"MIGUEL
DUCLÓS, MESTRE E AMIGO DE TODOS OS DIAS"
Depoimento de Marcos Cavutto
"Conheci o Miguel Duclós por volta de 1998, no canal
#filosofia do IRC na rede Brasnet. Naquele tempo, início da Internet, o IRC era
um dos principais recursos para conversas pela rede, e havia canais temáticos,
como filosofia, cinema, música. O #filosofia era praticamente o único que eu
frequentava, passava madrugadas inteiras em longas conversas com aquele pessoal,
a maioria uma molecada metida a intelectual, apenas alguns, como o Miguel,
intelectuais e filósofos de verdade. Aos poucos, o canal foi minguando e as
pessoas se dispersando, até só sobrar eu e ele, já não no canal #filosofia, mas
no #humanidades. Nestes quase vinte anos de conversas pela Internet, não faltou
assunto. O IRC acabou, pelo menos por aqui no Brasil, começaram as redes
sociais, primeiro Orkut, depois Facebook. Perdi o contato com todos, menos com
o Miguel, passávamos no máximo dois ou três dias sem trocar alguma mensagem,
este aqui foi nosso último diálogo:
***
Miguel:
opa lembra uma vez q
falamos do poema do Camões da vilania vencendo a honestidade e tal, será q era
esse?
https://lusografias.wordpress.com/2009/05/28/luis-de-camoes-desconcerto-do-mundo/
20 de outubro de 2015 15:45
Marcos:
É, esse mesmo. Síntese genial do portuga.
***
Nossos diálogos às vezes eram curtos, mas sempre
significativos.
O Miguel tinha uma inteligência aguda, profunda. Certas
vezes eu pensava: “Cheguei a uma conclusão profunda sobre tal coisa”, e ia lá
contar a ele, e ele sempre mostrava que minha conclusão profunda era, na
verdade, a superfície, lançando luz sobre a coisa de uma forma admirável. Eu
entendia o Miguel, e ele sabia disso, porque ele também me entendia, eu
consegui entrar e participar do seu Universo composto de filosofia, arte,
conhecimento, erudição, de tudo o que era belo, bom, verdadeiro, sublime e
profundo, a originalidade e a inteligência sempre encantaram mais o Miguel do
que o sentimentalismo, a arte fácil, a “modorra”, como ele gostava de dizer.
Influenciávamos um ao outro de uma maneira formidável, indicações de livros,
filmes, músicas, sempre vinham dos dois lados e sempre tínhamos combustível
permanente neste sentido. O último livro que li, Persépolis, de Marjane
Satrapi, foi indicação do Miguel. Lembro-me de sua música preferida, o segundo
movimento da sétima sinfonia de Beethoven, e de seu filme preferido também,
Morangos Silvestres, do Ingmar Bergman, ele me disse que havia mudado este há
algum tempo, mas não me disse qual era o novo eleito. Conversávamos sobre
qualquer assunto, inclusive os assuntos de homem, mas havia regras, o Miguel
detestava a deselegância, se alguém dizia algo muito tosco ou imoral, ele logo
repreendia ou simplesmente saia do canal, eu aprendi isso depressa, creio que
foi um dos motivos pelos quais ele me conservou como amigo até o fim.
Declarei no Facebook que o Miguel era meu melhor amigo. Pode
parecer estranho, afinal, como é que alguém tem um melhor amigo que mora a
centenas de quilômetros de distância? Alguém que sequer chegou a ver
pessoalmente? A explicação é que, se num dia qualquer, eu perguntasse ao
Miguel: “Você acha que, na questão da imortalidade da alma, tinha mais razão
Tomás de Aquino ou Duns Scott? ” Ele não apenas me respondia, mas adicionava
novas perspectivas à questão, citando outros filósofos, outras ideias. Não vou
conseguir este nível de diálogo com alguém tão cedo, talvez não consiga nunca
mais.
No ano de 2006, meu irmão, Milton Cavutto, faleceu sozinho
em seu apartamento na cidade de Santo André-SP, aos 44 anos de idade. As
amídalas sempre infeccionadas, desde criança, os médicos sempre recomendando
cirurgia, mas ele melhorava de repente e pensávamos que estava tudo bem, não
estava, a infecção aos poucos enfraqueceu o coração, até que parou de bater.
Conversei com o Miguel sobre ele, e que ele escrevia ocasionalmente, poesia e
prosa. Mandei-lhe uma poesia do Milton e ele de imediato publicou em seu blog,
está lá até hoje:
http://blog.cybershark.net/miguel/2009/09/09/caramujo-poema-inedito-de-milton-carvalho-cavutto/
Estranha coincidência, o Miguel acaba nos deixando em
circunstâncias parecidas. Vai fazer falta como faz falta um pai, não apenas um
amigo, porque ele nos guiava, nos direcionava para o que é bom, para o que é
certo, ele sabia o caminho.
***
“Quando este corpo corruptível estiver revestido da
incorruptibilidade, e quando este corpo mortal estiver revestido da imortalidade,
então se cumprirá a palavra da Escritura: A morte foi tragada pela vitória.
Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? ”
1 Coríntios 15:54,55"
MARCOS CAVUTTO
RETORNO - Texto originalmente publicado em http://oasisnet.blogspot.com.br/?m=1