31 de maio de 2009

PORQUE FLORIANÓPOLIS NÃO SERÁ SEDE DA COPA


O pessoal da Fifa preferiu Natal e eliminou Florianópolis da Copa de 2014. Natal é mais próxima da Europa, dizem. Porque Floripa não tem estrutura, argumentam. Porque não teve competência para se impor, falam por aí. Mas os motivos são outros. Descobri por acaso, num relatório feito por um espião da Fifa. Na cópia esquecida na areia no centrinho aqui de Ingleses, no norte da Ilha, há uma lista de argumentos definitivos para não sediar na capital catarinense um evento tão importante. São eles:

Porque nos dias de jogos iria chover. E choveria não só nos noventa minutos, como também nos treinos, nas horas de ir ao estádio ou sair dele. Nos dias sem jogos, não haveria chuva sob hipótese nenhuma. Seria só vento sul e eventualmente um ciclone extra plus tropical atípico. No final da Copa, quando todo mundo fosse embora, abriria o mais esplendoroso sol com céu azul de anil.

Porque, como diz o hino da cidade, aqui é um pedacinho de terra perdido no mar. É difícil para uma equipe com 22 jogadores, mais comissão técnica, mais jornalistas etc. pegar um navio, navegar semanas para chegar e descobrir que as pontes da ilha ao continente não ultrapassam os mil metros de extensão. Ou que a cidade tem a maior parte da população no continente. Prestar atenção nesses detalhes sem importância é pura implicância. Coisa de quem não é daqui.

Porque a Copa seria feita pelos que não são daqui. Não teria Guga nem Teco Padaratz, nem ninguém nascido embaixo da figueira. E como seria disputado no inverno, ficaria impossível vender bebida hipergelada, que é uma lei local. Não existe o conceito de temperatura ambiente. Ou as coisas são geladas ou quentes. “Quer quente, é? Então espera aí que vou te servir um café”. Por isso guarda-se no freezer tudo o que vem das fábricas de bebidas. Nada fica fora da temperatura abaixo de zero. Isso seria trair a ilha, terra de moça faceira, da velha rendeira tradicional.

Porque a Copa não poderia ser disputada no horário do almoço. Porque tudo para no horário do almoço, até mesmo os restaurantes, que fecham para o almoço. E seria duro ouvir a advertência tradicional de “não me apareça mais aqui no horário do almoço”.

Porque ninguém poderia chegar a tempo no jogo. Todos os acessos estariam lotados de pessoas que querem chegar ou sair do aeroporto.

Porque os argentinos não reconhecem a cidade no inverno. Eles só chegam no verão para ver las chicas, comer camarón, morar em Canasvieiras e freqüentar a praia do Santinho. Os argentinos desconhecem os outros extremos da ilha, para onde teriam que ir em dia de jogo. Se perderiam pelo caminho e acabariam na BR-101, em direção a Curitiba ou Porto Alegre. Então, é melhor ir direto para essas cidades, que foram aprovadas pela Fifa.

Porque, aqui, todo o corpo em movimento permanece em movimento. É um paradoxo difícil num terra com tantos engarrafamentos, principalmente para motoristas adventícios, que ficarão ilhados entre pedestres que jamais cortam o passo, bicicletas que nunca deixam de seguir em frente e automóveis que cruzam as preferenciais porque preferencial é exclusivo para quem é daqui. Vieste de fora e queres ter a preferencial?

Porque ninguém poderia derrubar o boi de mamão, feito de barro colorido, senão teria que pagar a loja toda. Não tem?

Confesso que fiquei aliviado. Assim poderei assistir os jogos pela televisão. Se fossem disputados aqui, não haveria transmissão direta. Teríamos que seguir pelo rádio ou acompanhar as atualizações nos sites informativos. Copa fora de casa é mais confortável. Comendo tainha, que gostam de aparecer quando há frio, vento e chuva.

RETORNO - Imagem desta edição: estádio da Ressacada.

30 de maio de 2009

RUBEM BRAGA E OS CONTEMPORÂNEOS


Nei Duclós

Quem veio antes? Rubem Braga ou a realidade encantatória que ele capturou em suas crônicas? Teria o mundo alimentado Braga ou o que lemos nele é tudo invenção? Houve mesmo um país em que Sergio Buarque de Holanda, depois de tomar umas e outras, disse que iria acender um fósforo na Lua? Seria mesmo real o momento em que dois correspondentes de guerra brasileiros e um chofer nascido em Bagé, vestindo uniforme militar dos Aliados, foram recebidos como libertadores nos confins da Itália? Será mesmo verdade que Gilberto Freyre foi preso por atentado ao pudor, tendo feito amor nas trincheiras sagradas de Guararapes, local onde os brasileiros surraram os holandeses?

O próprio Rubem Braga faz um acordo com o outro correspondente do front da II Grande Guerra, Joel Silveira, de se respeitarem suas versões mutuamente para não haver conflito. Assim combinados, estariam livres para dizer o que bem entendessem. Essa liberdade narrativa era a manifestação do gênio dos nossos escritores, que perdemos? Eles eram fruto do Brasil que ao descambar, perder o foco, ruir, deixou ao Deus dará os que vieram depois?

Teríamos nós, os que nasceram mais tarde, perdido o rastro ou nunca o tivemos? A existência de tantos autores que nos grudam em seus livros até hoje teria sido obra dos astros, de um jogo coletivo de criação, que teria feito uma barreira às nossas misérias e nos levado para um Xangrilá literário difícil de superar? Por que tudo soa maravilhoso mesmo quando eles falam de solidão e morte? “O Brasil é, principalmente, uma certa maneira de sentir” nos diz o velho Braga ao comentar a solidariedade entre a lavadeira que sofria com a chuva no morro, mas dizia que isso era bom para a lavoura. E que adorava as frases suntuosas de autores mais antigos e que o deslumbravam pelos detalhes, pela abundância, pela força. Brasil, mistério que nos invoca, sumiu bem na nossa vez, quando pegaríamos o bastão para chegar ao pódio, ou não nascemos para isso, para transcender nossa realidade como tantos fizeram antes de nós?

Uma coisa recorrente nos escritores que nos abandonaram, pela idade ou morte súbita, quando chegamos à vida adulta, é que tinham consideração pela inteligência do leitor. Uma das provas é que limparam a língua de todo o estorvo e nos legaram um texto enxuto, brilhante, eterno, sem as seqüelas do provincianismo, dos anacronismos, da pomposidade, da ostentação e da tautologia. Rubem Braga escrevia assim: “Meu caro Vinicius de Moraes. Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação”.

Já Antonio Cícero, na Folha deste sábado, escreve: "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".

Depois não sabem porque hoje jornal sobra na banca e naqueles idos, que tinha informação de sobra nas rádios e muito lazer e cultura nos cinemas, as pessoas faziam fila para assegurar seu exemplar. Não é culpa da internet nem nada. A culpa é dessa indigência mental dos bem nutridos, que se acham superiores e não enxergam o país e sua grandeza.

RETORNO - Imagem desta edição: uma seleção brasileira de autores. José Carlos Oliveira, entre Rubem Braga e Vinícius de Moraes; atrás, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto; ao Lado, Fernando Sabino.


UMA FOTO RARA

Agora está completo: meu texto O repórter que parou o avião, publicado no Diário da Fonte no dia 4 de março de 2009, está ilustrado por esta magnífica e rara foto que nos mostra Edemar Ruwer, o repórter em questão. Ela me foi enviada pelo irmão, Renato, que disse o seguinte: "Em nome da familia de Edemar, agradeço as belas manifestações, pois era esse o cidadão, sorridente, dedicado e inconsequente que queria endireitar o mundo, que as pessoas admiravam. Abraços. Renato Ruwer. "

CRISE E OPORTUNIDADE: ENFIM, UMA VINGANÇA


Dificilmente coloco aqui textos alheios, mas descobri um ensaio lapidar sobre esse lugar comum idiota que tomou conta da mídia: a velha arenga do ideograma chinês que significa crise e oportunidade ao mesmo tempo. O autor é Renzo Mora, que, segundo seus amigos, está “envelhecendo mal e ficando cada dia mais ranzinza”. O papo furado sobre o ideograma já foi destrinchado pela jornalista Naomi Klein, que denunciou a fabricação das crises para intensificar as oportunidades dos tubarões. Mas o escritor Mora vai mais fundo. Vejam:

De: Renzo Mora

"Os chineses usam o mesmo ideograma para definir crise e oportunidade. O que podemos aprender com isso? Nada. Aparentemente, eles também usam o mesmo ideograma para chamar tanto um porco-espinho quanto uma mesa para quatro pessoas posta para refeições, o que já provocou mais de um incidente em restaurantes chineses.

Ao que tudo indica, houve um crescimento explosivo de palavras que não foi acompanhado pelo departamento nacional chinês de desenvolvimento de novos ideogramas, o que provocou um agrupamento desordenado de palavras sem o menor sentido. Desta forma, frases como “quero uma sopa de aspargos sem cebola” e “já comi sua mãe” também utilizam a mesma sequência de fonemas,o que explica o enorme número de chineses que saem de restaurantes feridos, não raro com um porco-espinho introduzido com violência na via retal.

Tudo isso para comentar o texto do New York Times publicado hoje pela Folha de São Paulo, que diz: “Desaceleração econômica global, arrocho do crédito, desemprego em alta, mercados em queda: “É um momento maravilhoso”, disse o reverendo A.R. Bernard.

Bernard, pastor sênior do Centro Cultural Cristão no Brooklyn, Nova York, explicou ao “New York Times” que economias em fase negativa podem ser positivas para igrejas. Descrevendo a turbulência atual como “grande oportunidade evangelista para nós”, ele disse que as congregações crescem em tempos de ansiedade. “Quando as pessoas se sentem abaladas até o âmago, isso pode abrir portas”, explicou.”

Ótimo. Então as pessoas estão perdendo seus empregos e suas casas para que as igrejas possam fazer mais fiéis.Como no malfadado ideograma chinês, crise e oportunidade se encontram e passeiam no parque de mãos dadas.Imaginem a alegria do caridoso Reverendo Bernard quando tivermos um terremoto acompanhado de uma erupção vulcânica e seguido por um tsunami." (Atenção: este texto é de Renzo Mora)

28 de maio de 2009

NÃO EXISTE “CRESCIMENTO NEGATIVO”


O ministro Guido Mantega disse que o Brasil teve “crescimento negativo” no primeiro trimestre, mas que isso não significa recessão. Ainda bem que ele avisou. Ninguém cresce para menos. Quando algo ou alguém não cresce e, ao contrário, perde estatura, volume, intensidade, dizemos que encolheu. É o be-a-bá. É o que está acontecendo na China: deu para trás em economia, o gigante produtor de porcarias e sucateador de indústrias do Terceiro Mundo. As más notícias, por mais panos quentes que o governo tente colocar, desmascaram a propaganda deslavada sobre os feitos econômicos do lulismo no poder. A verdade é o que está acontecendo segundo a empresária da loja Yellow Cake, de São Paulo, em depoimento a Monica Bergamo da Folha: não existe mais novo rico, só novo pobre.

Ou seja, contingentes do que chamávamos elite caíram, montes de classe média desceram, a miséria aumentou, e isso, por eliminação, destacou uma faixa, classificada de classe C, que teria “ascendido” socialmente. Nada. Ficou onde está, só que com mais visibilidade e facilidades (é o contingente que mais atrai a ganância), com mais crédito para enriquecer as montadoras de automóveis e motos. Quando eu for presidente da República, vou fechar as fábricas de motos e proibir esse transporte barulhento e perigoso. O atual governo faz o contrário: estimula a merdalhama de duas rodas, que agora invadiu o ermo. Imagino como estará o interiorzão do Brasil cheio do roc roc das motoquinhas fajutas.

Vai tudo estragar e ser empilhado nos terrenos baldios da nossa incúria. Bastou chover para o país expor suas vísceras, de norte a sul. O que vemos nas enchentes? Acampamentos, que chamam de cidades, feitos de barro e pau-a-pique indo para o brejo. Rios invadem avenidas em qualquer parte da nação em ruínas. Milhares de desabrigados, pessoas que já nem tinham casa, tudo feito de cocô de formiga, e agora muito menos. Parece que no Maranhão ou Piauí, deram um kit enchente no valor de um pau e trezentos e cinqüenta para os flagelados reconstruírem seus barracos de pau a pique.

É muita cara de pau. Se eu fosse governante, teria vergonha de visitar favela. Simplesmente mandaria construir o que todo governo deve fazer: infra-estrutura para moradias e casas mesmo para a população hoje ao desamparo. É tão simples, é tão barato. Basta pegar toda a bufunfa que entregam para as empreiteiras donas do concreto, dos insumos todos de construção, e que são uma fonte de permanente corrupção, e jogava na mão do povo trabalhador, orientado por políticas públicas de urbanização e saneamento. Por que não fazem isso? Porque acham que o povo é burro mesmo e pobre de nascença (nasce analfabeto, coitado) e merece refazer casa de João de Barro, enquanto os maganos pegam a grana para voar para a Europa.

Qual a contribuição dos bilhões gastos nas mordomias políticas para o “crescimento negativo”? Essa estatística eles não mostram. O país tungado pelo abuso dos impostos não tem onde cair morto. Uma barragem do Piauí se parte: não temos mais nem engenharia. Tudo descamba, enquanto o lulo-petismo, apoiado pelo pseudo trabalhismo de araque, faz gato e sapato da nação que um dia foi soberana. Para onde foi o patriotismo? Para o bolso dessa súcia que tomou o poder em 64 e não saiu mais até hoje. Dá gosto ver Sarney, o ex-presidente do PDS, o partido da ditadura, e Lula, o sindicalista das montadoras que inventou um clone do trabalhismo, flertando publicamente com seus sorrisos cevados por gordas fatias do dinheiro público.

E falam em terceiro mandato. E nos ameaçam com Serra ou Aécio ou Dilma. Quem são esses sujeitos? Quem lhes deu o poder de dispor da nação? Enquanto isso, o jornalismo festivo perde tempo com eventos, matérias sobre cabelos e pentelhos e deixa de lado a informação pura e simples, já que não existe mais apuração, nem mais jornalismo. Virou tudo uma choldra só. O carro caiu na ribanceira, mas como não houve ocorrência policial, a reportagem só filmou o resultado do desastre. Não pegou a placa do veículo, não viu quem era o dono, não procurou saber porque foi abandonado na beira do lago. Ah, mas diga lá, Repórter Farofino, como está aí a festa italiana, escocesa, japonesa? Está muito bom? Hummmmm.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: peguei aqui. 2. Escrevi o texto acima antes de ver o programa do PT na televisão. Quem aparece lá? O mesmo Guido Mantega, desta vez falando em crescimento mesmo e não crescimento negativo. Que o Brasil está suportando a crise mundial por obra do PT.

3. A baba que o governo Lula gastou em publicidade, R$ 6,3 bilhões de 2003 a 2008, diz tudo sobre a ditadura maquiada de democracia que nos governa. Um governo democrático não precisa usar o dinheiro do povo para mentir. Usa o dinheiro do povo para fazer o que um governo mentiroso diz que faz. 4. O programa falou em um milhão de moradias. Gasta mais dinheiro alardeando que vai construir casas do que o custo das casas.

VERANICO


Nei Duclós

maio se despede com o tempo em brasa
último aceno do verão, tardia praia

prenúncio do frio temido pela alma
(exílio juvenil de sombrias memórias)

nuvens rondam gargalhando sombras
o sol é mormaço feito de pó

maio amortece as marcas do coração
pálida trégua de uma perdida guerra

RETORNO - 1. Poema do livro Partimos de Manhã. 2. Imagem desta edição: foto de Ida Duclós.

27 de maio de 2009

A NÓS, A LIBERDADE


Nei Duclós

Tenho visto vários filmes de prisão, como Força Bruta, do grande Jules Dassin, um cineasta que ainda não destaquei devidamente aqui e é autor de algumas obras-primas, como The Night and the City, uma Londres americana filmada sob influência do neo-realismo, e, pelo menos, a sequência final de seu clássico Rififi, feito na França, quando se exilou do macartismo (sempre ele, o lacerdismo original do primeiro mundo).

Como Rififi é muito antigo, de 1952, posso contar essa seqüência: o ladrão, aqui protagonista e herói, ferido de morte, leva no seu carro o menino que tinha sido seqüestrado. Paris jamais foi filmada com tanto desespero, de baixo para cima, com os edifícios e monumentos famosos rodopiando conforme o carro é dirigido nas curvas das ruas. O garoto, libertado da mão da quadrilha, está vestido de cow-boy. Ri e brinca apontando seu revólver de brinquedo enquanto seu salvador agoniza. É de matar. É cinema para empolgar quem vê em qualquer época. É arte-paradigma, que põe no chinelo as últimas décadas de bobagens comerciais.

Os filmes dos anos 30 a 50 focam a prisão como um lugar de vítimas do sistema que tudo fazem para escapar. Torcemos pelos condenados e lamentamos quando são pegos. Era um tempo de crítica ao capitalismo, não como agora, em que o capitalismo faz parte da natureza humana. Hoje, as prisões do cinema são nichos de fortudos que se amam e acabam de engalfinhando em pátios sujos de lama, como vi inúmeras vezes. Não há mais justificativas para quem está na cela, a não ser pelo fato de haver o herói que vai se vingar (e normalmente consegue) dos bandidos no poder. Carandiru é uma contribuição interessante, pois flagra o colapso do sistema, a brutalidade cega e suicida da repressão e a culpa abraçada à doença, num reflexo poderoso do Brasil em ruínas.

Ninguém poderá ver nos prisioneiros do Carandiru um herói, como aconteceu com O Homem de Alcatraz ou mesmo os dois protagonistas do impressionante A nous la liberté, de René Clair, que faz, de dois condenados, modelos da luta pela libertação. Naquela época, o foco eram os princípios. A prisão era o retrato do sistema. A obra de René Clair, de 1931, foi claramente plagiada por Chaplin em Tempos Modernos, de 1936. Houve um processo da produtora do filme de Clair que se arrastou por dez anos. Chaplin cedeu, a mando dos seus advogados, mas jamais admitiu o plágio, notório e explícito. Clair não quis entrar no rolo, disse que era uma homenagem e acabou amigo de Chaplin.

As imagens de A nous la liberté não mentem: não há diferença entre a fábrica e a prisão. A história é uma utopia fundada na esperança da ciência como instrumento de redenção. Um dia, diz essa lenda, as máquinas farão tudo e seremos livres para sempre. A sequência final (feita há 80 anos, posso contar), em que as esteiras desovam produtos enquanto os operários bebem vinho e jogam cartas e a população faz pic-nic no parque ou dança ao ar livre, é a corporificação dessa utopia. Os dois ex-condenados reencontram a liberdade pegando a estrada como dois vagabundos, numa premonição dos anos 60 (forçando um pouco o anacronismo).

Há também, antes do fim, a sequência do vendaval que joga o dinheiro para o ar e surra o velho que faz um discurso obsoleto. Capitalistas e operários lutam pela grana, sem ver o que o filme mostra: o final dos tempos e o início de uma era de libertação. René Clair inclusive coloca todo um aparato que lembra muito a rede de computadores. Tudo é feito pelo modo analógico, claro, mas a cena em que o patrão consegue a foto e o perfil de dois funcionários em poucos segundos é uma previsão com grande margem de acerto.

Visto hoje, quando a robótica avança na indústria, a informática libera as pessoas de ficarem em seus ambientes profissionais, podendo trabalhar em casa, sabemos que falta algo à utopia de Clair: a de que a exclusão continua e aumenta, e a tecnologia muitas vezes é usada para gerar mais miséria, como acontece com a especulação financeira on-line.

Considero contemporâneos todos os filmes feitos nestes mais de cem anos de história do cinema. Não existe filme antigo. É tudo hoje. Duvido que consigam mais impacto visual do que em Aurora, de Murnau. Duvido que reflitam melhor a desumanização no trabalho do que A nous la liberté. Duvido que haja tragédia maior do que Burt Lancaster em Força Bruta: depois de peitar meio mundo na prisão, e jogar o algoz de cima da torre de comando, ele não consegue abrir o portão que estava trancado por um caminhão jogado ali exatamente para romper aquela barreira.

Temos de ter acesso o tempo todo aos milhões de filmes de mais de um século de Sétima Arte. Todos eles são de hoje. Precisamos do cinema para libertar nossa percepção. Para nós, escravos, a liberdade.

RETORNO - 1.Imagem desta edição: cena de "A nous la liberté", em que operários podem jogar carta em pleno expediente.

BATE O BUMBO: ANIVERSÁRIO DE URUGUAIANA

Repassei para o assessor de imprensa da prefeitura da minha cidade, o incansável e operoso Rubens Calliava Montardo Junior, este e-mail enviado ontem, dia 26 de maio, por Clovis Heberle: "Nei, hoje, aniversário de Uruguaiana, o Jornal do Almoço foi transmitido de uma praça da cidade. Deu gosto de ver a alegria do povo e as imagens de uma cidade limpa, bonita e orgulhosa. Também me chamaram a atenção o restaurante popular para 600 pessoas e uma particularidade meteorológica: é a cidade brasileira com maior amplitude térmica (o contraste entre o frio do inverno e o calor do verão). Um abraço. Clovis. PS - parece que o Sanchotene Felice está se consagrando como um dos melhores prefeitos que Uruguaiana já teve".

Parabéns, cidade eterna e muito lembrada e querida. Nós somos tu, onde formos, onde estivermos.

26 de maio de 2009

POVO


Nei Duclós

A casa onde fui criado é ampla, de esquina, e naqueles idos situava-se nos últimos metros da rua asfaltada. Depois dela vinha o pedregulho, que desembocava na beira do rio. Nessa região fora do circuito morava o “povo”. Algumas janelas eram voltadas para a parte nobre do calçamento e outras para o lado obscuro do país, de onde emanavam os melhores parceiros das palhaçadas da infância, desde rodar um trouxa encurvado num pneu velho até o assassinato regular de passarinhos.

Morávamos em frente ao colégio que nos “desasnava” (para usar um verbo caro a Monteiro Lobato). Os professores maristas vinham de regiões de migrantes e falavam com sotaque carregado de italiano e alemão. Brasileirinhos, entrávamos em aula só depois de fazer fila no pátio e não começávamos os estudos sem antes rezar para Deus e a Santa Maria. Éramos avaliados todas as semanas por meio de pontos acumulados na nossa aplicação. Nas redações, aprendíamos religião e português e desenvolvíamos uma persona estilizada, que traçava nosso destino, quando deixaríamos para sempre as origens e o berço para assumir o processo civilizatório.

Mas bastava bater o sinal para que arrebentássemos em bando, improvisando bola de papel e meia de um futebol precário e violento. Era preciso, como fazia meu pai, proibir as brincadeiras durante a semana e só permitir a muvuca aos domingos (sábado era dia útil) e nas férias. Isso intensificava as artes e ofícios das brutalidades infantis na escassa margem de tempo em que fazíamos parte do povo brasileiro, improvisando nas brincadeiras a sabedoria que mais tarde garantiria a sobrevivência no país em ruínas. É como dizem hoje nos documentários da natureza sobre leõezinhos na savana: tudo era um exercício para a guerra futura.

Nossa vantagem é que tínhamos sido treinados nas noções poderosas de cultura e conhecimento. Éramos o povo de uma soma que foi abandonada e hoje exibe as feridas da nação deslocada do seu foco. Ninguém mais é brasileiro, essa delícia de ser único num planeta de misérias. Somos todos gaúchos, catarinenses, italianos, russos, açorianos, baianos ou mineiros. O Brasil ficou para trás ou longe de nós, como um moleque que sabia a tabuada e aos nove anos já fazia poemas sobre a criação do mundo.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 26 de maio de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: o destacamento do meu pai, Seu Ortiz (que está à direita da foto, de bigode, recostado, ao lado da menina), em 1932. Houve guerra no Brasil e o povo brasileiro sempre esteve nela. Foto cedida por meu irmão, Elo Ortiz.

25 de maio de 2009

NÃO EXISTE “INVEJA NO BOM SENTIDO”


Nei Duclós

Admirar é reconhecer no Outro algo que transcende, que está acima do nível comum. Implica desejo de vida longa, para que a pessoa admirada continue produzindo o que causa espanto e emoção nos seus semelhantes. Ou, quando é o caso de alguém que já partiu, que mantenha intacto o perfil de sua trajetória ou a grandeza de suas obras.Implica também renúncia, pois quem admira reconhece no Outro as qualidades que não possui, ou compartilha, ou seja, divide.

Inveja é exatamente o contrário. É o desejo de roubar a obra alheia, e, em conseqüência, eliminar de todas as formas não apenas a autoria, mas o autor. É manifestação do Mal e só existe nesse sentido. O invejoso é incapaz de admirar, então quer ter o que pertence a outra pessoa. Flagrado, muitas vezes por ele mesmo nessa posição mesquinha, defende-se dizendo que sua inveja é “boa”, ou no “bom sentido”. Ludibriar o que sente de verdade, driblar a percepção alheia sobre seu crime, é a esperteza dos falsos inocentes.

“Certo”, diz essa versão, “fui pego invejando, mas veja bem, estou no fundo admirando”. Então por que não diz que admira? Porque admirar, nesta selva de egos repulsivos, é estar em desvantagem, é admitir que alguém tem a chave e o carisma. Isso pode causar prejuízo! O invejoso não consegue permitir (pois pode perder dinheiro) que Deus distribua sua graça para o próximo, nem entender que essa graça é infinita e faz parte de tudo. Basta prestar atenção ou esperar a sua vez, e não fazer como Caim, que não suportava Abel, o favorito. Admirar é fazer justiça, invejar é transgredi-la.

O mais difícil da admiração é que ela parece ser de uma injustiça sem fim. Por que fulano tem tanto, como se perguntava Salieri sobre Amadeus, por que Deus fez essa escolha? O talento considerado excessivo atrai a inveja mortal dos contemporâneos. A inveja é a véspera do assassinato. Quando o talento é saqueado, a beleza apunhalada, a generosidade traída, todos sabem qual é o instrumento da destruição. É fácil detectar a origem. Normalmente, o criminoso bate no peito, orgulhoso da sua inveja.

No “bom sentido”, claro. Ou seja, ele é ruim até o osso, mas quer posar de bom garoto. Ele fez tudo para que alguém acima da média fosse esquecido, pilhado, achincalhado, mas ninguém notou a autoria do crime. No fundo, vejam, ele "gosta" de quem o desmoraliza! Pois não canso de repetir: a mediocridade fareja o talento e o elimina porque o talento desmascara a idiotia bem pensante, a pose da correção impoluta, o latifúndio da presença sem brilho, a imensidão da vulgaridade bem remunerada.

O rei está nu, diz o gênio, que tem o dom de ver mais do que o normal. É por isso que os grandes espíritos ficam em desvantagem e morrem esquecidos num hospital público, entubados, respirando por aparelhos até se irem aos poucos, enquanto os invejosos preparam suas notinhas mesquinhas, tentando enquadrá-lo em alguma gaveta usando um expediente maroto: o de fazer caber num dedal o mar oceano.

Cabe a nós, os que lamentam a perda, resgatar o verdadeiro sentido de uma vida que tudo deu de si e extrapolou, enchendo de sabedoria seu tempo e seus semelhantes. Cabe também a nós denunciar quem , de maneira sorrateira e na maior cara de pau, diz que o erudito não passava de um reles resenhista e seu romance, ignorado em vida, era bom mesmo.

Invejosos, cuidado. Tudo tem um limite. Estamos atentos.

RETORNO - Imagem desta edição: Amadeus Mozart, o menino prodígio, autor das mais belas músicas do mundo, morreu antes dos 40 anos e foi enterrado numa vala comum.

SOBREPIQUE - DANIEL PIZA E ONOFRE

Nesta nova seção, Sobrepique, vou destacar sempre alguma troca de recados que tenham importância para nossos assuntos. Hoje, coloco aqui o que aconteceu no blog do Daniel Piza, que por motivos misteriosos ocupa vastos latifúndios na mídia e na indústria de livros. A certa altura, como podem verificar no link, ele tascou: "Outro grande jornalista brasileiro que merece ter seus melhores textos reunidos, José Onofre, morreu na terça passada, aos 66 anos. Escrevia como poucos sobre cinema americano, especialmente western. Agora, como no filme de seu diretor preferido, John Ford, imprima-se a lenda. Bons textos não morrem jamais".

No espaço dos comentários, coloquei o seguinte: "José Onofre escrevia sobre literatura, autores clássicos e contemporâneos. Escrevia também sobre cinema, e não apenas western. Tinha vários diretores preferidos, e não apenas um. Deve-se, como escrevi ontem nos comentários do blog do Merten, reunir seus textos em livro. Imprima-se a verdade: a diversidade do talento e da erudição de José Onofre. E não a lenda: a de que sua especialidade era western ou John Ford. O trabalho de José Onofre serve de parâmetro. As pessoas não precisam acreditar, forçadas pela hegemonia das nulidades, que no jornalismo cultural brasileiro só existem mediocridades com pose de produção de pensamento."

A última frase foi censurada por Daniel Piza, que rebateu também no espaço dos comentários: "Nei, publiquei José Onofre por cinco anos. Ele mesmo achava que seus melhores textos eram sobre John Ford, Sam Peckinpah, ´Shane`etc. Mas certamente uma coletânea dele -como defendi no outro post - tem de incluir cinema em geral, literatura e outros temas."

1. Não continuo o debate lá porque fui censurado. 2. Acho arrogância demais um rapaz dizer "publiquei José Onofre". Quando Onofre dirigia o caderno 2, no final dos anos 80 e início dos anos 90, Daniel Piza devia ter uns 12 anos de idade. Quando líamos os textos de Onofre em Porto Alegre, Piza nem sequer tinha nascido. 3. Não se coloca um talento como Onofre no redil do faroeste ou da lenda. 4. Acho que entendi: Onofre era gaúcho! Gaúcho, cavalo, faroeste, entendem? Haja. Focar excessivamente nos textos sobre western, deixando de lado sua grande especialidade, a literatura, é realmente de lascar.

24 de maio de 2009

JOSÉ ONOFRE: UM SONHO E VÁRIAS LEITURAS


Nei Duclós

Recuperei mais cartas de José Onofre, o escritor que melhorou o jornalismo brasileiro por 40 anos e foi embora para sempre na semana que findou. Publico a seguir alguns trechos da nossa correspondência de 2006 , quando, por alguns meses, nos reencontramos por e-mail. Foi a ponte entre dois exílios: o dele, em Jundiaí e o meu, aqui no norte da ilha. Selecionei o sonho que ele teve e as observações sobre livros e autores, que contém trechos de um romance que estava escrevendo.

A situação sonhada, se fosse real, seria minha retribuição ao que Onofre me proporcionou, como o fato de me abrir o Caderno 2, do Estadão, enquanto ele esteve lá. Antes, um registro: meu texto sobre Onofre, publicado aqui na terça feira, dia 19, foi capa neste sábado do Caderno Cultura, do Diário Catarinense. Atenção, ocorrências do Google: os textos abaixo são de autoria de José Onofre.


SE TIVERES UMA PROPOSTA, ME AVISA

"Nei, tive um sonho esta noite que vale te contar: Estava na redação que não consigo descobrir qual era, mas certamente não se tratava da editora Três e seus subúrbios, cercado de pessoas que tampouco consigo identificar. Digamos que estavam ali como extras, aqueles que morrem nos primeiros l5 minutos do filme ou passam a vida encostados naquele balcão comprido. Figurantes, diria. Bom, tu chegas de umas férias, que tirastes para casar e logo junta-se um grupo e tu, debochado, conta onde estivestes (que não lembro) e comentas que estavas lá em cima cercado pelos Hélio Campos Melo, Domingo Alzugarays..., citando outros grandões, com quem não estavas convivendo.

Bom aí tu me dizes (disso eu lembrei bem) que o fulano (dono do principal jornal de Montevidéu, embora a imagem que me ficasse, durante o sonho, era de um jornal pequeno) queria dois caras do Brasil para dirigir a parte editorial. Eu fiquei entusiasmado com a idéia, mas tudo dependeria de um telefonema que darias, à noite, para o cara. Me dissestes que era bom que eu tivesse parado de beber, pois o cara não queria um redação de borrachos. Daí não lembro mais nada. Mas se tiveres um proposta, me avisa. Abraço, zé."

UMA FRASE DE HEMINGWAY

"Estou enfrentando um problema sério. Só tenho o hábito de escrever sob encomenda sobre um objeto, um livro, portanto já tenho o assunto e o tamanho e só falta fazer o bicho cantar. Mas um romance é diferente. Eu te escrevi que já estava nas 30.000 batidas e deixei em cinco mil. É verdade. Falta de hábito, de disciplina e tantas coisas. Mas o fundamental é que existe uma frase do Hemingway que eu vou te citar de memória, sem aspas: o fundamental para um escritor é ter um detector de merda, à prova de choque, que o ajude a saber quando deve recomeçar. Bom, o meu funcionou e eu vi que, na expressão de Norman Mailer ao resenhar um romance de um seu contemporâneo, tinha no computador dois ou três bons contos perdidos no meio de um monte de matéria fecal. E não adianta tentar escrever um livro em uma semana. Assim, recomeço. E vou indo."

NO BRASIL, PREDOMINA O DESALENTO

"Nei, andei por Marte, Júpiter e alguns desertos, meio perdido, até meu livro ficou escondido, num canto de Mojave. As coisas agora estão um pouco melhores. E la nave va. Andei lendo vários livros. Leituras e releituras. Nada que me levasse a lugares mais sombrios dos que estava percorrendo. Eu não gosto dos românticos derrotados, queixosos, como o Soriano (sem querer ferir preferências alheias) ou alguns novos com uma preferência em acampar no Vale das Sombras. Esta coisa funciona assim: eu tenho minhas próprias sombras e não quero a dos outros, mas há um tipo de negror, como o de James Ellroy, de agora, e Cornell Woolrich, de ontem, que eu gosto.

No Brasil predomina o desalento. Na literatura e no dia-a-dia. Ou estarei projetando? É provável. Me lembra uma velha piada que o Ibsen contava, quando via alguém se queixar muito do Brasil (anos 70): Um português se hospeda numa pensão barata e tem mais dois companheiros de quarto. Os dois resolvem fazer uma brincadeira e, quando o português pega no sono, passam merda no bigode dele. No outro dia, o português sai para a rua, estranha o ar, dá uma cheirada e diz mas meu deus! Estão todos cagados”.

O FILHO DO ALPINISTA

"Nei, guarde este nome, Michel Houellebecq. Francês (poderia ser belga), é a única coisa quente (fora o já morto austríaco Thomas Bernhard) que os europeus produziram nos últimos 20 ou 30 anos. Tinha ouvido falar vagamente e nem sabia que a Record tinha lançado Plataforma. Acabei de ler (para resenhar) o romance mais recente dele, A Possibilidade de Uma Ilha. Mas primeiro vou falar do cara (se você já ouviu ou leu, queime isto). Nasceu em 58, em La Reunion, uma ilha francesa. O pai era alpinista e guia turístico e a mãe médica-anestesista. O mandaram, com um ou dois anos, viver e ser criado pelos avós paternos. Com três anos, foi para a avó materna e com esta ficou.

Engenheiro agrônomo, com 20 anos começou a fazer poesia que, como seus dois primeiros romances, não chamou atenção. Seu terceiro romance foi um best seller e ele se transformou no escritor mais discutido da Europa. É acusado de fascista, misógino, racista, etc. e tal. Deixo a teu julgamento. A possibilidade de uma ilha, trata da vida de um comediante do gênero Lenny Bruce. Mas não vou dizer mais nada. O cara tem um texto azeitado e lida com o comum e as barbaridades da mesma forma. Só lendo.

Eu continuo na vida de sempre, que já te relatei várias vezes. O romance está parado na telinha, mas na cabeça está fermentando bem e pode dar 500 mil réis. Veremos."

BURGUESS E NORMAN MAILER

"Nei, assim que deveria ser. O cara escreve o livro e já faz release, convite e a crítica. Me baseio no Anthony Burgess. Antes de ser escritor, ele era professor de inglês na Malásia. Logo percebeu que os livros didáticos eram uma bosta e resolveu ele mesmo escrever o livro. E escreveu (eu tinha) uma pequena históiria da literatura. Cada escritor tinha biografia, obras e depois um comentário crítico. Assinou como John Burgess Wilson, seu verdadeiro nome. Anos depois, já o famoso Anthony Burgess, o Times pediu que ele escrevesse uma resenha sobre o livro de Burgess. E ele escreveu, mas não sei o que disse. Tu devias arranjar um pseudônimo e escrever a resenha do teu livro, afinal, ninguém mais indicado. Abraço, zé."

REFÚGIO DO PRÍNCIPE: SINOPSE DE UM POEMA ÉPICO

"Li e gostei muito. Comecei, claro, pelo pampa,que é o nosso mar original e vi que tudo que eu gostaria de escrever um dia sobre ele já tinha sido escrito e publicado. Foi uma experiência muito especial e que só pode ser compartilhada coma propria leitura. Quando descreves Cacequí, tive a minha madeleine, por um bom tempo. Embora o pampa já tenha tido poetas e ficcionistas como Borges, teu texto me poupa de citá-los.

Depois fui ao príncipe e me encaxei neste mundo como um peixe. Mas acho que o texto é uma sinopse de um poema épico. Sem dúvida um belo texto, mas aprisionado, como uma lagoa que pede um oceano. Foi preguiça? Acho que sim. Bem resolvido, um texto impecável, mas deixa pistas, claras, de que está pedindo pista e eu acho que se já não estás, devia começar a meditar sobre o assunto. Vou ficar aqui, mas volto. Abraço deste correspondente irresponsável. Zé."

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Ernst Hemingway. Na nota sobre Onofre na Carta Capital, onde era colaborador, foi dito que "a arte americana das palavras simples e contundentes orientava sua escrita". 2. Criei a comunidade José Onofre, escritor no Orkut. Gostaria que participassem e enviassem textos do Onofre para postarmos lá. É muito trabalho bom que não pode ficar disperso.

22 de maio de 2009

SEPARATISMO


Nei Duclós

Costumam fazer enquetes sobre um novo país, formado apenas pelos estados do Sul, com expressivos índices de aprovação. Algumas pesquisas incluem São Paulo e só mesmo o desconhecimento mútuo poderia juntar paulistas e a indiada da fronteira. Parece que a idéia do separatismo ganha força à medida que cresce a decepção com essa coisa que nos cobra tanto imposto e que só serve para alimentar corruptos, defender direitos humanos de bandidos, encher os bolsos dos vagabundos com as esmolas do governo, liberar assassinos confessos, entre outros expedientes, como o índice pluviométrico de crimes.

Eu também vou aderir a idéia do separatismo. Acho bom que São Paulo seja incorporado às margens do rio Uruguai. Ou que a araucária seja o símbolo da região do Ibicuí. Seria maravilhoso que o chapéu de caubói do interior paulista fosse adotado em Itaqui, ou que as esporas fossem usadas no Bexiga. Teríamos um país de Primeiro Mundo, mas não seria o ideal. Sugiro algumas pequenas mudanças na idéia original, sem querer desfazer as bases dessa genial solução para todos os nossos problemas.

Esquecem de incluir Minas e seria de muito bom tom convidar não o Aecinho, mas Milton Nascimento. Seríamos compatriotas do Clube da Esquina, já pensou? Haveria problema em comer carne de búfalo xucro dos sertões mineiros, mas meus olhos faíscam só em pensar numa potência, com Minas sendo o famoso “plus a mais”, invenção suprema da linguística tautológica. Mas assim mesmo o separatismo, que não daria bola para esses botocudos horrendos que habitam as outras regiões, não seria assim de última geração se não comportasse ou convidasse o Rio de Janeiro.

Ah, o Rio do Tom, do Chico, do Cartola, do Vinícius. Bom lugar para uma capital, não é mesmo? Assim teríamos a bossa unida a Carlos Drummond de Andrade, as garotas de Ipanema tomando mate, o Pão de Açúcar sendo símbolo de uma nação que não se restringiria ao Itaimbezinho ou à praia da Joaquina. O Rio traria o charme necessário, mas a emenda não ficaria completa se não fosse incluído o Espírito Santo, que é o mar de Minas e praticamente uma continuação do Rio. E para não perder a pose e incrementar ainda mais o separatismo de Primeiríssimo Mundo, anexaríamos a Bahia, com Salvador e tudo.

Já pensou? Combinar Jayme Caetano Braun e Caetano Veloso? O Recôncavo e a região dos Lagos? Pelotas e Feira de Santana? O mundo se deslumbraria com esse lugar maravilhoso que criaríamos com nosso furor separatista. E para assombrar mais ainda os gringos, teríamos a manha de incluir no projeto o Nordeste inteiro, pois é de lá que vem as olindas, os mamulengos, os arrecifes, a Paraíba , o Luiz Gonzaga e toda aquela riqueza infinitamente fantástica que faria a glória de um novo membro das Nações Unidas.

E já que tem muita gente de olho na mata, anexaríamos a Amazônia, com Amapá, Roraima, Manaus, Ver-o-Peso e tudo o mais. E sendo assim, ainda, de quebra, colocaríamos no novo mapa os dois Mato Grosso, mais Goiás e Tocantins. Pronto. Estaria assim feito o carreto. Uma nação orgulhosa, à parte, que começaria tudo de novo e teria em praça pública seus grandes heróis, como o Andrada da Independência, que não deixou os ingleses comprarem a ilha de Santa Catarina, mais Caxias, Osório, Zumbi, princesa Isabel, Dom Pedro II e todos os cidadadãos que deram seu sangue para nos separar de franceses, holandeses, castelhanos, portugueses.

Proponho que batizem o novo território de Brasil. Soa bem. E quando a gente ouvir o hino que escolhermos para ele, não só levaríamos a mão no peito e cantaríamos a letra inteirinha, do Virandô ao Berço Esplêndido. Mas também choraríamos de emoção, pela honra de pertencer a um legado de tanta luta e tanta grandeza. E quando alguém quisesse vir com idéia de desmembrar o novo território, que chamaríamos de Pátria Amada, não teríamos dúvidas. Pegaríamos em armas.

RETORNO - Imagem desta edição: Batalha dos Guararapes, quadro de Vitor Meirelles. Foi quando essa impossibilidade teórica, o Brasil, começou a existir de fato. Os holandeses, que hoje nos adoram, segundo testemunho de Daniduc, que mora em Amsterdam, gostam de lembrar que foram expulsos daqui a pau. O que eles não perdoam são os alemães, que invadiram a Holanda na Segunda Guerra. Eis a diferença. O país que se defende, mora no coração até dos adversários. O que invade é odiado em qualquer parte do mundo.

O HOMEM DO MAR


Nei Duclós

O pescador convive
com percepções radicais:
a praia é o fim do mundo
e o horizonte de sal
diária lição de infinito

Cedo envelhece
sem jamais perder
as águas internas
Reflexo da vida gerada
pelo mar

Linhas riscam o rosto
de areia
e o corpo torto
ampara o fogo
do olhar

Por isso guarda um adeus
permanente de porto,
um sopro paralisado
na roupa batida
pelo mistério

Nele, tudo é uma forma
de estar sempre atento
ao que chamam vida
e que ele sabe ser apenas
sonho

Aparentemente só,
dribla o destino
mantendo-se habitado
liberto das âncoras
inventadas pelo tempo

RETORNO - Imagem para este poema, tantas vezes reescrito e que faz parte do livro inédito Partimos de Manhã: Pescador, de Juliana Duclós.

20 de maio de 2009

HÁ TEMPOS


Nei Duclós (*)

Quando querem se referir a um tempo muito antigo, falam em anos 80. Acho graça. Anos 80 foi hoje de manhã. Certa vez, interrompi um colega veterano que contava histórias para uma estagiária sobre algo que ele viveu nos anos 50. Não assuste a garota, disse. Anos 50 estão nos livros de História. Não é algo que possa ter testemunhas ainda vivas.

Quando surgiu o disco flexível não formatado, eu acumulava umas quatro décadas de vida. Lembro como os técnicos faziam mistérios e se encerravam na sala para depois vir com a prenda na mão, toda formatada. Um dia fui ver o que faziam. Eles sentavam em frente ao micro e teclavam: format! Estava feito. Hoje, em que o disco móvel sumiu, assim como sumirá o rígido, isso tudo parece da época dos dinossauros. É que ninguém atina em algo antigo e que se diferencie da época do pince-nez e da palmatória.

Pois há uma quadra de tempo não totalmente coberta, fora do século 19, que vai dos anos 40 até o fatídico 1964. Fora da mitologia dos chamados anos dourados, de que tanto falam. Passado é um assunto complicado, pois todo mundo é especialista em memória e parece que tudo já foi esquadrinhado nos mínimos detalhes. Discordo. Vivência e lembranças são regidas pela teoria do caos e nem com algoritmos de última geração poderemos enquadrá-las.

O Mundo Perdido inclui sapato branco-e-marrom, terno de linho branco, chapéu de feltro, linha enredada na beira do rio, caverna feita de vários pés de umbu encordoados, uma gruta fora da cidade, calça curta, gomina no topete, conjunto Hi-Fi, pandorga com roncador, campeira preta, boina, pesca de piava com caniço, dunas gigantescas na beira da praia, ondas de cem metros de altura na distância de um braço.

Inclui também viagem de Candango, o jipe brasileiro com tração nas quatro rodas (apto, portanto, a enfrentar qualquer barreiro) por centenas de quilômetros de terra batida, viagem de leito no Maria Fumaça, educação física às sete da manhã, cheiro de livro novo no início do ano letivo, pua afiada no pião do adversário, pedrada na vidraça, futebol no terreno baldio ao cair da noite. Dias em que o mundo fazia sentido e a dor ainda nem era notícia do rádio, que só tocava samba, guarânia e bolero.

RETORNO - 1. Foto desta edição: meu irmão Luiz Carlos, o Lisca, quando estava no Jardim da Infância do Romaguera Correa, tradicional escola pública que ficava no centro de Uruguaiana, bem em frente à praça Barão do Rio Branco. O grande laço no pescoço, que chamamos tope, era xadrez nessa época do pré e azul quando entrávamos no Primário. A foto, provavelmente de 1951, é uma desenterrada do meu outro irmão, o Elo Ortiz, que colocou a raridade no seu espaço no Orkut. Lisca foi quem, milênios mais tarde, me apresentou para o hard disk e o disco flexível. 2. (*) Crônica publicada no dia 19 de maio de 2009 no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

19 de maio de 2009

JOSÉ ONOFRE: CARTAS DO FIM DO MUNDO


Nei Duclós

Recebo a notícia de Dorva Rezende, editor do caderno Variedades e de Cultura do Diário Catarinense: “Oi, Nei, notícia triste. Acaba de falecer José Onofre. O jornalista, de 66 anos, foi internado em março no Hospital São Francisco da Santa Casa de Porto Alegre após sofrer uma crise decorrente da diabetes. A situação se agravou em abril, quando Onofre teve uma parada cardiorespiratória. Desde então, ele era mantido sob observação. Difícil dizer onde o jornalista não trabalhou. Folha da Manhã, Estadão, Veja, Isto É, Carta Capital. A reputação de Onofre como crítico cultural era tão grande que Paulo Francis declarou que se houvesse alguém a sua altura, esse alguém era José Onofre. O corpo vai ser velado no cemitério João XXIII, onde também será realizado o enterro.”

Trabalhei com José Onofre na lendária Folha da Manhã de 1974/75 em Porto Alegre e na revista Senhor, de Mino Carta, nos anos oitenta. Por mais de uma vez, nos estranhamos. Depois, viramos amigos. Nos bares, restaurantes e há dois anos, por meio de intensa correspondência. Seleciono aqui alguns trechos das cartas que ele me enviou de uma chácara isolada em Jundiaí, onde fazia tratamento para as feridas provocadas por uma vida inteira dedicada ao jornalismo e ao que ele mais dominava, com extrema maestria: o texto inesquecível.

A morte de José Onofre nos leva para sempre do convívio o talento, a experiência, o testemunho e a grandeza de um jornalista que percorreu as redações com sua cultura incomparável, capaz de nos assombrar em alguns minutos de conversa. Leva para sempre o humor que é fruto desse preparo, dessa formação, que é a marca registrada do Brasil soberano pré-64. José Onofre tinha lido tudo e visto todos os filmes importantes. Ficar próximo dele era um privilégio. Sem falar que, ao longo desse convívio, os que estavam ao seu redor, escutando, caíam na gargalhada.

A inteligência que transcende é o seu legado maior, ele, que fazia autocrítica por enxergar demais. De agora em diante, quando o nome de José Onofre for lembrado numa redação, todos devem ficar imediatamente de pé. Ele esteve no front. Lutamos ao seu lado e isso nos tornou melhores. O que fazer com esse legado? O que dizemos agora, Zé, tu que não perdoavas jamais qualquer lance de mediocridade ou burrice ou mesmo sentimentalismo? O que fazer com o presente secreto de um guerreiro?

“A REDAÇÃO ERA O MEU DESTINO” – José Onofre

“Nei, me pegaste no sufragante, como diziam em Bagé, porque não esperava tua resposta tão rápida. Ao que interessa: Teu site está muito bonito, antes de dizer o amarfanhado “graficamente correto”. E, rapaz, você produz mais do que Coelho. Não se sabe por onde começar. Mas vou com calma.

Saído do Incor, fui remetido a uma clínica de desintoxicação em Jundiaí, mas fora da cidade. Uma chácara grande, sem barulho. A média do tratamento é três meses. Para ficar vivo, fiquei aqui, no meio do mato, até hoje e nem penso em sair. Jornalismo, para mim, seja em que lugar for, é uma impossibilidade. Não consigo me imaginar me comprometendo, me dando (e recebendo) numa redação.

Tu falas nas redações que nos mastigaram. É verdade. Sempre foi o que nos tocou deste latifúndio. Se eu tivesse a poesia, como tu, talvez fosse ainda mais duro, como é para um sujeito atrasado para um encontro e sendo obrigado a dar atenção as queixas de um vizinho chato. Mas uma redação era meu destino e eu cumpri, bem ou mal.

Eu aqui faço minhas resenhas para a Carta e tento escrever as primeiras duas linhas do romance, mas ainda não cheguei lá. Falta insaite, como dizem os críticos (inclusive eu) quando comentam aqueles livros que, se falados, seriam classificados (minha primeira mulher, se referindo aos meus longos papos, normalmente vazios, advertia: “Estás falando para mexer com a boca, José) como tinta gasta inutilmente. Mas tens notado que não tem saído romanção, daqueles que ficam em pé? Talvez já esteja quase pronto, em algum lugar do país.

Eu sei, embora uma voz, lá no fundo negue, que eu podia ter me saído melhor no jornalismo. Sei que é o orgulho que está falando. Mas se tu fores olhar teu passado e avaliar os erros, tu entras naquela frase do Faulker em “O Som e a Fúria”: “O passado não tem fim. O passado sequer passou”.

Paro aqui, para não “puxar angústia”, como diziam os personagens de Fernando Sabino em “Encontro Marcado”. Um abração. Zé."

RETORNO – 1. Gosto de citar a cena em que estávamos almoçando numa birosca da Lapa de Baixo, onde se situava a redação da Senhor, quando veio o prato feito e José Onofre lascou: “Já tinha pisado nisso. Comer, é a primeira vez. “ Comentei isso com ele e Zé respondeu: “A frase é na fila do rancho, num dia de chuva, em que os cozinheiros vão jogando a comida nas bandejas dos soldados. A frase é: “Já havia pisado nisto, mas não havia comido ainda”. Origem: ou “O mais longo dos dias” ou “Os Doze Condenados”. Não consigo lembrar.” Voto nos doze condenados, com John Cassavetes, que possivelmente disse a frase (na foto desta edição, em primeiro plano). 2. Escrevi sobre o romance policial de José Onofre, Sobra de Guerra, em 2005.

PRATO QUE SE PISA: ENIGMA DECIFRADO

José Onofre escreveu em 5/4/2006, num e-mail para mim: "No respeito as minhas dúvidas sobre os filmes de guerra: sou mais os doze condenados, porque tenho quase certeza de que quem a pronunciou foi John Cassavets. Mas é apenas “quase”. Por outro lado, lembro que o soldado em questão estava usando aquelas capas de chuva sem mangas e isto me parece mais o mais longo dos dias. Um dia saberemos."

Paulo Paiva Nogueira escreveu dia 25/05/09, para mim: “Nei, revi o filme ontem, em DVD. En inglês, o título é The Dirty Dozen. Numa cena, na primeira hora inicial do filme, numa fila, um dos doze, o Franko, ao receber o rancho trava o seguinte diálogo:
--Que prato é este?- pergunta alguém.
Ele: -- Não sei, Nunca comi nada assim. Já pisei nisto, mas nunca comi.”

Agora sabemos.

18 de maio de 2009

KUROSAWA E O ASSOBIO DO VINGADOR


Nei Duclós

Em 1960 Akira Kurosawa enfim conseguiu fazer um filme independente, onde era responsável pela produção e a direção, sem interferência de ninguém. O resultado é The Bad Sleep Well (que eu traduzo para O Sono Tranqüilo da Maldade), uma obra didática sobre o funcionamento da corrupção num caso clássico: a relação incestuosa e criminosa entre um departamento estatal e uma grande construtora - ou seja, uma história que é puro Brasil.

Uma das revelações mais assombrosas, notada por Ida Duclós, que viu comigo o filme, é que cai por terra a velha teoria do suicídio como saída honrosa para os executivos japoneses pilhados com a mão na massa. Simplesmente é a máfia que “suicida”, como nos ensina o Grande Mestre, pois faz o que quer por não haver oposição – não acham coincidência demais com o caso brasileiro? O único que se insurge é o filho bastardo de um desses falsos suicidas, que cria uma trama para vingar o pai assassinado.

Trata-se de um personagem hamletiano – como notou a crítica internacional, o que é verdade em parte, pois se há elementos de Shakespeare não há uma sintonia total com a peça famosa. Uma das criações cinematográficas mais significativas deste filme é o jingle assobiado pelo vingador, uma cortina musical curta que ele executa sempre que consegue uma ação vitoriosa. Lembra Harmônica, interpretado por Charles Bronson em Era uma vez o oeste, de Sergio Leone, que toca uma melodia determinada na sua gaita de boca para anunciar que veio para matar os criminosos.

O assobio curto que chama o cavalo do mocinho – era no Zorro, Roy Rogers, Gene Autry ou em todos eles? –; a música do casal que sela o amor eterno e que é recuperada toda vez em que há enfim o reencontro; o toque de clarim da cavalaria que chega para resolver a parada; a cortina musical que veste a cara de espanto de criaturas que alcançam a catatonia do ver, quando a verdade revelada faz surtar os protagonistas; tudo isso são personagens musicais que nos encantam na Sétima Arte. Aqui, no caso deste filme importante (não canso de dizer: não existe Kurosawa menor) o herói assobia para mostrar que está feliz em dar mais um passo rumo à vingança. Será bem sucedido no final?

Em vez de filmar o ataque ao homem que estava entregando toda a sujeira para a imprensa e a nação, no lugar de uma briga, com socos, pontapés, mordidas, tiros, Kurosawa usa outro estratagema. O casal ruma para o esconderijo para salvar o vingador e ao longo do caminho passa por uma barreira policial que toma conta de um carro acidentado. Os dois chegam enfim ao local e lá encontram o parceiro do protagonista desesperado, que conta como o amigo foi subjugado, seqüestrado e colocado dentro do automóvel que enfim se chocou com o trem. Era o mesmo que estava todo amassado na estrada.

É uma extrema sofisticação narrativa, que deixa de lado as soluções fáceis, elimina a tentação de apelar para a mediocriade comercial do ver, compondo uma narrativa romanesca onde vale a imaginação do espectador. Nós, na platéia, ficamos construindo as imagens virtuais que não aparecem no filme, do grande sufoco passado pelo rebelde e sofrendo com seu acidente do qual só aparecem os ferros retorcidos. É impressionante. Na cena final, o poderoso chefão recebe o telefonema de um mafioso mais poderoso do que ele, dá explicações, pede desculpas e se curva diante do telefone. Mortal.

“Será que tem de ser sempre assim?” pergunta, desesperado o amigo que descobriu tudo, mas não tinha prova de nada. A máfia é profissional, sabe como se defender e tira do caminho quem quer que se interponha contra ela. São imbatíveis. Por isso até hoje estão no poder. Fatalmente é por isso que mais este grande filme de Kurosawa permanece na sombra. No lugar dele, você “vai se emocionar” com o ex-jogador de beiseball que está no ermo cheio de ódio e recebe e visita do velho treinador que vai resgatá-lo para a glória final em câmara lenta e risinhos cretinos. Quando não acaba tudo numa grande explosão, que no fundo significa a retenção dos programadores de TV, que adoram machões explodindo tudo para se livrarem da mocinha e ficarem juntos para sempre.

RETORNO - Imagem desta edição: Toshiro Mifune nas ruínas de uma sociedade perversa.

17 de maio de 2009

CUIDADO, JOHNNY MCQUEEN ESTÁ MORRENDO


Nei Duclós

Acompanhe Johnny McQueen, o rebelde irlandês ferido num assalto. Acompanhe James Mason, no papel de Johnny, em mais uma obra-prima de Sir Carol Reed, Odd man out (O Condenado), de 1947. Ele sangra pelo braço esquerdo, imobilizado por uma bala disparada pela sua vítima, que morreu ao tentar prendê-lo. Johnny, condenado à morte, fugitivo da cadeia e chefe da organização política que assumiu a vanguarda do movimento pela libertação, é um pássaro ferido, que passa de mão em mão pela cidade apavorada, onde todos os conhecem e ninguém lhe dá guarida.

Todos se livram do moribundo: as senhoras bondosas que fizeram curso de primeiros socorros e o recolhem da rua e depois se arrependem; o marido de meia idade que chega atrasado porque há barreira policial pela cidade inteira, e fica desesperado com a presença do fugitivo na sua sala; o cocheiro que o joga num terreno baldio; o atendente do balcão que o tranca num canto do bar; o mendigo que tenta conseguir a recompensa; o pintor que o rouba para retratar o olhar de alguém que vê a morte.

Cuidado com Johnny, ele é o cinema que chega ao nível do gênio e se despede. Ele é a Sétima Arte que atinge o status de criação humana clássica, a mesma que pode inspirar uma revolução, como aconteceu com Renascimento, na época em que os sábios e a cultura da Antiguidade foram revisitados por uma civilização exausta, que nesse retorno encontrou a salvação. Precisamos acompanhar todos os passos de Johnny pelos becos de Dublin, pelo mosaico do diretor fundamental, Sir Carol Reed, que ilumina seu personagem terminal embaixo da chuva e da neve, enquanto as pessoas perdem tempo falando asneiras, sem se lembrar que todos nasceram condenados, é só uma questão de tempo.

O destino de Johnny e do cinema está traçado. Ele tentou enfrentar o poder e saiu de lá pingando sangue, caçado pela brutalidade, a mediocridade, o medo, os interesses, as obsessões. A única coisa que pode salvá-lo é o amor, que ele não notou quando havia tempo. Johnny estava distraído, assim como nós. Estava focado na sua missão, sem reconhecer que a vida, a mulher que o amava, estava do seu lado, mais do que qualquer companheiro de luta. Johnny não estava mais só, mas ele não acordou para essa janela de luz que incidia sobre seu rosto marcado.

Ele tinha um compromisso, uma responsabilidade. Precisava dar um golpe no poder, seqüestrar o dinheiro, cacifar a revolta. Foi punido porque estava perto demais de conseguir algo, romper o dique que mantém as pessoas presas, alienadas, perdidas. Faz parte de uma consciência popular, de massa, já que todos os cidadãos da Irlanda sabem que são uma nação invadida e que estão em desvantagem diante do inimigo que os transforma todos em moribundos, em pacientes terminais de uma vida sem sentido. Por isso Johnny é perigoso, por isso o poder exulta por tê-lo ferido de morte, por isso é preciso acompanhar Johnny pela cidade sem misericórdia.

Nós também, Jonhny, acreditamos um dia que o cinema só iria subir, voar cada vez mais alto, transcender, nos salvar. Mas não foi isso que aconteceu, Johnny. Veio o macartismo, que destruiu tudo e hoje vivemos a era de ouro da repressão e do comércio na Sétima Arte. Veja as locadoras, Johnny, você que não está em nenhuma delas. É um açougue, uma exaltação do ego, uma derrota sem fim. Nada parecido com a história que Carol Reed nos conta, com detalhes que nos fazem saltar da cadeira.

Detalhes como a lufada de ar frio e úmido que bate no rosto descoberto de Johnny quando as senhoras piedosas e o marido em pânico o expulsam para a sarjeta. Como a tampa do lixo que fica rodando sem parar denunciando o paradeiro dos fugitivos com cem policiais no encalço. Como a cena milagrosa em que você, Johnny, confessa seu crime para o guarda fictício da prisão, que veio pegar a bola de futebol. Não era o guarda da prisão, Johnny, era a menina muda que veio buscar o brinquedo e ficou parada te vendo e escutando tua confissão.

Acompanhe nosso herói tendo alucinações diante das bolhas da cerveja derramada, ou sentado no trono do pintor. Johnny é o protagonista que agora senta na cadeira da morte. Ele virou platéia da sua destruição. Seu rosto serve de modelo para uma posteridade espúria, a que estamos agora, quando esquecemos filmes como este, Odd Man Out, filme para ser levado no coração aflito da cidadania, para que o remorso vire insurreição, para que o vazio vire arte e para que possamos ver os filmes fundamentais antes de morrer junto com o cinema.

Cuidado. Johnny, ferido de morte, está morrendo. Você que ama o cinema e foi exilado dele, sabe. Você, sim, espectador noturno, mergulhado num poço onde te proibiram de ver, esse verbo sagrado da civilização. Não há mais espaço para morrer tantas vezes e de tantas maneiras. Por isso acompanhe Johnny McQueen no seu passeio forçado e terminal pelo inverno da cidade sitiada. Ele tem algo a dizer. Escutem. Ou melhor, vejam.

RETORNO - Imagem de hoje: James Mason em "O Condenado", mais uma obra-prima absoluta de Sir Carol Reed.

16 de maio de 2009

OBAMA VISITA O ARQUITETO


Nei Duclós

A mídia ficou surpresa com a decisão de Obama, o presidente com pinta de novidade, de manter os tribunais militares em Guantánamo. Menos o Diário da Fonte. Quando houve aquela euforia de “sem medo de ser feliz” e “sim nós podemos”, e que o mundo enfim tinha mudado, fizemos a advertência. Agora soubemos de mais detalhes sobre as concessões radicais do atual governo depois de alguns sinais aterrorizantes, como a crise financeira e a gripe suína. A capitulação aconteceu recentemente, quando Obama foi obrigado a visitar o Arquiteto.

Sim, é aquele mesmo do Matrix. A Força 1, o avião presidencial, se dirigiu ao local do encontro tripulado por pilotos designados pelo próprio Arquiteto. A substituição na cabine de comando foi feita depois que um comissário de bordo e uma aeromoça, que eram agentes infiltrados, tiraram as máscaras e, revelando as caratonhas assustadoras de Nixon e Reagan entraram na salinha do manche, eliminaram o comandante e seu sub a tiros de escopeta (para humilhar). Forçaram então o pouso em direção a uma região inóspita, em pleno Caucaso, num altiplano que eles chamam de Xangrilá. O ambiente lá é paradisíaco, tudo manipulado pelas técnicas de bombardeio da ionosfera, as mesmas que provocaram o furacão Catarina em 2003, o único evento ciclônico do hemisfério sul.

Obama desceu do avião meio ressabiado e quase aos empurrões foi levado para uma construção gigantesca, idêntico a um hangar que deveria abrigar aeroplanos do tamanho de transatlânticos. Permaneceu sentado por uma duas horas até que veio um gendarme com farda azul cerúlea e botões dourados, com um quepe que ostentava um penacho azul . O guarda levou o presidente até o fundo do hangar, onde existia enorme porta, que foi aberta de par em par. Obama entrou numa sala toda atapetada, com um trono ao fundo. Foi quando ele viu o Arquiteto.

- Como foi a viagem, presidente? perguntou o Arquiteto, que vestia um Armani de última geração.
- B-b-bemmm, disse Obama, com medo de dizer algo impróprio.
- Parece que o senhor enfim resolveu me ver. Fez bem, disse o Mestre, pois eu estava propenso a desencadear uma tempestade de neve em Washington tão gigantesca que formaria uma crosta polar por séculos.
- Não é preciso, Excelência, disse Obama. Já entendi quem manda no mundo. Além do mais, acredito que Vossa Majestade não faria isso de jeito nenhum, pois o considero um patriota.

O Arquiteto olhou o presidente eleito fuzilando-o com seus olhinhos azuis apertados e foi aos poucos levantando a cabeça para seu gesto poder abarcar a grande gargalhada que se seguiu e que durou uns vinte minutos. Refeito da demonstração de força, o Arquiteto foi explícito:
- Sabe o Bush, aquele cachorrinho que fazia tudo o que eu mandava? Pois ele precisa ser preservado.
- Como assim, Magnânimo?
- É o seguinte. Tudo o que ele fez vale, entendeu? Tribunal militar em Guantânamo, transferência de suspeitos sem julgamento para países distantes, tortura, massacres....Aliás, dê meus parabéns para a sra. Clinton, ela fez exatamente o que mandei e matou uns 500 civis afegãos.
- Foi horrível, ó Ogro do Universo.
- Foi nada. Espere para ver o que tenho preparado em termos de tornados, vírus mutantes, tsunamis e o escambau. Vou cercar tua presidência de tanta brutalidade que quero ver tu posar de comediante diante das câmaras. Ah, me lembrei: pára de debochar do Liula-là, nosso homem na South American Way. Ele merece respeito. É o sujeito mais desastrado e completo que conheço. Serve como uma luva. Tão bom quanto o Honoris Causa, aquele bocó.
- Ele é o cara.
- Pois não diga isso. Todos desconfiam.
- Desconfiam nada, Magnífico. Todos acham o máximo minhas piadas.
- Comporte-se. Olhe o que fizemos com o Kennedy. E o Lincoln, aquele protetor de negrinhos como tu.

O Arquiteto deu por encerrada a sessão. Suspirou fundo, olhou para o infinito e rodou sua cadeira de espaldar alto, ficando de costas para Obama.
- Posso ir, Meretíssimo? perguntou o presidente.
- Pode, bundão. Antes de tomar o avião, sirva um cafezinho para o guarda.

RETORNO - Imagem desta edição: o Arquiteto, da série Matrix. Dispensa apresentações. Matrix é um clássico.

BATE O BUMBO: VOTE EM OMAR

Carlos Omar Villela Gomes faz um convite: "Buenas Nei!Estamos participando de um festival da EPTV, tipo a RBS deles, 7° Viola de Todos os Cantos, em São Paulo, festival de música regional com cinco eliminatórias e tem votação pra música mais popular no site, se puderes dar uma força agradeço muito! O Nome da música é Na Paz e Na Dor. Tem como ouvir no site. É minha e do Nilton Ferreira, na interpretação dele. Estamos representando o sul e contamos com o teu apoio!Não é virus. O site é seguro. É da Globo de São Paulo. Desde já agradeço a atenção. Abraço!" Pois meu voto está dado, vivente. Quem tiver curiosidade de ouvir a música e quiser votar, mãos à obra!

15 de maio de 2009

A FALA OCULTA: CANÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA



Nei Duclós

Música e letra da canção Conversando no bar (Saudades dos aviões da Panair), de Milton Nascimento e Fernando Brant, tem me perseguido nos últimos dias. Carreguei a magistral interpretação de Elis Regina em 1974 no you tube (acima). De que trata a letra? Da ditadura. Foi feita dez anos depois do golpe de 64, naquele ponto de inflexão do tempo em que a tragédia ainda estava próxima mas já decolava para seu segundo decanato, ou seja, o que viera antes dela tonava-se, irremediavelmente, memória.

Para não deixar escapar esse tempo, o poeta Brant – um dos maiores do Brasil – valeu-se da infância e do símbolo da prepotência de 64, a extinção sumária da Panaiir, que era de propriedade dos empresários Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen — este, dono também da TV Excelsior, que foi igualmente fechada. A Excelsior foi aquela empresa de comunicação líder que ao ser assassinada “cedeu” espaço para o monstro da Globo. É bom lembrar que o autor do despacho foi o ministro da Aeronáutica da ditadura, o Brigadeiro Eduardo Gomes, que jamais perdoou Getúlio por ter perdido as eleições de 1950, que ele contava como certa. O Brigadeiro era o candidato da direita e seu slogan dizia: “Votem no Brigadeiro, ele é bonito, ele é solteiro”.

Mas esta edição não quer se debruçar sobre a história da Panair, que em 2008 ganhou um documentário de Marco Altberg. Aliás, por que não veiculam esse trabalho nas televisões? O verdadeiro escândalo não foi a extinção de uma companhia no auge de sua vida empresarial, mas sim o fato de que ela não foi reativada. Se a ditadura tivesse sido derrotada, teríamos de volta a Panair. Ser ainda parte da memória significa que estamos na mesma fase em que a canção foi feita.

Como diz Brant: “Descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Pan Air”. Nascida em 1929 e incorporada pela Pan American Airways (daí o nome) em 1930, a empresa foi nacionalizada em 1942 (atentos às datas? Ambas tinham como presidente Getúlio Vargas, desculpem a lembrança; é que tudo da Panair é atribuído ao JK, como sempre). Ou seja, o poeta fala da Era Vargas. Vamos à letra:

“Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira”. Os bondes não poluíam, eram uma maravilha urbana. A ditadura cuidou de destruir tudo, embalada pelo precedente aberto pelo JK, que sucateou toda a linha férrea brasileira num acordo de gaveta com os gringos, para ficarmos totalmente dependentes da gasolina e do óleo diesel. Em Los Angeles aconteceu a mesma coisa: destruíram os bondes e a cidade virou uma cloaca poluída. Esse é o resultado dos acordos com as grandes companhias de petróleo.

“E o motorneiro parava a orquestra um minuto./ Para me contar casos da campanha da Itália/”. O motorneiro tinha a manha de parar o bonde (a “orquestra” era o barulho do veículo) para conversar com os passageiros. O que ele conversava? Sobre a campanha da Itália. Qual foi ela? A da FEB – Força Expedicionária Brasileira, criada por Getúlio Vargas para combater o nazi-fascismo na Europa. Havia uma linhagem da memória: o veterano de guerra contava histórias para o menino na viagem de bonde. Isso chama-se civilização brasileira.

“E de um tiro que ele não levou/levei um susto imenso nas asas da Pan Air”. O tiro que ele não levou significa que sobreviveu. É parecido com o grande peixe que escapou: a aventura é contada por meio do drama, do suspense, despertando a curiosidade. O fato relembrado é quase uma anedota. O humor grudado à dor. E o verbo “levar” aqui serve para fazer a ligação da cena do bonde com a do avião. O susto do veterano diante da morte, que repassa ao menino, levanta vôo nas asas da mítica companhia, a que representa o Brasil assassinado. É hora do garoto se assustar. O susto mque ele - e o resto do país - levou.

“Descobri que as coisas mudam e que o mundo é pequeno nas asas da Pan Air”. O sólido mundo do menino no bonde é desafiado pelo batismo de vôo. O mundo, que era grande na visão infantil, e imutável, se transforma e é pequeno visto da janela de bordo. Ou seja, a iniciação, o rito de passagem, se fazia naturalmente, não precisava de uma ruptura horrenda como 1964. O mundo tinha sua memória e seus desafios, as crianças viravam adultos num país pacífico, sem medo, sem terror:

“E lá vai menino xingando padre e pedra/ E lá vai menino lambendo podre delícia/ E lá vai menino senhor de todo fruto/ Sem nenhum pecado, sem pavor, o medo em minha vida nasceu muito depois/”. Esse "muito depois" sabemos o que é: o golpe de 1964, a repressão de 1968, o clima sinistro de 1969 a 1973, o desespero até que o regime fosse obrigado a abrir um pouco (e abriu, soubemos depois, só para se legitimar, como de fato aconteceu em 1985).

“Descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Pan Air”. No lugar das armas, que dão tiro e cospem fogo, a arma da memória. Dos tempos da Panair: dos tempos da Era Vargas.

"Nada existe que não se esqueça, alguém insiste e fala ao coração/ Tudo de triste existe que não se esquece, alguém insiste e fere o coração”. Duas frases quase iguais, tanto que se confundem, mas são diferentes. A primeira fala do esquecimento e da importância de alguém vir cutucar a memória. A segunda fala das cicatrizes, das coisas insepultas, que atormentam e que geram sofrimento toda vez que alguém coloca o assunto na roda. Esquecer para não sofrer ou lembrar e sofrer? Eis o dilemo do narrador da canção.

“Nada de novo existe neste planeta que não se fale aqui na mesa de bar/ E aquela briga e aquela fome de bola/ E aquele tango e aquela dama da noite/ E aquela mancha e a fala oculta/ Que no fundo do quintal morreu, morri a cada dia dos dias que vivi/”. O que se fala na mesa de bar? Fala-se da memória, dos tempos idos, soterrados pela ditadura, da infância (a bola), da adolescência (a dama da noite), da marca deixada pelo golpe de estado no coração das criaturas do país (a mancha), que matou ou escondeu a expressão, a arte a poesia (a fala oculta), matando as pessoas junto com esse assassinato abrupto. Pois 1964 foi isso: a morte repentina de um país.

“Cerveja que tomo hoje é apenas em memória dos tempos da Pan Air/ A primeira Coca-Cola foi, me lembro bem agora, nas asas da Pan Air/ A maior das maravilhas foi/ Voando sobre o mundo nas asas da Pan Air”. A morte repentina origina o mito, o tempo que se foi. Não apenas a infância, mas a alegria de viver num país seguro, um lugar de onde se podíamos ver o mundo de cima. Não estávamos ao rés do chão como agora, quando os brasileiros procuram refúgio no Exterior, em busca de tudo o que foi assassinado, principalmente a paz e a chance de sobrevivência, a oportunidde de ter uma infância, uma vida adulta plena.

“Em volta dessa mesa velhos e moços lembrando o que já foi/ Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual/ Em volta dessas mesas existe a rua vivendo o seu normal/ Em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais/ Em volta da cidade...” Velhos e moços são os deserdados da nação apunhalada de repente, pegos de surpresa pelo sinistro golpe de direita, apelidado de “revolução democrática”. Vemos a democracia que eles plantaram,, olhando em torno. Uma democracia que se lixa para a opinião pública.

RETORNO - A poeta Juliana Meira publicou meu poema Cofre ("Amor não se manifesta/ é cofre em remota estrela") no seu belo blog Tempoema. Juliana está com novo livro na praça, "Poema Dilema", da coleção Palavra Viva, da nova editora Portopoesia, que tem, nesta primeira fornada, lançamentos de mais quatro poetas (entre eles Marco Celso Viola e Mario Pirata). O movimento poético em Porto Alegre está animado.

14 de maio de 2009

A LÓGICA DO ESTUPRO


Nei Duclós

A vítima merece e gosta, eis a lógica do estupro, tão exercida hoje nestes tempos “democráticos”. Apanhou em casa? Quem mandou casar com o cara e não denunciar no primeiro tabefe. Não se leva em conta o laço emocional que trava a razão, a questão da sobrevivência, especialmente quando há criança na jogada, entre outros fatores. O político rouba, não presta? Você votou nele, a culpa é sua. Sabemos que não é assim. Primeiro, porque a fraude campeia. Lembro de uma campanha em São Paulo anos atrás. Determinado candidato (soube pela chamada Rádio Peão, muita ativa nos corredores) teria recebido uma oferta de 15 mil votos de um cabo eleitoral.

Inúmeras denúncias sobre tungas variadas caíram no vazio. Recentemente, no Orkut, falou-se muito na mega-operação de fraudes nas eleições presidenciais de 1989, aquela que colocou o Lula no segundo turno para perder de Collor. Tudo pode acontecer num curral, numa urna eletrônica. Voto é coisa séria, define quem vai botar a mão no butim. Então, os donos do butim cuidam para se preservar e colocar toda a culpa no eleitor.

Segundo, as pessoas votam no discurso, pois é só o que existe antes da eleição, não na prática, que se desenvolve depois, de costas para o público. Terceiro, vota-se muito no hábito, que é aquele Pedro Simon de tantas batalhas, ou o velho Severino que providencia cesta básica. Quarto, você arrisca na novidade, que por força do sistema político engessado acaba desaguando em decepção, como aconteceu com a viuvez coletiva em relação ao Fernando Gabeira e sua opção preferencial pelas passagens.

Há também o aspecto conceitual, pouco percebido. Depois de votado, o eleito não representa quem votou nele, mas sim suas próprias ações dentro do regime político. O eleitor não pode arrostar o que é dito (“estou me lixando para a opinião pública”) ou feito (toda a família viajando para a Europa de graça). Em tese, uma nova eleição remendaria o erro. Mas não é o que acontece. Todas as vagas estão preenchidas pela força bruta ou o oportunismo dos manipuladores de votos. E há o esquema geral. Lembro de um candidato a deputado em São Paulo que não foi eleito apesar dos seus 65 mil votos, pois não pertencia a um partido com cacife, enquanto um cacique do PMDB se reelegeu com apenas 35 mil votos. Ora, quem tem mais voto deveria levar, independente de partido.

Mas argumentar contra idéia fixa é perda de tempo. O fundamentalismo é como o drogado: só pensa naquilo. O povo é besta, ponto. Vota em massa no Clodovil e em outros Cacarecos. A insubordinação elegeu Clodovil, não a consciência política ou a imbecilidade coletiva. Enredado por diversas armadilhas, tendo caído em milhares de contos do vigário, o eleitor brasileiro também quer fazer demonstração de força, provar que sabe lidar com artimanhas, por isso elege rinoceronte ou estilista.

O fato é que em toda lógica de estupro existe covardia intelectual e racismo. Colocar a culpa no povo é somar argumentos à ditadura.

13 de maio de 2009

FALLEN IDOL: O MOSAICO GENIAL DE CAROL REED


Nei Duclós

No ano em que eu nasci, 1948, era assim que se fazia cinema: no filme Fallen Idol, dirigido por Carol Reed (1906-1976) com roteiro de Graham Greene, o policial tira o aviãozinho de papel da mão do garoto, que tinha caído ao recuperar o brinquedo preso num enfeite; depois, do alto da escada (onde possivelmente a vítima tinha pulado para a morte) o joga lá embaixo, no vestíbulo, onde estão os inspetores, o detetive, os diplomatas e o suspeito, o mordomo Baines, interpretado por Sir Ralph Richardson, o ator britânico que antes de entrar para o cinema já era uma lenda do melhor teatro do mundo. O brinquedo faz uma evolução e pousa no mosaico do piso de mármore da embaixada onde aconteceu um assassinato, o da esposa do mordomo.

Cai bem nos pés de Jack Hawkins, ainda moço naquela época, bem antes de marcar forte presença em outra obra-prima, Lawrence da Arábia, de David Lean, em que faz um general indiferente, bruto e corrupto. Hawkins desfaz a forma do aviãozinho e descobre que o papel é do telegrama que incrimina o suspeito. O garoto resolvera brincar com ele, depois que o telegrama avisara a Baines que sua esposa não viria para casa naquele dia. Mas Baines tinha mentido. Escondera o fato de que estava com a amante. Dissera que o jantar a três (ele, a amante e o menino) incluía a esposa ausente. O detetive interroga então o mordomo, que cai em contradição.

Isso já não é mais suspense, é terror feito a partir de elementos simples, que compõem uma pintura em preto e branco insuperável, onde a qualidade, a textura da imagem, a coreografia dos atores, a postura de cada um, o clima pesado de desconfiança e pânico fazem de Fallen Idol uma prova de que o cinema atingiu há tempos seu esplendor e de lá para cá só vem decaindo. Ninguém fez nada parecido com o que vemos na tela. A grande embaixada como ambiente de uma orfandade, o do menino que sente saudades da mãe e vê o pai ausentar-se mais uma vez; de uma traição, a do marido que namora a funcionária; de um amor, o da mulher que tenta fugir do homem que a atrai e com ele mantém encontros furtivos em cafés escondidos em becos; de indiferença, das empregadas que falam mal de todos. A grande casa é o território estrangeiro dentro de Londres que se vê envolvida por um escândalo e a política tenta driblar a todo custo.

O cenário limpo, iluminado, de uma cidade imperial e pacata, de uma mansão a cavaleiro de um parque, revela a tragédia pessoal dos protagonistas, tudo sussurrado em diálogos perfeitos, gestos contidos, pequenas espionagens, segredos que não duram uma tarde. Tudo vai num crescendo até chegar às cenas de explosões de luzes (na brincadeira de esconde-esconde), no acidente que mata a mulher e na investigação meticulosa, obsessiva, certeira dos policiais. Um sufoco do começo ao fim num filme encantador. É inteligente demais para ser verdade. Mas é um fato. E está aí para ser visto. Por que não colocam essas obras ao alcance de todos? Porque há bandidos no poder.

Está vendo muito blockbuster? É porque existem gangsters no poder, é por isso. Quem programa "American Pie 5" no horário nobre da Tela Quente é porque fugiu da prisão perpétua, onde deveria cumprir pena de crime hediondo. Sim, estou falando contigo, programador da Rede Globo, bundão. Você está cheio de histórias para contar, justificativas a apresentar, evidências a expor, lógicas a suplantar qualquer argumento ao contrário. Você fala em nome do povo, não é mesmo? Ou então diz que cumpre ordens, é isso? É disso que o povo gosta não é? Pois teus dias estão contados. Pagarás caro por colocar adolescentes escrotos americanos pelados vomitando na cara de todo mundo e olhando um para o pau dos outros. Verás, puto. Estás solto porque os manda-chuvas são piores do que você.

Sir Carol Reed fez não apenas três reconhecidas obras-primas, como Fallen Idol, The Third Man (1949) e Nosso Homem em Havana (1959). Fez também o inesquecível Trapézio, de 1956, com Burt Lancaster e Tony Curtis. E fez Agonia e Êxtase (1965), com Rex Harrison e Charlton Heston. Tem também Outcast of the Islands, de 1952, baseado em romance de Joseph Conrad, que eu ainda não vi. É um dos grande mestres do cinema. No presídio em que serão colocados os atuais programadores de filmes das TVs, as 31 obras de Carol Reed passarão todos os dias. Os caras vão ter que decorar cada fala, cada imagem. Vocês verão.

RETORNO - Imagem desta edição: cena de Fallen Idol. Richardson está no centro,ao fundo, de terno preto. Jack Hawkins, ao seu lado, de perfil, se sustenta no corrimão da escada.

"MIL TRONOS EU DARIA”


Antes de começar, um reparo: não aproveitem a celebração do 13 de maio para acusar alguém de monarquista. Dito isso, vamos ao que interessa. Os jornais esqueceram a data, mas não o Diário da Fonte. A escravidão continuou na prática depois da Lei Áurea (foto) porque os escravocratas, que ajudaram a derrubar a monarquia, mantiveram a situação. Mas a corajosa determinação da Princesa Isabel abriu a guarda, criou uma brecha no muro. A Lei Áurea é o que vale. Zumbi lutou no século 17, foi derrotado, e a escravidão durou mais 200 anos. Mas é moda posar de guerreiro em tempos de paz. Zumbi merece as homenagens, mas não pode ser usado para apagarmos a Princesa Isabel da memória nacional (que no fundo é isso o que está acontecendo).

Isabel merece ser lembrada e jamais ignorada como hoje. Não por ter sido nobre ou princesa, mas porque assumiu, arrostou toda a carga da sua decisão, e sacrificou o trono em favor da libertação dos escravos. Era a favor do voto feminino, a reforma agrária, o investimento pesado em educação. Hoje, quando você vê a nação esbulhada pelos políticos que se dizem democratas e republicanos, é bom lembrar que não importa o regime, mas o caráter de quem governa. A seguir, transcrevo trechos da biografia da Princesa, tirada da Wikipédia. Ou seja, o que vem a seguir é da encicopédia e não é texto meu. Tão simples assim:

“Liberal, a princesa uniu-se aos partidários da abolição da escravidão. Apoiou jovens políticos e artistas, embora muitos dos chamados abolicionistas estivessem aliados ao incipiente movimento republicano. Financiava a alforria de ex-escravos com seu próprio dinheiro e apoiava a comunidade do Quilombo do Leblon, que cultivava camélias brancas, símbolo do abolicionismo. Chegava mesmo a receber fugitivos em sua residência em Petrópolis:

"A Princesa Isabel também protegia fugitivos em Petrópolis. Temos sobre isso o testemunho insuspeito do grande abolicionista André Rebouças, que tudo registrava em sua caderneta implacável. Só assim podemos saber hoje, com dados precisos, que no dia 4 de maio de 1888, “almoçaram no Palácio Imperial 14 africanos fugidos das Fazendas circunvizinhas de Petrópolis”. E mais: todo o esquema de promoção de fugas e alojamento de escravos foi montado pela própria Princesa Isabel. André Rebouças sabia de tudo porque estava comprometido com o esquema. O proprietário do Hotel Bragança, onde André Rebouças se hospedava, também estava comprometido até o pescoço, chegando a esconder 30 fugitivos em sua fazenda, nos arredores da cidade. O advogado Marcos Fioravanti era outro envolvido, sendo uma espécie de coordenador geral das fugas. Não faltava ao esquema nem mesmo o apoio de importantes damas da corte, como Madame Avelar e Cecília, condessa da Estrela, companheiras fiéis de Isabel e também abolicionistas da gema. Às vésperas da Abolição final, conforme anotou Rebouças, já subiam a mais de mil os fugitivos “acolhidos” e “hospedados” sob os auspícios de Dona Isabel." (SILVA, Eduardo - As camélias do leblon e a Abolição da Escravatura).

Conforme o artigo 46, capítulo 3, título IV, da constituição brasileira de 1824, os Principes da Casa Imperial são Senadores por Direito, e terão assento no Senado, logo que chegarem á idade de vinte e cinco annos. Dessa forma, em 1871, D. Isabel Leopoldina tornou-se a primeira senadora do Brasil. Há que se notar que foi a única a desfrutar desse dispositvo constitucional, haja vista que todos os príncipes do Brasil que a antecederam ou morreram antes dos vinte e cinco anos, ou se casaram com estrangeiros e partiram do país, à exceção de seu pai, que assumiu o Trono aos quatorze anos de idade. Depois dela, a ordem constitucional do Império caiu antes que os príncipes porvir pudessem tornar-se senadores.

Bilhete da Princesa Isabel a seu pai, datado de 13 de maio de 1888: "Empereur Brésil, Milan.Acabo sanccionar a lei da extincção da escravidão. Abraço Papae com toda a effusão do meu coração. Muito contentes com suas melhoras. Commungamos hoje por sua intensão.Isabel".

Em 30 de junho de 1887 assumiu a regência do império pela terceira vez, pois seu pai fora obrigado a afastar-se para tratamento de saúde na Europa. A abolição provocava grande oposição entre os fazendeiros escravocratas. Poderosos, esses escravocratas infundiram na opinião pública, através do Parlamento e da imprensa, a idéia de que a abolição da escravidão seria a bancarrota econômica do império, pois as prósperas fazendas de café e açucar do Brasil de então eram todas elas, regadas com o suor do escravo. O negro era contado, medido e pesado e os juristas dos escravocratas criaram a tese jurídica de que o escravo era "propriedade" do senhor de engenho e, portanto, estavam sob amparo da Constituição, que garantia o "direito de propriedade". Eram tensas as relações entre a Regente e o Gabinete ministerial conservador. A Princesa aliava-se ao movimento popular, enquanto o Barão de Cotegipe defendia a manutenção da escravidão. Aproveitando-se da oportunidade oferecida por um incidente de rua, Isabel demitiu o ministério e nomeou o conselheiro João Alfredo, demonstrando determinação política e convicção do que considerava o melhor para o País, pois o Brasil foi a última Nação do ocidente a abolir a escravidão.

Na Fala do Trono, de 1888, Isabel dissera com o coração jubiloso: "confio em que não hesitarei de apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura..." O Conde D"Eu, marido de Isabel, ainda lhe advertiu: "não assine, Isabel, pode ser o fim da Monarquia." Mas a Princesa estava determinada e respondeu prontamente ao marido: "É agora, ou nunca!" Afinal, a escravidão, que tanto envergonhara a raça humana no Brasil, já durava, em 1888, tres séculos, vitimando 12 milhões de negros africanos. Estava aberto o caminho para a liberdade dos escravos no império.

Em 13 de maio de 1888, num domingo, aconteceram as últimas votações de um projeto de abolição total. Certa da vitória, a regente desceu de Petrópolis, cidade serrana, para aguardar no Paço Imperial o momento de assinar a Lei Áurea. Usou uma pena de ouro especialmente confeccionada para a ocasião, recebendo a aclamação do povo do Rio de Janeiro. O Jornal da Tarde, de 15 de maio de 1888, noticiou que "o povo que se aglomerava em frente do Paço, ao saber que já estava sancionada a grande Lei, chamou Sua Alteza, que aparecendo à janela, foi saudada por estrepitosos vivas." As galerias do Paço estavam repletas, e sob vivas e aplausos de uma multidão estimada em 10 mil pessoas, Isabel sancionou a Lei aprovada pelo Parlamento do Império.

A história há de fazer sempre justiça à "Princesa Redentora", título que lhe atribuiu José do Patrocínio, pois ela demonstrou no processo abolicionista firmeza, coragem e, sobretudo, nobre desapego ao cargo, o qual - lhe previniram - haveria de ser dela tomado pela reação inevitável dos altos e egoísticos interesses escravocratas contrariados, tudo conforme relata o livro Dom Pedro II e a Princesa Isabel, da Editora Lorenz, onde consta memorável testemunho do nobre abolicionista Joaquim Nabuco: " No dia em que a Princesa Imperial se decidiu ao seu grande golpe de humanidade, sabia tudo o que arriscava. A raça que ia libertar não tinha para lhe dar senão o seu sangue, e ela não o queria nunca para cimentar o trono de seu filho. A classe proprietária ameaçava passar-se toda para a República, seu pai parecia estar morimbundo em Milão, era provável a mudança de reino durante a crise , e ela não hesitou: uma voz interior disse-lhe que um grande dever tem que ser cumprido, ou um grande sacrifício que ser aceito. Se a Monarquia pudesse sobreviver à abolição, esta seria o apanágio. Se sucumbisse, seria o seu testamento..."

Em 28 de setembro o Papa Leão XIII lhe remeteu a comenda da Rosa de Ouro, como reconhecimento pela Abolição da Escravatura. Essa comenda pontifícia simboliza o reconhecimento do Papa a algum feito notável e que mereça regozijo de toda a Igreja. A Princesa Isabel foi a única personalidade brasileira a receber a Rosa de Ouro. Ou outros dois exemplares foram dedicados à Basílica de Nossa Senhora Aparecida pelos Papas Paulo VI (1965) e Bento XVI (2007).

Mas a elite cafeeira não aceitava a abolição. Cotegipe, ao cumprimentar a princesa, vaticinou: "Vossa Alteza libertou uma raça, mas perdeu o trono". Mas a Princesa não hesitou em responder: "Mil tronos eu tivesse, mil tronos eu daria para libertar os escravos do Brasil"