalecem.
"Em 1999, 400 mil timorenses deixaram o território fugindo da violência. A população que ficou se refugiou nas montanhas. Hoje, começamos a ver uma sociedade civil se organizando, uma polícia civil, um parlamento e uma constituição aprovada", afirma um de seus ex-colaboradores. Para outro funcionário da ONU no Timor, viver hoje em Díli (capital do novo país) pode ser mais seguro que morar em uma cidade brasileira.
A missão de Vieira de Mello teve como objetivo organizar a população e os líderes locais para a criação de um Estado.
Problemas humanitários
não foram solucionados
Sérgio Vieira de Mello, conhecido no meio diplomático pelo seu conhecimento sobre filosofia clássica, foi o responsável por estabelecer ministérios, programas para ajudar a população a votar, incentivar debates políticos e coordenar a segurança militar do novo país.
Para agravar ainda mais a situação, era exigido do diplomata que atendesse os pedidos dos vários grupos do território, entre eles a minoria muçulmana. "Vieira de Mello teve a possibilidade de construir um país", afirmou seu ex-colaborador.
Os problemas que o brasileiro enfrentou, porém, não foram apenas internos. O diplomata, que por muito tempo atuou ao lado do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, foi obrigado a praticamente formular a política externa do Timor. De um lado, necessitava manter boas relações com a Indonésia, antiga inimiga, mas responsável por grande parte do fluxo de comércio do novo país. Do outro lado, Vieira de Mello teve que negociar um acordo de exploração do petróleo do Mar do Timor com os australianos, que há vinte anos estavam na região.
Refugiados
Os problemas humanitários do Timor, porém, não foram todos solucionados com a administração de Sérgio Vieira de Mello. Ainda existem mais de 50 mil refugiados timorenses na Indonésia, que fugiram de suas casas em 1999 temendo a violência das milícias armadas. "Mais da metade possivelmente nunca mais voltará à sua região", reconhece um assessor do Alto Comissariado da ONU para Refugiados.
Para que o novo governo de Xanana Gusmão possa começar a funcionar, a comunidade internacional continuará apoiando o Timor. Para os próximos três anos, o Timor contará com US$ 440 milhões que serão destinados a uma estratégia para reduzir a pobreza, melhorar a educação e o acesso à saúde por parte da população.
Enfim, Sérgio Vieira de Mello termina seu mandato com uma das melhores reputações entre os funcionários da ONU e já está sendo cotado para ocupar o cargo de Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos, no segundo semestre do ano. "Ele deu um toque brasileiro à ONU e à forma de atuação da comunidade internacional. Só mesmo um brasileiro, com o sentido de tolerância, poderia ter sido indicado para esse cargo", completou um funcionário da ONU em Genebra. (JC)
(1948-2003)
O Brasil perde seu maior estadista
Ninguém ficou sabendo, claro, a não ser meia dúzia de pessoas, mas eu lancei Sergio Vieira de Mello para a presidência do Brasil no auge da campanha do ano passado. Cheguei até a fazer um cartaz, para surpresa dos que me rodeavam. “Ah, aquele da ONU”, diziam. Eu estava já convencido em votar no Lula, mas desconfiava que Lula não tinha o estofo de estadista de Vieira de Mello, um especialista em conflitos e o mais brilhante brasileiro da minha geração. Nesta altura das trapalhadas do governo Lula, a perda de Vieira de Mello na guerra estúpida inventada pelo Bush é mais do que uma tragédia, é uma revelação.
Por acaso vocês viram, antes da sua morte, alguma vez na televisão uma entrevista com Vieira de Mello? Mas com o pessoal do Karametade, viram, pois não? Já leram alguma vez o Vieira de Mello falando sobre o Brasil na imprensa brasileira? Mas sobra entrevista com as nulidades de plantão. Pois agora perdemos nosso grande estadista, o brilhante diplomata cheio de coragem, doutor em filosofia pela Sorbonne, que soube reiventar o Timor Leste do nada. Agora é a hora de cobrir os espaços da mídia com sua biografia, já que nossa imprensa é incapaz de reconhecer seus maiores contemporâneos e só descobre a verdadeira grandeza depois que a perdemos.
Vieira de Mello era meu candidato à presidência em 2006. Perdemos mais esta. Para a brutalidade de Bush e para a violência do Oriente Médio, que só acabará quando erradicarem o petróleo do topo da lista de prioridades energéticas.
A seriedade, coragem e inteligência de Sergio Vieira de Mello são fontes permanentes de inspiração para nós, que aqui ficamos. Ele era o Brasil que precisamos ser. Foi-se no auge da sua vida e deixa no mundo a imagem de seriedade que nós podemos ter na comunidade internacional.
É hora de abraçar as pessoas que realmente contam, dar-lhes crédito e não deixá-los ir sem que saibam o quanto os admiramos.
Agora, dou crédito ao Jamil Chade, da Agência Estado, transcrevendo sua reportagem quando Vieira de Mello deixou tinindo o Timor Leste:
Diplomata preparou
Timor para novo país
Brasileiro Sérgio Vieira de Mello atuou dois anos e meio como o chefe da missão das Nações Unidas
Jamil Chade
Agência Estado
No último dia 20, o Timor Leste se tornou o mais novo país do mundo. Para muitos diplomatas e funcionários da ONU, um dos principais responsáveis pela transição dos timorenses para a independência foi o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que por dois anos e meio atuou como o chefe da missão das Nações Unidas no Timor.
"Sérgio Vieira de Mello não foi apenas o governo do Timor por mais de dois anos. Foi ele quem conseguiu estabelecer as regras para a formação do novo governo, conseguiu a confiança da comunidade internacional e comandou um dos maiores sucessos da ONU nos últimos anos", afirma um assessor das Nações Unidas no Timor. Com a independência do país, Sérgio Vieira de Mello foi substituído pelo diplomata indiano Kamalesh Sharma, que terá a função de, nos próximos 12 meses, ajudar a nova administração do Timor a operar.
Críticas
Uma das críticas à atuação da ONU era de que a organização estaria deixando o Timor na condição de um dos dez países mais pobres do mundo, com um PIB per capta de somente US$ 478 por ano, expectativa de vida de apenas 57 anos e com metade da população vivendo com menos de US$ 0,55 por dia. As Nações Unidas, porém, afirmam que o mérito do brasileiro não foi no campo econômico, mas no fato de ter transformado um país arrasado pela guerra em um local onde a cada dia o poder Judiciário e a democracia se fortalecem.
"Em 1999, 400 mil timorenses deixaram o território fugindo da violência. A população que ficou se refugiou nas montanhas. Hoje, começamos a ver uma sociedade civil se organizando, uma polícia civil, um parlamento e uma constituição aprovada", afirma um de seus ex-colaboradores. Para outro funcionário da ONU no Timor, viver hoje em Díli (capital do novo país) pode ser mais seguro que morar em uma cidade brasileira.
A missão de Vieira de Mello teve como objetivo organizar a população e os líderes locais para a criação de um Estado.
Problemas humanitários
não foram solucionados
Sérgio Vieira de Mello, conhecido no meio diplomático pelo seu conhecimento sobre filosofia clássica, foi o responsável por estabelecer ministérios, programas para ajudar a população a votar, incentivar debates políticos e coordenar a segurança militar do novo país.
Para agravar ainda mais a situação, era exigido do diplomata que atendesse os pedidos dos vários grupos do território, entre eles a minoria muçulmana. "Vieira de Mello teve a possibilidade de construir um país", afirmou seu ex-colaborador.
Os problemas que o brasileiro enfrentou, porém, não foram apenas internos. O diplomata, que por muito tempo atuou ao lado do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, foi obrigado a praticamente formular a política externa do Timor. De um lado, necessitava manter boas relações com a Indonésia, antiga inimiga, mas responsável por grande parte do fluxo de comércio do novo país. Do outro lado, Vieira de Mello teve que negociar um acordo de exploração do petróleo do Mar do Timor com os australianos, que há vinte anos estavam na região.
Refugiados
Os problemas humanitários do Timor, porém, não foram todos solucionados com a administração de Sérgio Vieira de Mello. Ainda existem mais de 50 mil refugiados timorenses na Indonésia, que fugiram de suas casas em 1999 temendo a violência das milícias armadas. "Mais da metade possivelmente nunca mais voltará à sua região", reconhece um assessor do Alto Comissariado da ONU para Refugiados.
Para que o novo governo de Xanana Gusmão possa começar a funcionar, a comunidade internacional continuará apoiando o Timor. Para os próximos três anos, o Timor contará com US$ 440 milhões que serão destinados a uma estratégia para reduzir a pobreza, melhorar a educação e o acesso à saúde por parte da população.
Enfim, Sérgio Vieira de Mello termina seu mandato com uma das melhores reputações entre os funcionários da ONU e já está sendo cotado para ocupar o cargo de Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos, no segundo semestre do ano. "Ele deu um toque brasileiro à ONU e à forma de atuação da comunidade internacional. Só mesmo um brasileiro, com o sentido de tolerância, poderia ter sido indicado para esse cargo", completou um funcionário da ONU em Genebra. (JC)
18 de agosto de 2003
A PLENOS PULMÕES
Transcrevo aqui um trecho magistral do poema de Maiakovski, poeta insuperável da revolução russa, numa tradução primorosa de Haroldo de Campos. Leia até o fim, vale a pena. Especialmente quando ele fala: "No túmulo dos livros,/ versos como ossos,/ se estas estrofes de aço/ acaso descobrirdes,/ vós as respeitareis,/ como quem vê destroços/ de um arsenal antigo,/ mas terrível." Maiakoviski foi o poeta que nos jogou em praça pública em 1969. Na versão abaixo, fiz pequenas modificações, já que convivo há tanto tempo com este poema que me dei a liberdade.
A PLENOS PULMÕES
(Primeira Introdução ao Poema)
Vladimir Maiakovski
Caros camaradas futuros!
Revolvendo a merda fóssil
de agora,pesquisando
estes dias escuros,talvez
perguntareis por mim.
Ora,começará vosso homem de ciência,
afagando os porquês
num banho de sabença,
conta-se que outrora
um férvido cantor
a água sem fervura
combateu com fervor(1).
Professor, jogue fora
suas lentes de arame!
A mim cabe falar
de mim
de minha era.
Eu, incinerador,
eu sanitarista,
a revolução
me convoca e me alista.
Troco pelo front
a horticultura airosa
da poesia
fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim virgem
vargem
sombra
alfombra.
"É assim o jardim de jasmim,
o jardim de jasmim do alfenim."
Este verte versos feito regador,
aquele os baba, boca em babador,
bonifrates encapelados,
descabelados vates
entendê-los,
ao diabo!, quem há-de...
Quarentena é inútil contra eles
mandolinam por detrás das paredes:
"Ta-ran-tin, ta-ran-tin,
ta-ran-ten-n-n..."
Triste honra,
se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
escarra a tuberculose;
putas e rufiões
numa ronda de sífilis.
Também a mim
a propaganda
cansa,
é tão fácil
alinhavar
romanças,
Mas eu
me dominava
entretanto
e pisava
a garganta do meu canto.
Escutai, camaradas futuros,
o agitador, o cáustico caudilho,
o extintor dos melífluos enxurros:
por cima dos opúsculos líricos,
eu vos falo como um vivo aos vivos.
Chego a vós, à Comuna distante,
não como Iessiênin,
guitarriarcaico.
Mas através dos séculos em arco
sobre os poetas
e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
não como a seta
lírico-amável,
que persegue a caça.
Nem como
ao numismata
a moeda gasta,
nem como a luz
das estrelas decrépitas.
Meu verso
com suor
rompe a mole dos anos,
e assoma
a olho nu,
palpável,
bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
mas terrível.
Ao ouvido
não diz
blandícias
minha voz;
lóbulos de donzelas
de cachos e bandós
não faço enrubescer
com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
tropas em parada,
e passo em revista
o front das palavras.
Estrofes estacam
chumbo-severas,
prontas para o triunfo
ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
as maiúsculas
abertas.
Ei-la,
a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
alerta para a luta.
Rimas em riste,
sofreando o entusiasmo,
eriça
suas lanças agudas.
E todo
este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
não batido,
eu vos dôo,
proletários do planeta,
cada folha
até a última letra.
O inimigo
da colossal
classe obreira,
é também
meu inimigo
mortal.
Anos de servidão e de miséria
comandavam
nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
volume após volume,
janelas de nossa casa
abertas amplamente,
mas ainda sem ler
saberíamos o rumo!
onde combater,
de que lado, em que frente.
Dialética,
não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
ao fragor das batalhas,
quando, sob o nosso projétil,
debandava o burguês
que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada,
glória
se arraste
após os gênios,
melancólica.
Morre, meu verso,
como um soldado
anônimo
na lufada do assalto.
Cuspo
sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória,
entre nós todos,
o comum monumento:
o socialismo,
forjado na refrega
e no fogo.
Vindouros,
varejai vossos léxicos:
do Letes
brotam letras como lixo:
"tuberculose",
"bloqueio",
"meretrício".
Por vós,
geração de saudáveis,
um poeta,
com a língua dos cartazes,
lambeu
os escarros da tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora
um monstro,
antediluviano.
Camarada vida,
vamos, para diante,
galopemos
pelo qüinqüênio afora(2).
Os versos para mim
não deram rublos,
nem mobílias
de madeiras caras.
Uma camisa
lavada e clara,
e basta,
para mim é tudo.
Ao Comitê Central
do futuro ofuscante,
sobre a malta
dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.
RETORNO - O poema foi escrito entre dezembro 1929/janeiro 1930. Notas: 1. Maiakóvski escreveu versos de propaganda sanitária. 2. Alusão aos Planos Qüinqüenais soviéticos. (Tradução e notas de Haroldo de Campos). Do livro "Maiakovski - Poemas"/Editora Perspectiva, 1982.
17 de agosto de 2003
DOIS POETAS
“Horizonte de esgrimas”, de Mario Chamie (à esq.) e “O Mundo como Idéia”, de Bruno Tolentino são livros dos dois mais importantes poetas do Brasil. Há outros poetas, também fundamentais, o que seria desnecessário citar, mas a confusão crítica é tanta que deve-se colocar tudo preto no branco: Ferreira Gullar, Hilda Hilst. Prefiro Chamie e Tolentino pelo que conseguem construir, pela proposta das suas intervenções.
São diferentes um do outro, claro. Chamie é o poeta de poetas, o inventor de uma rede, o compositor de inovações que se estendem ao infinito, sem jamais demonstrar cansaço. Chamie é alquimia, Tolentino é arquitetura. Chamie é um processo, Tolentino é uma Obra, a mais bem sucedida por conseguir tornar-se próxima da própria ambição.
Tolentino construiu um castelo, Chamie uma cidade. Para habitar Tolentino, só com brasões herdados ou fazendo uma visita de turista. O detalhe é que o anfitrião jamais aparece. Ele se recolhe nas passagens secretas da sua torre e lá comporta-se muito mal, como um ogro condenado à forca. Chamie criou uma infra-estrutura, estendeu ruas, calçadas e pontes e administra sua urbis com o dedo em riste. Você cruza Chamie, e fala com ele, e de lá sai transformado.
Chamie é mestre de Avis, o burguês que virou rei, Tolentino é Dom Sebastião, o rei que virou mito e jamais aparece, mas deixa atrás de si uma coleção de monumentos imaginários. Em Chamie, percorremos uma avenida de atrações e caímos na tentação da poesia graças à sua oficina exposta em vitrines claras.
Dois impérios, um industrial e outro pertencente à arte da cavalaria, estocam a poesia brasileira derramada em milhões de poetas anônimos.
16 de agosto de 2003
MANHÃ
MANHÃ
Nei Duclós
Depois de limpar os pés
no portal da aurora
a noite se recolhe
É quando a manhã nasce
para ver-me forte
Acordo a casa, abro a porta
e a brisa vem bater na carne clara
da mulher que eu gosto
deitada em paz e glória
Tenho o que sonhei
e custou-me caro
esta firmeza de me tornar belo
A espera curvou levemente as costas
mas um forte azul
coloriu-me os olhos
A tristeza se foi
como um parente chato
que abandona o quarto dos hóspedes
E é no amanhecer
que tudo isso enxergo:
o lençol manchado de amor
e o barulho dos meus versos
nas folhas do caderno
(Do livro Outubro, IEL/RS-A Nação, 1976)
Nei Duclós
Depois de limpar os pés
no portal da aurora
a noite se recolhe
É quando a manhã nasce
para ver-me forte
Acordo a casa, abro a porta
e a brisa vem bater na carne clara
da mulher que eu gosto
deitada em paz e glória
Tenho o que sonhei
e custou-me caro
esta firmeza de me tornar belo
A espera curvou levemente as costas
mas um forte azul
coloriu-me os olhos
A tristeza se foi
como um parente chato
que abandona o quarto dos hóspedes
E é no amanhecer
que tudo isso enxergo:
o lençol manchado de amor
e o barulho dos meus versos
nas folhas do caderno
(Do livro Outubro, IEL/RS-A Nação, 1976)
A ZERO HORA
A ZERO HORA
A moda pegou: a Zero Hora é o único jornal com nome feminino que tem um artigo o na frente. Todo mundo agora está falando o Zero Hora, o que é errado. Ninguém diz o Folha ou o Tribuna ou o Gazeta. Nestes casos, todo mundo fala certo: concordam o nome feminino com o artigo a. É a Folha, a Triibuna , a Gazeta. Por que não a Zero Hora?
A culpa é do maldito o, de Zero. Estima-se que deve-se concordar com Zero, o que é um eqúivoco, já que, como se dizia a Ultima Hora, diz-se também a Zero Hora, ou a Hora Zero.
O nome do jornal, traduzindo, é a Primeira Hora, ou a Hora Zero. É uma coisa tão simples que qualquer vendedor de jornal do Rio Grande do Sul berra corretamente: olhaaa aaaa Zeeero Hooora!
O Zero surgiu quando a Zero deixou de ser conhecida apenas no Rio Grande do Sul e virou referência nacional, especialmente depois da passagem do Augusto Nunes por lá. Já escrevi para um monte de gente para alertar sobre isso, mas ninguém dá bola. E continuam falando o Zero. Então, tá.
A moda pegou: a Zero Hora é o único jornal com nome feminino que tem um artigo o na frente. Todo mundo agora está falando o Zero Hora, o que é errado. Ninguém diz o Folha ou o Tribuna ou o Gazeta. Nestes casos, todo mundo fala certo: concordam o nome feminino com o artigo a. É a Folha, a Triibuna , a Gazeta. Por que não a Zero Hora?
A culpa é do maldito o, de Zero. Estima-se que deve-se concordar com Zero, o que é um eqúivoco, já que, como se dizia a Ultima Hora, diz-se também a Zero Hora, ou a Hora Zero.
O nome do jornal, traduzindo, é a Primeira Hora, ou a Hora Zero. É uma coisa tão simples que qualquer vendedor de jornal do Rio Grande do Sul berra corretamente: olhaaa aaaa Zeeero Hooora!
O Zero surgiu quando a Zero deixou de ser conhecida apenas no Rio Grande do Sul e virou referência nacional, especialmente depois da passagem do Augusto Nunes por lá. Já escrevi para um monte de gente para alertar sobre isso, mas ninguém dá bola. E continuam falando o Zero. Então, tá.
15 de agosto de 2003
O JURAMENTO
O JURAMENTO
O título do terceiro filme de Sean Penn foi traduzido para A Promessa, mas o mais adequado é O Juramento. O detetive interpretado por Jack Nicholson jura pela salvação da sua alma que vai encontrar o assassino de uma menina. A mãe o obriga a isso colocando nos seus olhos a cruz feita pela vítima. O juramento é a garantia de que uma possibilidade, a justa punição, seja concretizada. O jogo perigoso entre ficção e realidade costura o filme e surpreende o espectador, pois esta narrativa clássica da investigação de um crime, apesar de manter intactos todos os detalhes tradicionais, fustra todas as expectativas com um happy end pelo avesso.
O que é considerado realidade – a versão policial do crime – revela-se ficção. E o que é considerado fantasia – as pistas deixadas pela menina e a lógica do detetive – é a realidade que jamais emerge para a credibilidade. Enquanto a verdade é desviada do seu caminho, atropelada, incendidada e esfaqueada, a ficção goza de boa saúde. A fantasia – a verdade sobre o assassinato e as histórias infantis – estão confinadas no mundo dos velhos e das crianças. A exclusão pela faixa etária permite o acesso à impunidade. A verdadeira punição só é feita pelo Acaso, mas esse detalhe ofusca para sempre a verdade.
O resultado é a insanidade de quem apostou sua vida na investigação correta. Por isso o filme não faz brincadeira com ninguém. Baseado em Fury, filme de 1936 de Fritz Lang sobre linchamento, Penn recria a cena das galinhas – que no filme de Lang remete à reprodução em massa da versão errada – colocando no lugar uma criação de perus – que além de um resgate visual da homenagem revela a disponibilidae das criaturas para o abate.
O detetive jura reverter esse quadro, impor a verdade como antídoto à injustiça – já que o suspeito é praticamente linchado na delegacia. Mas a ficção enraizada na certeza cômoda das instituições exclui investigador e vítimas para o limbo da falta de juízo.
O título do terceiro filme de Sean Penn foi traduzido para A Promessa, mas o mais adequado é O Juramento. O detetive interpretado por Jack Nicholson jura pela salvação da sua alma que vai encontrar o assassino de uma menina. A mãe o obriga a isso colocando nos seus olhos a cruz feita pela vítima. O juramento é a garantia de que uma possibilidade, a justa punição, seja concretizada. O jogo perigoso entre ficção e realidade costura o filme e surpreende o espectador, pois esta narrativa clássica da investigação de um crime, apesar de manter intactos todos os detalhes tradicionais, fustra todas as expectativas com um happy end pelo avesso.
O que é considerado realidade – a versão policial do crime – revela-se ficção. E o que é considerado fantasia – as pistas deixadas pela menina e a lógica do detetive – é a realidade que jamais emerge para a credibilidade. Enquanto a verdade é desviada do seu caminho, atropelada, incendidada e esfaqueada, a ficção goza de boa saúde. A fantasia – a verdade sobre o assassinato e as histórias infantis – estão confinadas no mundo dos velhos e das crianças. A exclusão pela faixa etária permite o acesso à impunidade. A verdadeira punição só é feita pelo Acaso, mas esse detalhe ofusca para sempre a verdade.
O resultado é a insanidade de quem apostou sua vida na investigação correta. Por isso o filme não faz brincadeira com ninguém. Baseado em Fury, filme de 1936 de Fritz Lang sobre linchamento, Penn recria a cena das galinhas – que no filme de Lang remete à reprodução em massa da versão errada – colocando no lugar uma criação de perus – que além de um resgate visual da homenagem revela a disponibilidae das criaturas para o abate.
O detetive jura reverter esse quadro, impor a verdade como antídoto à injustiça – já que o suspeito é praticamente linchado na delegacia. Mas a ficção enraizada na certeza cômoda das instituições exclui investigador e vítimas para o limbo da falta de juízo.
PRAÇA DOS SONHOS
PRAÇA DOS SONHOS
Nei Duclós
Fabrício Carpinejar, que tem uns 30 anos, já é nome de prêmio na sua cidade, São Leopoldo. O Lindolf Bell, que conheci em 1971 em Blumenau, quando participei do lançamento do Jornal de Santa Catarina, é nome de espaço cultural. Luis de Miranda, poeta conterrâneo e vulgo Libisca, pode ser patrono da próxima Feira do Livro de Porto Alegre. Tabajara Ruas, que me deu o privilégio de ler em primeira mão, ainda datilografados, seus primeiros romances, daqui a pouco ganha o Nobel. Caio Fernando Abreu, do qual guardo cartas magníficas (e que não foram publicadas ainda porque ninguém me perguntou se eu tinha), é ícone literário. Caco Barcellos, que conheço desde a época em que ele era repórter (e eu redator) da Folha da Manhã em 1975, em Portinho, e que cruzou comigo inúmeras vezes nas redações da vida, é quase Sir.
Só eu continuo no meu início. Ainda estou à cata de quem edite minha enorme gaveta. Procuro também novo emprego. Mas minha vingança é que meu desejo um dia vai se concretizar: quero ser praça. Ou praça, ou nada. Nela, meus amigos irão escutar os passarinhos no fim da tarde (pois os pássaros vão se refugiar lá, quando ainda houver fim de tarde). Vão namorar em algum banco, pegar sombra depois do almoço. Nela, meus filhos irão matar a saudade. Nessa praça, haverá quietude e ninguém será visto como mendigo. Estarei lá, em algum canteiro, arrancando erva daninha e cheirando flor. Não prometo plantar alguma coisa. Mas será praça com flora variada, porque nela todos sentirão vontade de adotar uma folha, uma pétala, uma fruta sem serventia.
Essa praça vai precisar de um coreto, que faça música em poucos dias do ano, para uma platéia atenta e mansa. Coreto colorido como os antigos enfeites de papel crepom que meu tio avô fazia para comprar cachaça. Ele enrolava o papel em arames fininhos, fazendo pequenas hastes-tubos e depois colava, com grude de farinha e água, devagarinho, levando a tarde toda, na borda dos porta-retratos que vendia por uma micharia. Depois ordenava:
- A Elvirinha gosta que se péla de uma cervejinha, mas não gelada. Vai lá no Mirotti comprar para o teu tio.
Minha irmã Elvira, que Deus a tenha, estava com uns nove anos naquela época e detestava ir no bolicho do Mirotti.
Na praça que levará meu nome, farei rodas de conversa em cadeira preguiçosa em noites de lua, com a Elvira, minha mãe e meu pai e tias, que já se foram, mas que estão sempre comigo. Também os futuros escritores farão suas visitas. Os pequerruchos (porque são crianças os futuros escritores) sentirão um perfume estranho no ar. O cheiro de uma antiga loucura, aquela que tinha sol nos sessenta, aquela que viu minha juventude nascer.
A praça com meu nome será abraçada pelos amigos de sempre. Caio, Gick (com tanta vida para tão poucos anos), Fortuna, Tarso. Aliás, vou apresentar o Tarso para meu pai. Eles vão dar boas gargalhadas.
Um dia viro praça. Só então serei eterno.
Nei Duclós
Fabrício Carpinejar, que tem uns 30 anos, já é nome de prêmio na sua cidade, São Leopoldo. O Lindolf Bell, que conheci em 1971 em Blumenau, quando participei do lançamento do Jornal de Santa Catarina, é nome de espaço cultural. Luis de Miranda, poeta conterrâneo e vulgo Libisca, pode ser patrono da próxima Feira do Livro de Porto Alegre. Tabajara Ruas, que me deu o privilégio de ler em primeira mão, ainda datilografados, seus primeiros romances, daqui a pouco ganha o Nobel. Caio Fernando Abreu, do qual guardo cartas magníficas (e que não foram publicadas ainda porque ninguém me perguntou se eu tinha), é ícone literário. Caco Barcellos, que conheço desde a época em que ele era repórter (e eu redator) da Folha da Manhã em 1975, em Portinho, e que cruzou comigo inúmeras vezes nas redações da vida, é quase Sir.
Só eu continuo no meu início. Ainda estou à cata de quem edite minha enorme gaveta. Procuro também novo emprego. Mas minha vingança é que meu desejo um dia vai se concretizar: quero ser praça. Ou praça, ou nada. Nela, meus amigos irão escutar os passarinhos no fim da tarde (pois os pássaros vão se refugiar lá, quando ainda houver fim de tarde). Vão namorar em algum banco, pegar sombra depois do almoço. Nela, meus filhos irão matar a saudade. Nessa praça, haverá quietude e ninguém será visto como mendigo. Estarei lá, em algum canteiro, arrancando erva daninha e cheirando flor. Não prometo plantar alguma coisa. Mas será praça com flora variada, porque nela todos sentirão vontade de adotar uma folha, uma pétala, uma fruta sem serventia.
Essa praça vai precisar de um coreto, que faça música em poucos dias do ano, para uma platéia atenta e mansa. Coreto colorido como os antigos enfeites de papel crepom que meu tio avô fazia para comprar cachaça. Ele enrolava o papel em arames fininhos, fazendo pequenas hastes-tubos e depois colava, com grude de farinha e água, devagarinho, levando a tarde toda, na borda dos porta-retratos que vendia por uma micharia. Depois ordenava:
- A Elvirinha gosta que se péla de uma cervejinha, mas não gelada. Vai lá no Mirotti comprar para o teu tio.
Minha irmã Elvira, que Deus a tenha, estava com uns nove anos naquela época e detestava ir no bolicho do Mirotti.
Na praça que levará meu nome, farei rodas de conversa em cadeira preguiçosa em noites de lua, com a Elvira, minha mãe e meu pai e tias, que já se foram, mas que estão sempre comigo. Também os futuros escritores farão suas visitas. Os pequerruchos (porque são crianças os futuros escritores) sentirão um perfume estranho no ar. O cheiro de uma antiga loucura, aquela que tinha sol nos sessenta, aquela que viu minha juventude nascer.
A praça com meu nome será abraçada pelos amigos de sempre. Caio, Gick (com tanta vida para tão poucos anos), Fortuna, Tarso. Aliás, vou apresentar o Tarso para meu pai. Eles vão dar boas gargalhadas.
Um dia viro praça. Só então serei eterno.
14 de agosto de 2003
TAÍ, PORTANTO
TAÍ, PORTANTO
Esse é o título de uma possível coluna sobre esportes. Notem: sempre dizem “Taí, portanto”, nas transmissões esportivas. Assim como esta expressão recorrente, há também duas manifestações sagradas. Uma é a pergunta “como é que é” e a outra a resposta “com certeza”.
- Como é que é essa coisa de ganhar medalha? Como é que é que você se sente? Como é que é estar aqui e não lá?
- Com certeza, mas com certeza mesmo eu tenho certeza que temos certeza.
É uma síndrome, uma espécie de doença coletiva que toma conta da nação apalermada.
Parece que o universo corre perigo e pode cair, descambar, perder seu prumo a qualquer momento se todos não disserem a cada segundo “com certeza”. Se é dito, então, o universo fica momentaneamente salvo. Mas dali a pouco...
Nunca houve tanto idiota falando tanto ao mesmo tempo. Como sou o rei do zap, passo em revista a quantidade de abobrinhas que são ditas em todos os canais, enquanto pessoas que realmente tem o que dizer jamais aparecem na televisão. O que existe na frente das câmeras, principalmente, são os comentadores oficiais, que tomam conta de todo o espaço e não deixam os fatos e as pessoas que importam aparecerem. A TV não convoca a inteligência.
Vocês, por exemplo, já viram uma vez sequer nos últimos anos, uma imagem atualizada do maior compositor do Brasil, Edu Lobo? Ele aparece em algum lugar cantando, falando sobre seu maravilhoso trabalho, tocando? Não, o que oferecem é esse tal de Daniel todo o santo dia. Vocês já viram o maior crítico do Brasil, Roberto Scharwz, autor de obras-primas como “Um Mestre na periferia do capitalismo”, falar em algum canal, mesmo alternativo? São só dois exemplos. Enquanto isso, sobram imbecilidades.
Esse é o título de uma possível coluna sobre esportes. Notem: sempre dizem “Taí, portanto”, nas transmissões esportivas. Assim como esta expressão recorrente, há também duas manifestações sagradas. Uma é a pergunta “como é que é” e a outra a resposta “com certeza”.
- Como é que é essa coisa de ganhar medalha? Como é que é que você se sente? Como é que é estar aqui e não lá?
- Com certeza, mas com certeza mesmo eu tenho certeza que temos certeza.
É uma síndrome, uma espécie de doença coletiva que toma conta da nação apalermada.
Parece que o universo corre perigo e pode cair, descambar, perder seu prumo a qualquer momento se todos não disserem a cada segundo “com certeza”. Se é dito, então, o universo fica momentaneamente salvo. Mas dali a pouco...
Nunca houve tanto idiota falando tanto ao mesmo tempo. Como sou o rei do zap, passo em revista a quantidade de abobrinhas que são ditas em todos os canais, enquanto pessoas que realmente tem o que dizer jamais aparecem na televisão. O que existe na frente das câmeras, principalmente, são os comentadores oficiais, que tomam conta de todo o espaço e não deixam os fatos e as pessoas que importam aparecerem. A TV não convoca a inteligência.
Vocês, por exemplo, já viram uma vez sequer nos últimos anos, uma imagem atualizada do maior compositor do Brasil, Edu Lobo? Ele aparece em algum lugar cantando, falando sobre seu maravilhoso trabalho, tocando? Não, o que oferecem é esse tal de Daniel todo o santo dia. Vocês já viram o maior crítico do Brasil, Roberto Scharwz, autor de obras-primas como “Um Mestre na periferia do capitalismo”, falar em algum canal, mesmo alternativo? São só dois exemplos. Enquanto isso, sobram imbecilidades.
12 de agosto de 2003
OTHON BASTOS
OTHON BASTOS
Nei Duclós
A elite gera seus clones para manter-se, e encontra farta matéria-prima do seu endêmico autoritarismo no povo brasileiro. Em Othon Bastos, o Brasil pobre e mestiço que assume o exercício da repressão e da intolerância costuma ser punido. O pé rapado que consegue, por meio da agiotagem e da crueldade, tornar-se proprietário de terras em São Bernardo, de Leon Hirzmann, fica só no meio do nada. O pai que interna o filho no manicômio público em O Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodansky, acaba o filme chorando ao lado do filho catatônico, destruído pelas internações e os falsos médicos. O cangaceiro Corisco, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, que quer matar o povo para privá-lo da fome, é dilacerado pela loucura da miséria e da dupla identidade.
Othon Bastos é, em A Hora Marcada, de Marcelo Taranto, o milionário que presta contas de suas falcatruas ao visitar o inferno. Othon Bastos é o Mal – o Brasil repressor e rico, em oposição ao Bem - o Brasil oprimido e pobre.
Ao contrário de Lima Duarte, que pune a ingenuidade popular por meio da caricatura - onde encarna o desprezo intelectual pelo que o povo deixa de fazer (Sassá Mutema, Zé Bigorna) -, Othon Bastos assume a natureza da opressão que garroteia o povo dentro do povo.
Othon Bastos é a alma dilacerada pela culpa por ter assumido o instrumento que faz doer, o martelo que fecha o caixão, a pá de cal. Seu desespero é a visão do Irremediável e sua atuação expõe o Mal por meio da consciência do espectador.
Lima Duarte é a consagração do que a elite precisa fazer, é a constatação do que o povo é, uma essência provisória tornada definitiva pela determinação do ator. Lima Duarte tem certeza que o povo nunca deixa de ser o que é, e que sua performance lança luz sobre essa maldição. É uma atuação sem esperança. O que faz é chumbar em praça pública o Zé das Couves que jamais deixa de lado o que determinaram para ele.
Já Othon Bastos, por escolher outro caminho da denúncia, arranca de si a transfiguração dos papéis, portanto sua superação. Seu Corisco enfrenta o espectador no que ele tem de falso, convoca o público (persona do povo que recria na tela) para uma guerra sem fim, em direção à maturidade da nação. Seu Senador Feitosa em Mauá, o Imperador e o Rei, de Sérgio Rezende, é o gesto amarrado vociferando contra a ação, é a âncora reacionária, é o fuzilamento do progresso. Seu pai repressor de O Bicho de Sete Cabeças é a tragédia das certezas.
Por isso Othon Bastos é o maior ator brasileiro de todos os tempos. Porque aponta para um futuro cravado de guerras intermináveis, mas necessárias, e por seu inconformismo diante da herança fechada de uma elite pequena, mas poderosa. Por isso Othon Bastos é insuperável e sua gana é a metralhadora que gira na nossa cabeça durante e depois de cada filme. Seu trabalho parece ser apenas talento, mas no fundo é missão e destino.
Nei Duclós
A elite gera seus clones para manter-se, e encontra farta matéria-prima do seu endêmico autoritarismo no povo brasileiro. Em Othon Bastos, o Brasil pobre e mestiço que assume o exercício da repressão e da intolerância costuma ser punido. O pé rapado que consegue, por meio da agiotagem e da crueldade, tornar-se proprietário de terras em São Bernardo, de Leon Hirzmann, fica só no meio do nada. O pai que interna o filho no manicômio público em O Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodansky, acaba o filme chorando ao lado do filho catatônico, destruído pelas internações e os falsos médicos. O cangaceiro Corisco, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, que quer matar o povo para privá-lo da fome, é dilacerado pela loucura da miséria e da dupla identidade.
Othon Bastos é, em A Hora Marcada, de Marcelo Taranto, o milionário que presta contas de suas falcatruas ao visitar o inferno. Othon Bastos é o Mal – o Brasil repressor e rico, em oposição ao Bem - o Brasil oprimido e pobre.
Ao contrário de Lima Duarte, que pune a ingenuidade popular por meio da caricatura - onde encarna o desprezo intelectual pelo que o povo deixa de fazer (Sassá Mutema, Zé Bigorna) -, Othon Bastos assume a natureza da opressão que garroteia o povo dentro do povo.
Othon Bastos é a alma dilacerada pela culpa por ter assumido o instrumento que faz doer, o martelo que fecha o caixão, a pá de cal. Seu desespero é a visão do Irremediável e sua atuação expõe o Mal por meio da consciência do espectador.
Lima Duarte é a consagração do que a elite precisa fazer, é a constatação do que o povo é, uma essência provisória tornada definitiva pela determinação do ator. Lima Duarte tem certeza que o povo nunca deixa de ser o que é, e que sua performance lança luz sobre essa maldição. É uma atuação sem esperança. O que faz é chumbar em praça pública o Zé das Couves que jamais deixa de lado o que determinaram para ele.
Já Othon Bastos, por escolher outro caminho da denúncia, arranca de si a transfiguração dos papéis, portanto sua superação. Seu Corisco enfrenta o espectador no que ele tem de falso, convoca o público (persona do povo que recria na tela) para uma guerra sem fim, em direção à maturidade da nação. Seu Senador Feitosa em Mauá, o Imperador e o Rei, de Sérgio Rezende, é o gesto amarrado vociferando contra a ação, é a âncora reacionária, é o fuzilamento do progresso. Seu pai repressor de O Bicho de Sete Cabeças é a tragédia das certezas.
Por isso Othon Bastos é o maior ator brasileiro de todos os tempos. Porque aponta para um futuro cravado de guerras intermináveis, mas necessárias, e por seu inconformismo diante da herança fechada de uma elite pequena, mas poderosa. Por isso Othon Bastos é insuperável e sua gana é a metralhadora que gira na nossa cabeça durante e depois de cada filme. Seu trabalho parece ser apenas talento, mas no fundo é missão e destino.
10 de agosto de 2003
ESQUINA
ESQUINA
Nei Duclós
Procuro alguma coisa bela
na rua que perdeu a alma
a lua, alguma coisa nova
Procuro alguma coisa séria
a prova de que estou na terra
a estrela que não for loucura
Procuro alimentar os olhos
com a luz que brota na calçada
na curva de uma esquina clara
Procuro aquilo que me espera
o corpo que recusa o escuro
a mão que enfim me desamarra
(Do Livro No Mar, Veremos, Ed. Globo, 2001)
Nei Duclós
Procuro alguma coisa bela
na rua que perdeu a alma
a lua, alguma coisa nova
Procuro alguma coisa séria
a prova de que estou na terra
a estrela que não for loucura
Procuro alimentar os olhos
com a luz que brota na calçada
na curva de uma esquina clara
Procuro aquilo que me espera
o corpo que recusa o escuro
a mão que enfim me desamarra
(Do Livro No Mar, Veremos, Ed. Globo, 2001)
A ANATOMIA EM HUDSON DE SOUZA
A ANATOMIA EM HUDSON DE SOUZA
Só hoje, domingo, dia 11/08, vi o VT da vitória do nosso medalha de ouro Hudson de Souza nos cinco mil metros. Tinha me chamado a atenção ( e me preocupado), quando assisti ao vivo sua esplêndida vitória nos 1.500 metros: na reta final, ao olhar para trás em direção ao seu mais próximo adversário, temi que perdesse preciosos centésimos de segundos com essa virada brusca de pescoço. Hoje notei (com atraso, já que sou um amador em esportes) que isso faz parte de sua perfomance, composta de uma série de procedimentos (palavra ótima, muito usada em vôos – “estamos iniciando nossos procedimentos de pouso”, avisa o comandante).
Além de olhar cada concorrente, para monitorá-los, ele olha no relógio para verificar seu ritmo o andamento da prova, e não se importa com a posição que ocupa antes do fim da penúltima volta. Nessa altura, ele carrega no passo e transforma-se, em segundos, num arranque digno dos cem metros rasos.
Baixo, muito magro, fino (se tivesse altura, poderia servir de modelo para uma pintura de Modigliani) ele cabe numa paródia de um verso de Maiakovski, que diz: “Em mim a anatomia ficou louca, sou todo coração”. Hudson é todo pulmão, que conta com a ajuda de pernas-palitos firmes, além de enormes pés que servem de pás de impulsão. O Brasil, com Hudson de Souza, cria uma tradição olímpica nas corridas de longa distância, já que manteve a escrita inaugurada pelo pioneiro Joaquim Cruz.
Só hoje, domingo, dia 11/08, vi o VT da vitória do nosso medalha de ouro Hudson de Souza nos cinco mil metros. Tinha me chamado a atenção ( e me preocupado), quando assisti ao vivo sua esplêndida vitória nos 1.500 metros: na reta final, ao olhar para trás em direção ao seu mais próximo adversário, temi que perdesse preciosos centésimos de segundos com essa virada brusca de pescoço. Hoje notei (com atraso, já que sou um amador em esportes) que isso faz parte de sua perfomance, composta de uma série de procedimentos (palavra ótima, muito usada em vôos – “estamos iniciando nossos procedimentos de pouso”, avisa o comandante).
Além de olhar cada concorrente, para monitorá-los, ele olha no relógio para verificar seu ritmo o andamento da prova, e não se importa com a posição que ocupa antes do fim da penúltima volta. Nessa altura, ele carrega no passo e transforma-se, em segundos, num arranque digno dos cem metros rasos.
Baixo, muito magro, fino (se tivesse altura, poderia servir de modelo para uma pintura de Modigliani) ele cabe numa paródia de um verso de Maiakovski, que diz: “Em mim a anatomia ficou louca, sou todo coração”. Hudson é todo pulmão, que conta com a ajuda de pernas-palitos firmes, além de enormes pés que servem de pás de impulsão. O Brasil, com Hudson de Souza, cria uma tradição olímpica nas corridas de longa distância, já que manteve a escrita inaugurada pelo pioneiro Joaquim Cruz.
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