5 de outubro de 2002

MITOS DE ORIGEM

MITOS DE ORIGEM

O Brasil cospe nos seus mitos de origem e paga o preço da auto-eliminação da soberania.

Nei Duclós

Ao deixar de lado a Descoberta, fruto do acaso, e escolher o Achamento, fruto da má-intenção colonial, a cultura do país-pago-para-perder insuflou o Mal no próprio berço, como se o Gênesis fosse sub-produto da Queda. O Acaso reforçava a visão do Paraíso europeu, da Terra sem Males indígena. Um país fadado à felicidade foi substituído por uma nação ungida, na concepção, para a escravatura.

Ao colocar o 13 de Maio como manobra mesquinha da elite colonial para manter o escravo à margem da nacionalidade, negou-se o que havia de melhor na data: a radicalidade do gesto do Império, que lhe custou a vida. O 13 de Maio jamais poderá ser visto como uma data perfeita, mas deveria ser cultuado como mais um mito de origem - impulso inicial para uma nação de pessoas enfim iguais , que iria inspirar a criação futura da cidadania

Quando se encara a Proclamação da República como apenas um golpe militar, nega-se a instauração de uma nova ordem política que aponta para a modernidade. Golpe militar tem a imagem do retrocesso e o movimento republicano, que culminou no 15 de novembro não pode ser visto como um passo atrás. Com a "denúncia" que enlameou a data, nega-se ao Exército o seu maior mérito, o de ficar ligado eternamente a um regime de representação política por meio do voto.

Ao colocar a Revolução de 30 como uma revolução burguesa, nega-se o caráter autóctene do movimento e seu grande divisor de águas, que praticamente fundou o Brasil moderno e implantou a noção de soberania. Nega-se também o caráter sangrento da revolução (como se fosse um mero acordo entre elites, sem nenhum custo em vidas e sangue), o que é um escárnio com a História e uma pá de cal no necessário heroismo do fundadores de uma nova ordem política e social.

Todas essas negações foram acompanhadas pela mistificação do movimento Diretas Já, que, traído pelos que negam nossos mitos de origem (sob pretexto da conscientização das massas) acabou desaguando na consolidação do regime de 1964. A ditadura travestiu-se de democracia e foram resgatados os vícios da República Velha, destacando-se o voto de cabresto (via corrupção eleitoral) e a internacionalização das empresas que cuidam da infra-estrutura do País.

A chamada Nova República, desmoralizada junto com o fracasso do Plano Cruzado e enterrada logo no segundo governo, o de Fernando Collor, tirou definitivamente a máscara quando FHC escancarou o país ao saque estrangeiro em troca de alguns títulos Honoris Causa em unversidades européias. Vê-lo de mitra com cara de sabão é um pesadelo recorrente no país que mergulha fundo na violência , resultado da negação da soberania, da destruição da auto-estima e do sucateamento dos empregos.

4 de outubro de 2002

PAISAGEM PELO TELEFONE

O telefone toca e Mestre João Cabral atende. A poesia, então, desce sobre nós como um anjo.


PAISAGEM PELO TELEFONE


João Cabral de Melo Neto


Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

3 de outubro de 2002

Ne Me Quite Pas

Uma obra-prima, para afastar o adeus e reinaugurar o abraço:


Ne Me Quite Pas

Jacques Brel


Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheure
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Moi je t'offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'après ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l'amour sera roi
Où l'amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants-là
Qui ont vue deux fois
Leurs coeurs s'embraser
Je te raconterai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l'ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
A te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas

2 de outubro de 2002

OUTUBRO

OUTUBRO

Nei Duclós

Trago a nova: eu mudo
lento, e é tudo
Sinto ser assim
por estações: aos turnos

Posso voltar
ao ponto de partida
mas luto

Sei que vem outubro
Flores, fruto de seiva
romperão no mundo
(Trabalho duro:
sugar de pedras
rasgar os caules
colher ar puro)

Lento e bruto
eu mudo
Sei que vem
outubro

1 de outubro de 2002

Site

Visite o site http://www.consciencia.org/neiduclos/

e-mail

Mensagens para nei@consciencia.org

EXPEDIÇÃO

Nei Duclós

Nas montanhas geladas procurei o anjo enterrado do poema
Encontrei estátuas de carne ainda intactas de antigos navegantes
Encontrei-os de boné ainda postos, de olhos sedentos
e o rosto calmo como a bater ponto numa indústria impossível
instalada no alto da avalanche antes da queda

A nuvem daquela paz que o vento tinha colocado na minha busca
me fez esquecer o que procurava. O poema no fim ficava abaixo
de qualquer achado e eu tinha que me contentar com a espera
de navios enviados ainda antes do inverno para me salvar.
Lá fiquei até que os corpos rolaram direto para meu ponto de partida