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30 de novembro de 2009
O HERÓI DA LENDA
Nei Duclós
Permaneci muito tempo calado
Antes desta época eu não tinha voz
Agora posso professar o indizível
Costurar o incosturável
Atrair o espanto, celebrar o sol
Meu trigo selvagem cresce todo dia
Sou convocado por uma insana compulsão
De me expor inteiro para os indiferentes
De publicar memórias em pílulas amargas
De abrir os braços para o que foi embora
Deveria deixar tudo a cargo dos experts
Que com expertise comprovariam espertezas
Sem jamais compartilhar suas divindades
Eles poderiam continuar impunes até o final
Formando opiniões como se fossem faraós
Sou o excluído além das teses, a impávida chama
de dizer verdades vindas das estrelas
Tanto lutaram para tanto que aqui estamos
Efeito colateral de um acordo entre facínoras
A mirar no alvo das mentiras elegantes
Somos a luta contra falsos gênios e ladrões do talento
O que eles ostentam, em nós sobrou e virou lixo
Temos algo mais valioso, palavras cultivadas no horizonte
na preguiça ancestral contra religiões de espuma
Somos os fundamentalistas da falta de estilo
Estamos atentos para os crimes contra nosso canto
Se nos proibirem de falar sairemos como rebanhos
soltos no campo a devorar a idade dos tiranos
Pois agora em que somos livres para errar
Não vamos voltar à estupidez das estufas
Queremos ser uma avalanche soterrando o Olimpo
Onde compartilham a ambrosia do silêncio
Enquanto vomitam jargões do ventre da violência
Tão brilhantes que parecem diamantes lapidados
Que formam catedrais onde todos devem ir rezar
Pois sou o herege, o cara mau que invade a cerimônia
Interrompo o sermão bordado a ouro, esse latim finório
Trago o patuá sem brilho, gírias do medo, a dor de ser outro
Sei que jamais vão dizer: eis alguém que mereça ser ouvido
Por isso grito e parto os vitrais com a brutalidade do carisma
Serei esquecido e minha vingança é a minha presença
A que acossa os mandarins, e sobe nas torres de marfim
Sou uma academia de equívocos, antologia de flores duras
Não tenho perfume, apenas a potência do que digo ao coração
Porque tenho um coração, mas dispenso o amor entre as ruínas
Vai, cala meu gesto, me chama do que não deveria ter nascido
Assim mesmo medrarei como plantas em megalópoles tétricas
Atrairei pássaros do deserto, que sobreviveram comendo cactos
Trarei besouros improváveis, lagartos de cal, mortas borboletas
Troféus que ofereço de pé, porque eu sim sou o herói da lenda
RETORNO - Imagem desta edição: Ogro, obra de Ricky Bols.
O CATCHORRINHO
O catchorrinho é um personagem trágico. Não ele em si, mas o que representa. Vamos pegar o exemplo do técnico Andrade, do Flamengo. Por muitos anos ele foi preterido do cargo em favor do catchorrinho. Toda hora pintava a vaga e colocavam Andrade de tampão, mas em seguida o substituíam. Nunca era efetivado no cargo porque a prioridade sempre era para o catchorrinho. Até que um dia caiu a ficha ou faltou opção e no lugar do catchorrinho deixaram Andrade como técnico. Bem, ele é quase campeão. Falta pouco. Assim mesmo, periga ele levantar a taça e voltar ao ostracismo. Alguém vai provar que o mérito é do catchorrinho, que agiu nos bastidores.
Você mesmo deve ter passado por algo semelhante. Alguém no seu trabalho quer saber alguma coisa, num tema que você domina, é especialista. Aí as pessoas ao teu redor começam a perguntar de maneira feérica para a cortina, a janela, a porta e o catchorrinho, jamais fazem a pergunta para ti, pois poderás responder e assim serão desmoralizados, pois as pessoas estão abraçadas, apaixonadas pelas suas duvidas e não dão colher de chá para ninguém. Só para o catchorrinho.
Na políica, então, nem se fala. Poderíamos ter bons candidatos, mas eles sempre são colocados de lado em favor do catchorrinho. Au, au, votem em mim. E as pessoas votam, não há opção. Aí o catchorrinho faz aquele estrago no sofá do país e todos colocam a culpa no povo. Viu? Foi votar no catchorrinho. Isso se repete sempre. O pior é que a corrupção, quando consegue ser flagrada e derruba alguém no Parlamento, quem é o substituto? Claro, ele de novo, o catchorrinho. Ruarr ruarr.
Para não dizer que estou implicando, vou lembrar outros casos. Imagine uma feira do livro inédita em Conceição de Mato Dentro. Enfim os escritores locais, o prefeito conseguem arrancar uma verba preta da publicidade e eis que há uma boa bufunfa para o evento. Quem eles convidam como participante especial? Alguma dúvida? Lá está o catchorrinho dando autógrafos. E isso se repete nas grandes bienais. Só o catchorrinho aparece nas matéria. Aqui estamos na mega plus extra Bienal de São Paulo e vejam quem está ao redor dos seus leitores e fãs? O nosso convidado especial. Diga alguma coisa, vai. Blau blau.
É insuportável como nas provas dos concursos não fazem perguntas pertinentes, como por exemplo “pode-se chamar de ditadura um governo eleito por assembléia constituinte, como aconteceu em 1934?” Eles fazem outra pergunta” Diga porque o catchorrinho fez doutorado em ditadura nos anos 30”. Pobres estudantes.
No noticiário, seja qual for o assunto, jamais chamam os verdadeiros especialistas, os caras que dominam a matéria. Sempre chamam o catchorrinho. “Precisamos criar um circulo virtuoso”, diz o canino. “A qualidade de vida é fundamental. O desenvolvimento sustentável pode muito bem se sustentar. O aquecimento global exige que tunguemos mais verbas”. É ele, o catchorrinho dando entrevista. É que nos ágapes noturnos, encastelados em palácios suntuosos, os donos do poder jogam os restos para alimentar o catchorrinho. É por isso que não temos chance.
RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.
29 de novembro de 2009
COMO ERRADICAR ABOBRINHAS
Recebo inúmeros e-mails com montes de asneiras. A principal delas é que tudo é culpa dos brasileiros, que se aqui houvesse respeito, seria diferente. Isso se espalha nos textos metidos a políticos, esotéricos, filosóficos etc. Acho que há muita falta de estudo. As pessoas ou não lêem o básico ou passam lotado pelo pouco que lêem. Há uma ansiedade para emitir opinião, quando tudo se resolveria não apenas com o bico calado (economiza energia), mas com uma leitura atenta ao be-a-bá das ciências humanas. Elas estão a mil sempre se renovando, mas a idiotia paira como algo transcendental e metafísico acima de todas as evidências. Proponho alguns princípios, fundados em leituras, para erradicar as abobrinhas
As pessoas não são, por natureza, éticas ou anti-éticas. A ética faz parte da cultura e a cultura não está no sangue nem nos países baixos. Você forma a cidadania nas pessoas que nascem zeradas, por meio de políticas públicas corretas. Não pode deixá-la à mercê da Xuxa, incentivá-lo a ser top model, ou jogá-la nas garras dos marmanjos milionários e depois vir cobrar atitude.
A corrupção não é uma verruga do brasileiro, é uma imposição do sistema para que a sacanagem possa funcionar. Não adianta fazer campanha para mudar a cabeça das pessoas, elas estão amarradas aos seus algozes. Só quando os algozes forem eliminados ou tirados de circulação haverá alguma chance.
Os governantes não são eleitos por nós, eles são impostos por um esquema perverso da política engessada (sem mobilidade). O voto útil, a manipulação das urnas e a mentira sob todos os disfarces são formas de terceirizar a responsabilidade para a massa. A culpa é deles, mas fica sendo nossa.
O Jesus que os fanáticos pregam nas praças e nas portas da nossa casa não existe. É uma contrafação, um personagem para arrecadar dinheiro e os loucos exercerem sua loucura. Jesus é outra coisa, está nos textos do Novo Testamento, lidos com olhos livres, ou à luz da melhor teologia e não sob a peneira da imbecilidade fundamentalista.
As grandes potências são ricas não porque as pessoas que vivam nelas sejam honestas e trabalhadoras, ou pertençam às raças superiores (conceito ainda vigente, apesar de desmoralizado), mas porque um sistema de arrecadação, formatado há séculos por meio de muita guerra e carnificina, tunga os recursos mundiais, que são carreados para as principais praças financeiras do mundo. É por isso e não porque aqui todos queiram levar vantagem em tudo.
A violência é fruto da luta de classes, intensificada pela crueldade do sistema. Não é porque as vítimas mereçam levar ou os direitos humanos só defendam bandidos. Quando não há distribuição de renda, os despossuídos tomam à força. É assim que funciona.
A toda hora alguém me manda um beijo no coração. Já disse que coração não se beija, suja a boca de sangue. Beije o catchorrinho, o cacto, a sarjeta, não o coração. Se tem uma abobrinha recorrente é essa.
Lula comete erros crassos e está levando o país à ruína. Não adianta tapar o sol com a peneira e dizer que tudo nele é muito engraçado. Trata-se de um sujeito sinistro, assim como quem o admira e o apóia. Isso se estende para a maioria dos outros políticos brasileiros, de FHC a Sarney. Eles não são frutos do Zé Povinho, são agentes da tunga internacional, anti-Brasil e anti-povo.
RETORNO - 1.Imagem desta edição: bonde de Santa Teresa, cheia de povo brasileiro dentro. 2. Cesar Benjamin feriu de morte o esforço de transformar Lula num líder messiânico. Foi na hora certa. A história é de autoria do próprio Lula, foi divulgada por Benjamin na Folha e confirmada por Silvio Tendler, que defendeu o presidente dizendo que tudo era piada. O que deixou Tendler furioso foi a declaração de Benjamin de que "não lembrava" do seu nome. Isso é mortal para um marqueteiro. 3. Caiu enfim a ficha. "Descobriram" que a ditadura foi civil-militar. Agora todos podem falar o que digo há anos aqui no DF, pois existe "gancho": o documentário Cidadão Boilesen, sobre o executivo do grupo Ultra que financiou a tortura junto com outros empresários na Operação Bandeirantes.
28 de novembro de 2009
FRASES PARA O PEQUENO COMÉRCIO
Atender um balcão é uma prova de resistência no Brasil. Já tive essa experiência e a instabilidade econômica acena sempre para uma recaída. Como essa é uma atividade que envolve milhões de pessoas, resolvi destacar algumas frases de grande utilidade para criar algum acordo entre quem vende e quem compra.
NÃO TENHO PATRÃO. PORTANTO, SEJA GENTIL
SE EU NÃO TIVER O QUE PROCURAS, NÃO VOU TE EMPURRAR O QUE PRECISO VENDER
JAMAIS DIREI “FIQUE À VONTADE” E SÓ ATENDEREI SE FOR SOLICITADO
NÃO VOU CONVERSAR COM FORNECEDOR NA HORA EM QUE VOCÊ PRECISAR DE ATENÇÃO
NÃO VOU DAR PRIORIDADE À CHAMADA TEELFÔNICA NO MOMENTO DA VENDA
NÃO VOU TE OLHAR COMO SE FOSSES UM INTRUSO INVADINDO MEU ESTABELECIMENTO
JAMAIS DAREI SORRISO FORÇADO.TAMBÉM NÃO VOU FECHAR A CARA
NUNCA VOU PROCURAR TE CONVENCER A LEVAR UM NÚMERO MENOR OU MAIOR
NÃO VOU MANTER PRODUTOS VENCIDOS NA PRATELEIRA
NÃO VOU ENCARAR AS CRÍTICAS COMO UM ATENTADO PESSOAL
DAREI TODA INFORMAÇÃO SOLICITADA, MESMO QUE BENEFICIE OS CONCORRENTES
NÃO MOLHAREI A MÃO DE FISCAIS
NÃO COLOCAREI A CULPA DOS INSUCESSOS NOS OUTROS
NÃO PERMITIREI OLHO GORDO NA PROSPERIDADE
NÃO DEIXAREI DE CUMPRIR PRAZOS, A NÃO SER QUE HAJA ACORDO ENTRE AS PARTES
NÃO VENDEREI PRODUTOS FABRICADOS PARA ESTRAGAR
NÃO INVEJAREI QUEM QUER QUE SEJA EM QUALQUER SITUAÇÃO
NÃO DAREI PASSOS MAIORES DOS QUE AS PERNAS
VOU CORRER RISCOS, MAS COM RESPONSABILIDADE
SEMPRE ME COLOCAREI NA PELE DE QUEM ENTRA PARA COMPRAR
NÃO VOU EXPLORAR FUNCIONÁRIOS NEM PERMITIR FALTA DE RESPEITO
VOU RESERVAR UMA PARTE DOS LUCROS PARA OBRAS SOCIAIS
NÃO VOU ESCORRAÇAR QUEM PEDE FIADO
RETORNO - Imagem desta edição: foto de Daniel Duclós.
27 de novembro de 2009
A REALIDADE VISTA PELO AVESSO
Não costumo me atualizar sobre política, pois acredito que tudo vai num tranco só, sem mudar nada. O que me deixa a par do que realmente acontece é a propaganda institucional, tanto do governo quanto dos partidos. É verdade, a desfaçatez é tão grande que eles acabam entregando tudo. Ontem, por exemplo, vi uns trechos do programa do PMDB. É um assombro. Fico sabendo que a soberania nacional está a cargo do PMDB. Claro, se o Nelson Jobim é o Ministro da Defesa, faz sentido. Forças Armadas nem são citadas como protagonistas, já que ocupam lugar subalterno no enfoque adotado pelo partidaço (o partido que deixa o Brasil aos pedaços). Ou seja, ficamos sabendo como as Forças Armadas são tratadas.
Também notei tardiamente que o maior volume de verbas dos ministérios está nas mãos do PMDB. A Previdência, Minas e Energia, a Saúde, é tudo com eles. Assim o PT governa de um lado, deixando uma grande parte do butim na mão da turma. Lá está o ministro do Apagão com gestos de catequista incurável enquanto na Folha, Palméria Doria, ao comentar seu best-seller Honoráveis Bandidos, da Geração Editorial, coloca o dito na lista da “gente da pesada” da turma do presidente do Congresso. No mesmo dia em que o sujeito é denunciado, ele aparece como o grande desenvolvimentista, o ministro dos traques de Tupã no ermo.
As notícias da desfaçatez são generosas. Em Santa Catarina, anunciam mais “36 leitos” nos Hospitais, parece que são uns 15% do que vai ser distribuído no resto do país. Ora, meia dúzia de “leitos”. É preciso mais mil hospitais, mais um milhão de leitos. Basta pegar o dinheiro gasto pelo Lulinha e sua turma num avião da FAB (quanta cara-de-pau!) e jogar na saúde. O que pensam os militares que tiveram de ir para o fundo avião para a tchurma assumir seus lugares? O que pensam os militares, no uso legítimo do serviço, terem de voltar abruptamente dez minutos antes de aterrisar em Brasília, para São Paulo, para pegar o filho do cara-de-pau mor? O que pensam os militares?
O que pensar sobre a corja internacional que o Brasil está reunindo, do fraudador do irã ao decano ditador Kadhafi, de Chavez a Zelaya, contrariando o bom senso e a paz mundial, pois só o Brasil incentiva um louco a usar energia nuclear? O que pensar de uma política exterior que não vai reconhecer as legítimas eleições de Honduras e que mantém numa falsa embaixada (já que não temos representante lá) um sujeito perigoso que tentou dar um golpe via plebiscito? O que pensar desse pesadelo que atrai para cá os piores elementos e tira todo o cacife que acumulamos em séculos de vida e luta, pois temos um território gigantesco reconhecido por todos (por enquanto) graças à coragem e à credibilidade de nossos antepessados, um patrimônio que está sendo esbagaçado pelo atual estágio da ditadura brasileira?
Outro sintoma da defaçatez é a pose de estadista do FHC, que ressurge maquiado de seu personagem favorito, o grande estadista culto que livrou o Brasil da inflação. FHC entregou o país, sucateou o patrimônio da nação, "deu" o que tínhamos de melhor (da Vale para cima), foi beneficiado por uma operação financeira pesada para se reeleger, conforme denuncia de Greg Palast, do The Guardian, num livro que jamais foi comentado na grande imprensa A melhor democracia que o dinheiro pode comprar (só a Cartacapital deu destaque). FHC se apresenta também com o maridão carinhoso que tinha a socióloga ao seu lado, o cara que era “o acompanhante de Ruth”, quando se sabe que a frase “sou apenas o acompanhante de Jackie em Paris” é do John Kennedy. Ambos maridões exemplares, como todo mundo sabe.
Na era dos softwares que tornam toda fuça murcha numa pele de pêssego, em que biografias são maquiadas para a próxima eleição, em que a falta de escrúpulos na política é considerada paradigma, em que temos a opção de votar entre o safado e o sem-vergonha, em que as pessoas morrem na fila do SUS por falta de “leito”, em que qualquer vento ou chuva derruba as casas como se fôssemos os clones daquele porquinho da fábula que tinha sua moradia soprada pelo Lobo Mau, em que, no maior desplante os pré-candidatos se apresentam com a mesma cara lavada falando em educação, saúde e geração de emprego e renda, em que estamos por aqui desses crápulas, precisamos ficar firmes e não nos deixar abater pela desesperança.
Só para encher o saco, vamos ter esperança. Não essa esperança que custa milhões de dinheiro público nas propagandas. Não neles ou no que eles possam fazer de diferente, porque não vão fazer. Mas em nós, os eternos cidadãos despossuídos do Tempo instável. Como dizia o general Giap sobre o Vietnã, “ganha a guerra quem agüenta mais cinco minutos”.
RETORNO – Imagem desta edição: tirei daqui.
26 de novembro de 2009
SOMOS (40 ANOS DE UM POEMA)
Nei Duclós
O cinismo é o nosso destino
a desilusão nosso início
a paz nossa inimiga
Investe quem sobrevive
sorri quem acredita
na vitória tardia
(a única disponível)
Nascemos para ser assassinados
somos uma espécie de fim da tarde
RETORNO - 1. Este poema foi escrito em 1969. Reproduzido em pincel atômico (tinta preta) em cartolina branca, foi exposto nas praças da Alfândega (Porto Alegre), da República (São Paulo) e General Osório (Rio), no mesmo ano, e publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, de Porto Alegre. Desde 1975, faz parte do meu livro Outubro. São 40 anos de uma profecia. Não queria ter acertado tanto.
2. Imagem desta edição: o assassinato de Edson Luís em maio de 1968. Sobre esse crime escrevi, na época:
CANTO PARA EDSON LUÍS, O MENINO MORTO
Nei Duclós
"Cortinas de grosso veludo
nas janelas do mundo
olhos claros se apagam
com rajadas de chumbo
Foi um corpo que tombou
onde corpos tombam
numa guerra em desassombro:
façam fogo
Enterramos nossa espera
Teu corpo flechado
morreu com ela
Caminhamos cobertos de luto
as facas da dor
abrem sóis no veludo".
CENSURA À IMPRENSA, CRIME HEDIONDO
A ditadura brasileira achou um caminho “legal” de censurar a imprensa: por meio da Justiça! Assim, faz quase quatro meses que o Estadão está proibido de publicar suas matérias sobre falcatruas de notória família política; o blog Tijoladas do Mosquito, aqui de Floripa, está novamente sob o tacão de decisão judicial que proíbe publicar algumas denúncias; o jornal Já, de Elmar Bones vai à falência porque foi obrigado a pagar indenização milionária por ter feito matéria em 2001 sobre desvio de verba pública no RS, e por aí vai.
Depois falavam que a censura da época “militar” era isso e aquilo. A censura da ditadura é a mesma desde 1964, na marra, mas agora sob o manto da rigorosa punição judicial. Engraçado, soltaram o facínora que acabou matando Tim Lopes; soltam a toda hora bandidos que tomam conta do tráfico e da marginalidade; elementos do mais baixo nível saem pela porta de frente da cadeia; o sujeito dá dois tiros pelas costas da ex-namorada, mata, é julgado, condenado e continua solto. Para tudo tem um jeito, menos para a imprensa. Essa tem que entrar sonoramente pelo cano. Por que acontece isso?
Porque o jornalismo é uma profissão perigosa e foi destruída para, no seu lugar, triunfar o marketing de eventos noticiosos, o dossiê plantado por interesses em jogo, a abobrinha lancinante e recorrente, a suíte eterna, o tatibitati da linguagem em ruínas, a legenda para cego, a má remuneração dos profissionais da imprensa, a celebração das nulidades, o latifúndio de espaço para maus elementos de todos os calibres disfarçados de articulistas. Enquanto isso, grandes jornalistas amargam o ostracismo e a sacanagem impune triunfa e se mantém eternamente no poder.
Sem falar em inúmeros jornalistas assassinados nos grotões. Não se pode fazer jornalismo no país em que tudo se rouba, de merenda escolar a dinheiro para o lixo, conforme constata o trabalho insano e magnífico do Ministério Público. Esses dias vi uma foto em que o sorridente ministro de portentoso tribunal de Contas bebericava junto com um grandalhão da política. Era um ágape, que depois foi esticado para um lounge, resort, ou que sei eu dessas palavras estrangeiras que dominam a vida nacional. Como pode alguém que decide sobre verbas públicas celebrar junto com um político?
Um juiz deveria dar exemplo de ascetismo e não ficar exibindo alegria etílica diante das câmaras. Quem julga os juizes? Quem faz auditoria sobre esses atos de censura à imprensa? Quer dizer que um tribunal tem o poder inconstitucional de calar a imprensa? Se é assim, então retirem o rótulo de democracia de uma vez, porque há muita perda de tempo nesse troço de achar que estamos numa democracia. Se houvesse democracia, teríamos imprensa! E não censura.
Mas você consulta o jornal e lá está a Madona. Liga no noticiário e lá está o ratinho sendo torturado pelos pesquisadores (não suporto mais tanta matéria de saúde). Espera chegar a reportagem e atura tudo que é evento, desde a comilança de polenta e beberança de vinho do santo agapito até a oportunidade de quem tem sangue “puro” ensinar alemão para as crianças, que assim acabam falando português com sotaque. E dele matéria do transito, de como as pessoas perdem tempo dentro dos ônibus e como isso provoca stress. Mientras tanto, a mulher que teve ataque agudo de pancreatitie, em Lages, agonizou por horas a fio na fila do SUS e acabou morrendo. E a matéria tão aguardada é reduzida a cinco milissegundos. A "reportagem" ocupa menos espaço do que a chamada.
Se temos um sistema de saúde seletivo, que escolhe quem vai morrer, e uma Justiça que censura a imprensa, então isso nem mais é ditadura. É o que vem depois dela, quando ela triunfa. Uma espécie de III Reich sem a vitória russa em Stalingrado. Algo como um mundo sem o dia da Vitória na França em 1945. Vivemos num país que recebe ditadores com alegria, com nosso presidente roçando barba a barba e sorrindo levantando os braços. Somos um país que censura a imprensa e joga jornalista no lixo. E que usa os meios de comunicação para difundir mentiras sobre a situação social.
Chega, porra.
RETORNO - Imagem de hoje: o ministro da propaganda do nazismo, Joseph Goebells, olhando para o futuro e pensando: "Eu vou pegar vocês amanhã". Brrr.
25 de novembro de 2009
PALAVRAS FORMATAM UM PARADIGMA
Para trafegar impunemente pela chamada comunicação, é preciso submter-se a um consenso formado pelo círculo de palavras aceitas e que são voláteis, pois quando elas se cristalizam, em seguida outras são jogadas na roda para que os emissores vocabulares possam manter o ar cool e exclusivo de quem forma opinião. Como cansei dessa turma, vou elencar algumas palavras que, me parecem, fazem parte do atual paradigma.
FORTEMENTE - Serve para cimentar opiniões quebradiças. Se você diz que Lula está fortemente implementando uma política externa independente, você mascara a realidade, pois a política externa independente faz parte do Brasil desde San Tiago Dantas, com antecedentes ilustres, como o Barão do Rio Branco, que aumentou o território nacional sem disparar sua cartucheira, apenas na base da negociação e da firmeza. Só que na época ninguém dizia que o velho Barão estava fortemente viabilizando o Brasil. Ele estava e pronto, sem advérbios.
FERRAMENTA – Não se trata de foice e martelo, nem de serra. Ferramenta é tudo o que brilha no escuro e serve para você dizer que se trata de uma ferramenta. O word, por exemplo, ou o Google. Também são ferramentas o just-in-time, a qualidade total, a terceirização, entre outros exemplares da tralha corporativa. Você pode estar na maior pindura, sem perspectivas, cheio de dívidas, mas se disser que usa as ferramentas adequadas talvez alguém acredite e te pague uns pilas por você estar tão up-to-date.
PERRENGUE E MARRENTO – Essa dupla siamesa já está em descendo na moda, mas pode ser citada como ferramenta para expressar o ar blasé de quem está por dentro. Se você, por exemplo, produz um filme com alguém marrento, dá o maior perrengue. E se você armar um perrengue vão fortemente te chamar de marrento. É simples.
POLÊMICO - Você pode cometer as maiores barbaridades, mas desde que tenha grana ou acesso ao cofre, o que dá mesma, você será um cara polêmico. Matou cinco revoltosos que protestavam contra as eleições fraudadas? Você é polêmico. Negou o holocausto, condena a existência de homossexuais e diz que seu programa nuclear é um trem sem freios? Polêmico, polêmico. Não é ditador, nem oportunista, nem psicopata. É um cara polêmico, entende? Colocou a bola com a mão para dentro do gol? Vai ser polêmico assim na final da copa de 98. E já vou avisando: Platini, nós vamos te pegar!
SINERGIA, CONVERGÊNCIA E PARADIGMA – Sinergia é o que acontece no apagão, quando todas as linhas de transmissão entram em colapso porque Tupã deu um traque na selva. Convergência é a identificação de propósitos e objetivos como acontece atualmente entre o Grêmio e o Flamengo. E paradigma é quando você não tem nada o que fazer e inventa um paradigma. É assim que funciona.
RETORNO - Imagem desta edição: o time do Grêmio em 1957, quando era outro o paradigma, e ninguém era marrento nem provocava perrengue. No centro, abaixado, o uruguaianense Gessi, que fez um monte de gols no estádio da Bombonera, entre outros feitos, o cracaço que virou dentista aos 26 anos e nunca mais jogou. Isso sim é que é ser polêmico.
24 de novembro de 2009
PARECE MENTIRA
Nei Duclós
As melhores histórias são as que fogem do rema-rema diário. O fabuloso existia em qualquer cidade, quando figuras populares encantavam platéias narrando aventuras que trafegavam entre o assombro e a gargalhada. Como aquela, mais tarde reunida em livro, do sujeito que afiou uma moeda de um cruzeiro numa pedra lisa, colocou-a num bodoque e lançou-a em direção a doze pombas que estavam postadas num só fio. Todas fora degoladas. Ninguém acreditava, mas todos escutavam até o fim.
Essa linhagem era muito considerada nos ermos do Brasil profundo. Os autores tinham nomes folclóricos. Conheci um Oscar Mentira, que matou um capincho a remadas na época de seca. Há o Candinho Bicharedo, imortal personagem de Urbano Lago Vilela, colecionador e criador de preciosidades. Hoje, quando todos batem no peito jurando dizer a verdade, nunca se mentiu tanto. Perdeu-se o visgo da ficção dos antigos contadores. Num lugar de longo inverno, fogão a lenha, gente amontoada em galpões ou acomodada em salas generosas regadas a chimarrão ou vinho, eles confortavam os ouvintes, dando-lhes guarida num mundo hostil e sem imaginação.
Recentemente perdemos um contador de “causos” de supremo talento, o cineasta maior Anselmo Duarte. Ficaram célebres suas histórias, difundidas primeiro no antigo Pasquim e depois em várias entrevistas. A que mais me emocionou foi quando, celebrado como o vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 1962 pela sua obra-prima “O Pagador de Promessas”, ele foi levado aos estúdios da Universal em Hollywood. Lá encontrou, logo na entrada, servindo de porteiro, um antigo cineasta que no Brasil tinha lhe dado lições valiosas.
Antes de assinar contrato com os americanos, Anselmo Duarte exigiu que contratassem o velho guru como seu assistente. Os executivos ficaram chocados: como um gênio poderia ter sido aluno do porteiro do estúdio?
A história, absolutamente verdadeira, parece até mentira nos dias que correm, pois ninguém abre mão de uma carreira internacional só para prestar homenagem a um amigo. Só mesmo um brasileiro, o cidadão que tem na alma a grandeza dos heróis antigos, os que eram protagonistas de sagas que ficaram na memória dos povos. Eles eram a prova de que somos maiores do que as gavetas onde a mediocridade tenta nos enquadrar.
RETORNO – 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 24 de novembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Imagem de hoje: Anselmo Duarte e Ilka Soares, ao lado do então prefeito de Salto, Vicente Scivittaro, no dia da inauguração do Parque Infantil, 1º/05/1953 (arquivo pessoal de Ettore Liberalesso). Tirei daqui. Eu tinha a idade dessas crianças quje aparecem na foto e um dos meu ídolos era Anselmo Duarte.
23 de novembro de 2009
O JORNALISMO EDIFICANTE
Todos lembram como surgiu o jornalismo edificante. Com o bordão “isto é uma vergonha”, que de tão repetido, caiu no vazio. Tudo continuou uma vergonha e ficou por isso mesmo. Mas a ditadura precisa desse tom de ninar o Papa, desse lento caminhar ongueiro reportando bufunfas desviadas dos recursos públicos para cacifar a defesa das tartarugas, a importância fundamental da capoeira ou da sustentabilidade do mico leão dourado (se fosse mico leão negão não causava tanto frisson entre os gringos).
A tal sustentabilidade levou ontem Sting e Raoni a um show em São Paulo, onde todos aplaudiram a necessidade de salvar a Amazônia, que continua firme sendo desmatada. Aliás, para isso existem as campanhas, para manter ativa a devastação da selva, pois assim a destruição continua mas o público fica confortado pelas boas intenções das figuras carimbadas.
O tsk tsk tsk permanente de apresentadores e repórteres nos levam sempre para as imagens maquiadas das ruínas. O bairro está morto, sujo, podre, dá para ver em qualquer detalhe. Mas se o morador vestir uma camiseta com mensagem edificante, tudo se ilumina. As pessoas reunidas em frente às câmaras são flagradas mudas naquele instante que antecede a falsa reportagem. A uma ordem, todos então entoam em uníssono alguma coisa para ficar na História, manifestam sua alegria em ser pobre, de estar condenado mas assim mesmo resiste porque é brasileiro e não desiste nunca.
Mas como não se pode mal acostumar “essa gente” (que significa classes despossuídas), então chega a vez dos comentaristas ferozes do jornalismo edificante, os que babam simplesmente na gravata insurgindo-se contra o câncer ou os que usam o tom admoestador e advertinte catequista, que lembram a todos que a democracia é uma concessão que pode ser retirada se não se comportarem direito. Por enquanto vai algumas palmadas-frases, mas daqui a pouco vem chumbo grosso, cuidado.
Tudo isso acontece porque o monopólio não cede, a distribuição de renda é uma campanha publicitária e nada é feito pela nação aos pedaços. Vejam os marmanjos se rebentando no final do jogo, as crianças sendo mortas a tiros em brigas pífias de trânsito, os assassinos hediondos recebendo benefícios da justiça, as cadeias sem condições de higiene nem para porcos. Tudo isso convive ou é fruto de uma política que se arma para a grande disputa do butim federal em 2010, o vale-tudo da desfaçatez e da falta de escrúpulos, quando teremos a liberdade de escolher entre mal encarados mentirosos, corruptos sorridentes, idiotas destemperados e vagabundos fazendo pose de estadistas.
Esse ambiente hostil ao raciocínio, à sensibilidade, à cultura e à inteligência precisa do jornalismo edificante, que é seletivo e invasivo. Eles te olham bem fundo nas fuças e mentem deslavadamente ou expressam abobrinhas inomináveis embaladas no papel celofane da correção absoluta. Nenhuma migalha de realidade. O país afunda com qualquer chuva, os ventos varrem as cidades sem que nunca ninguém pense em como redirecionar os projetos de construção, como implantar políticas públicas de urbanização que leve em conta as novas manifestações da fúria do clima. Tudo fica ao deus dará, como se estivéssemos em terra de ninguém, onde prevalece o improviso e a incúria.
Mas não se desespere. Basta ligar a televisão ou abrir o jornal para ver os articulistas do Bem, os editorialistas do óbvio, as gracinhas dos direitos, os eventos étnicos e outros exemplares da tralha da idiotia que nos domina. Fazem de tudo para você se sentir à vontade enquanto a população consome comida industrial suspeita, eletrodomésticos de última categoria e móveis que se autodestroem no final da prestações. “Perdi tudo” diz a cidadania ferida de morte para seguradores de microfone do jornalismo edificante.
É verdade. Perdemos tudo, principalmente a capacidade de reagir a essa infâmia geral no país sem soberania.
RETORNO – Imagem de hoje, um exemplo de “sustentabilidade”, tirei daqui.
22 de novembro de 2009
TRANGRESSÃO E MORALIDADE NO CINEMA
Vi Les Hauts Murs (Entre os Muros da Prisão, 2008), de Christian Faure, filme baseado no livro homônimo e autobiográfico de Auguste Le Breton, o órfão de guerra (o pai, palhaço, morreu em 1915, quando ele, Auguste, tinha dois anos) que do reformatório foi jogado nas ruas de Paris, onde aprendeu tudo. O que o salvou foi a Segunda Guerra, quando era uma pedra no sapato da Gestapo da ocupação alemã na França (e por isso em 1945 foi condecorado). É de Le Breton a série de novelas com a marca Rififi, adotada depois do megasucesso "Rififi Chez Les Hommes", que ninguém queria filmar até chegar Jules Dassin, expulso dos Estados Unidos pelo macartismo, e fazer da história um filme memorável.
Por que este filme, o Hauts Murs, muito bem realizado, é um anacronismo? Poderia ter sido feito nos anos 30, quando se passa a história do garoto fujão que enfrenta a repressão e a brutalidade de uma prisão para menores, vendida para a sociedade como uma escola de correção. É, inclusive, de propósito, a adoção do cenário, do clima e até mesmo da interpretação dos atores. Tudo lembra o cinema clássico francês, especialmente os de Jean Vigo em "Zéro de conduite", René Clair em "A nous la liberté", e Marcel Carné em Cais de Sombras. Mas por que o anacronismo hoje? Vamos relevar o fato, importante, de os cineastas homenagearem Vigo, Clair, Carné ou Le Breton, glórias da cultura francesa. O foco deste comentário é a sobrevivência de um tipo de enfoque sobre a transgressão.
A tradição aponta para filmes como o próprio Rififi, em que existe um código de ética entre os bandidos. E vimos isso em Inimigos Públicos, em que Dillinger é apresentado como um herói charmoso. Diferente, claro, das injustiças sofridas pelo personagem menino na prisão de Hauts Murs. Mas ambos os casos nos remetem a um fato: será que já não dobrou o cabo da Boa Esperança a abordagem recorrente e canônica de que os transgressores são inocentes ou vítimas do sistema e que por isso se justifica sua reação, o crime (no caso do garoto, o furto, no de Dillinger, o assassinato e o roubo a mão armada)?. Havia um tempo em que a platéia torcia pela transgressão, pois esta estava calçada num conjunto de valores e princípios.
A vítima tinha sofrido uma injustiça, a orfandade, o abandono dos pais, a prepotência dos adultos, a pobreza, a marginalização, e partia então para a vingança. Era flagrado e ia para uma instituição brutal, injusta, sempre com um algoz lapidar, desses vilões que dirigem os cárceres e se transformaram, na literatura e no cinema, em paradigmas do Mal (em contraposição aos humanos seres dentro das celas). O Bem estão migrava para o encarcerado e sua reação era punida com a morte, o que arrancava lágrimas do público. Todos se emocionavam com a saga que, forçosamente, não poderia dar certo, pois a censura no cinema sempre foi pesada e não se podia simplesmente eleger o vício como virtude, mesmo que todos saibam que esses conceitos muitas vezes se misturam. Mas a armadilha funcionava e enchia as salas de multidões que se identificavam com as vítimas.
Mas aos poucos os transgressores acabaram vencendo em vários filmes. Lembramos como os bandidos acabam indo mesmo para o Rio (deveriam ir para Washington, terra de assassinos, mas eles preferem, claro, o Rio de Janeiro, capital do Brasil soberano, que virou Meca da impunidade no imaginário mundial), ou para o México (que no cinema americano, é a mesma coisa que o Rio ou o Caribe), junto com mocinhas esplendorosas. Há o caso de Um sonho de liberdade, em que Tim Roibbins e Morgan Freeman conseguem fugir da prisão e vão viver juntos, felizes para sempre, numa praia longínqua, em algum lugar do “planeta” (tudo o que é fora das fronteiras americanas é o planeta, terra de ninguém).
No caso de Hautes Murs, não há o que discutir: os órfãos dos soldados da guerra são tratados com violência e merecem mesmo reagir, fugir. No caso de Tim Robbins, quem resiste ao charme do fujão genial que, preso por uma injustiça, bola por vinte anos uma rota para ele e seu grande amor escapar das paredes que impedem o relacionamento proibido? Dillinger, de Inimigos Públicos, já vai mais longe, pois o psicopata é absolvido por seus problemas psicológicos e sociais. A transgressão assim migra para a moralidade e alimenta a indústria de espetáculos.
O sistema prisional continua bruto e injusto e não é reformulado, pelo menos no Brasil, porque não interessa e dá preguiça e também porque faz parte do fosso entre as classes sociais. Bandidos de colarinho branco vivem em iates e jatinhos enquanto a massa despossuída apodrece nos porões da ditadura sem fim. Uma abordagem adulta é a de Carandiru , de Hector Babenco, que faz a denúncia mas não endeusa os prisioneiros. O que já fez água é insistência de apresentar assassino como mocinho e presidiário como alguém com direito à liberdade. Pode não ter esse direito. Isso não significa que mereça ser punido de maneira torpe, com cadeia imunda e corrupta.
Ninguém deseja cadeia para quem quer que seja. Ou pena de morte. O que se discute aqui é o vício de apresentar o criminoso como herói. Hoje, sabemos, com tanto crime à solta, que não se sustenta mais manter o mesmo enfoque. Talvez por isso se lance mão do anacronismo, pois assim funciona o velho esquema de confinar a virtude pra que ela escape e denuncie a opressão. Esse recado já foi dado. Agora é a vez de fundir a cuca para encontrar novas soluções de roteiro. Ou daqui a pouco teremos traficante perigoso sendo apresentado como gente bem. Já existe alguns antecedentes.
O assassino italiano acobertado no Brasil é um deles. O matador venezuelano Chacal, que curte uma prisão perpétua na França, está sendo defendido por Chavez. Sem falar no inglês que roubou milhões e fugiu para o Brasil e só quando estava agonizando decidiu voltar. O ladrão se refugia no Rio, mas na hora da morte se entrega nos braços da sua velha Albion. Como dizia Martin Fierro: “Infierno por infierno, prefiro el de la frontera”.
RETORNO - Imagem desta edição: cena de "Hauts Murs" - os bandidos são os carcereiros.
21 de novembro de 2009
CAIXA CORAL
Nei Duclós
Adiei o mundo que no escuro
preparava o bote – coral na caixa
preta do destino
Sem descobrir
o código – cobertor de ruído
sobre o túnel –
acordei diante do trem
em direção ao corpo
preso na ferrugem
Nenhum desvio
salvou-me do som
despedaçado do violino
Adeus dos outros,
feito pão mofado
na mesa posta de um cortiço
Acolheu-me a musa
no lado oposto à vida
com o olhar mortiço
para quem ficou encarando
a minha sorte
Ela escolhe e fisga o coração
de quem não morre
Para o resto – o inconformismo
em mar de inveja repulsivo –
ela tem o olhar que petrifica
Fósseis na mira da Medusa
fogem do Tempo, rosto final
do Medo, que assoma
como surda carruagem
Enquanto somem, a seiva
interminável cobre o sonho
que guardei no bolso
Carne oferecida à eternidade
RETORNO - 1. Poema do livro (ainda) inédito Partimos de Manhã. 2. Imagem desta edição: Homemarvore, de Ricky Bols.
RIO ACIMA
Nei Duclós
O rio guarda um país na outra margem
e um canal que engole navios
A cidade venta e está parada
Pescadores quietos sobre o barco
dentro da noite escutam passos
Silêncio, meu pai caminha sobre as águas
Ele persegue um peixe, a sua alma
remando com doçura e boca amarga
No rio, bóia meu coração em falso
resplandecendo, branco, no buraco
formado pelo céu e noite alta
Remamos rio acima
atrás de um surubi
ou cobra d´água
As luzes da ponte fazem sinais
Responde a estrela dalva
RETORNO - 1. Poema do livro No meio da rua (L&PM, 1979). 2. A imagem desta edição é de Anderson Petroceli, fotógrafo maior da fronteira.
20 de novembro de 2009
EXCESSO DE ERROS
O excesso de erros na vida nacional pressiona o analista a selecionar os eventos e reuni-los em grupos identificáveis, numa tentativa de encontrar uma linha coerente. Quais são os erros que devem ser destacados e o que significam? Primeiro, provas de concursos, como os do Enem ou do TRE regional de Santa Catarina. O vazamento das perguntas é só um aspecto da questão. A corrupção alia-se à incompetência. Perguntas mal formuladas, copiadas da internet alimentam essa indústria,que movimenta milhões, pois é isso no fundo o que se trata: na seleção lotérica dos candidatos, a despesa de inscrição é ampla e irrestrita, arrecadando uma grana preta para quem organiza ou para a instituição responsável.
A verdade é que o hábito de arrancar dinheiro de quem precisa é escorada no analfabetismo crescente e em rede. Alunos que se burrificam no atual sistema de ensino, que custa os tubos em propaganda oficial, viram professores, que por sua vez repassam o desconhecimento para as novas gerações. Isso tudo deságua em equívocos primários, pois se perderam os parâmetros confiáveis e hoje há um vale-tudo numa área que deveria servir de exemplo. Quando a educação se deixa levar pelo espetáculo televisivo de um Soletrando, do Luciano Huck, é sinal que estamos fritos. O professor surrado pelos alunos violentos é um dos sintomas da grave doença educacional que a ditadura implantou entre nós.
Com a ignorância abissal disseminada por todos os níveis sociais, o governo, fonte e arauto da vocação para o obscurantismo, deita e rola. O ministro da Justiça se assombra com a decisão do Supremo de indicar a expulsão do terrorista italiano e sugere que há algo podre no ar, ou seja, a crescente fascistização do mundo, especialmente na Itália e no governo atual dela. Quer dizer que fazer justiça é fascismo? Quando uma autoridade suprema da Justiça disse antes uma coisa dessas, colocando em dúvida uma decisão judicial soberana? Claro que as aparências foram mantidas, pois, diz o Ministro, estamos num “estado de direito”. Certamente o fato de terceirizar a decisão para o Executivo foi recebido com alegria. Agora, é levar no banho Maria até o caso esfriar e ficar tudo por isso mesmo.
Pode ser feito um paralelo com a classificação da seleção francesa para a Copa do Mundo. É um escândalo a desfaçatez do jogador Henry, da seleção francesa, que ajeitou a bola com a mão como quis (tocou nela duas vezes) e depois disse nas entrevistas que ele não é o árbitro. Ou seja, ele pode matar desde que a Justiça o libere! É preciso avisar que o crime existe no momento em que é cometido, independente da existência ou não do Juiz. Quando todo mundo vê a sacanagem, fica ainda mais feio.
Mas isso parece não importar. A cara-de-pau, a estultície, a superficialidade no poder encobrem o grande massacre a que estamos submetidos, quando tudo tem de ser pago até o osso, e somos todos encarados como unidades arrecadadoras. Providenciamos energia vital para os vampiros, que batem no peito jurando inocência, fazendo advertências e vivendo no bem bom da grana arrecadada à força e que jorra nos seus quintais como cachoeiras generosas.
RETORNO - Imagem desta edição: Mario de Andrade, secretário de Educação e Cultura do governo paulista, e as crianças (foto de B.J.Duarte). No tempo em que governo, no Brasil, tinha Mario de Andrade em seus quadros. Na Era Vargas, obviamente.
19 de novembro de 2009
PORTUGAL
NÃO SABEM O QUE FAZER COM GETÚLIO VARGAS
Como tratar assuntos candentes como Villa-Lobos, o futebol brasileiro, a cultura no século 20 se no meio existe uma batata quente, uma pedra, um complicador chamado Getúlio Vargas? O ideal seria colocar todos esses assuntos ao largo do grande estadista, não dar destaque à extrema “coincidência” entre a Era Vargas e o que o Brasil produziu de melhor. O normal é ver uma contradição ou uma charada sem solução e assim negar a existência do Brasil soberano, aquela fase da vida nacional em que nos superamos em tudo e que foi soterrada lentamente, mas de maneira inexorável, a partir do suicídio do Vargas em 1954 e de maneira radical e brutal de 1964 em diante.
Hoje, vemos o maestro John Neschling se atrapalhar tentando enquadrar Villa-Lobos, que, segundo sua argumentação, não pode ser endeusado. Não se pode exagerar abordando sua obra, diz o maestro, não podemos equipará-lo a Bela Bartok ou Stravinski, mas também não podemos diminui-lo em relação a esses grandes compositores. Não podemos chamá-lo de gênio, apesar de ter feito coisas geniais, devemos guardar “as devidas proporções” e reconhecer que ele, mesmo quando faz coisas banais (e fez muito, pois tem mais de mil composições) conseguiu momentos de gênio. Essa é a argumentação atrapalhada de Neschling. Por que não reconhecer logo o gênio, sem reparos e subterfúgios? Porque era brasileiro? Porque era autodidata? Porque não se enquadrava? Ou porque estava ligado a Getúlio Vargas? Se estava ligado a Ge´tulio, não poderia ser tão bom assim. Aí tem.
Junto com ele, meu ex-colega da Ilustrada dos anos 70, João Marcos Coelho (ele cobria música erudita e eu rock) fala como Villa Lobos foi tratado aos pontapés pela vanguarda brasileira contaminada pelos europeus. E que é preciso valorizar o que é nosso, pois até hoje a memória de Villa-Lobos se ressente desse boicote. Bastaria, Joãom Marcos, colocar o massacre contra Villa-Lobos como decorrência da campanha caluniosa contra Getúlio Vargas. Assim faria sentido. Pois a fonte da má-vontade sabemos qual é. Villa-Lobos escreveu uma carta a Getúlio Vargas propondo uma revolução cultural por meio da música, para que ela pudesse estar à altura das propostas da revolução de 30. Depois, no Estado Novo, foi a grande figura dos corais de milhares de vozes, da implantação de uma política educacional que gerou inumeráveis grandes artistas entre nós.
Tivemos Elis, Milton, Chico, Edu e centenas de outros de grande qualidade porque tivemos antes Villa trabalhando no governo Vargas, que implantou a música como matéria obrigatória nas escolas (parece que vai voltar a lei; o sertanojo e o baticum agora serão ensinados nos colégios?). Mudou um pouqunho nos últimos anos. Reconhecem que ele foi o maior estadista brasileiro, mas não abrem mão de debochar, colocando-o como amante de Virginia Lane, por exemplo (talvez para contrabalançar o fato de que FHC está sendo descoberto como o grande fazedor de filhos fora do seu festejado casamento, uma espécie de presidente paraguaio Lugo tardio).
O historiador e jornalista do Grupo Estado, Marcos Guterman, falando sobre seu livro, "O Futebol Explica o Brasil", destaca a copa de 1938 como o grande momento em que o futebol virou identidade e fenômeno nacional, incentivado por Getúlio Vargas “então ditador”. O bom seria que o futebol deixasse de ser gringo e branco entre nós e virar mulato e brasileiro sem que o Getúlio existisse, assim ficaria como mais um feito do bom mocismo bem pensante que hoje domina o país. O fato de o futebol ter se modificado nos anos 30, época do governo Provisório e depois do Constituinte, ambos de Vargas, não significa nada. O importante é lançar os holofotes na “ditadura”, para que possamos bater no peito e achar que vencemos a tirania.
Ficaria mais fácil reconhecer que estão todos errados, que tivemos tudo isso graças a Getúlio Vargas e à revolução de 1930. Vou refrescar a memória. Candidato derrotado por fraude eleitoral em 1929, Getúlio pôs-se à frente de um movimento armado de massas e venceu. Saneou as finanças públicas, renegociou a dívida externa e iniciou o processo de industrialização para atender o mercado interno e de valorização dos produtos de exportação. Foi também vitorioso contra a tentativa de recaída para República Velha em 1932. Venceu as eleições da Assembléia Constituinte em 1933 e assumiu como presidente eleito em 1934. Em 1937, para evitar um golpe nazista (soma do integralismo e da porção nazista das Forças Armadas, alarmadas com a quartelada comunista de 1935), implantou o Estado Novo, de cunho nacionalista.
Foi quando instalou a siderúrgica de Volta Redonda, criou uma moeda forte, o Cruzeiro (moeda brasileira e não uma unidade de arrecação da pirataria internacional, como o real - plural réis, dos mil réis). Consolidou as leis trabalhistas, hoje em fase de sucateamento. Também inaugurou políticas públicas inéditas de saúde, educação e esportes. Não só zerou a dívida externa, como fez o Brasil tornar-se credor das grandes potências. Tínhamos divisas e não, como agora, dólar compartilhado com o FMI e os governos imperiais, que quando querem lançam mão da bufunfa (é quando “emprestamos” para o FMI).
Quando, terminada a guerra, preparava o país para a reconstitucionalização foi derrubado por um golpe militar em 1945. Voltou eleito pela massa numa vitória estrondosa em 1950. Foi levado ao suicídio em 1954, depois de intensa campanha golpista.
Viu? É fácil. Fica melhor para entender porque surgiram tantos gênios na época, porque nossa música, o futebol, a indústria brasileira começaram a se destacar. Foi o Getúlio Vargas. Culpa dele. Podem dizer. Eu deixo.
RETORNO - Imagem desta edição: Ary Barroso e Heitor Villa-Lobos. Hoje, os destaques são Lady Gaga e Sting.
18 de novembro de 2009
INCÊNDIO
Nei Duclós
Faço de conta que não existo
e quando menos esperas
lá estou eu a sussurrar
no ouvido
o perfume de um novo
estufar de velas
Sou mais que um boa-praça
casei com o novo dia
conceitos atirei pela janela
e embora eles voltem
para regular a vida
confio neste incêndio
que me queima a goela
RETORNO - 1. Poema (levemente modificado) do meu livro Outubro (1975). 2. Imagem de hoje: tirei daqui.
17 de novembro de 2009
ENIGMA BRASIL
Nei Duclós (*)
O enigma Brasil invoca a inteligência internacional, hoje não mais confinada à cobertura da mídia tradicional ou submissa à produção de pensamento da cátedra. Os scholars e os grandes jornalistas estrangeiros querem saber o que acontece no país tão incensado que derruba helicóptero e deixa suas principais cidades no escuro.
Não basta vir para cá pessoalmente, pois há o risco de se reiterar uma percepção já consolidada. Nem recorrer aos autores das análises aceitas sobre o país, obsoletos por vocação, já que foram aparelhados por situações políticas pontuais e nelas fizeram carreira. Chegou a vez de ler e escutar os espíritos livres, os pensadores marginalizados, os emergentes. São grupos de uma opinião pública radical que pode ser acessada de qualquer lugar do mundo.
Não que na rede não existam os mesmos vícios encontrados em outros setores mais notórios. Mas o excesso da oferta pode ajudar a mudar a idéia que se faz do país, pois agora é possível enxergar as contradições graças a iluminações fora do circuito considerado canônico. Pode-se furar o bloqueio da propaganda oficial, ou das denúncias baseadas nos interesses políticos, ou das manipulações das pesquisas ou simplesmente da soberba dos que tentam se manter à tona enquanto ao seu redor milhões de fontes, com suas próprias mídias, mantem cerrada guerrilha sobre tudo o que acontece entre nós.
Nem tudo é bobagem, como querem seus críticos, e isso encanta o olhar fora das nossas fronteiras. É bom que isso aconteça, pois assim será possível romper com a imagem projetada por especialistas em marketing. Podemos estar além ou acima da convicção, enraizada entre muitos de nós, de que somos um país de pessoas sem importância, lideradas por exemplos importados. Temos consciência sobre os prejuízos da política econômica e sobre a causa do deslumbramento disseminado nos notórios jornalões das finanças. Nem todos os brasileiros batem palmas para a remuneração excessiva dos investimentos via política de juros extorsivos.
Nosso sucesso não pode se basear na alegria de quem ganha os tubos arriscando pouco. Mas sim, na competência com que mostramos nosso rosto de maneira isenta. A maior riqueza do Brasil, atualmente, é essa lucidez que atrai a atenção das melhores cabeças do mundo em eterno conflito.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: Villa-Lobos em ação, no tempo em que íamos a campo para decifrar o Brasil. Sobra homenagem ao compositor de gênio, colocado sempre como algo à parte do ambiente onde atuou, o Brasil soberano de Getúlio Vargas. É sempre assim. 2. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 17 de novembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
ENIGMA BRASIL
Nei Duclós (*)
O enigma Brasil invoca a inteligência internacional, hoje não mais confinada à cobertura da mídia tradicional ou submissa à produção de pensamento da cátedra. Os scholars e os grandes jornalistas estrangeiros querem saber o que acontece no país tão incensado que derruba helicóptero e deixa suas principais cidades no escuro.
Não basta vir para cá pessoalmente, pois há o risco de se reiterar uma percepção já consolidada. Nem recorrer aos autores das análises aceitas sobre o país, obsoletos por vocação, já que foram aparelhados por situações políticas pontuais e nelas fizeram carreira. Chegou a vez de ler e escutar os espíritos livres, os pensadores marginalizados, os emergentes. São grupos de uma opinião pública radical que pode ser acessada de qualquer lugar do mundo.
Não que na rede não existam os mesmos vícios encontrados em outros setores mais notórios. Mas o excesso da oferta pode ajudar a mudar a idéia que se faz do país, pois agora é possível enxergar as contradições graças a iluminações fora do circuito considerado canônico. Pode-se furar o bloqueio da propaganda oficial, ou das denúncias baseadas nos interesses políticos, ou das manipulações das pesquisas ou simplesmente da soberba dos que tentam se manter à tona enquanto ao seu redor milhões de fontes, com suas próprias mídias, mantem cerrada guerrilha sobre tudo o que acontece entre nós.
Nem tudo é bobagem, como querem seus críticos, e isso encanta o olhar fora das nossas fronteiras. É bom que isso aconteça, pois assim será possível romper com a imagem projetada por especialistas em marketing. Podemos estar além ou acima da convicção, enraizada entre muitos de nós, de que somos um país de pessoas sem importância, lideradas por exemplos importados. Temos consciência sobre os prejuízos da política econômica e sobre a causa do deslumbramento disseminado nos notórios jornalões das finanças. Nem todos os brasileiros batem palmas para a remuneração excessiva dos investimentos via política de juros extorsivos.
Nosso sucesso não pode se basear na alegria de quem ganha os tubos arriscando pouco. Mas sim, na competência com que mostramos nosso rosto de maneira isenta. A maior riqueza do Brasil, atualmente, é essa lucidez que atrai a atenção das melhores cabeças do mundo em eterno conflito.
RETORNO - Imagem desta edição: Villa-Lobos em ação, no tempo em que íamos a campo para decifrar o Brasil.
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ENIGMA BRASIL
Nei Duclós (*)
O enigma Brasil invoca a inteligência internacional, hoje não mais confinada à cobertura da mídia tradicional ou submissa à produção de pensamento da cátedra. Os scholars e os grandes jornalistas estrangeiros querem saber o que acontece no país tão incensado que derruba helicóptero e deixa suas principais cidades no escuro.
Não basta vir para cá pessoalmente, pois há o risco de se reiterar uma percepção já consolidada. Nem recorrer aos autores das análises aceitas sobre o país, obsoletos por vocação, já que foram aparelhados por situações políticas pontuais e nelas fizeram carreira. Chegou a vez de ler e escutar os espíritos livres, os pensadores marginalizados, os emergentes. São grupos de uma opinião pública radical que pode ser acessada de qualquer lugar do mundo.
Não que na rede não existam os mesmos vícios encontrados em outros setores mais notórios. Mas o excesso da oferta pode ajudar a mudar a idéia que se faz do país, pois agora é possível enxergar as contradições graças a iluminações fora do circuito considerado canônico. Pode-se furar o bloqueio da propaganda oficial, ou das denúncias baseadas nos interesses políticos, ou das manipulações das pesquisas ou simplesmente da soberba dos que tentam se manter à tona enquanto ao seu redor milhões de fontes, com suas próprias mídias, mantem cerrada guerrilha sobre tudo o que acontece entre nós.
Nem tudo é bobagem, como querem seus críticos, e isso encanta o olhar fora das nossas fronteiras. É bom que isso aconteça, pois assim será possível romper com a imagem projetada por especialistas em marketing. Podemos estar além ou acima da convicção, enraizada entre muitos de nós, de que somos um país de pessoas sem importância, lideradas por exemplos importados. Temos consciência sobre os prejuízos da política econômica e sobre a causa do deslumbramento disseminado nos notórios jornalões das finanças. Nem todos os brasileiros batem palmas para a remuneração excessiva dos investimentos via política de juros extorsivos.
Nosso sucesso não pode se basear na alegria de quem ganha os tubos arriscando pouco. Mas sim, na competência com que mostramos nosso rosto de maneira isenta. A maior riqueza do Brasil, atualmente, é essa lucidez que atrai a atenção das melhores cabeças do mundo em eterno conflito.
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O enigma Brasil invoca a inteligência internacional, hoje não mais confinada à cobertura da mídia tradicional ou submissa à produção de pensamento da cátedra. Os scholars e os grandes jornalistas estrangeiros querem saber o que acontece no país tão incensado que derruba helicóptero e deixa suas principais cidades no escuro.
Não basta vir para cá pessoalmente, pois há o risco de se reiterar uma percepção já consolidada. Nem recorrer aos autores das análises aceitas sobre o país, obsoletos por vocação, já que foram aparelhados por situações políticas pontuais e nelas fizeram carreira. Chegou a vez de ler e escutar os espíritos livres, os pensadores marginalizados, os emergentes. São grupos de uma opinião pública radical que pode ser acessada de qualquer lugar do mundo.
Não que na rede não existam os mesmos vícios encontrados em outros setores mais notórios. Mas o excesso da oferta pode ajudar a mudar a idéia que se faz do país, pois agora é possível enxergar as contradições graças a iluminações fora do circuito considerado canônico. Pode-se furar o bloqueio da propaganda oficial, ou das denúncias baseadas nos interesses políticos, ou das manipulações das pesquisas ou simplesmente da soberba dos que tentam se manter à tona enquanto ao seu redor milhões de fontes, com suas próprias mídias, mantem cerrada guerrilha sobre tudo o que acontece entre nós.
Nem tudo é bobagem, como querem seus críticos, e isso encanta o olhar fora das nossas fronteiras. É bom que isso aconteça, pois assim será possível romper com a imagem projetada por especialistas em marketing. Podemos estar além ou acima da convicção, enraizada entre muitos de nós, de que somos um país de pessoas sem importância, lideradas por exemplos importados. Temos consciência sobre os prejuízos da política econômica e sobre a causa do deslumbramento disseminado nos notórios jornalões das finanças. Nem todos os brasileiros batem palmas para a remuneração excessiva dos investimentos via política de juros extorsivos.
Nosso sucesso não pode se basear na alegria de quem ganha os tubos arriscando pouco. Mas sim, na competência com que mostramos nosso rosto de maneira isenta. A maior riqueza do Brasil, atualmente, é essa lucidez que atrai a atenção das melhores cabeças do mundo em eterno conflito.
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16 de novembro de 2009
ALEJO CARPENTIER E A ORIGEM DO ROMANCE
Nei Duclós
O romance, ofício maior da literatura, é a aventura humana num território hostil. É a busca das fontes mais poderosas dessa arte, por meio dos rastros (as palavras) deixados pelos passos perdidos de tempos simultâneos, fases de civilizações superadas que coexistem a pouca distância do que se considera o presente. Por meio de guias, do instinto, das revelações, dos cheiros, da chuva, do granito, das criaturas de todas as formas, o autor parte para o Incriado, onde medram plantas que se recusaram a servir de alimento e deuses que jamais foram nomeados e que desaparecem sem deixar vestígios.
Para penetrar nesse mundo, é preciso achar a abertura que leva à fundação de uma aldeia misturada na mata, rodeada pelo mistério e a majestade de uma paisagem que são ruínas jamais decifradas. Para descobrir a origem da música, é preciso testemunhar o nascimento da palavra, um milagre que continua se manifestando, basta que o autor, como Ulisses, se jogue no desconhecido, impulsionado pela miséria de sua situação, pelo desafio da sua existência datada, pela necessidade de chegar até onde o fogo resgata sua função e todos os movimentos fazem sentido e deixam de ser essa repetição de gestos vazios, de rituais ocos, de vidas jogadas fora.
A busca, em Alejo Carpentier, na sua absoluta obra-prima Os passos Perdidos (um livro que te joga para sempre no exílio, já que depois dele nada mais precisa ser escrito), de 1953, implica em algo maior do que apenas abrir mão da superficialidade ou da alienação. Chegar ao coração do romance é notar que lá também a arapuca funciona e pode matar: “A selva era o mundo da mentira, da cilada e do falso semblante. Ali tudo era disfarce, estratagema, jogo de aparências, metamorfose".
Como detectar, na voragem das mentiras, o que realmente vale a pena? Como descobrir "uma noite que se impôs por seus valores de silêncio, pela solenidade de sua presença carregada de astros"? É preciso enxergar e não apenas ver: “Não mentiam as garças quando inventavam a interrogação com o arco do pescoço, nem quando levantavam seu espanto de plumas brancas. Só as aves estavam em tempo da verdade, dentro da clara identidade de suas plumagens”.
O narrador do livro, um compositor que ao pesquisar a origem da música redescobre o talento, está enredado num casamento de mentira, numa vida intelectual vazia, numa rotina brutal, numa frustração permanente. Algumas frases dessa fase anterior à sua partida dizem tudo sobre onde estava metido: “Voltei à nossa casa, onde a desordem da partida apressada ainda era a presença da ausente. Essa forma peculiar da indolência que consiste em se dar com briosa energia a tarefas que não são as que deveriam nos ocupar. Nesta tarde de chuva cujos trovões, aplacados, pareciam rodar sobre os charcos da rua próxima".
Passado tanto tempo do boom da literatura latino-americana no século vinte, é hora de revisitar o Mestre, o autor das bases do real maravilhoso e vítima do principal equívoco daquilo que virou moda. É o momento de revisitar esse grande autor sem a aura mística do marketing e da explosão de vendas dos seus clones.
Dizem que Gabriel Garcia Márquez rasgou os capítulos que tinha escrito de Cem anos de solidão quando leu este livro de Carpentier. E começou tudo de novo. Essa América Latina de Carpentier e Gabo, seria apenas a infância imaginada dos escritores, resíduo de velhos serões? Há um excesso de umidade e delírio nos textos trabalhados, uma denúncia que fica, na aparência, como obra de ourivesaria, mas no fundo é um pote de luz que quebra no mosaico e nos imobiliza num assombro.
O que era sonho emergente num mundo asséptico hoje é engolido pelo pesadelo do caudilhismo renovado, o que usa o voto no lugar da espada. Mas fica, intacta, a literatura que não apenas deslumbra, mas ensina, especialmente em Carpentier, o erudito que publicou três volumes de ensaios sobre música e é autor de outros livros maravilhosos, como O reino deste mundo, entre tantos.
Em Os Passos Perdidos (que li numa edição da Brasiliense de 1985, com tradução de Josely Vianna Batista) Carpentier se supera. Ele nomeia tanto o tédio quanto o encontro monumental de suas raízes, com a grandeza dos fundões de sua infância e de sua terra. Esse continente verbal emerge no horizonte literário ao lado dos maiores livros de todos os tempos, pois interage com A Divina Comédia, a Ilíada, Dom Quixote. É nesse patamar que Os Passos Perdidos se situa.
A leitura desse livro é mais do que uma experiência, é uma avassaladora viagem para as entranhas de tudo o que é humano e que nos assusta por sermos, sempre, o enigma de nós mesmos.
RETORNO - Imagem de hoje: tirei daqui.
15 de novembro de 2009
ESCÂNDALOS NACIONAIS
Os escândalos existem porque vivemos numa tirania maquiada de democracia, porque esse sistema político é uma porcaria, não porque o país não preste. Neste 15 de novembro, data da Proclamação da República, como nos ensinavam na escola, devemos encarar o Brasil de frente, país que herdamos inteiro e vamos deixar aos frangalhos para nossos descendentes. Basta selecionar alguns exemplos.
Hugo Chavez recebe a presidente do grande país do norte, o estado del Gran Pará. Ambos assinam vários acordos e convênios. A estadista chegou em Caracas com sua comitiva. Contra o Grão Pará se fez uma guerra, a da Independência, já que esse país à parte não queria se submeter ao Rio de Janeiro e preferiu ficar sob as ordens de Lisboa. Mas isso tinha acabado no século 19. Volta no século 21 porque o Brasil, via presidente Lula, não pára de ser roçar em Chavez. Vai tudo acabar em guerra, pois é contra o Brasil a guerrinha que Chavez está preparando, não contra os Estados Unidos. Ele quer um naco da Amazônia, que pertence ao seu vizinho, El Gran Pará. Brasil, que Brasil?
Pilastras gigantescas do Rodoanel caem logo depois do apagão. Todos sabem, o apagão é petista, o Rodoanel é tucano. Se for o que desconfiamos, uma luta de foice entre duas forças políticas, vamos nos preparar. Já tivemos o grande massacre do PCC em São Paulo na véspera das eleições em 2006. Se o país começar a apagar e as obras a cair, estamos fritos. Um detalhe é a decadência da engenharia nacional: cai metrô, cai Rodoanel, estradas despencam, nada fica em pé. A política está contaminando a técnica?
Shakira e Madonna, que ganham a vida sacudindo a genitália em frente as câmaras e por isso são incensadas como grande artistas, fazem carinhas de sérias e se apresentam como ongueiras que dizem beneficiar pessoas carentes. Madonna parece que está arrecadando dinheiro para ensinar Cabala para as crianças (!). Quem sacode as partes pudendas e simula orgias sexuais para ganhar a vida pode se arvorar a ser assim uma espécie de líder espiritual? Até onde vai a desfaçatez e a falta de escrúpulos? Madona chega numa favela e diz que está amando a visita. Claro, um nababo brasileiro lhe repassou 7 milhões de dólares! Deveriam todos sentir vergonha. Cada vez entendo menos.
Deputado do Amazonas que se elegeu graças a um programa de televisão sobre crimes, fazia parte de um grupo de extermínio. Os casos eram reportados pelo seu programa. Descoberto, foi preso. Agora seis testemunhas foram assassinadas depois de prestarem depoimento. Não canso de dizer: o país é uma ditadura, a Justiça não garante nada a ninguém. Quando as instituições não funcionam, os partidos se engalfinham em luta bandida, quando policiais fazem parte de esquemas de corrupção e mortandade, quando os políticos são flagrados em inúmeras falcatruas, então é porque temos um sistema político que pode ser qualquer coisa, menos democracia. É uma tirania pura e simples, que faz gato e sapato da cidadania.
Enfermeira mata bebês com alta dosagem de sedativos em Canoas. Há algumas semanas, uma criança foi torrada no microndas aqui em Santa Catarina. A crueldade assombra o país incensado como grande fenômeno na economia. Enquanto em Paris Lula é abraçado por Sarkozy, que está faturando uma baba conosco, e diz coisas como “não permitiremos que Obama”, a vida não vale nada no Brasil. Espíritos brutalizados, amontoados de gente no lugar de uma sociedade organizada, eis o que somos, nesta quadra da vida em que deveríamos ter tudo para um mínimo de felicidade. Ah, esqueci. Tem muita gente “sem medo de ser feliz”. Diante dos escândalos nacionais, deveríamos ter, pelo menos, vergonha dessa alegria de araque, em que se mata e se morre a todo instante.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: Proclamação da República, de Benedito Calixto. 2. No Mais! deste domingo, dia 15/11/09, José Ramos Tinhorão se diz arrependido de ter chamado Villa-Lobos de "maestro da ditadura". E lembra que foi uma das 40 mil vozes no Maracanâ regidas pelo gênio. Mas não abre mão de ver algo sinistro na relação entre a Era Vargas e o compositor maior do Brasil: acho que houve "uso", que o maestro usou o governo e vice-versa. Não é capaz de identificar uma sintonia entre os dois projetos, ambos do Brasil soberano. Tinhorão não leu a carta (ou não deu importância)de Villa-Lobos a Getúlio, que publiquei aqui. Quando há algo ruim, atribuem a Getúlio. Quando há algo bom na época de Vargas, aí tem. Até quando essa calúinia persistirá?
13 de novembro de 2009
ZÉ CELSO E A PRESIDÊNCIA DE MACUNAÍMA
José Celso Martinez Correa, o Zé Celso do Oficina, no texto publicado no Estadão “Lula faz política culta e com arte”, celebra a esperteza e o talento histriônico deste que é, na sua avaliação, “o primeiro presidente antropófago brasileiro”. O que será que Zé Celso, o guru da carnavalização cultural, quer dizer com suas alegorias?
Seria enfim a vitória do Manifesto Pau-Brasil, da crítica de Oswald de Andrade ao modernismo bem comportado – e este, por sua vez, sendo a crítica ao academicismo, ao país que tentou ser branco, apesar de ter importado a população da África para fazer todo o serviço? Estaria enfim Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (que perdeu a forma), da obra de Mario de Andrade, no poder?
A antropofagia é uma ruptura da Semana de Arte de 1922, evento elaborado pela elite paulista e realizado no Teatro Municipal. O modernismo, que vaiava o burguês mas vivia dele, deu as cartas da cultura brasileira da ditadura até FHC, quando então a Tropicália, a Usyna Uzona, Macunaíma e a deglutição do bispo Sardinha ascenderam ao topo do poder via PT. Foi quando “a contribuição milionária de todos os erros” do analfabetismo alcançou o status de poder de estado. Seria isso o motivo da festa?
As inúmeras asneiras de Zé Celso estão embaladas num tom de vanguardismo vetusto, o mesmo que foi cevado na estufa do autoritarismo. Já estamos cansados de ver essa vanguarda, inventada sob medida, como alternativa ao confronto, à luta contra a ditadura. Vamos elencar as barbaridades do texto:
Zé Celso: “Lula é nascido em Caetés, nas regiões onde foi devorado por índios analfabetos o Bispo Sardinha que, segundo o poeta maior da Tropicália, Oswald de Andrade, é a gênese da história do Brazil. Não é o quadro de Pedro Américo com a 1ª Missa a imagem fundadora de nossa nação, mas a da devoração que ninguém ainda conseguiu pintar.”
Ou seja, não existe a imagem da comilança (índios devorando carne humana, metáfora da adaptação brasileira do corpo estranho estrangeiro), mas ela é a “imagem fundadora da nossa nação”. Entenderam? A imagem que não existe é a imagem fundadora. A que existe, o magnífico quadro de Pedro Américo, sobre a presença católica que combateu o hábito de comer carne humana, não significa nada.
Zé Celso: “Lula começou por surpreender a todos quando, passando por cima das pressões da política cultural da esquerda ressentida, prometeica, nomeou o Antropófago Gilberto Gil para Ministro da Cultura e Celso Amorim, que era macaca de Emilinha Borba, para o Ministério das Relações Exteriores, Marina Silva para o Meio Ambiente e tanta gente que tem conquistado vitórias, avanços para o Brasil, pelo exercício de seu poder-phoder humano, mais que humano.”
O desmatamento continuou a mil na gestão Marina Silva, nunca a cultura brasileira esteve tão por baixo quanto na gestão Gil, e Celso Amorim é o imbecil que todos conhecem. Mas sob a batuta de Zé Celso, tudo fica parecendo algo transcendental. Zé Celso já se esfregou em Silvio Santos atrás de verbas, estaria querendo algo do governo?
Zé Celso: “Lula não pára de carnavalizar, de antropofagiar, pro País não parar de sambar, usando as próprias oligarquias. Lula tem phala e sabedoria carnavalesca nas artérias, tem dado entrevistas maravilhosas, onde inverte, carnavaliza totalmente o senso comum do rebanho.”
As besteiras inomináveis proferidas por Lula aqui ganham uma conceituação fake. O uso do samba e do carnaval para justificar o jogo bruto da demagogia que todos conhecem é de uma desfaçatez sem tamanho.
Zé Celso: “Brilha Maquiavel, quando aceita aliança com Judas, como Dionísios que casa-se com a própria responsável por seu assassinato como Minotauro, Ariadne. É realmente um transformador do Tabu em Totem e de uma eloquência amor-humor tão bela quanto a do próprio Caetano. Essa sabedoria filosófica reflete-se na revolução cultural internacional que Lula criou com Celso Amorim e Gil, para a política
internacional.”
Filosofia, sabedoria e revolução aqui usadas para justificar todas as traições (“aceita aliança com Judas”)
Temos assim um painel completo das raízes da corrupção que nos assola. É, no fundo, a fonte da sacanagem, pois a partir das justificativas conceituais, tudo pode, desde o mensalão (“brilha Maquiavel”) ao aparelhamento completo do estado, tocados ao som da algaravia diária dessa “eloquência amor-humor”, que, está claro, não passa de uma procissão de argumentos inspirados no ressentimento.
O texto chega ao auge com a frase “Eu abro meu voto para a linha que vem de Getúlio, de Brizola, de Lula”. É o que eu costumo dizer aqui: vira e mexe, tudo acaba sendo culpa do Getúlio Vargas. Colocar um traidor na linhagem do grande presidente do Brasil soberano é pior do que um deslize, é má-fé.
Zé Celso revela um vetor importante do perfil institucional da nova ditadura, herdado da indústria cultural e que se abraça com as justificativas vindas da universidade. As duas fontes provem da distorção política que manipulou todo mundo para manter a ditadura sob a capa da democracia. Esse esquema já foi desmascarado pelos dois governos Lula. Então é preciso apelar para o Tabu e o Totem e outras palavras jogadas na vala comum da frescura criminosa.
Zé Celso queria ficar bem com todo mundo para se contrapor a Caetano Veloso, que chamou Lula de analfabeto. Tentou, neste texto, puxar também o saco de Caetano. Mas não cola. Analfabetismo não é antropofagia cultural. Oswald de Andrade certamente não queria que um traidor analfabeto tomasse o poder mentindo para os eleitores. Nem a denúncia de Mario de Andrade com seu Macunaíma tinha por objetivo levar a falta de caráter para o poder. Trata-se de barbárie pura e simples e a brutalidade não pode ser guindada ao trono da glória cultural. Vivemos numa treva tremenda porque sempre tem alguém para justificar a sacanagem dos poderes. Insurgir-se contra a tirania também é desmascarar a jogada das figuras carimbadas do falso vanguardismo.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: o assassinato brutal do bispo Sardinha, devorado depois pelos canibais. Eis um evento celebrado como grande coisa pela falsa vanguarda, que atingiu o poder e não abre mão de querer ser ainda vanguarda. 2. Agradeço ao amigo Max Montiel Severo por ter me enviado o texto de Zé Celso, via e-mail.
11 de novembro de 2009
JEAN CHARLES: FILME LIVRA A CARA DOS INGLESES
A Justiça britânica já decidiu: a Scotland Yard agiu dentro dos princípios de polícia ao fuzilar pelas costas em 2005 o brasileiro Jean Charles Menezes na estação do metrô Stockwell, confundido com um terrorista no auge das investigações dos atentados em Londres. Mas essa atitude oficial arrogante pega mal para um país que quer transmitir a imagem de politicamente correto. Assim, além de agradar os conservadores, que apóiam a ação covarde dos assassinos, é preciso também atender os críticos e para isso existem os advogados sensibilizados com a injustiça, as ongs, os progressistas branquelos, entre outros exemplares da fauna. Enquanto os bandidos ficam impunes, são distribuídos bônus para quem ficou puto da cara.
Um desses mimos foram as 15 mil libras doadas pela polícia britânica à família de Jean Charles, que vive em Gonzaga, pequena cidade do interior de Minas. Outra passadinha na cabeça é o filme Jean Charles, produzido e patrocinado em parte por ingleses, como Stephen Frears, dirigido pelo brasileiro que vive na Inglaterra, Henrique Goldman e protagonizado por um ator que nesse filme transmite a leveza, o veneno, a superficialidade, a ligeireza e a desimportância de ser brasileiro, principalmente no exterior, Selton Melo. Está feito o carreto. Basta contar direitinho a versão apropriada da história do eletricista chacinado que ninguém vai desconfiar de nada.
É preciso que se diga que o filme é uma sacanagem do começo ao fim. Apresenta Jean Charles não como um boa praça, mas como um sujeito falso e aproveitador, que mente para a imigração inglesa e ainda debocha dela; que mente para os empregadores dizendo que a amiga recém chegada de Minas fala inglês; que rouba clientes do seu empregador conterrâneo; que cuida de documentos falsos e ainda não consegue cumprir a palavra dada.
Esse personagem safado e sem escrúpulos é apresentado como fã de uma contrafação: Sidney Magal. O certo seria chamar o Zeca Pagodinho, que na vida real era o ídolo do eletricista, mas como não deu certo, chamaram Magal. Que serve perfeitamente para o papel: é “latino”, ou seja, hispânico, caliente, rebolante, com putas que requebram no palco com bandeirinhas do Brasil cobrindo as partes pudendas e fazendo gestos exagerados de lambada. Está então definido o perfil do brasileirinho mentiroso e enganador, medíocre consumidor de cultura trash e que foi colhido não por um erro policial, mas por uma operação de guerra “justa e limpa”.
Daria muita bandeira todo esse esquema sem-vergonha do filme se não hovuesse alguns contrapontos. Um deles é a reação desesperada e violenta do seu primo contra os policiais, que chega a dar verossimilhança a um povo que clama por justiça e tem coragem de dizer isso na cara. O mesmo personagem destrata os emissários da Scotland Yard que vão no ermo mineiro entregar o cheque. A emoção dos funerais na cidadezinha também ajuda a dar um aspecto de retratação ao crime hediondo, pois a emoção que provoca limparia a culpa de todos, tantos dos assassinos, quanto dos migrantes que mentem para ficar lá.
O que me deixa intrigado é o empreiteiro que emprega Jean Charles em Londres e faz o papel dele mesmo. Ninguém comenta que no filme Jean fica mal na fita, pois rouba o cliente daquele que o considera amigo. Quer dizer, essa história foi contada pelo patrão e todos confirmam, é isso? Reproduzem essas histórias para "humanizar" o personagem, jamais tratá-lo como herói (isso nunca! é um brasileiro, ora).
A verdade é que Jean Charles não pode se defender. Não pode expressar sua luta, a grandeza de sua presença como cidadão que se reinventa no mundo. Está calado para sempre nosso herói solitário, brasileiro que se foi e levou junto sua verdade. Enquanto isso, os chacais se locupletam com sua memória, enganando inclusive os familiares, que se emocionaram com o filme. E a polícia pede “desculpas”. Hipócritas. Você não comete um crime e depois diz: "foi mal aí". É porque não pedem desculpas, jamais pedem perdão de nada. Mantém-se firmes e isso é representado no filme pela voz cavernosa e prepotente em off relatando os antecedentes do equívoco. Como a dizer: havia motivos para os tiros na nuca. Animais.
Não somos essa nação de mendigos que está em Londres de favor. Estamos cobrando a conta de tantos séculos de exploração e miséria. Estamos voltando para a origem dos nossos males, lutando por enquanto pela sobrevivência, mas daqui a pouco impondo nossa cultura real, não essa, fake, rebolante, de araque, tão incensada pelos entregadores do país.
RETORNO - Quando mataram Jean Charles, publiquei aqui um texto e um poema. Reproduzo o poema hoje:
O PASSO DA BANDEIRA
(Para Jean Charles Menezes, in memoriam)
Nei Duclós
Essa bandeira omissa amortalha tua presença
Voltas para a origem embalado em nosso ombro
Depositam teu corpo no chão pleno de sonho
Um poema inútil engrossa a fila da denúncia
És a coragem que cruza o mar de bolso vazio
És o medo de cidadãos amordaçados pelo Mal
O Hino é a despedida que cerca a indiferença
Querias o Tempo, mas teu único sal caiu no rio
Não temos como recuar, agora que és lembrança
Por que a ferocidade destruiu o teu exemplo?
Morreste num curral, derrubado de vingança
A covardia é a moeda vil dos que nos compram
Uma estação de flores foi plantada com terror
Olhamos para ti e nosso choro é apenas vento
RETORNO - A foto principal é do próprio Jean Charles. A secundária é do corpo de Jean Charles no metrô.
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