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31 de dezembro de 2005
BUMBA MEU BOI DE MAMÃO
Estávamos perdidos, meu boi. Estávamos certos de que nada mais poderia nos atingir. Fomos testemunhas de ondas gigantes, massacres de todos os tipos, crueldades sem fim. Olhávamos o mundo já sem emoção, a não ser aquela preparada pelos narradores emplumados, investidos de bezerros de ouro. Mas eis que você morre e ressuscita na minha frente e desata essas figuras que deveriam já estar enterradas. Mas elas estão mais vivas do que em qualquer outro final de ano. (Crônica publicada hoje no caderno Donna DC, do Diário Catarinense.)
Nei Duclós
O boi desperta no Verão. Sua dança é a criatura liberta da canga, do rodeio, do laço, da vida determinada pelo destino. Ao vivo, salta sobre os espectadores. Avança e roda, porque extrapola e quer revanche pelo tempo que ficou absorto, imóvel, hibernando, sendo criado para a morte. Mas sua insurreição, feita desse pulo sobre a platéia, desse rodopio que dribla o jugo, precisa enfrentar os ciclos a que todos estão acostumados. Por isso cumpre sua sina e morre no meio do espetáculo, para desespero do narrador. Desta vez, não era para acontecer esse desenlace. Deveria sobreviver, já que do boi guardou apenas a memória, pano que não oferece carne, chifres sem faísca de perigo.
Ele cai no palco para que apareçam os urubus, que desistem, pois encontram fruta no lugar de sangue, ainda verde antes do maduro espanto. Longe do matadouro, sua morte é o desperdício de um sonho. A queda chama os ursos em preto e branco, representação do frio que esgotou a chance. O vaqueiro pede um doutor, que deve existir no meio do público. Longe do curral e das cercas, o boi é quase humano. É alegoria em busca de medicina, que o ressuscita, como se a ciência oculta em cada olhar tivesse poder de cura.
O boi então volta num pulo para que surjam os personagens dessa coreografia de temperatura cíclica, de altos e baixos. Entra em cena a Maricota, ultimato feminino aos homens que fogem do compromisso - no momento, a dança, mais tarde, o casamento. E a Bernúncia, o monstro que devora a infância, que só se manifesta quando sente a ameaça. Todos viram brincantes, para que não suma pela goela do bicho a natureza que nos fez crianças.
Descobrimos que o boi bate o bumbo no coração exausto de mundo. Ele gera vento enquanto passa e revela uma vida fora das caixas de vidro. Os aparelhos eletrônicos são o curral que aprisiona todas as paisagens. Acostumados a ver em casa, sob o comando de botões, o que é mostrado como compromisso comercial ou ideológico, a população desperta agora junto com o boi e lamenta ter ficado tanto tempo longe do que é simples (e por isso foi negado) e profundo (e por isso sempre sobe à tona).
A dança das bonecas altas de olhos arregalados e a liberdade assustadora do boi inundam o desespero de quem nunca consegue ver o que está sempre disponível. As pessoas se entregam porque são seduzidas pelo que dizem ser apenas uma brincadeira. Mas se alguém decidir chorar por ter sintonizado a lágrima no avanço do boi sobre o fim de tarde, é sinal que algo mudou para sempre. Que força é essa que sobe para a borda dos olhos como um mistério, essa falta de nome para o que deveria ser reconhecido num relance?
Estávamos perdidos, meu boi. Estávamos certos de que nada mais poderia nos atingir. Fomos testemunhas de ondas gigantes, massacres de todos os tipos, crueldades sem fim. Olhávamos o mundo já sem emoção, a não ser aquela preparada pelos narradores emplumados, investidos de bezerros de ouro. Mas eis que você morre e ressuscita na minha frente e desata essas figuras que deveriam já estar enterradas. Mas elas estão mais vivas do que em qualquer outro final de ano.
Sou de um tempo, meu boi, em que meu pai, no último dia de dezembro, quando a meia-noite aparecia como uma constelação de fogos, tirava o revólver da cintura e descarregava o tambor no céu. Ele está matando o ano velho, dizia eu. E todos riam.
O tempo estava matando o que deixamos para trás. Mas você veio, meu boi, e sem machucar ninguém, nem ameaçar, nos levou junto para essa corporificação que lava, que nos livra do Mal e nos joga no redemoinho do que sabemos ser vida, e que tantos poderes insistem em transformar no fim dos tempos.
Não há tempo final se você consegue reviver, meu boi. Não há dor que resista à tua dança. Por isso entro na roda, obediente ao teu exemplo, seguindo o clarão da voz de um narrador. Bumba meu boi de mamão. Que o Verão promete, e nossa determinação, cumpre.
RETORNO - 1. A foto de Anderson Petroceli nos revela a belíssima pintura de Fulvio Pennacchi no teto da Catedral Sant'Ana, de Uruguaiana. A imagem nada tem a ver com o tema da crônica, é apenas minnha vontade de postá-la, já que ela me viu menino e me ajudou a crescer.2. José Renato de Faria diz que a descrição do jogo de bulita no meu romance Universo Baldio, vale o livro. Walter Galvani promete encontro em breve, aqui no janeirão. Cicero Galeno Lopes diz que pode contar comigo sempre. Marlon Assef, em Livramento, num calor de 37 graus, manda felicitações de Ano Novo.Tabajara Ruias chega de Porto Alegre a sua casa na Lagoa. ERm Porto, ele acaba de filmar, a la John Houston (dirigindo a cavalo) seu novo filme "O General e o Negrinho". Miguel Ramos me liga para me incentivar a continuar escrevendo a comédia que prometi para ele.
30 de dezembro de 2005
MUDAMOS PARA SEMPRE
Faça o balanço: éramos uma nação insatisfeita em janeiro de 2005, hoje somos uma nação insurgente. Algo se rompeu dentro de nós e isso nos desamarrou. Num primeiro instante, nossos braços e pernas, soltos enfim dos nós que nos prendiam, imitam o movimento das marionetes. Jogamos para todo lado o corpo e as idéias em parafuso, até que num momento, acho que pela primavera, quando desceu a poeira das denúncias e nos vimos na mesma sinuca de sempre, a reflexão tomou conta de nós maneira poderosa.
ÁLIBI - Caíram por terra todos os poderes da República e seus instrumentos. Caiu a publicidade, álibi perfeito para a corrupção, caiu o discurso oficial, chantagem sobre as necessidades de mudança, caiu a máscara da direita, que quis se aproveitar da oportunidade para posar de vestal, caíram os ídolos, envolvidos até a medula com o esquema manipulador, caíram as crônicas, os autores, os pensadores, todos tentando tapar o sol com a peneira, sem ter o que dizer sobre o longo período anterior, enfim nu, em que ficaram ditando regras para nossa leitura admirada. Restou apenas um punhado de areia molhada no amanhecer, quando o mar, eterno, vem nos dizer que existe a tua alma, muito maior do que qualquer decepção. Então sabemos: o que fica é a manifestação do nosso espírito livre, semente de uma transformação que poderá levar gerações, mas que começa agora, neste 2005, quando mudamos para sempre.
VERÃO - Cidadãos que vivem onde o mar não banha chegam a Florianópolis com seus automóveis e ansiedade. O mar virou um luxo, atraindo multidões que vêm para cá gastar suas pequenas poupanças. Compatriotas cercados pelo pesadelo urbano dos ruídos e da loucura, da insegurança e da miséria, chegam exaustos e passeiam, ainda tomados pelos hábitos e ritmo que trazem das suas cidades, pela praia agora tomada pelos trabalhadores do Brasil soberano, pessoas a que chamam de turistas. Não vejo turistas, vejo brasileiros usufruindo legitimamente o próprio território que lhe é tomado a maior parte do ano. As televisões se exaurem de fazer a reportagem, sempre a mesma, de quanto cada um vai gastar nas biroscas que o acolhem com quinquilharias e na esperta indústria hoteleira. Os preços despertam e as ruas ficam tomadas pelo trem formado por tanto carro. É como enchente: todo ano tem, e o poder público é sempre surpreendido. Imaginem se nevasse. Puxa, nevou, que tragédia. Pois existe a temporada de verão, em que o Brasil despenca para suas origens, a praia. Pouco se faz para receber essa maré, a não ser arapucas. Há também obras, tardias, que ajudam a piorar o caos. Mas pelo menos há obras, alguns remendos, outros nem tanto. A nação insurgente banha-se no mar. Algo se partiu dentro de todos.
APROPRIAÇÃO - Sem liberdade de expressão, as falas perdem o poder. Para compensar, todos se voltam contra todos. Notem que toda frase começa com um não. Você fala qualquer coisa e o interlocutor aparta com uma negativa, mesmo que esteja concordando. É o vício das falas despossuídas, em que a pessoa precisa se apropriar da fala alheia para poder se sentir vivo. Por esse motivo existe tanta falta de entendimento. A pessoa não compreende o que houve? Não, ela simplesmente interrompe o outro para poder dominar a conversa. Ouvir é submeter-se e isso não funciona num país de escravos, onde todo mundo é senhor. Mas este ano encontramos o caminho para nos libertar dos grilhões. E esse rumo começa na linguagem, na fala sintonizada com o Outro, no verbo que encarna o Brasil soberano.
CRISTAL - Parece que há algo semi-enterrado na areia. Empunhamos esse achado com ambas as mãos. É um cristal, que a luz cruza em mil nuances. O pipocar de cores toma conta do nosso corpo. Somos pegadas de um novo tempo. O amor cabe em cada rastro, como a luva imita o aceno. O sonho aporta tocando fanfarra.
RETORNO- 1. A foto de minha neta Maria Clara na praia de Ingleses, em Floripa, é a melhor mensagem de Ano Novo que posso desejar aos leitores do Diário da Fonte. 2. O título do livro de Luiz de Miranda, "Nunca mais seremos os mesmos", define 2005, o ano em que a obra foi lançada.
27 de dezembro de 2005
O QUE É DEMOCRACIA?
Democracia é a imposição, sem o uso da força, da vontade de um grupo, minoritário ou não, sobre outro, que lhe faz oposição (minorias têm vez nas democracias). Numa democracia, existe o voto vencido, que pode migrar, com o tempo, para um ou outro grupo. Ditadura é o oposto: é eliminar o conflito exigindo o consenso, ou seja, é desmoralizar a vontade alheia obrigando-a a virar a casaca. É exigir silêncio ou arrancar a confissão de quem não está pensando diferente. É obrigar Galileu a assumir a crença na terra fixa. É não ceder espaço para a diversidade.
MENTIR - É o que faz a ditadura civil brasileira: toma conta de tudo, para poder roubar o tempo todo. E cuida para que o imaginário social se estabeleça com parâmetros idênticos para todos, por meio da repressão, da televisão e do discurso oficial. Tanto faz lei ou voto, o que importa é mentir que todos pensam da mesma forma e querem isso mesmo, ou seja, merda em pó engarrafada servida aos potes para uma população em estado letal permanente. Minta que a pobreza diminuiu, minta que vamos crescer em 2006, minta que a corrupção só existiu neste governo, minta que você deseja consumidores que apreciem com moderação. Minta como Goebbels, que ensinou que assim é que se fabrica a verdade. E fuja da democracia, esse estado de eterna negociação, de vitórias e derrotas, de oposições, de idas e vindas, altos e baixos.
MESMICE - Democracia é trabalhar o movimento e não sentar em cima do caos e batizar a mesmice de ordem. Não há democracia no Brasil porque tudo fica como está e o discurso de encarrega de tomar conta de tudo. O proprietário da maior rede de televisão é também proprietário de um dos maiores jornais. O monopólio se estende agora ao cinema. As falas do povo são reduzidas a pó. Parecemos, se formos acreditar na TV, uma nação de idiotas. O rescaldo disso é o ressentimento dos indivíduos, os despossuídos de voz que acabam implodindo em opiniões cultivadas na solidão, na falta de repercussão para o que dizem. Um dos espetáculos mais tristes é ver os velhos fazendo discurso nos ônibus. Vidas inteiras no ostracismo explodem na terceira idade, para o divertimento de quem assiste ao espetáculo deprimente.
LIGADO - Entre a juventude, a disseminação da gíria acabou gerando as conversas mentalmente prejudicadas. O vocabulário foi reduzido ao mínimo, exatamente para dar espaço ao que é formatado pelos poderes. Há insurgência contra isso, mas no geral é que a maioria está ligada no erro, ta ligado? Há também algumas interjeições cool acompanhadas por leve sacudir de cabelos. Nesse círculo também medra a opinião pseudo independente, mas que no fundo está totalmente contaminada pelo sucateamento da educação, a arrogância e o passo duro e firme em direção ao nada. O normal, na meninada, é a violência. O cumprimento diz tudo: no lugar do aperto de mão ou do abraço, é a vez dos tapas e socos, que nada mais são do que a representação do espírito belicoso imposto pelo mundo transformado em mercadoria, e gerenciado pela ditadura civil.
SAIAM! - Democracia seria derrotar os monopolistas com todas as letras e vozes e votos, impor nossa vontade contra esse grupo que tomou conta do país. Para isso é preciso confrontá-los. Dizer: você não é um estadista, você não passa de um sujeito que vive se sacudindo pelo mundo, achando que nos representa. Saiam dos plenos poderes, fora com seus comerciais pornográficos, suas carinhas lambidas, suas viagens milionárias, suas prisões infectas, seus julgadores vestidos de preto, suas risadas canalhas diante da miséria de todos, seus subornos viabilizados por estatísticas. Queremos democracia, queremos impor nossa vontade e não concordar com a sacanagem que vocês armaram dentro da cabeça dos brasileiros.
RETORNO - A imagem é o quadro de Fulvio Pennacchi, o mais brasileiro dos toscanos, intitulado "Jogando futebol na praia". Há sempre uma obra do grande muralista, escultor e pintor para acompanhar qualquer assunto importante.
26 de dezembro de 2005
OS MELHORES DE 2005
O prestigiado ranking anual do DF divulga mais uma edição dos destaques do Brasil Soberano. Procurei fazer como nos outros veículos: fui o mais tendencioso possível. Mas como sabemos que a exclusão oficial dos nomes talentosos costuma ser um bom parâmetro, nosso cânone tem muito mais chances de fazer justiça do que os outros. Vamos à lista, no maior número de atividades possível.
LIVROS
O LIVRO DO ANO - Tarso de Castro - 75 kg de músculos e fúria (Editora Planeta), de Tom Cardoso. Pelo resgate de uma personalidade que tentaram erradicar da memória nacional, pela qualidade da pesquisa e do texto, pelo impacto no público e na imprensa e por desmascarar os que se apropriaram do trabalho do jornalista que mudou a imprensa brasileira.
ROMANCE - Quando alegre partiste (Editora Francis), de Moacir Japiassu. O terceiro romance do Mestre passou intacto (mas não será por muito tempo) pelos polpudos prêmios distribuídos a torto e a direito e brilha numa seleta constelação das jóias da literatura brasileira.
BIOGRAFIA - Minha razão de viver (Editora Planeta), de Augusto Nunes , edição ampliada do grande texto sobre Samuel Wainer, narrado na primeira pessoa pelo protagonista. Augusto Nunes é primus inter pares e a trajetória que recria do grande jornalista merece estar na estante de todos os brasileiros.
LIVRO DE POEMAS ESTRANGEIRO - Folhas de relva, de Walt Whitman (Iluminuras), edição bilíngüe, tradução de Rodrigo Garcia Lopes. Os 150 anos do livro de nossas vidas é comemorado com caprichada edição e nos devolve o que a América tem de melhor.
ROMANCE ESTRANGEIRO - Shosha, (Editora Francis) de Isaac B. Singer, tradução de José Rubens Siqueira. Escrito em 1978, quando o autor ganhou o Nobel, e lançado este ano no Brasil, este romance é um marco pela composição magistral da trajetória de um escritor cercado pela guerra e torna-se inesquecível pela redenção que o próprio Singer encarna ao mergulhar em todas as tragédias humanas.
LIVRO DE CONTOS - A viagem (Editora Movimento), de Cícero Galeno Lopes. A excelência do ofício expressa as falas ocultas de um povo apresentado sem caricatura e dentro de uma linhagem de verdadeira renovação da linguagem literária, aliada à consciência plena de um professor e teórico.
LIVRO DE POEMAS BRASILEIRO - Nunca mais seremos os mesmos, de Luiz de Miranda. Aos 60 anos, o Poeta publica a saga de sua geração, no miolo de uma obra reconhecida pelos maiores escritores da língua, enquanto aguarda a sua obrigatória indicação para a Academia Brasileira de Letras.
PROMESSA - Eduardo Frizzo, jovem escritor gaúcho, que definiu sua primeira obra com o tom carregado de reflexão e metáforas. O título, magnífico, ainda não pode ser divulgado, pois seu trabalho está concorrendo a importante prêmio literário. Daniel Duclós, com seus contos sobre o mundo corporativo e monstros variados, também está pronto para estrear em livro em 2006.
ANTOLOGIA - A terra dos longos olhares (Editora Holoedro), organizada pela professora Lucia Silva e Silva. Por revelar dezenas de autores, por costurar um perfil de identidade e estranhamento em território conflagrado. Destaque para o conto Passagem, de autoria de Vera Molina, em que a criação e o sangue digladiam numa família no funeral de uma dos personagens.
CRÔNICAS - O vôo da palavra (Editora Mediação), de Walter Galvani. Um curso sobre a arte de abordar assuntos variados, com o rigor de um profissional admirado pela contribuição à imprensa, um escritor consagrado e um inesquecível diretor de redação.
PERSONALIDADES
PERSONALIDADE DO ANO - Jary Cardoso. O grande jornalista cultural emerge da sombra como o anjo da guarda do livro do filho Tom sobre Tarso de Castro e lança luzes sobre sua biografia permeada pela luta de quase quarenta anos.
AGITADOR CULTURAL - Marco Celso Viola. O Grande Poeta Oculto, à frente do Instituto Machado de Assis, repõe a História do movimento literário da época mais dura da ditadura e gera uma série de eventos sobre poesia, além de manter programa cultural em rádio comunitária de Porto Alegre.
IMPRENSA IMPRESSA
REVISTA - Carta Capital, de Mino Carta. Remando contra a corrente, Carta Capital foi o contraponto da fúria que tomou conta da mídia, subitamente despertada para a corrupção e totalmente sintonizada com o espírito revanchista. Pode-se discordar da revista, mas não da sua contribuição ao debate.
JORNAL - Folha de S. Paulo. Sempre há o que ler na Folha, que aposta na diversidade de enfoques e opiniões e ainda mantém vivo o espírito das grandes reportagens, apesar das limitações para esse tipo de trabalho fundamental do jornalismo..
EQUIPE DE REPORTAGEM DE JORNAL - De O Globo, com destaque para José Casado, com sua reportagem reveladora sobre os bastidores da fundação do PT
EQUIPE DE REPORTAGEM DE REVISTA - A da revista Empreendedor, de Florianópolis: Fabio Meyer, Wendel Martins, Alexsandro Vanin, Sara Caprario e Carol Herling trabalham os assuntos de maneira independente e conseguem influir na pauta dos grandes veículos especialmente ao cobrir com antecedência as tendências das franquias e da tecnologia da informação aplicada aos negócios. Destaque para a edição de arte de Gustavo Cabral, que alcançou a excelência visual numa publicação que já existe há 11 anos e foi criada e é dirigida pelo jornalista Acari Amorim.
CRONISTA - Ferreira Gullar, da Folha de São Paulo. As crônicas do Poeta colocam na mídia o que o Brasil tem de mais significativo na cultura e na memória dos últimos 50 anos.
CADERNO CULTURAL - Mais!, da Folha. Imbatível sob todos os aspectos, Mais! é totalmente obrigatório, e, parafraseando Woody Allen sobre a revista New Yorker, é preciso ler inteiro senão provoca culpa.
EDITOR DE CULTURA - Dorva Rezende, do Diário Catarinense. Talento de uma nova geração sufocada, Dorva é mestrando em Teoria Literária da UFSC e segura um espaço nobre que aborda os mais variados aspectos da cultura universal, num caderno editado com o espírito livre.
COBERTURA CULTURAL - Centenário de Érico Veríssimo, da Zero Hora. A série de edições sobre o maior escritor do Rio Grande do Sul é um banho de informação e de atualização sobre uma obra eterna que marcou para sempre a literatura brasileira.
REPÓRTER DE ECONOMIA - Sandra Balbi. A veterana repórter dá banho de informação nas suas matérias na Folha, com um texto limpo e atraente e sem ir a reboque do que os poderes definem sobre a economia do país.
SÉRIE DE COMPORTAMENTO - A da última página do Diário Catarinense, editado por Cláudio Thomas, que destaca personagens inesquecíveis de Santa Catarina.
CONTRIBUIÇÃO À MÍDIA - Caderno Aliás, de O Estado de São Paulo. Num universo em que o espaço para textos mais aprofundados encolhe cada vez mais, sob o pretexto de que não há anunciantes para esse tipo de abordagem, o Aliás entrou com tudo na concorrência e deixa sua marca com artigos, reportagens e entrevistas importantes e colaboradores do primeiro time.
JORNAL CULTURAL - Rascunho, de Curitiba, editado por Rogério Pereira. Um assombro no país ágrafo, os quatro cadernos mensais de Rascunho é uma avalanche que soterra a indiferença que toma conta do noticiário sobre autores e livros.
JORNAL ALTERNATIVO - Zero, do Curso de Jornalismo da Ufsc. A cobertura sobre as manifestaçõies de rua em Florianópolis, revelando líderes e organizações, é o destaque deste jornal mensal editado pelos alunos e professores da excelente unidade universitária dedicada à formação de profissionais da imprensa.
INTERNET
CRONISTA: Urariano Mota. O romancista maior não pega leve quando aborda imprensa e cultura nas suas colunas do La Insígnia e do Observatório da Imprensa.
REVISTA CULTURAL - Sagarana. Editada em italiano pelo escritor brasileiro Julio César Monteiro Martins, é imbatível pelo acervo, pelas revelações, pela seleção de autores, pelo design e pela edição. No site da Sagarana, que inclui também informações sobre a escola de narrativa do mesmo nome, destaque para o espaço Il Direttore, que anuncia o lançamento na Itália este ano de Madrelingua, romance de Julio Cesar.
SITE - Consciencia.org, de Miguel Duclós (http://consciencia.org). Com quase cinco mil visitas diárias, Consciência é o mais importante espaço virtual de filosofia em língua portuguesa, com busca especializada (Argos), fórum de debates e revelação de autores em inúmeros artigos exclusivos. Seu prestígio conquistou leitores de todo o Brasil e cruzou o mar, arrancando elogios e leitores de Portugal e países africanos.
BLOG DO ANO - Diários de Pequim , de Sergio Caparelli. Um assombro visual e de conteúdo do escritor e professor, e uma viagem ao que a China tem de melhor.
SITE JORNALÍSTICO - Comunique-se. Atualizado diariamente, com colaboradores de primeiro time, Comunique-se cresce de importância a cada ano, tendo em 2005 amarrado o guizo no pescoço do dragão, com o debate provocado sobre o Jornal Nacional.
BLOG JORNALÍSTICO - Noblat. Pelo trabalho de disseminação da informação na fase braba das CPIs. Por furar o bloqueio da grande imprensa, que a partir dele teve que dar a mão à palmatória para a Internet.
BLOG SOBRE BLOGS - Código Aberto, de Carlos Castilho, no Observatório de Imprensa. Castilho, detentor de admirável currículo, coloca todo seu acervo e experiência a serviço da seriedade do novo instrumento da mídia.
CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO - Blog sobre o Curso de Letras, de Daniel Duclós, que colocou no ar suas anotações em aula, provocando grande impacto da faculdade onde estuda, na USP.
FOTOGRAFIA -
Fotogarrafa, de Marcelo Min. O olhar absoluto coloca a exclusão social na roda e revela a Sampa que todos fingem não ver.
Agência Espinha - Helcio Toth, o artista e Regina Agrella, autora da foto que abre este ranking, deslumbram com suas magníficas imagens.
Anderson Petroceli - O fotógrafo maior da fronteira.
TELEVISÃO
ATOR - Reginaldo Farias, em América. O impagável fazendeiro caipira, de golas pontudas, olhar arregalado e fala enrolada, foi a melhor criação num mar de obviedades que é a TV aberta brasileira.
ATRIZ - Nívea Maria. A viúva Mazé em América foi uma prova de humildade para a ex-estrela, que compareceu com todas as qualidades da mulher que coloca o amor acima de tudo e que ao entregar-se para a família consegue a sua libertação.
AUTOR - Aguinaldo Silva. Ao criar personagens marcantes para Senhora do Destino, como Giovanni Improtta, interpretado por José Wilker, e seguir à risca as regras do folhetim, Silva conseguiu desenvolver a trama sem cair em chatices ou improbabilidades, a não ser na fase em que foi obrigado a espichar a novela devido ao sucesso que fez.
PROGRAMA - A Grande Família. Criada por Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho nos anos 60, a série renovada acerta na mosca ao colocar a trama nos ombros de autores excelentes, na coerência das situações, no ritmo do texto e no andar dos personagens, que mostram um país que resiste com seu perfil próprio enquanto o mundo desaba com suas pseudo modernidades.
COBERTURA JORNALÍSTICA - TV Senado e TV Câmara, dois canais obrigatórios na maré alta das CPIs.
ESPORTES
JOGADOR DE FUTEBOL - Juninho Pernambucano. Um talento vigoroso que a partir do silêncio e da perfeição colocou-se no centro do drama e despontou como titular para a Copa de 2006.
CINEMA
Miguel Ramos: Os dois prêmios em Recife e em Gramado, por sua interpretação no filme O Cerro do Jarau, de Beto Souza, consagra o maior ator do Brasil.
25 de dezembro de 2005
AS PALAVRAS MUDAM DE SENTIDO
Gostam de chamar de polêmico o sujeito que é apenas canalha. É o caso do Maradona, que se orgulha de ter participado do doping descarado dos jogadores brasileiros numa partida decisiva da Copa do Mundo. Confessou esse crime publicamente, em meio às gargalhadas dos seus pares, alguns exemplares do que a Argentina possui de pior. Todos riam literalmente às bandeiras despregadas. Ficou por isso mesmo. Também se orgulha de ter ganho uma Copa fazendo um gol com a mão, e ainda colocando a culpa em Deus. Em nenhum momento Maradona é impedido de vir ao Brasil, tomar todas e continuar debochando. Milhares de pessoas passam pelo aeroporto Tom Jobim, no Rio; por que só a turminha do Maradona resolveu encher a paciência? Porque despreza o Brasil. Às vezes faz de conta que admira. É que as palavras perderam o sentido. Polêmico no lugar de canalha, e admiração no lugar de inveja e desprezo.
MEDIEVAIS - Fazer as palavras perderem o sentido faz parte do sistema de ditadura que domina o mundo. Nunca se falou tanto em democracia no Brasil quanto no tempo em que se fez o golpe de 64. Deram o golpe de estado para "salvar" a democracia. E dê-lhe democracia, enquanto os golpistas completam seus centenários montados no ouro e no poder. Mas há ainda nuances mais escondidas. Palavras que consolidaram seu sentido foram contestadas, mas continuam firmes querendo dizer o que sempre disseram. Medieval, por exemplo. É uma palavra que a historiografia já derrubou. Em primeiro lugar, é um anacronismo (olhar o passado com os olhos do presente). Como pode uma era ser intermediária entre uma e outra? Ficar bem no meio? Antonio Callado um dia debochou de um sub-romance em que um dos personagens dizia: "Nós, homens da Idade Média". Imaginemos o sujeito sabendo que viria outra época depois, e que ele estava bem situado no miolo entre o tempo antigo e a modernidade. Depois descobriram que a dita Idade Média teve tantas luzes quanto as outras. Não foi um tempo só de trevas, já que toda época tem sua especificidade e diversidade. Pois não é que acusam as pessoas de serem medievais quando querem atacá-las? Ou seja, a palavra perdeu o sentido, mas o hábito não abre mão do significado antigo. O sentido só muda se houver interesse, se o poder exigir dela que migre para outras paragens do entendimento.
NORMAL - Chega o verão e com ele o turismo sexual das celebridades. Chapéu enterrado fundo, óculos que cobrem toda a cara, boca mole cool (estão sempre sendo filmados, precisam fazer charme) eis os pagodeiros de araque chegando com seus milhões de euros, atrás das garotas que se oferecem na mídia, especialmente na TV e nas colunas sociais ou ditas jornalísticas. O mercado da carne é incentivado em todos os níveis. Normal, dizem, outra palavra que perdeu o sentido. Normal, hoje, é tudo aquilo que pode ser contestado de maneira explícita. Qualquer baixaria pode ser justificada com um afinal. "Ele chegou para engravidar a dançarina do Faustão". Normal, afinal... Outra palavra que ganhou novo sentido é diplomado. Viram a gracinha do episódio sobre os diplomados que estão na pior e fundam uma empresa de serviços gerais chamado Trampo? Foi ao ar pela Globo esses dias, e é protagonizada por Luana Piovani (atriz excelente quando tem diretor por perto, o que não é o caso que estamos citando) e outros. É uma desmoralização: o Brasil só serve para ser serviçal do resto do mundo. Nossos diplomados vão ciceronear a urna funerária de uma personalidade iraquiana, por exemplo. Servem para passear cachorrinho de madame. "Mas não é o que acontece?" poderão dizer, para justificar. A cultura e o entretenimento, num mundo transformado em mercadoria, não é inocente. A pirataria internacional, que sucateou o país subornando os anti-Brasil, precisa desmoralizar a soberania e a cidadania. Por isso cacifa esse tipo de programa.
GOZO - Liguem a televisão a qualquer hora do dia ou da noite: tem sempre uma brasileira gozando (na véspera de Natal, na novela Putíssima, foi a vez de Claudia Arraia e logo depois Carolina Ferraz ensaiarem o climax obedecendo ao fetichismo pornô-brega de se esfregar num mecânico sujo de graxa). Ela suspira, ela se retorce, ela fecha os olhinhos. É o orgasmo feminino (manipulando pelos eunucos que detém as rédeas da programação) transformado em produto de exportação. Venham comer as brasileiras, dizemos para o resto do mundo. Estão peladas na praia e querem trepar o tempo todo, como mostra a TV. Venham deixar seus euros e dólares para meia dúzia e umas merrecas para milhões de subempregados. Chamamos isso de divisas. Venha, Maradona, festejar com esse Zico, que tirou o Romário da Copa de 98, para que aquela final fosse um escândalo, em que nossos jogadores ficaram parados para que o Brasil se curvasse diante da Europa. Venha, Maradona, festejar com Zico, do Japão. Venha beber todas e quando for embora, carregado de mais grana, tente gozar com a cara dos brasileiros no aeroporto. Você é tão polêmico...
RETORNO - 1. Pode parecer inapropriado falar disso tudo em pleno Natal. Acho que não. Natal é uma palavra que foi bombardeada em todos os sentidos. Mas continua, como o dia em que podemos nos confraternizar. A festa, no entanto, é na véspera. Hoje é dia de luta. 2. Vocês viram o comercial em que uma dona de casa escuta do marido o nome do crediário de um banco e começa a se retorcer toda, a gozar e a gemer, pedindo que ele diga aquilo de novo? Nesse caso, crédito significa pau. É o que se pode concluir da propaganda. É tudo feito de propósito: os publicitários juram que as pessoas sérias não chegam ao orgasmo, então vendem gozo em troca de lucro. 3. Luana Piovani repetiu a bobagem de que "quem gosta de homem é gay, mulher gosta de dinheiro" (por coincidência, está namorando um milionário). Ou seja: só a moeda tem capacidade de reprodução. Não sabia dessa capacidade da bufunfa de fabricar esperma. 4. A foto é de Marcelo Min, o Olhar Absoluto. Min jamais descansa, jamais baixa a guarda.
23 de dezembro de 2005
UM CORREDOR DE BRINQUEDOS
Lembro de cenas quando ainda estava no colo, no cercadinho e no berço. Lembro de diálogos inteiros e ainda nem sabia falar. Acredito que o primeiro ano de vida tem dessas coisas: já estamos prontos, só falta o treinamento para falar e andar. Tudo o que existe e acontece não escapa ao olho clínico dos que ainda estão engatinhando. As recordações do berço são as mais mágicas. Meu irmão Luiz, Carlos, com apenas 13 meses a mais do que eu, me acordou para ver os brinquedos. Era um corredor, que ligava o quarto dos pais, onde eu dormia, e a sala. Lá estava aquele antigo pião que soltava um silvo quando rodopiava e era movido a pressão. Feito de metal, bastava socar o pino várias vezes para ele funcionar. Havia a bola de futebol, os pequenos caminhões e automóveis e mais coisas que não lembro. A criançada era imensa na minha casa, especialmente nessa época, em que os parentes vinham de Porto Alegre nos visitar e viravam nossa rotina para ar. Os quartos eram reservados para os casais que chegavam com malas e filhos, enquanto nos amontoávamos em todas as partes em colchões no chão. Toda minha infância foi assim. Mas o grande momento era a ceia na véspera de Natal, quando comíamos salada de fruta com guaraná e minha tia Sarinha tomava um pilequinho tradicional.
MANHÃ - Os brinquedos só eram distribuídos na madrugada, quando estávamos dormindo. Não havia essa facilidade de ser presenteado ainda na véspera. O importante era esperar o dia 25 que, se fosse domingo, era totalmente perfeito. Levantávamos com o coração na mão e víamos os pacotes embaixo da imensa árvore enfeitada. Entre os brinquedos inesquecíveis, um tanque de guerra movido a pilha que mostrava todas as luzes enquanto corria pelo piso de parquê, virando o canhão para os dois lados. Quando batia em algum obstáculo, voltava automaticamente. Luiz Carlos ganhou um trator, que fazia com que o motorista mexesse os braços quando havia alguma manobra.
GUERRA- Eu ainda vibrei com meu tanque por muitos anos, mas outros armamentos também me emocionaram, como arcos com flechas com borracha na ponta, que grudavam no alvo (e nas paredes, em qualquer lugar onde eu apontava). Especialmente a dupla de gigantescos revólveres que soltavam balas de plástico. Era acompanhados por portentoso cinturão, que me fazia me sentir como o próprio Roy Rogers, o mocinho de faroeste que aparecia em seu cavalo Trigger atrás de uma pedra branca exatamente no momento em que a diligência (com a mocinha dentro) era atacada pelos bandidos. Muita guerra na infância? Essa era a nossa brincadeira favorita. Nascemos perto demais da II Grande Guerra, da Guerra da Coréia, e os filmes só mostravam isso. Montávamos em cavalos imaginários e perseguíamos ladrões. Depois, quando vi High Noon, de Fred Z innemann, The searchers, de John Ford e toda a sangüinolenta obra de Sam Peckimpah, passando pelo exagero do faroeste italiano, vi que a imaginação incendiada da infância tinha se transformado em algo adulto, maior.
AVÓS - O Natal, data de felicidade e paz, era pautada pelo encontro da família dispersa por inúmeros tios, primas e sobrinhos. Não conheci meus avós, de nenhum lado da minha ascendência. Pouco se falava sobre eles. Meus pais, órfãos de pai muito cedo, encontraram, talvez, um no outro, o mesmo desamparo de uma infância complicada. Mas nos passaram um tempo de extrema alegria, com seus hábitos, seu espírito de anfitriões perfeitos, dedicados sempre à celebração nas datas importantes. O Ano Novo era uma algazarra só. Tinham, como as noites de São João, São Pedro e São Paulo, muita fogueira e buscapé e trovões de pólvora. Até hoje essas festas me fazem lembrar o que tivemos naquela época longínqua, espaço agora mítico em que vivíamos crianças num mundo dominado pelos adultos. Aos cinco anos, me contaram a verdade: Papai Noel não existia. Fiquei chocado, como todo mundo, mas me acostumei. Aguardava os presentes sabendo que eram eles, os pais, que nos presenteavam. Ficou a magia, a expectativa, a alegria na manhã maravilhosa.
MÚSICA - A memória é seletiva e devemos esquecer o que realmente nos incomodou. Especialmente as frustrações diante de presentes magros em época de penúria, brigas em noites de Natal, raras, mas existiram. O que fica são as intermináveis noites de verão na calçada, em que cada um de nós possuía a sua cadeira preguiçosa. Ficávamos vendo as estrelas, fixas ou cadentes, contando os satélites, grãos de luz que passavam céleres. O grande colégio Marista em frente estava vazio , pois os internos iam para suas casas, espalhadas por todo o Rio Grande, e os professores também escasseavam, pois a maioria era de outras cidades. Da esquina onde ficava nossa casa, víamos o entardecer, absolutamente maravilhoso e que só Anderson Petroceli hoje é capaz de não perder, com seu olho enfeitiçado. Depois, víamos a grande de lua de verão subir pela Rua Bento Martins, primeiro toda laranja, depois vestida de prata. Escutávamos música de todos os tipos. O piano popular de Liberace, que destrinchava peças clássicas; a pungência de Miguel Aceves Mejia; o baião de Luiz Gonzaga. Quando cheguei na bossa nova, já estava adulto. Já tinha me mudado para outra casa, longe dali.
PAZ - Chega de saudade, dizia a bossa nova. E lá fomos nós para o mundo, carregando a grandeza daqueles Natais que permanecem na memória como o presságio de que nesta vida é possível a felicidade, mesmo que nosso corpo não atingisse o parapeito da janela e nossos cabelos engomadinhos provocasse risos nas gurias moças. Éramos azougues, guris da fronteira, pessoas da cidade, que gostavam de cinema e automóvel e que, como eu, jamais montou em cavalo, a não ser uma vez. No fundo, ninguém sabe disso, mas eu fui Roy Rogers. Pena que jamais aprendi a cantar direito. Mas quando atiro, as balas ricocheteiam nas pedras. Entreguem os bandidos para o xerife, que a cidade precisa de paz na diferença.
RETORNO - 1. Leiam o belo conto de Alexandre Gonçalves, o colega da editora Empreendedor que revive a emoção dos Natais com seus avós. Jornalista e escritor, Alexandre representa a equipe que trabalha na editora, pessoas de muita luta, sérias e que dificilmente perdem o bom humor, mesmo quando a barra não anda lá essas coisas. O texto acima foi desencadeado pela leitura do conto de Alexandre (responsável pela valiosa informação de como publicar imagens neste blog)e é dedicado a todos que compartilham comigo a viagem do Diário da Fonte nestes anos duros, em que insistimos na esperança.
22 de dezembro de 2005
QUEM É O PODER?
O poder é aquele que manda matar. Os que eliminaram o prefeito Celso Daniel, mais todas as testemunhas importantes e ainda de lambuja, o médico legista que enxergou o que não deveria, são os que esfregam o poder na cara da imprensa, da Justiça e da opinião pública. Vi esses dias um técnico do Ibama dando entrevista sobre a extração e o comércio ilegal de madeira na Amazônia: ele olhava para baixo, pois sabe que se falar demais mandam matá-lo. Nas periferias, o tráfico manda porque pode acabar com qualquer um. Nos grotões, a palavra final é de quem tem o trabuco na mão. Não se trata do delinqüente que assalta para roubar, mas sim quem exerce o poder via criminalização da política e dos negócios. Eles tem o país na mão. Podem estar nos cargos públicos, nas corporações, no sistema financeiro, nas empreiteiras. Eles são o poder. E todo mundo caga miudinho diante deles.
MISTURA - É por isso que foi criada a cultura revolucionária, a que prega a luta armada para se contrapor a esse poder. Só que na atual fase do campeonato, essa cultura acabou se misturando com a bandidagem. Quando os militantes da guerrilha deram a dica para os presos na Ilha Grande nos anos 60 e 70, a idéia de Revolução via tomada violenta do poder abraçou-se aos assaltos comuns. Hoje tudo virou uma coisa só. Quem paga o pato é a população inerme (desarmada), vítima que pode ser comparada a um cachorro deitado sobre um jogo de xadrez cada vez mais complicado.
IMPRENSA - Tenho recebido retornos gratificantes. Mestre Moacir Japiassu faz, na sua obrigatória coluna no Comunique-se, elogiosa referência ao Outubro. A poesia de Talis Andrade visita o Diário da Fonte e costuma conversar comigo, também no Comunique-se, com a gentileza e a grandeza dos poetas. Eduardo Frizzo me envia seu livro inédito agradecendo a atenção que dediquei aos seus trabalhos já faz mais de ano. Daniel Luna pede licença, concedida, claro, de enviar seus poemas. Helcio Toth elogia o visual de Outubro, que está agora em nova fase, ilustrado. Marconi cita o DF como exemplo de jornalismo brasileiro com cara e coragem. Virson Holderbaum, o memorialista oculto, exige que o DF saia na mídia impressa, o que é alto elogio vindo de jornalista veterano que palmilha a profissão por décadas. Raquel, Regina Agrella,Fernando Soares Campos (colaborador o La Insignia), Marlon Assef e José Pires sempre dão sua valiosa contribuição nos comentários, que é o espaço nobre do DF. No blog do Noblat, faço campanha para que os comentaristas se identifiquem, pois se a cidadania se expressa por pseudônimos, então não existe oposição. E assim nos dirigimos para o final de ano e, naturalmente, para o celebrado ranking do DF. Vamos aguardar que o conselho está em reflexão. Enquanto isso, Urariano Motta destaca-se como o grande jornalista cultural do ano ao mergulhar em assuntos pontuais ou resgatados, como foi o caso do antológico texto sobre a imprensa alternativa da periferia do Recife, e analisando fatos candentes com sua costura de romancista maior. Tudo no La Insignia (link ao lado), espaço que Urariano escolheu para nos brindar com seus textos.
RETORNO - 1. Foto antológica de Hélcio Toth, o artista que as galerias deveriam convidar diariamente para expor seus trabalhos. Se você tomar um chope com Hélcio, será tratado como irmão, ou seja, ele é implicante o tempo todo. Mas se você olhar para as fotos que faz, então você fica em profundo silêncio reflexivo, ou salta da cadeira como Buñuel diante de Antônio das Mortes. 2. Aviso aos navegantes: meu e-mail nei@consciencia.org está com problemas de envio e recepção. Quem quiser me enviar mensagens, pode usar outros dois endereços: nei.duclos@diario.com.br ou nei@empreendedor.com.br
20 de dezembro de 2005
O EXERCÍCIO ILEGAL DO PATRONATO
As mudanças do mundo empresarial não chegaram à novela Belíssima, que é a reiteração, em todos os níveis, do falso direito que certas pessoas têm de escravizar as outras. Não há meritocracia, há brutalidade. O auto-retrato do autor é o personagem Gigi, que representa a idéia que Silvio Abreu tem do escritor. Chantageado, ele precisa escrever uma comédia para duas barangas, mas como não é do ramo, implora a ajuda dos seus ídolos, os grandes astros do cinema do passado. Não são os roteiristas a sua inspiração, mas os atores, dentro da lógica antes do Cahiers du Cinema de que os filmes eram feitos pelas estrelas. Ocupado em chupar os filmes antigos, que ele considera a nata da trama,o autor deixa o resto da história a cargo da sua percepção do mundo dos negócios. A vilã é Bia Assunção, interpretada por Fernanda Montenegro, que maneja as pessoas graças à sua influência e riqueza. A ascensão social não vem por merecimento, mas pelo casamento, caso do personagem André (Marcelo Anthony). Mas o exercício ilegal do velho patronato não se restringe à grande corporação, mas a todo o tecido social. Parece que os globais enxergam isso como denúncia, mas não é. É apenas a consolidação das leis do anti-trabalho.
ESCRAVOS - O tosco mecânico Pasqual (Giannechini, reproduzindo sua idéia do que é uma pessoa do povo) tem seu escravo, o Jamanta, encarregado do serviço pesado. Carolina Ferraz deita e rola sobre seus subordinados, exigindo silêncio com o dedinho na boca e submissão total. A patroa de Camila Pitanga aconselha a moça a dar o golpe do baú, sob pena de ficar lavando o chão para ela. Tony Ramos chama de patrãozinho o adolescente que foi adotado pela sua patroazinha, Claudia Abreu. Ornela, que paga garotos de programa, exige eficiência sexual do seu contratado e odeia que ele fale de seus problemas. Claudia Arraia, que como a maioria das mulheres da novela, tem sua sexualidade mal resolvida saindo pelo ladrão (o charme e o veneno da mulher do Brasil, o rabo do mundo), despreza o japonês seu ex-marido, de quem arranca uma grana para ser a reformuladora do seu sushi bar. As secretárias fazem parte dessa paisagem sinistra pré-capitalista e a toda hora são expulsas do recinto, assim como a empregada de Irene Ravache, que tenta dizer algo mas é sempre expulsa para a cozinha (a empregada também, como todas as outras, morre de tesão pelo mecânico, mas por condição social lhe cabe o Jamanta, já que seu objeto de desejo está sendo disputado pelas patroazinhas).
Assim, em cada cena, há a reiteração dos papéis sociais e econômicos na ditadura que nos governa. Para isso serve a novela da Globo, para manter acesa na população a chama da subserviência, a escrotidão das relações humanas, a exploração e a determinação de que, nesta vida, existem os protagonistas e os coadjuvantes, sistema importado do cinema americano, que expõe seus galãs como comedores do mundo, suas mulheres como paradigmas de virtude, e as mulheres do resto do mundo, francesas antes, hispânicas agora, como reles fêmeas à disposição do império. A novela brasileira é esse esquema imposto de manhã à noite. Começa com uma Dona Benta ranzinza e autoritária no execrável Sitio do Picapau Amarelo, crime cultural hediondo e termina com Bia Assunção deitando discurso contra as pessoas que ela considera pobres (a humanidade inteira, menos ela).
TRICOLOR - A televisão japonesa adora jogador europeu. Lembramos do Papin, do Barcelona (ou seria do Milan?), quando perdeu a Taça Toyota para o São Paulo nos anos 90. O coitado não se conformava em ser vice, paras desespero das câmaras japonesas, que passaram o jogo inteiro focando sua performance. Desta vez foi o close na boca cool de um jogador do Liverpool, que não entendia como perdeu o título para os macaquinhos. Na visão européia, somos um mato sem cachorro, não temos times grandes nem grandes estádios, nem tradição secular no futebol organizado. Exportamos favelados, na visão deles. Mas vejam Ronaldinho Gaúcho, desde criancinha aprendendo a dominar a bola e sendo agora duas vezes o melhor do mundo. Gostei do tricampeonato do tricolor paulista, um título merecido do futebol pentacampeão do mundo. Rogério Ceni é o modelo de craque: dedicado ao clube que ama, sai coberto de glória, para alegria do povo que resiste. Simpatizo com o São Paulo, pois todos os meus filhos são sãopaulinos. O daniduc, que veio passar alguns dias na praia, chegou bi e saiu trimundial, assim como Miguel, que cedo concentrou-se para o grande evento. O daniduc vestiu a camiseta do time para sofrer nos dois jogos e, junto com todos nós, se emocionar com a festa. São Paulo é o campeão de fato e o campeão moral.
RETORNO - 1. Foto estupenda de Regina Agrella, leitora assídua do Diário da Fonte e fotógrafa de primeiro time. 2. Deu no blog do Noblat: "A Fundação Osvaldo Cruz convocará entrevista coletiva para denunciar amanhã à tarde no Rio de Janeiro um duplo escândalo: * a organização não-governamental norte-americana Institutional Review Board, financiada pela Universidade da Flórida/Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos da América, usou moradores da comunidade ribeirinha de São Raimundo do Pirativa, no Amapá, como cobaias em pesquisa autorizada pelo Ministério da Saúde e realizada para capturar o mosquito transmissor da malária;* a versão em inglês do acordo firmado pela ong e a Fundação para a aplicação da pesquisa tem um trecho que não consta da versão em português. E o trecho autoriza a ong a usar pessoas não só para atrair o mosquito como para alimentá-lo com seu sangue." É como diz o Diário da Fonte: Brasil, o rabo do mundo.
19 de dezembro de 2005
FUNK, CAN-CAN E VELHAS PROFISSÕES
Mirar o rabo para a multidão, sacudindo decididamente os países baixos ao som do baticum funkeiro em direção a uma platéia apartada do sexo real (se não fosse, não pagaria pela festa para ter a ilusão do sexo disponível no palco) é negócio para velhas profissões, como a prostituição, a segunda mais antiga do mundo, pois a primeira (qual é?) forneceu os recursos para pagar pela primeira noitada. O funk ganhou status de cultura marginal de periferia, mas não passa do velho can-can, quando as mulheres mostravam o que existia embaixo da roupa e simulavam o ato sexual em forma de dança. Agora invade os bairros de classe média e está perdendo seu caráter mais radical, mas mantém a essência: a representação da censura ao sexo num país que finge gozar e que no fundo apenas expõe sua nudez para que outros usufruam do prazer.
PERVERSÃO - O efeito é devastador, mas como é apenas um sintoma não pode ser perseguido pelo moralismo fundamentalista. O que deve ser confrontado é a origem do evento: num país sem soberania, a população é treinada para expor suas partes pudendas para que o mundo se convença que estamos de pernas abertas, é só chegar e entrar. Não podemos ter, nesta atual fase da ditadura, o que qualquer nação dispõe: mulheres protegidas por leis e costumes. Quem quer isso? O negócio é faturar e, claro, fazer análises como a da Rede Record ontem no programa Domingo Espetacular, que perguntava se aquilo é perversão. Não é. Perversão é querer um país soberano.A reportagem da Record flagrou vários grupos de machos estrangeiros (nenhuma funkeira vinda de fora das fronteiras), como uruguaios e australianos, encantados com las chicas. É turismo sexual, tratado como fenômeno de comportamento.
MODA - Como virou moda, ninguém se pergunta o que significa simular a trepada publicamente, como sempre se fez nos velhos cabarés. A explicação normal é de que tudo isso não tem importância, que é assim mesmo, que o importante é se divertir, fazer exercício e tudo o mais. Parece que liberou geral, mas é o contrário. O sexo está vedado para quem paga para participar do baile funk. O abombado pode se esfregar um pouco, fazer trenzinho de bunda, fingir que é um grande comedor de puta, mas não passa de um infeliz. Sexo é de foro íntimo, e quando é exposto não passa de mercantilização. Romperam-se os limites entre o prostíbulo e os clubes para a juventude, pois os negociantes do ramo descobriram que difundir a putaria é lucro certo. Como não existem espaços gratuitos de lazer e esportes, com raras exceções, a meninada fica confinada em lugares artificiais, sendo tonteada pela barulheira eletrônica e pelas vozes estridentes da falta de talento.
Falam em letras mas não há letras, já que não há poesia. Melodia nem se fala: é sempre a mesma arenga. Uma das funkeiras diz que faz o que o povo gosta, que é letra de duplo sentido e com esse expediente foi até Paris. Certamente foi apresentada como a manifestação da brutalidade cultural do Brasil sucateado, mesmo não tendo nada a ver com isso, já que apenas aproveita as portas que lhe abrem (e as cantoras não estão enquadradas na categoria mais apelativa, o que fica a cargo das dançarinas) . O mundo consome nossas ruínas, devora nosso fígado. Na jequice atual do berreiro sem fim, quando aparece alguém capaz de trinar uma melodia é considerado gênio. Mas não é. Apenas se destaca num mar de absoluta mediocridade. Para termos gênios, precisávamos confrontar a origem política dessa situação. Peitar o poder, que nos corrompe.
AO ANDAR - A Grande Família, da Globo, é um sucesso e dizem que é pelo texto enxuto, pela fórmula, pelos grandes atores, pelo timing, montagem ou sei lá o quê. Acho que é pelo andar. Notem como a personagem Marilda anda. Ela usa o salto alto para arrebitar um pouco o traseiro e fazer pular o cabelo sempre mal produzido. A Nenê tem aquele passinho ao mesmo tempo decidido e submisso. Lineu abre os pés em dez para as duas para navegar a barriga. Tuco anda de maneira trôpega, representação da sua falta de independência econômica. Agostinho é o próprio Costinha, com o corpo sendo revirado em sentido oposto ao da cabeça. Andar é compor um personagem. Especialmente se o autor do andar é um ator como Marco Nanini, Pedro Cardoso, Marieta Severo etc. Eles trabalham o povo, de onde vieram. Seriam caricaturas se só houvesse esforço de interpretação. Mas há muito mais. Existe o passo do país que resiste.
16 de dezembro de 2005
ENTERREM A REVOLUÇÃO NA CURVA DO RIO
Linha Direta, um dos programas apelativos da Rede Globo, que costuma reportar o fato de Jordinelson ter feito picadinho de Rosicleide, é ancorado por Domingos Meirelles, apresentador que é o próprio Washington Luís no poder: pomposo e altaneiro, com uma voz de assustar as criancinhas. A identificação tem base na própria introdução do seu novo livro, "1930, os órfãos da revolução". Domingos Meirelles confessa que, em 1995, sentiu-se como Verdi depois de ter composto uma obra, aquela solidão, acrescento, dos gênios. Tinha acabado de escrever sua versão romanceada da coluna Prestes, "A noite das grandes fogueiras". Precisava continuar seu projeto. Pois Verdi, compositor favorito do presidente deposto em 1930, é quem abre o primeiro capítulo do livro. Ao longo de uma tonelada de papel, a obra é a reiteração da velha tese de que a revolução que inaugurou o Brasil Soberano foi um golpe de estado com todas as características sinistras que essa expressão exige.
HERANÇA - Por coincidência, o novo enterro do conceito de revolução para o movimento armado e popular de 1930, chega bem no momento em que Vargas começa a receber algum crédito pelo que fez ao Brasil. O fundamental é evitar que se use a moeda política Vargas e se faça bom proveito da moeda JK. Vargas, que arriscou a vida para transformar o Brasil, não pode. JK, que usou o que Vargas criou, esbagaçou a economia do país, entregando-a de mão beijada para a desestabilização e o golpe de 1964, pode (ou melhor, deve). Mas Vargas, em Meirelles, é o falso carismático. Se Vargas não tem carisma, então ninguém tem. O carisma do presidente extrapola o tempo e chega com força às portas de 2006, com um monte de gente reivindicando o seu legado. Até mesmo o catastrófico Lula. Quem sabe de Vargas é o povo. Façam um teste, perguntem a qualquer pessoa acima dos sessenta , qualquer um. Esses dias, um senhor se levantou no ônibus, quando chegamos ao terminal e encerrou a longa conversa que mantinha com seu companheiro de banco dizendo: "O que estamos precisando é de um Getúlio Vargas". Quem tem carisma, claro, é Meirelles, que toda quinta-feira aparece para explorar a miséria do Brasil destruído pela longa ditadura de 64.
INVENTÁRIO - Meirelles fez um exaustivo levantamento de todas as peripécias da revolução, gerando uma espécie de enciclopédia da ação que culminou com a vitória do movimento. Mas fazer o inventário da guerra nem sempre significa entender o processo histórico. A versão de que 1930 foi uma quartelada promovida por oligarquias insatisfeitas com o resultados das eleições é a tabula rasa de uma data que mudou o país. Como estamos em pleno processo de desconstrução do Brasil soberano, e para isso serve o braço poderoso da ditadura, a Rede Globo, esse é o momento de reforçar essa teoria tão cara aos historiadores brasileiros. Mas não basta a academia se manifestar contra 1930, é preciso que os jornalistas, investidos de historiadores, romanceiem os episódios, de olho em futuro aproveitamento dos seus textos no sistema do monopólio global.
DESTINO - A revolução de 1930 foi o desfecho de 41 anos de guerra. A República tornou-se, pelo voto de cabresto, uma ditadura anti-povo. O que houve em 1930 foi uma guerra que tirou o país do atraso agrário para transformá-lo numa nação industrial; tirou a cultura nacional das garras da colônia para que ela inventasse o próprio caminho; revelou sucessivas gerações de estadistas (basta citar Oswaldo Aranha, que foi secretário geral da ONU), escritores, sociólogos, historiadores, artistas, músicos, dramaturgos. Tudo isso foi desconstruído a partir de 1964, quando mergulhamos novamente na ditadura, já que o golpe de 64 foi o anti-1930. Considero 1930 a nossa Revolução Francesa. Mas ela nasceu junto com as versões que a negavam. É importante entender 1930 como o momento culminante da nação que lutou pelo seu destino.
RETORNO - A foto é do arquivo do CPDOC e mostra Oswaldo Aranha chegando vitorioso no Rio de Janeiro (a legenda pode ser vista colocando o cursor em cima da imagem). Num gesto de extrema coragem, ele tinha chegado antes das tropas para negociar, sozinho, o fim do regime. Ao seu lado, à direita, João de Deus Menna Barreto, de tradicional família militar, que morava num antigo casarão em frente à minha casa em Uruguaiana (hoje substituído por um edifício). O gesto do grande estadista, muito moço, saudando o povo que recebeu em delírio a revolução vitoriosa, é o símbolo desse grande evento que procuram enterrar na curva do rio. Para ler sobre a Era Vargas, nada melhor do que José Augusto Ribeiro.
14 de dezembro de 2005
MARIONETES DO RANCHO FUNDO
Os brasileiros que permanecem vivos são obrigados a fazer compras, com o dinheiro que lhes resta ou o crédito que ainda dispõem. Como somos um país gigantesco, com uma população ativa maior do que as de muitos países ricos, forçosamente o Brasil movimenta uma quantia considerável de grana. Claro que a maior parte do tesouro está sob a guarda das cinco mil famílias que dominam os recursos da economia de toda a sociedade. Espatifa-se em milhões de cidadãos o bolo que jamais cresceu, mas mesmo essas ruínas significam um nível considerável de bufunfa. Passando por cima de realidade tão cristalina, somos informados pelo porta-voz da ditadura, Alexandre Garcia, que neste fim de ano o varejo vai movimentar uns 80 bilhões de reais. Como pode ser notado em todas as suas aparições, desde a época em que a ditadura precisava dos militares, Alexandre Garcia não informa, adverte, e não opina, admoesta. E, quando necessário, celebra.
PERSONAGENS - Ele deu essa nota carregando nas sílabas escandidas, com aquele olhar que enlouqueceria Greta Garbo. Não esqueceu de premiar o pobrerio que compra com suas merrecas as lembrancinhas detonadas expostas em todas as lojas e ruas dos corredores liberados (espécie de zona franca do contrabando). Os pobres são elogiados por serem honestos, recebendo assim o incentivo para se gratificar pela extrema limitação econômica. O que vale são os princípios, certo? Desde que o grosso do dinheiro fique com meia dúzia. Para isso existe o porta-voz, que acredita assim estar manipulando uma população de Solineusas, a personagem símbolo interpretada por Dira Veras em A Diarista, que não tem controle sobre braços, mãos e cabeça, encarnando a marionete a que a cidadania está sujeita. Notem como outros personagens fazem a mesma coisa. O casal que apresenta as ofertas das Casas Bahia também deixa os braços, mãos e cabeça à solta, mostrando que os marionetes devem obedecer a seus donos, que ao manipular os cordões tornam as pessoas mais engraçadas e disponíveis. O Jamanta de Belíssima é a mesma coisa. Seus braços voam em todas as direções e também enlaçam a cabeça, onde se sobressai o olhar perdido da pessoa que não domina seu corpo e sua mente. O Brasil é uma população de Solineusas, as marionetes à mercê do olhar sampacu dos comentaristas, que douram a notícia para presente, onde o que conta é a embalagem, já que o conteúdo está podre.
ENCENAÇÃO - No fundo, por ser totalmente farta e disponível, a informação não vale mais nada. O que pega é como você a apresenta, como dá o recado usando a informação como escada. Estamos cercados pela seleção das versões, a hierarquia definida na hora de emitir a mensagem, o tom tendencioso, a opinião embutida ou às claras, o comentário sempre com as mesmas fontes, que em rodízio mantém no ar a representação determinada pelos poderes. O cenho franzido, o olhar penetrante, a maneira displicente de sentar no sofá e deitar o verbo sobre a política econômica, como se ele fosse um drink, um desjejum, e não um embrulho que nos colocam goela abaixo. Essa encenação tem um lugar reservado para você, que não se conforma ou desconfia que algo está errado. Você, nesse caso, não passa de um ressentido, de um pó-bre, enfim. Vejam como carregam na palavra pobre quando você está debatendo alguma coisa. Critique as festas e veja no que dá. Você, que é pobre, não sabe de nada. Comporte-se como um Homer Simpson, um Lineu, um Jeca Tatu. Essa é a representação que cabe aos que vivem no país soterrados numa tempestade de merda. E, claro, se você opinar, entra em contradição, pois não é isso o que você está criticando? Tsk, tsk, tsk, você não se emenda. Deixe a opinião para quem tem capital para isso.
JK - Você tem dinheiro, não tem? Não comprou o celular, o automóvel (em dez mil prestações), a Barbie chinesa? Não vive no shopping, seu pobre? Depois reclama do preço da gasolina. Seja como a Diarista, a falsa amiga de Solineusa. Ela sim é que conhece o seu lugar. Assume o papel da espertinha que jamais perde o humor mesmo se ralando o tempo todo. Sua esperteza é o antídoto para Solineusa. Seja vencedor, como Marinetti, e não perdedor, como a marionete. Finja que você domina o seu destino. Será incentivado pelo dragão que toma conta da sua casa, com seus apresentadores, seus pastores, seus atores e atrizes, seus noticiários, novelas e séries. E acredite que ressuscitar JK em janeiro é uma ação sem nenhum link com as eleições de 2006. A direita prepara um candidato. Precisa embalar com o papel de seda de um presidente do tempo do Brasil soberano. Vargas não serve, teve a audácia de gerar o jornalismo popular de Ultima Hora. JK é ótimo. O rei das empreiteiras, que endividou o país e colheu as benesses da Era Vargas, é perfeito. Mas talvez nem citem o fato de que a morte do presidente até hoje está sob suspeita de assassinato. Não, isso seria demais. Isso deixaria a nu o esquema que preparou o golpe da consolidação do regime de 64. Podem votar, mas não nos estadistas. Votem nos bonecos. Eles se balançam de maneira tão divertida!
RETORNO - A imagem é do meu pintor favorito, Fulvio Pennacchi: Retirantes.
11 de dezembro de 2005
O NOTICIÁRIO INDIFERENTE
Não entendo os jornais. "Bancos não temem queda de juros", diz um título do caderno Dinheiro da Folha, que explica: os bancos se defendem com a baba que extraem dos correntistas via sistema de crédito e não se abalam diante da prometida queda dos juros em 2006. É impressionante a indiferença da reportagem. Quem ganha mais dinheiro é banco. Como poderão temer algo? Cheira a sacanagem: parece que os juros vão mesmo baixar, sem atingir os bancos. Gostaria que me explicassem.
BC - Outra notícia fala que o presidente Lula não quer o Banco Central com tanta autonomia. Não sabia da tal autonomia. Para mim, o BC sempre obedeceu a quem está no poder. Também cheira a sacanagem: parece que Lula está preocupado com os arrochos decretados pelo Banco Central, como se o BC fosse algo fora de sua alçada, quando sabemos que o governo obedece aos ditames do sistema financeiro. Certamente são as eleições que se aproximam.
CARVÃO - Árvores do Pantanal estão virando carvão, diz a manchete do jornal, reproduzindo foto de um velho que confessa possuir apenas uma calça e uma camisa e vive com o pulmão cheio de fuligem na faina ingrata. Como se faz uma reportagem dessas sem chamar a polícia? Como se retrata um crime como se fosse um pesquisador de laboratório? Talvez por isso não goste do noticiário. Acho notícia um saco. O jornalismo é uma maneira esperta de se ganhar dinheiro com a brutalidade reinante. Ou você chuta o pau da barraca, ou vai cultivar orquídeas. Mas não fique reportando a favela, como se fosse candidato em busca de votos batendo na porta dos barracos. Não se visita uma favela. Se transforma a favela num bairro ou pegue o próximo avião para as Ilhas Seychelles.
NOTAS - Quais são os melhores textos dos jornais? Aqueles realmente importantes que, por isso mesmo, ficam de lado, ocupam pequeno espaço das notas ou rodapés. Quem edita também obedece às imposições. Por isso não dá destaque para o que pega mesmo, casos que procuramos com uma lupa. Não me refiro ao óbvio, o último ônibus londrino de dois andares ou a Daspu. Esse é o molho do noticiário. Falo do detalhe revelador de que o passageiro assassinado pela polícia de Bush não tinha mencionado bomba nenhuma. O cara era suspeito: era hispânico e estava ansioso, nervoso. Quer dizer que não se pode demonstrar pânico ou confusão quando viajamos no mais pesado do que o ar, que pela lógica deveria trafegar pelo chão, mas se levanta como um pássaro Roca e nos carrega nuvens afora como se fosse a coisa mais normal do mundo? O fato causou estardalhaço e a mídia colocou o cara como culpado. É mais fácil. Mas se for inocente? Enquanto viajamos de avião, a polícia paranóica do Império viaja na maionese. Aí está o caso Jean Charles, cada vez mais claro sobre as responsabilidades dos assassinos.
ABANDONO - Mas a verdade cansa. Cobrir os fatos como se deve dá um trabalho danado. E, parece aos donos dos jornais, não atrai a atenção dos leitores. Acho o contrário. O que irrita é a indiferença, a manipulação, o abandono de assuntos. Poderoso ministro da República conseguiu cidadania estrangeira para ele e uma dezena e meia de familiares. O caso ocupou brevemente um blog jornalístico e imediatamente foi tirado do ar. Não se fala mais nisso. Não se entrega uma rota de fuga? Recebo notícia pelo e-mail de que o senhor de barba branca que deu bengaladas em José Dirceu é um ator, contratado para isso. Eis um assunto quente. Não vi destaque, talvez seja o que costumam dizer de pessoas que torcem o nariz para o atual estágio da mídia, de que estou desinformado. Estar desinformado é pior do que xingamento contra a mãe. Ninguém admite estar desinformado. Propaganda de empresa telefônica mostra vizinha xingando pelas costas a outra por ser desinformada. Estar informado é o must, basta abrir os jornais e seguir o que definem ser informação. Para mim, informação mesmo é o que está sendo jogado fora das páginas impressas. No lixo das empresas de comunicação corre, sem que ninguém note, o Tempo e sua vertigem.
RETORNO - A imagem, magnífica, é de autoria de mestre Mino Carta: Italianos, de 1983.
10 de dezembro de 2005
O BARULHO DO MAL
O BARULHO DO MAL
Música é a capacidade e as condições que temos de ouvir. Vamos imaginar se por alguns segundos a canalha que nos domina calasse a boca. Se os animais que levantam a parte traseira do carro para destruir os tímpanos alheios em qualquer lugar onde estejam desligassem seus equipamentos. Se todos os que se acham no direito de berrar produtos e religiões na porta da sua casa por meio de poderosos auto-falantes se recolhessem. Se o dolby stereo dos cinemas de luxo parassem de reproduzir explosões e tiroteios. Se os conferencistas de auto-ajuda ocupassem o lugar de platéias atentas. Se as estridentes vozes dentro dos ônibus, bares e outros lugares públicos parassem de ocupar nossas mentes. Se o baticum abandonasse a praia. Se o fascínio pelo ronco da primeira revolução industrial fosse enfim superado. Se as serralherias fechassem para sempre e o silvo das construções orientadas para a incompetência e o espírito de porco fossem para o espaço, onde o som não se propaga. O que teríamos? Música. Escutaríamos o que está soterrado nessa avalanche do Mal. E do fundo de cada pessoa emergeria a dor de ter ficado submisso todo esse tempo. Mas seria só por alguns dias. Imediatamente iríamos então produzir mais música, desta vez inspirada pelo silêncio, que é o nome verdadeiro do humanismo e da civilização.
BALA - Acontece o mesmo no debate político. O que há é barulho e a contrafação fomentada pelo poder. Muita gente acredita estar pensando livremente, quando no fundo apenas obedece aos ditames da indústria cultural e ideológica. Há uma pasmaceira geral por trás da falsa movimentação de corpos e mentes. O marketing da pressa - andar rapidinho para parecer dinâmico - domina. Toda e qualquer idéia que se contraponha de verdade ao que está estabelecido na mídia e nas instituições é desmoralizado. A ditadura civil, esse regime que é o continuismo de 1964 e que desde 1985 toma conta do Brasil, inventou uma falsa oposição para continuar reinando. Sua grande obra, além do PSDB (que foi uma defecção da oposição ao regime civil-militar 1964-85), foi o PT, a desmoralização das lutas populares. Preparem-se para 2006, o Ano da Mentira (assim como 2005 foi o Ano da Verdade, como previu o Diário da Fonte). Uma onda gigantesca de certezas vai nos engolfar com jingles, cenhos carregados e ética saindo pelo ladrão. Isso me lembra um cidadão irado que escutei esses dias na Praça 15, a da Figueira, aqui em Florioanópolis. Ele se queixava dos políticos e ao citar um, eterno em suas andanças por cargos e verbas, perguntou: não existe uma só bala perdida para encontrar esse sujeito? A radicalização da revolta popular gera um buraco negro na cidadania. Imagina-se a violência quando somos apenas cidadãos pacíficos. Estoura em brutalidade doméstica, quando deveríamos nos envolver na briga política. Impera o suicídio em massa nas ruas e estradas, pois todos querem escapar desse pesadelo chamado Brasil.
ALIADOS - A publicidade e o jornalismo da ditadura civil estão recebendo duros golpes graças à Internet, a mídia das mídias. Contam com aliados, os que se acham de vanguarda e vivem querendo desmoralizar o pensamento real de oposição. Mas já estão colocando as barbas de molho. Os esquemas são expostos nos sites de opinião e informação e as figurinhas carimbadas, os que ficaram décadas vivendo às custas da boa fé e da ignorância do público, procuram saídas. Uma delas é exibir um falso radicalismo, como se tivessem sido opositores desde criancinhas, quando sabemos que comeram na mão das granas ocultas todo esse tempo. Com a ajuda deles, a ditadura civil cumpriu o seu projeto de destruir o país, entregá-lo para a pirataria internacional, sugar o povo até a última gota e mentir que estamos crescendo, que nunca houve um governo como este, que todos são éticos e perfeitos, que as denúncias são uma farsa pois não há provas, apesar de sobrarem provas, e, o que é pior, devemos voltar ao entreguismo fhcista.
PROMESSAS - 2006, o Ano da Mentira, promete. Você escutará o seguinte: Sabemos que os cidadãos estão cansados de promessas, mas nosso partido comportou-se à altura dos acontecimentos e por isso vem com candidatura própria pedir o seu voto, a sua confiança. Vote em nós, vote na mudança. Muda Brasil, para tudo continuar o mesmo. Será o auge do Barulho do Mal, o que nos cerca com sua gana de acabar conosco, de nos enterrar em todos os cantos. Quando vemos pais chorando sobre os corpos assassinados dos seus filhos, quando vemos os traficantes sendo incensados como grande coisa em todas as imagens e programas (meu Deus, quanta adrenalina!), quando assistimos a grande putaria geral (dê até os 21 anos para fazer seu pé de meia, e depois case com um mala, como exibiu blogueira de sucesso) e a sacanagem dos politicamente corretos com suas ongs maravilhosas, sabemos: estamos fritos. O que nos resta é rezar. E não permitir que nos seduzam com sua montanha de pequenos e grandes assassinatos.
RETORNO - Lembro o que publiquei aqui no Diário da Fonte em janeiro deste ano: "Está inaugurado oficialmente o Ano da Verdade. Em 2005, faremos oposição frontal à mediocridade e à baixaria instaladas em todos os poderes.Nosso alvo principal é a presença maciça de nulidades nos meios de comunicação de massa e nos postos chave dos governos.O que significa o Ano da Verdade? Será o tempo em que todas as máscaras cairão e estaremos frente a frente com nossa precariedade. O desafio será encontrar a divindade nas ruínas da nossa vida. Celebrarmos o encontro com as palavras nuas, as frases cortantes, os versos mais fortes. Será um pesadelo, me dizem. Não importa. Ficamos tempo demais em silencio. Adiamos demais o destino. Teremos que falar aquilo que realmente conta e não o horror que é a percepção que temos dos outros. Não vale dizer falsas verdades(...)A verdade é o brasileiro sério apostando na soberania da própria vida. Não significa ser chato, nem politicamente correto, nem sincero em demasia. Falo na palavra com poder de cura, a palavra consciente da morte da criatura, a palavra que você não quis escutar e que gritava dentro de ti. O Ano da Verdade será um poema e depois virá mais tempo de mentiras. Mas pelo menos por esse período vamos ver como é que fica: saber o que temos a doar para esse tempo que se destrói com falas impregnadas de veneno".
9 de dezembro de 2005
NASÇO NO DESERTO
NASÇO NO DESERTO
Nei Duclós
Nasço no deserto
E quero cama
Cresço a céu aberto
Durmo na lona
Nada está por perto
Apenas drama
Saio quando secam
CENA
Nei Duclós
Toda fachada é pouso
Tela de estrelas
Sala vira concreto
Catre de escamas
Porta que nunca abre
Surto desmanche
Cheiro feito refém
Resto de feira
Perna de pura seda
Incêndio avesso
Falta na tua escolha
água ou veneno
Etiqueta sem origem
Mina de lama
Preço que te provoca
Eterna mancha
Marcas de tanta vida
Chutam o dia
Ruínas de minha surda
Cenografia
8 de dezembro de 2005
QUE IMPORTÂNCIA TEM ISSO?
Tem gente que sente saudade do tempo que não viveu, aqueles anos que coincidiram com a minha mocidade (prefiro esta palavra, ainda mais antiga). Foi um tempo de assassinos, como agora. A época que não suportou a ruptura proposta por John Lennon, o de assumir a dor e não deixar que ela ficasse entorpecida pela indústria cultural e as drogas. Lennon foi fundo na sua denúncia, assumiu corporalmente sua luta contra essa fantasia tão real que parece viagem de LSD. Foi por isso que ele falou the acid dream is over, e nada mais além disso. Mas a babaquice geral da televisão transformou a saga do artista revolucionário num pastiche recheado com o que mais abominávamos: a saudade. Chega de saudade, a frase lapidar do nosso tempo, permeou sempre essa insurgência geral contra o mundo oficial. Mas ela ressurgiu hegemônica e transformou os anos 60 e 70 numa coisa parecida com os 40 e 50. Para quem nasceu há pouco, não há diferença nenhuma. Ver o passado em branco e preto, como fazíamos antigamente, continua sendo o hábito da mídia.
LINK - Uma tira do Angeli é lapidar sobre o tema de hoje. Wood acha que ele é o John Lennon, diz Stock. Mas Wood se engana. John Lennon sou eu. Reproduz fielmente o que sentíamos: o de se identificar com a mesma luta. Não havia um link claro entre os dois lados do mar. Estava no ar, como lembrou na Feira do Livro de Portinho, na nossa mesa-redonda, o Juarez Fonseca (autor da foto que acompanha este post, tirada em 1968 na lanchonete da Ufrgs).Escutávamos alguns discos e víamos alguns filmes, mas não tínhamos acesso, como hoje, ao que se fazia, aos eventos que rolavam, só tempos depois. Fazíamos tudo à nossa maneira. Existiam vários grupos, que se reuniam ao redor de fontes de atuação como a música, a faculdade, a periferia, o teatro e a literatura. Éramos marginais da universidade (como eu e Virson Holderbaum), misturados com estudantes secundaristas fugidos (como Marco Celso Viola), filhos desgarrados de intelectuais (como Roque Callage e Eduardo San Martin). Fomos fundo, sem grana, sem emprego, na maior repressão. Inventamos uma poesia possível, agarrada, explosiva, reproduzida em poemas expostos em cartolina e em livros mimeografados (os primeiros de que se tem notícia). Foi assim que nos transformamos na revolução permanente, para depois nos dispersar pelo mundo e apagar todos os vínculos com o que nos gerou. Somos exilados de nossa pátria comum, o socialismo, sonho maior da geração que quis mudar o mundo e não conseguiu. O inimigo, em qualquer país era o mesmo: a barbárie do capital sem freios, a manipulação da indústria cultural, o massacre do indivíduo, a guerra.
MILITÂNCIA - O socialismo de Lennon, utópico, era sem conflito: imagine as pessoas vivendo em paz, sem precisar da religião. Mas sua militância era totalmente imersa no conflito. Não era um sujeito de encarar a paz como alguém soltando pombinhas brancas. Encarava a barra pesada da direita. Procurou alternativas como no Canadá, cercou o sistema no fígado podre do poder. Por isso foi assassinado. Pela indiferença, pela inveja, pelo ódio, pelo surto. Tudo matou Lennon e hoje se relembra sua morte há 25 anos. Que importância tem nossa história no rastro dessa biografia? Nenhuma. Somos outra nação, outro universo. Tínhamos em comum a sensação de queda permanente, a vontade de assumir a dor que nos enlouquecia para que houvesse no futuro um tempo de paz. Esse tempo só se contrói dentro de cada um. E ao redor, quando existe misericórdia do tempo, e vitória.
RETORNO - No momento em que a Azaléia, por meio do seu porta-voz, o ex-governador gaúcho Antonio Britto, anuncia a demissão de três mil pessoas, a revista (V)Exame, a mesma que optou publicamente pelo entreguista FHC antes das eleições (numa clara demonstração das forças que a utilizam), faz reportagem de capa sobre a necessidade de globalizar ainda mais o Brasil. Um dos destaques são os calçados: " A tendência das linhas de calçados baratos é ceder espaço para os chineses. O setor teria de se concentrar em desenvolver tecnologia, design e marca para competir em faixas mais sofisticadas do mercado". Ou seja, o pobrerio fica com os calçados pôdres que machucam e imitam as grandes griffes, enquanto a tigrada disputaria os chinelões acima de mil reais. De onde são estes jornalistas, da aristocracia? Oficialmente, o editorial demonstra apreço por dois ídolos: o ex-presidente Collor e a minúscula ilha de Cingapura, exemplo de internacionalização. Cingapura é menor do que o município de Uruguaiana. Não pode servir de farol para o Brasil, que ainda mantém vestígios de sua antiga autonomia, como é o caso dos Correios, que estão na mira da revista. Somos nossos piores inimigos. Fatalmente eles vão querer entregar os Correios para o Turkistão, ou a Eslovênia. Todo mundo tem direito de colocar a pata aqui dentro. Há traidores por toda parte. E dinheiro público para cacifar a privatização
7 de dezembro de 2005
APRENDER NÃO É DIVERTIDO
Há uma campanha dos cursinhos, na publicidade televisiva, brincando com o conceito de aprender. Um cursinho, sabemos o que é: um reforço para quem pode pagar e que cobre o vácuo deixado pelo sucateamento da educação. Cobra caro normalmente e visa o lucro, dentro do princípio do empresariar necessidades públicas (me repassem a concessão de uma linha de ônibus que, sem um tostão, levanto financiamento para uma frota, pois o investimento se paga a partir da obviedade de que ninguém pode ficar sem transporte). Como ninguém fica sem educação, a não ser os que são empurrados para a ignorância (a maioria no Brasil) proliferam escolas privatizadas. Os cursinhos oferecem o conhecimento prático, o que orienta para o vestibular, só que atuam num nicho saturado. Por isso gastam os tubos em publicidade, grana preta carreada das famílias dos alunos. O que dizem os reclames? Aprender é divertido, tão gostoso que você vai ficar a vida toda querendo mais. Todo conhecimento implica estranhamento, já disse o filósofo José Arthur Giannotti. Estudar o que não se gosta é o mais importante. Pois aprender exige humildade, contraria a certeza granítica de que nascemos sabendo. O pensamento conservador do grotão não admite o aprendizado: o poder é passado de pai para filho, assim como o saber. E o saber é oral. O poderoso diz em voz alta o que nasceu sabendo. Quem nasceu sem poder, nunca saberá nada. Portanto, aprender não tem nenhum sentido, a não ser para movimentar a economia pré-capitalista em que vivemos.
HOMER - É por isso que se nivela por baixo o noticiário. O telejornal é a manipulação da notícia embrulhada em embalagem comestível, dirigida a toda população, que nada sabe. Como jamais saberá, não adianta gastar chumbo em chimango. Se diz em alto e bom som o que os poderes precisam implantar na cabeça alheia, mas com o cuidado de não contrariar a ignorância de quem liga a TV depois do trabalho. O cidadão sobrevive num universo de frustrações coletivas: paga caro para sofrer nas conduções, atura o autoritarismo dos chefetes de plantão, corre o risco de sofrer violência tanto de dia quanto de noite, não tem condições de lazer (ou não tem dinheiro ou não há vagas nos nichos da indústria de entretenimento, sempre lotada), portanto merece ser tratado como o imbecil que é. Sua representação, segundo o editor chefe do Jornal Nacional, William Bonner (que teve o desplante de justificar sua metáfora) é o Homer Simpson, o anti-herói sem caráter dos americanos. Homer trabalha em vão (numa usina nuclear), não tem princípios, é um preguiçoso. Pois essa é a imagem do cidadão trabalhador brasileiro, segundo Bonner. O pior é que muito jornalista concorda com ele. Jamais esqueceremos a noite em que Bonner fez Lula de âncora do JN, numa clara demonstração da força de manipulação por parte do monopólio que o emprega.
BENGALAR - Em outra manifestação de obscurantismo, Diogo Mainardi acusa Mino Carta de estar a serviço de Tasso Jereissati. Mainardi deve a Mino o emprego que hoje desfruta, pois foi Mino quem inventou a Veja e fez da revista um veículo com credibilidade (que já foi para o buraco negro). A Veja jamais repercute as denúncias da Carta Capital, assim como o resto da grande imprensa, o que é uma forma de silenciar o maior jornalista do Brasil, enterrá-lo vivo e, agora, tentar desmoralizá-lo. No fundo, o objetivo de Mainardi no seu artigo é entregar que existem ainda quatro lulistas na redação da revista onde trabalha, tida como tucana. Aos 70 anos, Mino Carta merece a posição que tem no cenário do jornalismo brasileiro: o de civilizador, um professor sem pose, um profissional brilhante e de texto admirável e um cidadão com a rara qualidade da coragem. Tentar destruí-lo com uma única citação na revista que jamais o cita, a não ser para o achincalhe, é uma grosseria inominável. Tanto Bonner quanto Mainardi são pessoas poderosas, mas possuem esse poder porque não há oposição no Brasil. Merecem umas boas bengaladas.
RETORNO - É trágico, mas não deixa de ser divertido ver a China fazendo gato e sapato do Brasil, não dando a mínima pelota para os salamaleques que o presidente Lula e sua farta comitiva fizeram em Pequim. Empresas brasileiras estão sendo sucateadas em série, já que os chineses, donos das ruas do Brasil com seus produtos horrendos (fruto do desprezo que devotam ao resto do mundo, do qual fazemos parte carregando o estandarte) tomam conta de todo o mercado, de papel higiênico a toalhas de renda do Nordeste. Milhares de empregos somem no ar, insuflados pela política econômica de arrocho desse portento que é o Palocci e pela gargalhada chinesa, que foram papacaricados até o osso e depois cuspiram em cima, para surpresa dos nossos estadistas de estádio (Lula ao lado de Tevez: campeones del mundo perro).
HOMER - É por isso que se nivela por baixo o noticiário. O telejornal é a manipulação da notícia embrulhada em embalagem comestível, dirigida a toda população, que nada sabe. Como jamais saberá, não adianta gastar chumbo em chimango. Se diz em alto e bom som o que os poderes precisam implantar na cabeça alheia, mas com o cuidado de não contrariar a ignorância de quem liga a TV depois do trabalho. O cidadão sobrevive num universo de frustrações coletivas: paga caro para sofrer nas conduções, atura o autoritarismo dos chefetes de plantão, corre o risco de sofrer violência tanto de dia quanto de noite, não tem condições de lazer (ou não tem dinheiro ou não há vagas nos nichos da indústria de entretenimento, sempre lotada), portanto merece ser tratado como o imbecil que é. Sua representação, segundo o editor chefe do Jornal Nacional, William Bonner (que teve o desplante de justificar sua metáfora) é o Homer Simpson, o anti-herói sem caráter dos americanos. Homer trabalha em vão (numa usina nuclear), não tem princípios, é um preguiçoso. Pois essa é a imagem do cidadão trabalhador brasileiro, segundo Bonner. O pior é que muito jornalista concorda com ele. Jamais esqueceremos a noite em que Bonner fez Lula de âncora do JN, numa clara demonstração da força de manipulação por parte do monopólio que o emprega.
BENGALAR - Em outra manifestação de obscurantismo, Diogo Mainardi acusa Mino Carta de estar a serviço de Tasso Jereissati. Mainardi deve a Mino o emprego que hoje desfruta, pois foi Mino quem inventou a Veja e fez da revista um veículo com credibilidade (que já foi para o buraco negro). A Veja jamais repercute as denúncias da Carta Capital, assim como o resto da grande imprensa, o que é uma forma de silenciar o maior jornalista do Brasil, enterrá-lo vivo e, agora, tentar desmoralizá-lo. No fundo, o objetivo de Mainardi no seu artigo é entregar que existem ainda quatro lulistas na redação da revista onde trabalha, tida como tucana. Aos 70 anos, Mino Carta merece a posição que tem no cenário do jornalismo brasileiro: o de civilizador, um professor sem pose, um profissional brilhante e de texto admirável e um cidadão com a rara qualidade da coragem. Tentar destruí-lo com uma única citação na revista que jamais o cita, a não ser para o achincalhe, é uma grosseria inominável. Tanto Bonner quanto Mainardi são pessoas poderosas, mas possuem esse poder porque não há oposição no Brasil. Merecem umas boas bengaladas.
RETORNO - É trágico, mas não deixa de ser divertido ver a China fazendo gato e sapato do Brasil, não dando a mínima pelota para os salamaleques que o presidente Lula e sua farta comitiva fizeram em Pequim. Empresas brasileiras estão sendo sucateadas em série, já que os chineses, donos das ruas do Brasil com seus produtos horrendos (fruto do desprezo que devotam ao resto do mundo, do qual fazemos parte carregando o estandarte) tomam conta de todo o mercado, de papel higiênico a toalhas de renda do Nordeste. Milhares de empregos somem no ar, insuflados pela política econômica de arrocho desse portento que é o Palocci e pela gargalhada chinesa, que foram papacaricados até o osso e depois cuspiram em cima, para surpresa dos nossos estadistas de estádio (Lula ao lado de Tevez: campeones del mundo perro).
6 de dezembro de 2005
Espaço Fotográfico
A magnífica imagem captada por Anderson Petroceli, o fotógrafo maior da Fronteira, que nos traz em primeiro plano o rio Uruguai, em seu esplendor, e ao fundo a capital da América Pampeana, a Uruguaiana lendária, inaugura o espaço fotográfico do Diário da Fonte. Agora sim este jornal fica completo, com imagens que serão postadas aos poucos.
TODOS AGORA SÃO DIFERENCIADOS
Diferenciado é uma das palavras da moda. Significa ser sempre o Mesmo. Não diga que você é diferente, senão caem em cima com a mesma gana de quero-quero em gafanhoto. Diga que você inicializou um processo diferenciado. Assim você poderá ser incluído nos jargões que o transformam nessa aristocracia que se diferencia da massa, identificada com o Homer Simpson pelo Bill Bonner, segundo artigo escandaloso publicado na Cartacapital desta semana. É por isso que ele trata os telespectadores como idiotas, porque se acha diferenciado, acima dessa pobreza infame. O pior é que o texto, reproduzido no Comunique-se, provocou comentários reveladores: teve jornalista que defendeu Bonner, achando que esse sujeito asqueroso, o brasileiro, é assim mesmo, vive no sofá comendo rosquinha e não entende nada. O FBI tem certeza que os brasileiros não formarão uma máfia nos Estados Unidos, já que não se diferenciam pela solidariedade. È assim mesmo: somos nossos piores inimigos. Onde tem uma cidadania estrangeira dando sopa? É para lá que os diferenciados vão.
BALANÇO - Um out-door aqui de Floripa assinado por uma tal de Gang diz textualmente: Fuck you, 2005. A pobreza de espírito aliada à apelação pura e simples produzem essas peças da criatividade diferenciada. Como você pode excluir o ano que já faz parte de nós? É como cortar um braço. Não entendo este período que chega ao fim como uma aula de cidadania ou política, como querem os mesmos colunistas e comentaristas de sempre. Puxa, que lição, as instituições estão funcionando, sairemos dessa melhores ainda. Besteira. Já estamos a braços com soluções diferenciadas, como o novo partido do Bispo Macedo, a candidatura Garotinho, esse trabalhador incansável que é o Geraldo Alckmin querendo o trono, mais a maré JK que vai engolfar a mídia para inventar alguma terceira ou quarta via de olhinhos semicerrados carismáticos, e assim por diante. 2005 foi bom porque aconteceu, só por isso. Porque escrevemos como nunca, porque exercemos a liberdade de expressão, porque nasceu minha neta, porque consegui participar de um projeto editorial de primeira linha, porque fui patrono da feira do livro de Uruguaiana, porque recebi uma carta de Cícero Galeno Lopes e sua esposa Márcia colocando minha crônica Quando a pátria fazia sentido nas alturas, porque o Brasil continua, apesar de tudo, porque o Marco Celso Viola está agitando em Portinho, porque o Taba está filmando, porque Urariano Mota está mandando ver com suas crônicas/reportagens culturais no La Insignia, porque li e resenhei Shosha, de Isaac B. Singer, porque Miguel Ramos está atuando e porque descobri o quanto Geir Campos é importante, com versos como " o que nos cabe é ter os olhos enxutos e a intenção de madrugar" . Por que mandar 2005 às favas? Porque perdemos a ilusão nos políticos? Porque roubaram pesadamente, se diferenciando ou não do roubo grosso de sempre? Viva o ano que finda. Nós somos o Tempo.
FESTA - A premiação festiva do Campeonato brasileiro, coberta pela mesmice da Globo, é deboche puro. Como podem festejar um campeonato que foi flagrado em inúmeras irregularidades e que acabou em pizza? Mas o evento já estava marcado. O que lamento é que nada pode contra a força da Mesmice, que inventa até falsas diferenças para continuar reinando. Não existe oposição no Brasil, o monopólio e a ditadura não deixam. Em 2006, votaremos na mudança, como sempre, para que candidatos diferenciados nos imponham o tradicional arrocho. Quem encarnar possibilidade real de transformação, será eliminado.
RETORNO - Por ser diferenciado, o UOL quica de volta tudo que é e-mail que envio. Tento desde ontem enviar mensagem para o Urariano Mota, tanto do meu e-mail pessoal quanto o profissional, e não consigo. Para o Moacir Japiassu, a mesma coisa. Às vezes, o monopólio UOL se distrai e consigo cravar uma tentativa.
BALANÇO - Um out-door aqui de Floripa assinado por uma tal de Gang diz textualmente: Fuck you, 2005. A pobreza de espírito aliada à apelação pura e simples produzem essas peças da criatividade diferenciada. Como você pode excluir o ano que já faz parte de nós? É como cortar um braço. Não entendo este período que chega ao fim como uma aula de cidadania ou política, como querem os mesmos colunistas e comentaristas de sempre. Puxa, que lição, as instituições estão funcionando, sairemos dessa melhores ainda. Besteira. Já estamos a braços com soluções diferenciadas, como o novo partido do Bispo Macedo, a candidatura Garotinho, esse trabalhador incansável que é o Geraldo Alckmin querendo o trono, mais a maré JK que vai engolfar a mídia para inventar alguma terceira ou quarta via de olhinhos semicerrados carismáticos, e assim por diante. 2005 foi bom porque aconteceu, só por isso. Porque escrevemos como nunca, porque exercemos a liberdade de expressão, porque nasceu minha neta, porque consegui participar de um projeto editorial de primeira linha, porque fui patrono da feira do livro de Uruguaiana, porque recebi uma carta de Cícero Galeno Lopes e sua esposa Márcia colocando minha crônica Quando a pátria fazia sentido nas alturas, porque o Brasil continua, apesar de tudo, porque o Marco Celso Viola está agitando em Portinho, porque o Taba está filmando, porque Urariano Mota está mandando ver com suas crônicas/reportagens culturais no La Insignia, porque li e resenhei Shosha, de Isaac B. Singer, porque Miguel Ramos está atuando e porque descobri o quanto Geir Campos é importante, com versos como " o que nos cabe é ter os olhos enxutos e a intenção de madrugar" . Por que mandar 2005 às favas? Porque perdemos a ilusão nos políticos? Porque roubaram pesadamente, se diferenciando ou não do roubo grosso de sempre? Viva o ano que finda. Nós somos o Tempo.
FESTA - A premiação festiva do Campeonato brasileiro, coberta pela mesmice da Globo, é deboche puro. Como podem festejar um campeonato que foi flagrado em inúmeras irregularidades e que acabou em pizza? Mas o evento já estava marcado. O que lamento é que nada pode contra a força da Mesmice, que inventa até falsas diferenças para continuar reinando. Não existe oposição no Brasil, o monopólio e a ditadura não deixam. Em 2006, votaremos na mudança, como sempre, para que candidatos diferenciados nos imponham o tradicional arrocho. Quem encarnar possibilidade real de transformação, será eliminado.
RETORNO - Por ser diferenciado, o UOL quica de volta tudo que é e-mail que envio. Tento desde ontem enviar mensagem para o Urariano Mota, tanto do meu e-mail pessoal quanto o profissional, e não consigo. Para o Moacir Japiassu, a mesma coisa. Às vezes, o monopólio UOL se distrai e consigo cravar uma tentativa.
5 de dezembro de 2005
O CAMPEÃO IMORAL
A chamada Máfia do Apito é uma máfia menor, por isso foi punida. Ela corrompia por dez mil reais e fazia parte de um esquema clandestino de jogo pela internet, o que é totalmente marginal ao que domina de verdade o futebol brasileiro, em que um juiz, nas fuças de todo mundo, tunga um time que poderia chegar ao título, e ninguém relcama, todos acham normal. Puxa, errei, agora vou me aposentar. Uma pena eu não ter dado o pênalti e ainda expulsar o jogador. Fiz algo parecido em 1995, também numa final, mas no problem. Enquanto isso, milhões de tordcedores mostram-se fiéis, absolutamente vassalos, ao esquema que corrompeu o Cortinthians. O clube se entregou ao MSI (que segundo Ministério Pulico paulista serve para grossa lavagem de dinheiro, conforme noticiou a imprensa de São Paulo neste domingo) e ao ídolo argentino. Tevez veio aqui ocupar o espaço vazio deixado por centenas de craques que foram entregues para o estrangeiro. Tudo é dado de bandeja num país em que a primeira dama consegue rapidamente a cidadania italiana (para escândalo da imprensa italiana), ou seja, jurou a bandeira de outro país, com apoio do marido presidente, torcedor corintiano que representa a hecatombe que nos engolfa em meio às mentiras das estatísticas. Como pode o PIB diminuir junto com a pobreza? O que há é o achatamento: todo mundo vira proleta, enquanto o primeiro casal ascende à nobreza e a massa corrompida comemora a imoralidade de um título tungado.
ROMÁRIO - Quando a Argentina comprou o Peru por 50 milhões de dólares na Copa de 78, como comprovam depoimentos divulgados muito tempo depois, o Brasil, que saiu invicto da parada, mas amargando um terceiro lugar, virou o campeão moral, segundo o técnico da seleção, Capitão Claudio Coutinho. Nunca fomos. Nossa seleção era um time que tinha deixado um craque como Falcão no banco e Falcão precisou virar o Rei de Roma para ser convocado na Copa seguinte. Tínhamos esse técnico vindo do meio militar, que introduziu a figura do falso professor, que tudo sabe e que não precisa de jogador, pois o que pega são as elocubrações matemáticas, não o talento. Foi uma péssima influência, inclusive para Parreira, que só deixou sua arrogância retranqueira e anti-craque de lado quando precisou desesperadamente de Romário, que com quase 40 anos sagrou-se artilheiro desse campeonato sacana. A atual ditadura civil consagrou a figura do técnico/professor, seleto grupo que faz um rodizio nos campeonatos, navegando na instabilidade provocada pela falta de soberania (vendem tudo para todos os países) a miséria da população (que vai para o estádio explodir de raiva) e os estádios sucateados (favelões que representam a falta de políticas públicas no país).
ARRIVISMO - Na crônica deste domingo na Folha, Ferreira Gullar lembra o caráter guerreiro do futebol e propõe que se use a tecnologia para arbitrar o jogo. Não usam a tecnologia porque assim não poderão mais manipular resultados. E manipulam de maneira orgânica e sofisticada: deixam o campeonato rolar e só intervêm nos momentos decisivos. A impropibdade das gestões deságuam na violência dentro e fora dos estádios, além da grande embrulho que é a transmissão dos jogos. Por que o Cleber Machado narra todo o campeonato, como um boi de canga, e no momento de gritar campeão é substituído sorrateiramente pelo Galvão Bueno? O arrivismo (sempre querendo chegar em primeiro) de Galvão Bueno é nauseante. Seu modo autista de ser, fazendo contas sem fim enquanto o jogo se desenvolve, é uma obsessão matemática no jogo que é pura magia. O narrador, com ele, torna-se o centro do espetáculo. Fica furioso com o juiz, que não dá início à partida no segundo em que ele, Galvão, acha que deve, e promove esse entorno de alienação de que se servem as máfias para reinar soberanas nessa que é a grande paixão brasileira.
PENSATAS - O futebol tem servido de matéria prima para inúmeras pensatas. Tudo bem: o futebol deve ser tratado à altura da sua importância pelo meio acadêmico e a mídia. Mas não tentem tapar o sol com a peneira. É preciso dizer com todas as letras, senão os textos viram exercícios sobre uma atividade que está matando gente, já que sobram torcedores assassinados em dia de jogo.
RETORNO - O programa especial do Chico Buarque, totalmente dedicado a Tom Jobim, que foi ao ar neste domingo na Band, funciona como uma denúncia. Para onde foi toda essa música maravilhosa, desses caras que fizeram nossa cabeça e nosso coração por toda a vida? Está confinada, pode ser ouvida, mas não está explícita na mídia o tempo todo, como deveria ser. Chico, esse poeta e compositor soberano, lembra que a bossa nova é atual, moderna até hoje e que ela acabou migrando para Nova York. O melhor da América aproveita até o osso o que foi criado aqui, enquanto ficamos manietados ao berreiro pseudo sertanejo. É uma tragédia cultural e social . Ciclicamente, quando estou prestes a entrar no desespero, coloco o cd clássico de Tom Jobim, todo instrumentado, que ele lançou nos Estados Unidos na alvorada da bossa. Volto então ao normal: ao país que me ilumina, ao sonho que nos mantém vivos. E lembro, em cada nota, as palavras de Vinícius de Morais, plural de moral, como notou Tom numa entrevista.
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