AS HORAS
Nei Duclós
(nei@consciencia.org)
Todo filme é sobre cinema. Um filme – e tudo o que há nele – desaparece quando os letreiros sobem e as luzes acendem.
As Horas é sobre o desaparecimento de pessoas, representação da morte na tela. Seus personagens – alguns, também autores de outros personagens - sabem que vão sumir no final e ficarão apenas como lembrança de quem assiste. Esse é o motivo aparentemente banal da ameaça de suicídio que ocorre a cada momento: como suportar a dor de viver se há a certeza do fim?
Tudo então torna-se provisório, sinistro. Fazer um bolo, preparar uma festa, comprar flores, convidar os amigos, celebrar um prêmio ou um aniversário são eventos que sucumbem diante da visão da morte. O tom terminal de cada vida dita a precariedade do testemunho – único escape para o desparecimento total. Um livro, um poema, um filho são pressionados por essa natureza de extrema fragilidade que a vida ostenta. O pássaro que tomba, o visionário que se atira, a mãe que abandona os filhos são a prova da vitória final da morte, contra a qual nada nem ninguém pode.
Sobreviver, em meio a essa névoa, torna-se um imperativo permanente, manifestado no plantio teimoso do canteiro, na busca pela primeira frase, no apoio obsessivo ao moribundo, no abraço na hora do luto. O beijo entre mulheres é a vida que se ata para criar uma permanência. Por isso o beijo feminino é sempre testemunhado pela inocência – a criança atenta que nada diz, e que acompanha o lento escorregar dos adultos para o abismo.
A densidade do filme, lento drama que sufoca o espírito, prega o olhar firme em direção à morte. Encará-la sem sofrer, dispondo os rituais da sobrevivência sem culpa, é a solução diante da presença do suicídio.
O abraço de consolo é a cena definitiva para quem sai do cinema pronto para esquecer toda aquela dor concentrada no filme. Fica na memória a coragem como instrumento de domínio sobre a morte. A literatura, a arte, devem ser apenas as expressão dessa ousadia, sob pena de sucumbirmos diante do abismo.
Todo filme é sobre cinema. As Horas é um filme sobre a permanência da magia projetada em luz e sombra. Não nos esqueçam, sussurram os personagens. Não tenham medo, nos dizem eles. Vocês são parte de nós, gritam eles quando, no final da sessão, lhes viramos as costas.
Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
27 de abril de 2003
Um texto datado:
Escrevi esse texto na primeira edição da Casa dos Artistas, que foi ao ar pelo SBT. É uma viagem na maionese que não acerta uma profecia. Mas serve como exercício de linguagem sobre relacionamentos, um território minado em qualquer tempo.(Abertura corrigida. Desconsiderar a que está a seguir)
26 de abril de 2003
EDUARDO E BARBARA NA CASA DOS ARTISTAS
Um texto datado:
Escrevi esse texto na primeira edição da Casa dos Artistas, que foi ao ar pelo SBT. É uma viagem na maionese que não acerta uma profecia. Mas serve como exercício de linguagem sobre relacionamentos, um território minado de poblemas hoje e sempre.r
EDUARDO E BARBARA NA CASA DOS ARTISTAS
Nei Duclós
Eduardo é nome traduzido de príncipe britânico e Barbara (feminino de bárbaro - estrangeiro, selvagem, invasor) é também matriz de Barbie, a personagem/objeto que se humaniza. O herdeiro avesso ao casamento é invadido por um sentimento estranho, o amor, e acaba cedendo quando defronta-se com Cinderela, a mulher de origem pobre e de precária mágica, que se desfaz na primeira badalada da meia noite. O sino tocará quando a Casa dos Artistas chegar ao fim. A pergunta é: Cinderela irá se recolher e esperar o eleito procurá-la por meio das pistas deixadas na festa? Haverá chance para o amor nesta reencarnação de um mito que virou história infantil?
Essa dúvida desencadeou o tenso diálogo entre Supla (nome artístico, alter ego de Eduardinho, apelido familiar) e Barbara (emergente que procura resgatar o status perdido do seu sobrenome Paz), que foi ao ar pelo SBT dia 4 no programa Casa dos Artistas. O conflito nasce do amor, armadilha da natureza que sempre surpreende os personagens. Como no drible tradicional de Garrincha, que enganava o adversário saindo inapelavelmente pela direita, o amor é manifestação do ineditismo num ambiente previsível. É esse bote do destino que faz o encanto dos folhetins. Mais forte – e com mais chances de longevidade - é o amor quando se manifesta pela diferença, como é o caso do príncipe e da Cinderela, o modelo mais bem acabado da intensidade da paixão entre opostos.
Somam-se, em benefício da verdade, as duas hipóteses sobre essa relação. A primeira é a de que é tudo armação – os dois estariam fingindo, para manter o Ibope alto. A segunda é a de que é tudo real – e eles estariam à vontade para colocar o que sentem, mesmo que isso signifique escancarar os perigos que corre o bem mais precioso da intimidade – o fato de estarem apaixonados. Somam-se porque, seja qual for a hipótese vencedora, não resta dúvida que trata-se de um divisor de águas na teledramaturgia.
Se for armação, não segue os cânones do paradigma mais próximo, o das telenovelas. Também não obedece à dramaturgia clássica, pois é extremamente mal “escrito”. Ou seja, se for tudo mentira, é um fenômeno de criatividade e por isso merece ser levado em consideração. Mas estamos diante de algo novo se a situação for real – e é essa hipótese que deve ser ungida como vencedora , pois muita coisa do programa escapou do planejamento original. A ira de quem é eliminado, por exemplo, é absolutamente sincera. Se a raiva é verdadeira, porque o amor seria falso?
Se o programa tinha como previsível as cenas picantes, já que espalhou pelos quartos, salas e jardins pessoas jovens e malhadas de ambos os sexos, talvez não tivesse nos planos as complicações – verdadeiras - que o amor e sua ética impõe num relacionamento a dois. A ética se manifesta pelo seu lado torto – o ciúme. Este, é a fome de honestidade provocado pelo sentimento genuíno e intenso. Qual o lugar do ciúme num ambiente de pessoas “descoladas”? Como unir a imagem de liberdade com a do compromisso?
O amor detona a situação e desestabiliza os protagonistas. O diálogo entre os dois demonstra essa instabilidade. Barbara teme a certeza que demonstra do seu amor – o que já é óbvio para todos. Ela não quer que Supla – sem retribuir - se sinta seguro quanto ao sentimento devotado por ela. Por isso repete o que ele diz em determinado momento do diálogo. “Eu também não sei o que vai acontecer quando sairmos daqui”, diz, sem convencer. Neste caso, a mulher cai do muro do individualismo de maneira mais radical e contundente, enquanto o homem mantém-se nele, mas já sem a mesma sensação de conforto.
O que vai acontecer no final do programa, todos sabem. Será rompido o invólucro que permitiu o nascimento do amor. O isolamento do casal numa casa com poucas pessoas, a falta completa de contato com o mundo externo facilitou a criação do ninho – aquele espaço que a natureza gera no coração e no corpo dos casais com objetivos bem explícitos. Essa delícia da proximidade está protegida enquanto durar o programa – apesar da maldade de alguns habitantes da casa, que implicam com o namoro.
Enquanto Barbara debate-se com esse drama, Supla está armadilhado em outro. Sua disponibilidade total, enfim, acabou. Barbara não é uma Japa Girl, a namorada de ocasião que vira amiga e tudo fica por isso mesmo. Cinderela pega mais fundo, amarra bem firme os pontos soltos de uma individualidade que estava à deriva e que enfim se encontra. O amor parece opor-se à súbita notoriedade, à carreira que enfim deslancha. Os novos namorados se perguntam: o que vale mais, a fama ou esse sentimento que preenche todos os espaços, que os derruba, que os envolve numa nova espécie de conflito? Haverá chances para o individualismo tão arduamente cultivado? Ou a solidão enfim vai acabar e levar com ela a única chance de tornar-se um megastar? Ou é possível unir as duas coisas, o sucesso e o amor-a-dois, vivido de maneira intensa e genuína.
O diálogo entre os dois amantes é desencadeado pela cara amarrada da mulher – que tem medo de estar pagando o maior mico em frente às câmaras, entregando-se para algo que não sobreviverá depois que a porta se abrir. Continua com a insistência de Supla em saber o que está acontecendo. Ele sabe do que se trata, mas quer que ela diga, para poder contestá-la – e assim, escapar do inexorável. Ela faz o jogo, amarrando a cara para – como confessou depois à amiga Patricia – arrancar dele uma esperança, a confissão de que o sentimento é real e será vitorioso no final. Ela execra a fuga permanente do namorado – que diz só sentir tesão e mais nada. Quer que ele se declare.
Este é o mais difícil e sofrido “eu te amo” da história dos casais. Virá, inevitavelmente. Talvez não dure, mas existe desde o primeiro momento do amor. Triunfa assim o imprevisível: a sinceridade impõe-se às armações. O jogo do amor vence o jogo da cobiça pelo dinheiro. A natureza dita as leis, e por mais que Barbara e Supla se debatam, terão que ser cumpridas.
É o fim da boa vida do Eduardinho. Ele já perdeu a luta, e não há melhor notícia para alguém que pensava ser rebelde e é apenas um rapaz de boa família. Silvio Santos ri à toa, pois seja qual for o desfecho, sai lucrando. Seria ingenuidade achar que todo esse quadro contrarie qualquer previsão de Maquiavel, mas este parece estar sendo traído pela excessiva auto-confiança. Enquanto isso, Deus, que está morrendo de pena de tanta falta de amor verdadeiro entre os casais, é quem acaba rindo por último.
Escrevi esse texto na primeira edição da Casa dos Artistas, que foi ao ar pelo SBT. É uma viagem na maionese que não acerta uma profecia. Mas serve como exercício de linguagem sobre relacionamentos, um território minado de poblemas hoje e sempre.r
EDUARDO E BARBARA NA CASA DOS ARTISTAS
Nei Duclós
Eduardo é nome traduzido de príncipe britânico e Barbara (feminino de bárbaro - estrangeiro, selvagem, invasor) é também matriz de Barbie, a personagem/objeto que se humaniza. O herdeiro avesso ao casamento é invadido por um sentimento estranho, o amor, e acaba cedendo quando defronta-se com Cinderela, a mulher de origem pobre e de precária mágica, que se desfaz na primeira badalada da meia noite. O sino tocará quando a Casa dos Artistas chegar ao fim. A pergunta é: Cinderela irá se recolher e esperar o eleito procurá-la por meio das pistas deixadas na festa? Haverá chance para o amor nesta reencarnação de um mito que virou história infantil?
Essa dúvida desencadeou o tenso diálogo entre Supla (nome artístico, alter ego de Eduardinho, apelido familiar) e Barbara (emergente que procura resgatar o status perdido do seu sobrenome Paz), que foi ao ar pelo SBT dia 4 no programa Casa dos Artistas. O conflito nasce do amor, armadilha da natureza que sempre surpreende os personagens. Como no drible tradicional de Garrincha, que enganava o adversário saindo inapelavelmente pela direita, o amor é manifestação do ineditismo num ambiente previsível. É esse bote do destino que faz o encanto dos folhetins. Mais forte – e com mais chances de longevidade - é o amor quando se manifesta pela diferença, como é o caso do príncipe e da Cinderela, o modelo mais bem acabado da intensidade da paixão entre opostos.
Somam-se, em benefício da verdade, as duas hipóteses sobre essa relação. A primeira é a de que é tudo armação – os dois estariam fingindo, para manter o Ibope alto. A segunda é a de que é tudo real – e eles estariam à vontade para colocar o que sentem, mesmo que isso signifique escancarar os perigos que corre o bem mais precioso da intimidade – o fato de estarem apaixonados. Somam-se porque, seja qual for a hipótese vencedora, não resta dúvida que trata-se de um divisor de águas na teledramaturgia.
Se for armação, não segue os cânones do paradigma mais próximo, o das telenovelas. Também não obedece à dramaturgia clássica, pois é extremamente mal “escrito”. Ou seja, se for tudo mentira, é um fenômeno de criatividade e por isso merece ser levado em consideração. Mas estamos diante de algo novo se a situação for real – e é essa hipótese que deve ser ungida como vencedora , pois muita coisa do programa escapou do planejamento original. A ira de quem é eliminado, por exemplo, é absolutamente sincera. Se a raiva é verdadeira, porque o amor seria falso?
Se o programa tinha como previsível as cenas picantes, já que espalhou pelos quartos, salas e jardins pessoas jovens e malhadas de ambos os sexos, talvez não tivesse nos planos as complicações – verdadeiras - que o amor e sua ética impõe num relacionamento a dois. A ética se manifesta pelo seu lado torto – o ciúme. Este, é a fome de honestidade provocado pelo sentimento genuíno e intenso. Qual o lugar do ciúme num ambiente de pessoas “descoladas”? Como unir a imagem de liberdade com a do compromisso?
O amor detona a situação e desestabiliza os protagonistas. O diálogo entre os dois demonstra essa instabilidade. Barbara teme a certeza que demonstra do seu amor – o que já é óbvio para todos. Ela não quer que Supla – sem retribuir - se sinta seguro quanto ao sentimento devotado por ela. Por isso repete o que ele diz em determinado momento do diálogo. “Eu também não sei o que vai acontecer quando sairmos daqui”, diz, sem convencer. Neste caso, a mulher cai do muro do individualismo de maneira mais radical e contundente, enquanto o homem mantém-se nele, mas já sem a mesma sensação de conforto.
O que vai acontecer no final do programa, todos sabem. Será rompido o invólucro que permitiu o nascimento do amor. O isolamento do casal numa casa com poucas pessoas, a falta completa de contato com o mundo externo facilitou a criação do ninho – aquele espaço que a natureza gera no coração e no corpo dos casais com objetivos bem explícitos. Essa delícia da proximidade está protegida enquanto durar o programa – apesar da maldade de alguns habitantes da casa, que implicam com o namoro.
Enquanto Barbara debate-se com esse drama, Supla está armadilhado em outro. Sua disponibilidade total, enfim, acabou. Barbara não é uma Japa Girl, a namorada de ocasião que vira amiga e tudo fica por isso mesmo. Cinderela pega mais fundo, amarra bem firme os pontos soltos de uma individualidade que estava à deriva e que enfim se encontra. O amor parece opor-se à súbita notoriedade, à carreira que enfim deslancha. Os novos namorados se perguntam: o que vale mais, a fama ou esse sentimento que preenche todos os espaços, que os derruba, que os envolve numa nova espécie de conflito? Haverá chances para o individualismo tão arduamente cultivado? Ou a solidão enfim vai acabar e levar com ela a única chance de tornar-se um megastar? Ou é possível unir as duas coisas, o sucesso e o amor-a-dois, vivido de maneira intensa e genuína.
O diálogo entre os dois amantes é desencadeado pela cara amarrada da mulher – que tem medo de estar pagando o maior mico em frente às câmaras, entregando-se para algo que não sobreviverá depois que a porta se abrir. Continua com a insistência de Supla em saber o que está acontecendo. Ele sabe do que se trata, mas quer que ela diga, para poder contestá-la – e assim, escapar do inexorável. Ela faz o jogo, amarrando a cara para – como confessou depois à amiga Patricia – arrancar dele uma esperança, a confissão de que o sentimento é real e será vitorioso no final. Ela execra a fuga permanente do namorado – que diz só sentir tesão e mais nada. Quer que ele se declare.
Este é o mais difícil e sofrido “eu te amo” da história dos casais. Virá, inevitavelmente. Talvez não dure, mas existe desde o primeiro momento do amor. Triunfa assim o imprevisível: a sinceridade impõe-se às armações. O jogo do amor vence o jogo da cobiça pelo dinheiro. A natureza dita as leis, e por mais que Barbara e Supla se debatam, terão que ser cumpridas.
É o fim da boa vida do Eduardinho. Ele já perdeu a luta, e não há melhor notícia para alguém que pensava ser rebelde e é apenas um rapaz de boa família. Silvio Santos ri à toa, pois seja qual for o desfecho, sai lucrando. Seria ingenuidade achar que todo esse quadro contrarie qualquer previsão de Maquiavel, mas este parece estar sendo traído pela excessiva auto-confiança. Enquanto isso, Deus, que está morrendo de pena de tanta falta de amor verdadeiro entre os casais, é quem acaba rindo por último.
23 de abril de 2003
VIAGEM
VIAGEM
Nei Duclós
Perdidos
pegamos as mochilas
e a vida nos fez visita
Batemos no ombro da madrugada
e ela espreguiçou-se pelo mundo
com o brilho pequeno
de quem se acaba
Nos lançou beijos cor de barro
e morreu depois de puxar o sol pelos cabelos
Chegamos nos caminhões de estrada
com apertos de mão e de palavras
à procura de um vôo
suado e sem retorno
Chegamos sempre ao anoitecer
quando as cidades se armam
com feras de aços e chapas brancas
com chaves que fecham portas de ferro
O futuro nos saudou
mas o passado
sujou nossos abraços
Voltamos sepultados
Estávamos a um passo
da liberdade
(Do livro Outubro, 1975, IEL/RS-A Nação)
Nei Duclós
Perdidos
pegamos as mochilas
e a vida nos fez visita
Batemos no ombro da madrugada
e ela espreguiçou-se pelo mundo
com o brilho pequeno
de quem se acaba
Nos lançou beijos cor de barro
e morreu depois de puxar o sol pelos cabelos
Chegamos nos caminhões de estrada
com apertos de mão e de palavras
à procura de um vôo
suado e sem retorno
Chegamos sempre ao anoitecer
quando as cidades se armam
com feras de aços e chapas brancas
com chaves que fecham portas de ferro
O futuro nos saudou
mas o passado
sujou nossos abraços
Voltamos sepultados
Estávamos a um passo
da liberdade
(Do livro Outubro, 1975, IEL/RS-A Nação)
21 de abril de 2003
TIRADENTES
Nei Duclós
Estamos frente ao cadáver
de Tiradentes, homem e mártir
Tambor partido da liberdade
que o tempo não devora
e o pó não cobre
Sereno herdeiro da guerra
primogênito da pátria
Arcanjo anunciador
firme senhor da morte
irmão de viagem
que na luta
repartiu o corpo
como um pão enorme
RETORNO - Poema do livro "No Mar, Veremos", Ed. Globo, 2001
13 de abril de 2003
INFÂMIA E MISERICÓRDIA
INFÂMIA E MISERICÓRDIA
Nei Duclós
(www.consciencia.org/neiduclos)
Carandiru é um filme que fala para as trevas – as que ficam do lado de fora da prisão, onde o espectador se encontra. Na câmara escura onde nos acomodamos, olhamos pela fechadura em direção à nossa obra, a prisão dos culpados. Somos "inocentes" porque estamos sentados em cima de uma mentira, a sociedade que deveria ser civilizada. Para nos aproximar do mundo que relata, o diretor Hector Babenco filma a mentira contada pelos bandidos – a sociedade que eles inventam no caos, para continuarem vivos. Cria assim a identidade entre duas ficções e puxa o tapete para ninguém cair no samba.
O que importa não são as histórias, mas as condições da prisão, ou seja, a infâmia. Perto do Carandiru, o cárcere turco de O Expresso da meia Noite é uma estação de férias. E em cada carceragem de delegacia na esquina de nossa casa o mesmo inferno se repete, aqui e agora. Isso parece não incomodar a “sociedade”. O que incomoda é o quanto se gasta com cada preso e a ausência da pena de morte. O cerco da indiferença precisa ser rompido e por isso Babenco apela para o bizarro ao focar as relações humanas.
Ele constrói uma ponte inverossímel entre os personagens, como o casamento de Lady Di com Sem Chance, a espera, sob uma tenda, da filha que não veio visitar o velho preso, a solidariedade fraterna entre dois amigos de infância que acaba em morte num banho de água quente. O que não faz sentido na relação humana realça a crueza do assassinato maior, que é o chão cheio de sangue, os porões mofados de gente, os ferros enferrujados, a lama no pátio, as paredes carcomidas. A realidade física é o verdadeiro centro da trama. O pesadelo do concreto, das grades e da sujeira é que costura a múltipla escolha de histórias pessoais.
Diante do horror, o olhar clínico do médico narrador é a necessária humanização da catástrofe. O sorriso permanente é uma defesa que, no meio dos escombros, denuncia como um retrato a indiferença do espectador. O médico narrador sai ileso como um contrabandista que conta com a confiança da polícia. Mas o espectador sairá ileso dessa experiência?
Babenco radicaliza ao desdramatizar o final colocando Aquarela do Brasil sobre os escombros da prisão, numa gravação antiga, como se pertencesse a um velho filme carnavalesco da Atlântida dos anos 50. É a expressão da brasilidade cinematográfica de Babenco, que trafega entre Glauber Rocha e a chanchada. Glauber é referência explícita quando o travelling dos presos assistindo a partida de futebol reproduz o movimento da câmara sobre os pés dos candangos em Idade da Terra. O casório de Lady Di e Sem Chance liga-se com a cena de Romeu e Julieta entre Oscarito e Grande Otelo.
O gran finale de Babenco em Carandiru serve-se da radicalidade brechtiana, como já aconteceu com José Celso Martinez Correa na sua montagem de Galileu Galilei, quando o final é coroado com todo o elenco dançando ao som de Um Banho de Lua, com Cely Campelo. Aquarela do Brasil devolve o espectador à sua própria realidade, retira-o das trevas por onde esteve imerso por três horas, mas não o isenta da culpa. Como é dito no filme, se houvesse remédio para a culpa, todo mundo iria querer.
Basta sair do cinema, pegar um táxi e ouvir do motorista que não entende porque o governo não mata o Beira-Mar. A infâmia do cárcere jamais poderá ser resolvida com violência. Nem tampouco com omissão. O filme aponta para a necessidade de misericórdia no coração das trevas. Ou a sociedade corta o elo da violência, ou se afogará nela para sempre.
Nei Duclós
(www.consciencia.org/neiduclos)
Carandiru é um filme que fala para as trevas – as que ficam do lado de fora da prisão, onde o espectador se encontra. Na câmara escura onde nos acomodamos, olhamos pela fechadura em direção à nossa obra, a prisão dos culpados. Somos "inocentes" porque estamos sentados em cima de uma mentira, a sociedade que deveria ser civilizada. Para nos aproximar do mundo que relata, o diretor Hector Babenco filma a mentira contada pelos bandidos – a sociedade que eles inventam no caos, para continuarem vivos. Cria assim a identidade entre duas ficções e puxa o tapete para ninguém cair no samba.
O que importa não são as histórias, mas as condições da prisão, ou seja, a infâmia. Perto do Carandiru, o cárcere turco de O Expresso da meia Noite é uma estação de férias. E em cada carceragem de delegacia na esquina de nossa casa o mesmo inferno se repete, aqui e agora. Isso parece não incomodar a “sociedade”. O que incomoda é o quanto se gasta com cada preso e a ausência da pena de morte. O cerco da indiferença precisa ser rompido e por isso Babenco apela para o bizarro ao focar as relações humanas.
Ele constrói uma ponte inverossímel entre os personagens, como o casamento de Lady Di com Sem Chance, a espera, sob uma tenda, da filha que não veio visitar o velho preso, a solidariedade fraterna entre dois amigos de infância que acaba em morte num banho de água quente. O que não faz sentido na relação humana realça a crueza do assassinato maior, que é o chão cheio de sangue, os porões mofados de gente, os ferros enferrujados, a lama no pátio, as paredes carcomidas. A realidade física é o verdadeiro centro da trama. O pesadelo do concreto, das grades e da sujeira é que costura a múltipla escolha de histórias pessoais.
Diante do horror, o olhar clínico do médico narrador é a necessária humanização da catástrofe. O sorriso permanente é uma defesa que, no meio dos escombros, denuncia como um retrato a indiferença do espectador. O médico narrador sai ileso como um contrabandista que conta com a confiança da polícia. Mas o espectador sairá ileso dessa experiência?
Babenco radicaliza ao desdramatizar o final colocando Aquarela do Brasil sobre os escombros da prisão, numa gravação antiga, como se pertencesse a um velho filme carnavalesco da Atlântida dos anos 50. É a expressão da brasilidade cinematográfica de Babenco, que trafega entre Glauber Rocha e a chanchada. Glauber é referência explícita quando o travelling dos presos assistindo a partida de futebol reproduz o movimento da câmara sobre os pés dos candangos em Idade da Terra. O casório de Lady Di e Sem Chance liga-se com a cena de Romeu e Julieta entre Oscarito e Grande Otelo.
O gran finale de Babenco em Carandiru serve-se da radicalidade brechtiana, como já aconteceu com José Celso Martinez Correa na sua montagem de Galileu Galilei, quando o final é coroado com todo o elenco dançando ao som de Um Banho de Lua, com Cely Campelo. Aquarela do Brasil devolve o espectador à sua própria realidade, retira-o das trevas por onde esteve imerso por três horas, mas não o isenta da culpa. Como é dito no filme, se houvesse remédio para a culpa, todo mundo iria querer.
Basta sair do cinema, pegar um táxi e ouvir do motorista que não entende porque o governo não mata o Beira-Mar. A infâmia do cárcere jamais poderá ser resolvida com violência. Nem tampouco com omissão. O filme aponta para a necessidade de misericórdia no coração das trevas. Ou a sociedade corta o elo da violência, ou se afogará nela para sempre.
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