30 de janeiro de 2014

PETÚNIA



Nei Duclós

Fechei os punhos para enfrentar o dia
Mas desarmaste a palma
onde eu guardava a marca das unhas

Tens o dom de ver-me sob a cortina
fora do veludo que cultivas
floresço o espinho, pétala, petúnia

Aprendo a abrir mão do conflito
tua doçura atinge a maestria
aplico-me em cadernos de cama

Não significa que ignoras a sombra
lá sofreste a tontura da neblina
tiras luz em grutas que complicam

e me entregas, flor de amor sublime
só pelo gosto de ser feliz contigo
és o coração, o que perdi no abismo


28 de janeiro de 2014

CORTE PRECISO



Nei Duclós

Verso simples e claro dá o maior trabalho
Confuso, rebuscado não significa complexo
Não desperdice palavra, não perca a chance
de usá-la, evite o seu entorno, a tralha
Substitua, substantiva visão do close à grua

Faça oficina: malhe o ferro frio da língua
na letra zipada encontre o compromisso
de dizer não o que sente, mas o que imagina
Conselho de coração usa palavras tristes
gastas de balada, perfumaria, choros líricos

No barro está o colosso, o risco do conflito
a rua não te encanta no limite da moldura
joga pesado sobre teu ofício, assuma a dor
de ser confundido com o supérfluo, risque
o brilho do metal com seu bisturi de vidro
corte preciso, rasgo de aurora, plano de fuga



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Josh Bryan,

27 de janeiro de 2014

VOU TE BUSCAR


Nei Duclós


Vou te buscar na elipse das esferas
nas crateras e vulcões extintos de Marte
Vou te buscar nos jardins insepultos
no alto mar onde as algas te afogaram
na gruta de arquipélagos remotos
vou te buscar depois do apocalipse

Não te deixarei para peixes ou abutres
irei te buscar mesmo que te eliminem
juntarei cada porção de ti com minha saliva
Porque nosso olhar se reconheceu idêntico
entre desastres e carnificinas e enfrentou
os furacões e o fogo da goela dos dragões

Vou te buscar isenta de qualquer solidão
te carregarei nos braços poderosos do amor
e a terra se acomodará em nosso colo
Estarei pronto para enfrentar os gigantes
louco como quem sabe o desfecho da guerra
viemos contrariar o destino do cosmo morto

Somos a salvação não consentida de tanta dor
tu e eu, flor que confia na palavra mais bizarra
borrão de escrituras apócrifas que nos condenam
Vou te buscar para que haja vida na planície
onde foi plantada a derrota. Somos a vitória
de um coração de espuma, que sobe junto com a Lua



RETORNO -Imagem desta edição: Obra de Caspar David Friedrich

22 de janeiro de 2014

PORQUE O LOBO DE WALL STREET É UM LIXO



Nei Duclós

O corretor Jordan Belfort é peixe pequeno da ditadura financeira, por isso é punido, mas sai ganhando, numa vitória de traições. Transforma seu crime em livro, agora adaptado ao cinema em O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, com Leonardo di Caprio no papel principal, tentando atingir os níveis de histrionismo de Robert de Niro. Belfort tenta furar o bloqueio dos megalucros mas é caçado pelo FBI e cumpre pena leve depois de entregar os sócios, parceiros, amigos, companheiros. Encarna todos os defeitos das finanças sem freios, a que foi desregulamentada a partir dos anos 80 por Reagan e Tatcher e acabou virando essa voragem da especulação, que tunga populações, mantem nações como reféns e concentra renda em meia dúzia (85 pessoas possuem o mesmo que 3,5 bilhões de pessoas, segundo pesquisa recente) por meio de sucessivas crises plantadas e mascaradas como “crises”.

É uma atividade obscena, como nota o pai do especulador, mas o problema do filme é que Martin Scorsese é prisioneiro da sua falta de escrúpulos. Sempre acerta no alvo a que se propõe, o de disseminar a perversidade sob a álibi da denúncia, quando é pura cooptação. Seus heróis machões encarnam a essência de sua própria fragilidade, o de odiar a virtude por se definir pelo Mal, que, na sua ótica, decide o gênero humano. Para Scorsese ninguém presta, mas ele acha que engana ao colocar seu anti-herói na prisão, como se a Lei fizesse justiça, quando apenas limpa o terreno para a atividade criminosa dos grandões.

Se houvesse Justiça, a Suíça seria fechada, junto com outros paraísos fiscais. Mas ela existe em função dessa fábrica de dinheiro falso que inunda o mundo e serve de estuário para o desperdício de recursos que enriquece os bandidos. Expulso de Wall Stret, Belfort usa seu know-how para empresas quase fictícias e exagera na dose das comissões. Faz fortuna treinando um monte de cretinos para devorar suas vítimas, os pequenos investidores e poupadores. Isso é apresentado por Scorsese como uma festa irreversível, sem solução. Ninguém vale nada e o mundo dos trouxas alimenta os espertalhões. O filme inteiro é uma celebração do Mal.

Ao se safar denunciando os outros, o safado vira consultor em países periféricos. Lá ele ensina como vender coisas reais, como uma lapiseira. Está fora do mundo especulativo, que é exclusivo dos que dominam o mercado. Ele é um outsider que aprendeu sua lição. Comprou seu conforto na cadeia , perdeu patrimônio e família mas mantém-se como vendedor, a mais antiga profissão do mundo (já que era precisa alguém com recursos para sustentar a outra, tido como pioneira). Candidato a 5 Oscar, o filme pode legar alguns, pois há um gozo coletivo pela crueldade e as trapaças. Além de Caprio, candidato ao Oscar de melhor ator pelo exagero de seu esforço,  o jovem e bom intérprete Jonah Hill concorre, mas como melhor coadjuvante. Ele continua fazendo o mesmo papel de outros filmes, como aquele do beisebol com Brad Pritt. Firmou uma caricatura.

O Lobo de Wall Street é uma sucessão de clichês para agradar o público, que odeia quem lhe rouba. Mas se identifica com a bandidagem que finge denunciar ao deixar livre o sistema de roubo coletivo. Este continua porque tem apoio, na política e no cinema. Seja especulador, seja herói. Nada tens a perder do que alguns milhões de dólares, facilmente recuperáveis.

19 de janeiro de 2014

TRAPAÇA: AS VIRTUDES DO MAL



Nei Duclós

A realidade é uma trapaça, como o cinema. Desempenhamos papéis para sobreviver. Enganamos os interlocutores para que nos paguem por algo que oferecemos mas não entregamos. Temos vida dupla porque é insuportável conformar-se a um só destino. Buscamos desesperados parcerias para que nos ajudem a dividir a carga de viver no mundo dedicado ao assassinato e ao logro. Tudo soa falso nesse universo intensificado pelo dinheiro que dribla o fisco e o sistema financeiro oficial. Não somos culpados pois nosso álibi é que todos estão no mesmo barco e é assim que o mundo funciona.

O único cuidado é não deixar-se apanhar por alguém do mundo real que finge participar do jogo e que não passa de um agente federal, um sujeito da Lei. Este pode vencer por algum tempo mas acabará sucumbindo na armadilha que sabemos fazer melhor: capturá-lo no visgo da própria ambição de ser alguém à custa de uma correção de fachada. Pois o mundo verdadeiro é regido pelas leis da máfia e a Constituição é apenas um acordo no papel que enquadra os fracos. Viver não é para amadores.

Custa caro dispor dos recursos expostos nas vitrines do mundo artificial. Você pode dispensar essa opção, fugir da tentação, confinar-se num reduto de consciência limpa, mas como poderá garantir o futuro dos filhos, a sobrevivência da espécie? Como terá a mulher impossível que finge ser uma lady para mascarar sua origem pobre e convencer quem está endividado a empenhar seus últimos cinco mil dólares em favor da perspectiva, fajuta, de conseguir 50 mil? A única chance é fazer parte dos ladrões e se quiser manter-se ascendendo abrace o Mal, faça amizade com a demagogia criminosa e não tente enredar o chefão da quadrilha e seus prepostos políticos porque não vai adiantar. Acabarás pegando peixes pequenos.

Os banqueiros já estão com todas as nações e suas populações na mão. Cobram caro pelos investimentos. Para ter acesso ao dinheiro e gerar emprego num universo de exclusão permanente é preciso que a Caixa 2, a grana da corrupção e das drogas entre no circuito com sua missão “moral” de distribuir a renda que fica entesourada pelos donos do mundo. Os bandidos não passam de laranjas que se submetem ao circuito escasso dos recursos que paradoxalmente parecem abundantes, mas são uma ínfima porção do sequestro proporcionado pela ditadura financeira internacional, a geradora de crises para concentrar mais renda e remuneradora de meia dúzia de tubarões. Os bagrinhos são esses matadores de esquina a destruir a concorrência de um número crescente de trapaceiros que medram à sombra do sistema perverso.

Nessa rota narrativa, Trapaça (American Hustle, 2013), de David O. Russell é pura mágica de subúrbio, ilusionismo de circo antigo, trapaça da grossa. Usa uma sucessão de citações para parecer um filme cult, como a cena roubada do final de Casablanca, a ideia central de Golpe de Mestre, 1973, de George Roy Hill, pitadas de Embalos de Sábado à Noite e performances dramáticas espelhadas em Mike Nickols de Carnal Knowledge. Christian Bale não convence como gordo, sabemos que é fake seu barrigão, ele que foi magérrimo, musculoso e o falso garoto de Império do sol, quando iludiu Steven Spielberg que tinha 10 anos, quando já tinha mil.  Amy Adams se esforça mas é devorada por Jennifer Lawrence, tão perigosa que é capaz de levar novamente o Oscar. Ambas opostas e iguais como duas irmãs. A esposa que usa o filho para se manter sustentada e a amante que assume outra personalidade para ganhar dinheiro junto com o golpista.  

O amor é uma trapaça que também não convence pois como pode haver sentimento em vidas que contrariam o que é humano? A solução é exacerbar as performances para ganhar prêmio de interpretação. Cenas de sexo que são explosões artificiais de um erotismo de espetáculo e pretendem seduzir o espectador para algo que parece ser o último grito das relações, misturando curra em banheiro de boate com entregas de beldades em balcões mal iluminados a grupos engravatados de mafiosos carnívoros. O desfecho acaba celebrando a corrupção do casal protagonista, apresentados como sumidades dessa mágica bandida de enganar os trouxas, inclusive os da lei e da política, abraçando-se aos meliantes que aqui encarnam a  “normalidade” cristalizada por clones de O Poderoso Chefão de Coppola. Só temos que escolher a máfia para qual trabalhar e ver virtudes nela para que exista família e vida digna. 

Esse é o modelo, o parâmetro apresentado como um drama cômico e que não passa de apelação pura e simples. Filme ser arte, mas é comércio barato, 1,99 que promete negar suas intenções originais e agora quer ser virtuoso. Filme traiçoeiro que acaba dando tiro no próprio pé. Tenta nos ludibriar de que fazemos parte dessa perversidade, que reserva a glória e o dinheiro para quém está na tela e nos transforma em insumo dessa indústria. Seríamos os perdedores que devem se submeter às evidências, aplaudir tanta brutalidade e sentir tesão pelo que nos oferecem.

Não somos assim, meus chapas e esse mundo que medrou à sombra das guerras não veio para ficar. Será destruído não por nossas virtudes, mas por nossa necessidade de sobrevivência, pois sabemos que não temos escolha: ou acabamos com isso ou morremos no final.

RETORNO - Imagem desta edição: Jennifer e Amy, opostas e iguais como duas irmãs.