Nei Duclós
A realidade é uma trapaça, como o cinema. Desempenhamos
papéis para sobreviver. Enganamos os interlocutores para que nos paguem por algo
que oferecemos mas não entregamos. Temos vida dupla porque é insuportável conformar-se
a um só destino. Buscamos desesperados parcerias para que nos ajudem a dividir
a carga de viver no mundo dedicado ao assassinato e ao logro. Tudo soa falso nesse
universo intensificado pelo dinheiro que dribla o fisco e o sistema financeiro
oficial. Não somos culpados pois nosso álibi é que todos estão no mesmo barco e
é assim que o mundo funciona.
O único cuidado é não deixar-se apanhar por alguém do mundo
real que finge participar do jogo e que não passa de um agente federal, um sujeito
da Lei. Este pode vencer por algum tempo mas acabará sucumbindo na armadilha
que sabemos fazer melhor: capturá-lo no visgo da própria ambição de ser alguém
à custa de uma correção de fachada. Pois o mundo verdadeiro é regido pelas leis
da máfia e a Constituição é apenas um acordo no papel que enquadra os fracos.
Viver não é para amadores.
Custa caro dispor dos recursos expostos nas vitrines do
mundo artificial. Você pode dispensar essa opção, fugir da tentação,
confinar-se num reduto de consciência limpa, mas como poderá garantir o futuro
dos filhos, a sobrevivência da espécie? Como terá a mulher impossível que finge
ser uma lady para mascarar sua origem pobre e convencer quem está endividado a
empenhar seus últimos cinco mil dólares em favor da perspectiva, fajuta, de
conseguir 50 mil? A única chance é fazer parte dos ladrões e se quiser
manter-se ascendendo abrace o Mal, faça amizade com a demagogia criminosa e não
tente enredar o chefão da quadrilha e seus prepostos políticos porque não vai
adiantar. Acabarás pegando peixes pequenos.
Os banqueiros já estão com todas as nações e suas populações
na mão. Cobram caro pelos investimentos. Para ter acesso ao dinheiro e gerar
emprego num universo de exclusão permanente é preciso que a Caixa 2, a grana da
corrupção e das drogas entre no circuito com sua missão “moral” de distribuir a
renda que fica entesourada pelos donos do mundo. Os bandidos não passam de
laranjas que se submetem ao circuito escasso dos recursos que paradoxalmente parecem
abundantes, mas são uma ínfima porção do sequestro proporcionado pela ditadura
financeira internacional, a geradora de crises para concentrar mais renda e
remuneradora de meia dúzia de tubarões. Os bagrinhos são esses matadores de
esquina a destruir a concorrência de um número crescente de trapaceiros que
medram à sombra do sistema perverso.
Nessa rota narrativa, Trapaça (American Hustle, 2013), de David O. Russell é pura mágica de subúrbio, ilusionismo de circo
antigo, trapaça da grossa. Usa uma sucessão de citações para parecer um filme cult,
como a cena roubada do final de Casablanca, a ideia central de Golpe de Mestre,
1973, de George Roy Hill, pitadas de Embalos de Sábado à Noite e performances
dramáticas espelhadas em Mike Nickols de Carnal Knowledge. Christian Bale não
convence como gordo, sabemos que é fake seu barrigão, ele que foi magérrimo,
musculoso e o falso garoto de Império do sol, quando iludiu Steven Spielberg
que tinha 10 anos, quando já tinha mil. Amy Adams se esforça mas é devorada por
Jennifer Lawrence, tão perigosa que é capaz de levar novamente o Oscar. Ambas opostas e iguais como duas irmãs. A esposa que usa o filho para se manter sustentada e a amante que assume outra personalidade para ganhar dinheiro junto com o golpista.
O amor é uma trapaça que também não convence
pois como pode haver sentimento em vidas que contrariam o que é humano? A
solução é exacerbar as performances para ganhar prêmio de interpretação. Cenas
de sexo que são explosões artificiais de um erotismo de espetáculo e pretendem
seduzir o espectador para algo que parece ser o último grito das relações,
misturando curra em banheiro de boate com entregas de beldades em balcões mal
iluminados a grupos engravatados de mafiosos carnívoros. O desfecho acaba
celebrando a corrupção do casal protagonista, apresentados como sumidades dessa
mágica bandida de enganar os trouxas, inclusive os da lei e da política, abraçando-se
aos meliantes que aqui encarnam a “normalidade”
cristalizada por clones de O Poderoso Chefão de Coppola. Só temos que escolher
a máfia para qual trabalhar e ver virtudes nela para que exista família e vida
digna.
Esse é o modelo, o parâmetro apresentado como
um drama cômico e que não passa de apelação pura e simples. Filme ser arte, mas
é comércio barato, 1,99 que promete negar suas intenções originais e agora quer
ser virtuoso. Filme traiçoeiro que acaba dando tiro no próprio pé. Tenta nos ludibriar
de que fazemos parte dessa perversidade, que reserva a glória e o dinheiro para
quém está na tela e nos transforma em insumo dessa indústria. Seríamos os
perdedores que devem se submeter às evidências, aplaudir tanta brutalidade e
sentir tesão pelo que nos oferecem.
Não somos assim, meus chapas e esse mundo que
medrou à sombra das guerras não veio para ficar. Será destruído não por nossas
virtudes, mas por nossa necessidade de sobrevivência, pois sabemos que não
temos escolha: ou acabamos com isso ou morremos no final.
RETORNO - Imagem desta edição: Jennifer e Amy, opostas e iguais como duas irmãs.