Nei Duclós
Vejo Mares da China de 1935, dirigido por Tay Garnett, com
Jean Harlow e Clark Gable: oito roteiristas trabalharam um romance.O macartismo
expulsou os escritores de Hollywood a partir dos anos 50. O resultado é o que
vemos hoje, quando preenchem o vazio narrativo com clipezinhos. Em Mares da China, dois roteiristas iniciais
não deram conta do recado. Dois veteranos se encarregaram da
tarefa. Mais quatro autores dividiram o trabalho. Só podia dar certo.
O filme foi um sucesso e Jean Harlow, magnífica em sua
performance de mulher fácil que se apaixona pelo capitão do navio, foi capa da
Time, privilégio a que poucas atrizes tiveram em toda a história da revista.
Harlow nos foi vendida como mulher fatal que representava o luxo e o tal “glamour”
(palavra que eu detesto, de tão mal usada). Era bonita, mas nem tinha a beleza arrasa-quarteirão de Marylin ou Liz Taylor. Mas em talento, sobrava. Neste filme,
dá um show, principalmente na cena em que confessa o crime que cometeu por não
conseguir escapar do sentimento que a arrebatava. Fantástica!
Leio num livro reproduzido pelo Google
Books que Harlow queixava-se da manipulação sexual da sua imagem. “É preciso um
vestido sempre mais curto para acontecer alguma coisa”, dizia. Em Mares da
China, está totalmente vestida o tempo inteiro. E faz uma personagem sexy ao
extremo, amorosa e determinada.
Uma das participações hilárias – entre muitos personagens - é da atriz Hattie McDaniel (que não foi citada nos créditos) e que mais tarde, em 1939, fez História ganhando um Oscar ao
interpretar a Mammy de Scarlett O´Hara de E O vento levou. “Comprei um patuá
para me proteger”, diz ela para Harlow, que desejou sorte com as roupas que lhe
presenteava. “Quando fizerem mal à
senhora, não me atingirão”. Ou, dizendo para a ex-patroa que ia ser julgada de um crime:
“A senhora foi tão boa comigo. Mesmo que lhe enforquem ficarei agradecida. “
O autor do livro é Crosbie Garstin, um veterano da Primeira
Guerra que sumiu em 1930 quando remava na praia inglesa Salcombe Harbour. No original, o capitão se apaixona por uma chinesa e a
engravida. Claro que Hollywood mudou essa história. Aliás mudou muito. O roteiro
foi entregue inicialmente para dois escritores que deixaram o pessoal mais
experiente horrorizados, pois mudava completamente a história original e
ainda copiava coisa de Mark Twain e Somerset Maugham. O trabalho foi dado a
dois experientes roteiristas, Jules Furthman e John Lee Mahin .
Mas o embrulho era tão grande que contrataram Paul Hervey
Fox para os diálogos e até Paul Bern, executivo da Metro e futuro marido de Harlow, deu
pitacos. Bern se suicidou um tempo depois, num caso escandaloso que tomou conta
dos jornalistas até os anos 60, pois desconfia-se que não foi suicídio.
O grupo de personagens coadjuvantes é demais: o covarde que
procura uma segunda chance, o escritor bêbado que cria uma pegadinha por frase
nos pobres interlocutores, a viúva que também caça o capitão, o bandidão que chama
os piratas para saquear um carregamento de ouro no navio, o jovem oficial
atrapalhado que tropeça a três por quatro, os passageiros chineses correndo
perigo no tufão etc.
Quanta coisa por trás de uma simples sessão da tarde num
canal alternativo universitário! Drama e comédia em doses certas, com diálogos mortais.
O rigor sendo atravessado pelo humor, o amor fazendo escândalo, a traição
gerando o caos, a tempestade desencadeando uma coreografia de pânico etc.