30 de maio de 2018

A LIVRE ABORDAGEM DO ENSAIO


Nei Duclós

Mesmo confinado em redações com hábitos e regras quase inflexiveis, procurei sempre driblar os limites escrevendo à minha maneira sobre livros, esses objetos tão cercados de certezas e estudos minuciosos. Nos espaços dedicados à cultura, eu comparecia com uma visão própria, remando com meus braços, enquanto me abria à formação didática, jornalística e acadêmica. O resultado dessa postura de liberdade extrapolou dos veículos consagrados para a grande geleia geral do universo digital.

Os ensaios reunidos no meu livro inédito AS RUÍNAS DO DISCURSO, foram publicados desde 1976 em revistas impressas, como Veja, IstoÉ, Senhor (da Editora Três), virtuais, como Cronópios, Revista Bula, Digestivo Cultural, em jornais como Estadão, Folha de S. Paulo, Zero Hora, Jornal Opção, Diário Catarinense, em prefácios para editoras como a Globo Livros, além de blogs e sites. A diversidade da divulgação nesse largo espaço de tempo tem um vetor principal: são textos fundados na abordagem literária não tradicional, adaptando as descobertas de grandes mestre sobre a linguagem, como Barthes, Foucault, Borges, Ezra Pound, e ousando imaginar um território fecundo de ideias sobre a prosa, a poesia e a História.

Leia essa abordagem original sobre Flaubert, Tolstoi, Isaac Singer, Cecilia Meirelles, Alejo Carpentier, Victor Hugo, Garcia Marquez, Raduan Nassar, Maximo Gorki, Turgeniev, Javier Cercas, Mempo Giardinelli, Lampedusa, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Moacir Japiassu, Cícero Galeno Lopes, Darcy Ribeiro, José Onofre, Francisco Coloane, Rilke, Borges, João Cabral, Neruda, Bruno Tolentino, Henry Miller, Rubens Jardim, Rodrigo Schwarz, Adélia Prado, David Toscana, Edward Said, Marco Celso Viola, Joaquim Nabuco, entre muitos outros. São 209 páginas de um livraço.

Adquira seu exemplar. Pelo Messenger ou email neiduclos@gmail.com

AS RUÍNAS DO DISCURSO
Ensaios
Nei Duclós
209 pgs
R$ 30
Capa e programação visual de Juliana Duclós

BREAKFAST AT TIFFANY'S: UMA JÓIA REVISITADA

Nei Duclós


Gostamos de rever nossos filmes favoritos. Quando assistimos mais de uma vez é para relembrar os bons momentos, já que conhecemos a história e o desfecho. Mas quando voltamos aos mesmos filmes uma enorme quantidade de vezes é por outro motivo. Não nos interessa mais como acaba o filme, qual a história dos seus personagens ou mesmo saber detalhes dos bastidores da produção e dos intérpretes. O que nos leva a essa compulsão é que se trata de cinema, ou seja, nós voltamos ao local do crime porque o núcleo da obra é o fato de ela pertencer à Sétima Arte e resolver de maneira brilhante, genial ou simplesmente por pura identificação conosco, os desafios da narrativa cinematográfica, a estrutura, a continuidade, a relação dos personagens com os cenários. Ai reside a emoção que nos conquista, a de que o filme trata de sua essência, o cinema. Vamos pegar um exemplo.

Revi esta madrugada (mais uma noite de insônia) Breakfast at Tiffany's, de Blake Edwards, baseado em novela de Truman Capote e adaptado por George Axelrod. Foi lançado em 1961, quando então a civilização fazia uma imagem ideal de sua realidade(a partir das décadas posteriores, a barbárie ganhou a parada, como podemos notar hoje olhando em torno). Há nessa produção tudo o que é explorado hoje de maneira burra e explícita. Aliás, o que me levou de volta a Audrey Hepburn, George Peppard, Mickey Rooney, Patricia Neal, Buddy Ebsen e Martim Balsam foi uma cena de curra num terraço da série Marseille, que tentei ver pela quinta vez, em vão. Vendo os atores da série se retorcer de um gozo artificial e bruto diante das câmaras desisti, e decidi revisitar os elementos perfeitos que compõe a joia cinematográfica de Edwards.

Nela há cenas de sexo: por mais de uma vez, o filme sugere, por elipse, casais que “fazem amor” (para usar uma expressão da época) por dinheiro ou por atração física e amorosa. Sem esfregar o delírio suspirante na cara do espectador. A garota de programa que procura marido rico e o jovem escritor estreante sustentado por uma milionária casada são vizinhos e acabam se apaixonando. A moça de programa fugiu da casa do marido, um homem mais velho, veterinário, que a tinha capturado ao flagrá-la, junto co irmão, roubando o seu pomar. Selvagem e louca, ela tenta mostrar que é livre mas acaba se enredando na sua verdadeira paixão. Ele deixa de ser dependente da ricaça para se dedicar ao ofício que tinha abandonado, inspirado pela garota que veio de longe e caiu no seu colo de presente.

O que pega no filme? O início dá uma pista. Um taxi desliza suavemente no amanhecer de uma Nova York deslumbrante e a moça elegante desce para ver as joias na vitrine da famosa Tiffany. Enquanto olha, faz seu desjejum. É o seu ideal de felicidade e estabilidade. É o que ela quer na vida: um ambiente cool, sem conflitos. Mas seu apartamento, onde o telefone fica na mala e os penetras bagunçam sua festa particular, e, nos outros dias sem balada, ela se refugia dos “ratos” que a compram, tem uma escapatória pela escada do incêndio, que dá para o andar de cima onde mora o escritor.

Entre a suavidade e o conflito, o filme se realiza perfeitamente com as grandes interpretações, quando os personagens deságuam na cena final de encontro amoroso na chuva, talvez o mais belo momento do amor que se reconhece definitivo na história do cinema. O que encanta é a perfeição de cada item. Ela cantando Moon River na janela do apartamento, de olhar distante, sendo obsevada pelo seu apaixonado; os passeios por uma cidade magnífica entre prédios suntuosos, lugares inesquecíveis, revoar de pombas. E os diálogos, longe de ser água com açúcar, são ásperos, duros, ofensivos, pois não se trata de uma comédia romântica, já que o autor por trás da cena é o brilhante e radical Capote. É um conto sobre o desencontro, a luta pela sobrevivência por meio de ações ilegais ou condenáveis, o tráfico de influências, a caça ao tesouro, os casamentos arranjados, a indiferença. Tem até a Máfia, que usa a garota para repassar recados. E é também sobre a descoberta do amor, esse magnífico efeito colateral de uma vida miserável.

Tudo isso faz deste filme uma peça inesquecível de realização cinematográfica e por isso voltamos a ele tantas vezes. Para ver como o amante rico entra no quarto onde jaz a mulher devastada pela dor da perda do irmão, com a câmara colocada no alto e as ruínas dos móveis tomando conta do piso e da cama. Para acompanhar de novo a maravilhosa cena em que o joalheiro concede fazer uma gravação num anel achado em um pacote de biscoito. Para rever a emocionante despedida da mulher ao seu ex-marido caipira.

Porque tudo isso já vimos e sabemos de cór. Mas o cinema é assim. Nos conquista por ser cinema, uma arte voltada para si mesma. E que só existe ali naquela tela. Mesma na época em que foi lançada, quem viu sabia que aquilo só existe num filme. É a representação de uma época que se sonhava perfeita. E talvez voltamos a ele para tentar mais uma vez fazer parte desse universo maravilhoso. Não por ser rico, capitalista ou sei lá o quê (já que trata de pessoas pobres que se vendem para sobreviver). Mas por ser encantador na sua carpintaria perfeita, que ouso chamar de obra prima, pensem o que quiserem. Mesmo com um espanhol, Jose Luis de Villalonga, interpretando um brasileiro e falando olé (e sendo sempre lembrado que é mestiço), e um americano, Mickey Rooney fazendo hilária e execrável caricatura de um chinês, o que deixava Bruce Lee furioso.

Hepburn foi indicada ao Oscar mas não levou. Já Henry Mancini sim, com sua trilha musical majestosa. Em 2012, o filme foi considerado "cultural, historica e esteticamente significativo” pela Biblioteca do Congresso americano e selecionado para ser preservado no National Film Registry,

Nei Duclós

RETORNO - Imagem: George Peppard não entende o desinteresse da amada depois de uma noite juntos e tenta descobrir o que acontece.

A fala mais contundente dele é mais ou menos esta: “Não quero colocá-la numa jaula, quero apenas te amar. Você se acha livre e selvagem, mas construiu uma prisão para si mesma e não adianta migrar para um país distante, você sempre levará esse limite com você. As pessoas se apaixonam e pertencem umas às outras. Mas você é covarde e não aceita compromisso porque se refugiou nessa cela.”
A dela é esta: “Aceite meu dinheiro, afinal você está acostumado a ser sustentado por mulheres.”

24 de maio de 2018

SOBREVIVER

Nei Duclós


Amor é considerado crime em época sem esperança
Egoísmo ou desperdício quando a dor domina
Como se fosse um erro e a barbárie o acerto
Alta traição contra o poder do drama

Abandone o coração e prepare o soco
Atire antes de perguntar, tens o corpo em pânico
Fuja da tentação de aceitar sentimento
Ordene a ilusão de obedecer aos tiranos

E deixe de lado o que tens de valioso
Esse laço invisível que sobrevive aos anos
O único que poderá reconstruir das ruínas
A civilização que a guerra jurou ser aliada



23 de maio de 2018

MARATONA BROOKLIN NINE NINE


Nei Duclós

Os detetives da delegacia Brooklin Nine Nine citam e incorporam personagens, cenas, situações, referências da indústria do espetáculo, fazendo desta série genial um grande mural dos sucessos dos cinemas, televisões e teatros dos últimos 40 anos. Todas as cinco temporadas (2013-2017) estão no Netflix e quando chegou na quinta temporada a massa nas redes sociais levantou-se contra o fim anunciado dos episódios, obrigando a Fox a liberar mais uma, agora em 2018. É uma síntese multicultural humana, com protagonistas de várias tendências e origens.

Cada personagem é identificado pela obsessão por algum filme ou série, a começar pelo animador da turma Jake Peralta (Andy Samberg) que é fã incondicional de Duro de Matar. Peralta está na profissão porque se sente um Bruce Willis encerrado num edifício enfrentando poderosa quadrilha. Para manter o carisma do ofício, cria outros personagens a partir de nomes bizarros ou tirados de outros filmes. Tudo é motivo para êxtase e aventura para o jovem detetive, apaixonado pela sua companheira de trabalho, Amy Santiagoi (Melissa Fumero)m, com a qual mantém um relacionamento complicado por serem do mesmo ramo e trabalharem lado a lado. Seu fiel escudeiro é Charles Boyle (Joe Lo Truglio), um maníaco obsessivo por comida e sexo. Há ainda outros personagens como a irada Rosa Diaz (Stephanie Beatriz), entre outras figuras criadas por Dan Goor e Michael Schur.

O segredo é o timing alucinante dos diálogos que impõem uma ação eletrizante, e a intensa representação de tudo o que foi criado na arte audiovisual das últimas décadas. É principalmente uma série sobre cinema o tempo todo, em que a ação é pautada pela criação permanente de falas e personagens, onde tudo se resolve rapidamente para ser destacado a comédia de fazer chorar de tão engraçada, além da emoção do romantismo possível num tempo de mudança de papéis sexuais e transformações profundas. O chefe da delegacia é o homossexual negro , capitão Ray Holt (Andre Braugher), há um casal gay de terceira idade, cada um com um casamento hetero, e muitos outros coadjuvantes como a bruxa que persegue o capitão por não se conformar por ele ser gay ou o policial abutre que rouba o crédito das ações da delegacia.

Tenho me divertido muito. O ator principal, Andy Samberg, nascido em 1978, foi garoto prodígio na universidade americana fazendo curtas premiados. É ator, roteirista, diretor, ator. Os criadores da serei tem longa e proveitosa trajetória nos lugares onde valorizam e sustentam os profissionais da comédia e do espetáculo. Ou seja, há ambiente para se fazer algo tão pontual, tão hilário e tão cheio de referência como esta série que vale a pena seguir em maratona.


RETORNO - Quanto ao título 99 deve se referir às promoções do varejo em que tudo termina com os dois algarismos, significando que a delegacia é um local barato, pouco reconhecido mas que, surpreendentemente, funciona resolvendo todos os casos


21 de maio de 2018

TU, INTENSA


Nei Duclós

O pêndulo é o equilíbrio do movimento
no rodízio dos extremos

Assim também o poema
o amor e a amizade
O excesso em direção à prudência
A emoção tabelando com a rotina
Tu, intensa, fogo no ar
tomando a forma da lua



PENSAR

Nei Duclós


Pensar deixa o poema sem status
Fica parecendo pátio de sucata
Sem o apelo comum da poesia
Puro cálculo em estado bruto

Em compensação dribla a armadilha
Que o coração combina com a palavra
O imã enigmático das estrofes
A pulsação cega dos namoros

Pensar em poesia é só conflito
Trabalha a cena com o claro escuro
E deixa o arco- iris na gaveta

Matuta o verso sua principal birra
Como contrapor-se ao que manda o verbo
Sem enredar-se nos rabiscos do caderno

Pensar é tormento. Melhor deixar que cante o lírico concerto
Para isso presta o pastor do vil rebanho
O que apascenta o talento na tosquia



GRÃO


Nei Duclós

Chuva pesada no meio da tarde e agora o frio noturno. 
O clima se define, prepara junho. 
O tempo avança enquanto se repete.

De manhã abre o sol mas o dia logo se arrepende. 
Veste nuvens de tempestade cinza.

Cada minuto conta, não como corrida 
em direção ao desaparecimento. 
Mas como semente, grão de eternidade.



19 de maio de 2018

TEMPO DE SINTONIA

Nei Duclós


Tenho hoje uma palavra tua?
O espaço de saúde
O cântaro da tua sombra
Para que a sede justifique a espera
E usufrua da harmonia
Que tua presença cultiva

Ou melhor, do que me presenteias
Sendo só tu, amor de lua

Quatro fases que manténs acesa
A fé, a esperança, o sortilégio e a cheia
A que ilumina o corpo escuro
Do tempo avulso desta sintonia



BARALHO


Nei Duclós

Embaralho as palavras nas cartas que não envio
E ficam na gaveta em envelopes furtivos
Onde escrevo endereços como se fossem bilhetes
Para serem enviados por tantos pombos correio
Quantos forem as peças do teu esconderijo



17 de maio de 2018

LEIO TUDO


Nei Duclós

Leio tudo o que me cai nas mãos.
Pingos de chuva, pedaços de serpentinas,
filhotes de pássaros, raios de sol.

Depois solto, já lidos.
Eles então se espalham pelo piso,
atrapalhando tudo.



PROFECIAS

Nei Duclós


Tudo o que imaginamos foi feito
Desenhamos nas paredes da sesta
Nas telas do sonho

Não tínhamos os recursos mas a manha

Por isso não acompanho tua seleta de inovações
Tuas sinfonias minimalistas
Teus poemas de costuras sem linha

Ja foi tudo previsto
Pelos veteranos que se desapegam
Dessa ilusão de permanecer à tona
Quando tudo é naufrágio




MEUS GUARDADOS

Nei Duclós



Digo para me escutar
Assim exponho as mobilias de dentro
Que a alma, penumbra, confunde na mistura

Enxergo melhor a palavra que extraio profunda
E fica sem carisma mostrando suas rugas
na frente de casa grudada à rua

É o poema, jardim tão mal cuidado
Que atrai a pena de quem por acaso passa
Colhem a flor que brota à revelia
Porque o amor não é próprio da poesia

São apenas meus guardados
Uma estranha compulsão de fazer arte
Nem sempre bem sucedida
O coração surpreende quando cai na vida



16 de maio de 2018

ECONOMIA


Nei Duclós

Esqueço de ti
Te economizo
Mas gasto tudo
quando viras o rosto
para o meu lado
no meio da multidão

  

OLHO GRANDE

Nei Duclós


Poesia não é flor
nem espinho
Nem tira pedaço
de mau caminho

É ninho de coruja
Olhos estatelados
para o que é visto
mas ignorado



DIFÍCIL

Nei Duclós


Te trouxe um presente mas não entreguei
Podias achar que ao presentear te esnobei

Quem recebe se sente inferior
Está cada vez mais difícil
essa coisa do amor



14 de maio de 2018

DIZER

Nei Duclós

Dizer é uma aventura
A palavra presa à juventude
O verbo na praça, o medo no escuro
O amor de tocaia numa esquina
A dúvida de ser, o pulo no abismo
O tempo afiando facas na cozinha

E chamam de poesia
Essa bruta coleção de ruínas
Pressa de fazer antes que termine
O colossal momento fugitivo
Onde descobres o cúmplice de todos os crimes
Tu mesmo, carrossel ainda úmido
No abandono do parque sem luz
das primeiras horas do dia



DO AVESSO

Nei Duclós


Quando te excluem, aceite. Permaneça fora da reta. E ao sentirem falta, aproveite. Não se vingue da desfeita. Não fazem por mal. É hábito que não tem jeito.

Não estou falando dos sem teto, da injustiça, mas das amizades, dos amores, do rodízio. Quando te cercam de vícios e ficas só, pequeno coração do avesso.



UM FILME SOBRE SI MESMO

Nei Duclós


Um inventado escritor de ficção escreve um livro que é o roteiro do filme que estamos vendo. Esse roteiro é "real" (são experiências vividas pelo personagem) ou imaginado por ele? Esse é o dever de casa que esse autor fictício propõe para a "imprensa" no lançamento.

O roteirista (real) de O Cidadão Ilustre (2016), Andres Duprat compõe essa charada filmada por Gaston Duprat e Mariano Cohn, que podemos resolver no enfoque do meu livro Todo filme é sobre cinema (Ed Unisinos). O filme que estamos vendo é sobre ele mesmo.

A visita de um Nobel de Literatura à sua Macondo, em vez de uma celebração é um teste de sobrevivência. O autor que explorou a cidade em sua obra enfrenta a realidade que alimentou de memória a sua ficção. Com uma diferença: agora ele faz parte da trama. Desse impacto brotará a continuidade de sua literatura que estava em fase terminal.

Nas caminhadas pelas calçadas da memória, nada encontraa das pistas do seu passado.As pessoas se transformaram e são ameaçadoras e perigosas. Sua obra desperta pouco interesse, apenas sua fama é levada em consideração. Entre sufocantes selfies coletivos, palestras para meia dúzia ou plateias desatentas, abordado violentamente por quem se considera prejudicado por suas atitudes, ele acaba dizendo verdades sobre a cultura - palavra que execra e que tem sido confinada a espaços sob opressão e controle - e a própria natureza do ofício, onde não conta o caráter ou a personalidade do autor, mas sua capacidade de escrever com competência. 

Recados que o filme transmite por meio de forte carga de interpretação tanto pelo protagonista, Oscar Martinez, o ótimo Dady Brieva no papel do aterrorizante e simpático Antonio, e mais Andrea Frigerio (a namorada que casou com o amigo facinoroso do escritor), Nora Navas (a paciente e eficiente secretária), Manuel Vicente (o prefeito demagogo) e Marcelo DÁndrea (o artista plástico frustrado que destrata publicamente o autor que voltou para sua cidade nata) Além da bela Belén Chavanne, a moça que tenta sair da cidade se oferecendo para o ilustre conterrâneo. 

Essa trama do ótimo cinema argentino é uma armadilha ficcional, que envolve o espectador numa realidade que tanto pode ser memória quanto criação literária. É o filme voltado para si mesmo, usando as ferramentas da arte  visual e letrada, expondo seu foco principal, já que nada pode ficar fora do cinema numa obra cinematográfica.  

12 de maio de 2018

EU, DANIEL BLAKE: DENÚNCIA É CINEMA

Nei Duclós
  

O filme de Ken Loach, Eu, Daniel Blake, de 2016 e que ganhou a Palma de Ouro de Cannes de 2017, expõe a individualidade pressionada por um sistema de imagens e sons representativos da opressão do Estado. Uma individualidade que se expressa por meios anacrônicos não contaminados como forma de denúncia.

A tela do computador onde precisa se cadastrar para ter acesso aos benefícios sociais depois de sofrer um enfarte no trabalho (carpinteiro altamente qualificado com 59 anos), a conversa dos vizinhos pelo skype com um fornecedor de tênis da China, as horas perdidas no atendimento que nunca atende, se opõem à pichação que Blake faz na parede da empresa (americana, terceirizada) encarregada pelos benefícios sociais negados, como auxilio doença e seguro desemprego.

É na parede pichada com seu nome e sua reivindicação que Daniel Blake assume sua individualidade, fora do sistema de códigos visuais e auditivos que o mantém no desemprego sem apoio e o empurram para a miséria. Ele exige ser atendido e para isso atrai a multidão que o aplaude, estimulada pelo arauto que, à maneira dos antigos, anuncia sua insubordinação e a súbita liderança pelo exemplo.

Seu recado final não é ditado por email, messenger, what´s up, instagram, facebook. É texto escrito a lápis em papel. É seu ultimo reduto de identidade real, num funeral de pobre, nas primeiras horas da manhã na lúgubre e chuvosa cidade no nordeste da Inglaterra. Essa é a denúncia do filme: o próprio cinema, feito de memória dos frames e assumindo as ferramentas da inovação na mão de grandes autores, escolhe suas armas fora do sistema digital contaminado e se refugia na representação das ferramentas clássicas da expressão, como tinta na parede, papel, lápis e a viva voz sem intermediação.

Carpintaria é o ofício tradicional dos mestres que resistem em seus redutos de integridade. E o cinema é a arte que desmascara as ferramentas que tentam substituí-lo, inoculando nas salas escuras que ainda existem e na rede (vi no Netflix) sua força de Sétima Arte.



10 de maio de 2018

ANTES


Nei Duclós

Quero mostrar antes de fazer
para que enxergues o que me dá prazer:
o sonho que temos de criar
No caldo estelar do amanhecer

Para isso fomos feitos:
dividir o pão ainda na semente
Colher o que não está pronto
Não deixar escapar



SEM RETOQUES

Nei Duclós


Maquiagem é arte que não aparece
Teu rosto natural como um diamante
As linhas diagonais da transparência
Nas mãos sábias de um ourives

Caimento perfeito sobre os ombros
Teu rosto é vestido sem retoques
Sombras descobertas sob os olhos
Cores que já foram de uma aurora

Entras no recinto em passo leve
Teu sapato de cristal, pulsos de cobre
Sabem quem és, orquídea em fina prata

Todos esperam que recites tua obra
A palavra densa como a nuvem
Que passa pelo céu, ave precoce
A revelar a inteligência em meio à graça



8 de maio de 2018

REPITO

Nei Duclós

Já foi dito mas não importa
A cada estação o trigo se aprimora
Real conflito o verbo repetido
O poema insiste como quem se afoga

Vale o escrito em barro e no papiro
Teclas virtuais e telas de convite
Dizer para que o mundo gire
A terra escuta quando a estrela grita

Mosaico de ladrilhos, revolta de guerrilhas
Falsos estribilhos, roucos exercícios
Vestimos a verdade na vida de mentira
Aguardo a claridade na estação noturna

Falo outra vez e os grilos me acompanham
Tricotam o amanhecer com martelos invisíveis


ATRÁS DO ESPELHO

Nei Duclós
 

Sempre gosto da tua palavra. Uma admiração de mão única que me habita. Esse é o retorno, não importa que passes sem olhar para o lado e megulhe com o rosto refletido no vidro do aquário ( por trás dele, sem ser visto, sou o devoto que aprende a amar sem retribuição, que é a verdadeira natureza do sentimento).

A EXTINÇÃO DO PARAÍSO


 Nei Duclós

A humanidade, que parecia amigável, de repente toma a forma de um monstro
E companhias que sorriam agora te cercam com fuças carnívoras
Afiadas em palavras distorcidas em forjas de vesúvios

Onde se escondia essa vocação tardia?
Não tinhas notado ou foste cooptado pela tribo?

É teu olhar fuzil que dedicas à biografia
que cevaste em acervo de antigas civilidades?

Somos atingidos por um projeto assassino
Projétil bem encomendado que finge ser bala perdida

Valha-me poesia, último reduto na extinção do Paraiso



7 de maio de 2018

O DOMÍNIO DO VERBO

Nei Duclós

Não estrague o poema exigindo o que ele não pode render. Ou espichando seu melhor momento até ficar irreconhecível.
Saiba onde parar e o que fazer para melhor continuidade e desfecho.

Parece que tudo é ditado pelo improviso ou o coração. Mas há lições de carpintaria que aprimoram o que o voluntarismo costuma prejudicar.

Dito isso, não aposte na contenção pura e simples ou na secura da voz. A sobriedade do oficio se alimenta de ar. E sonha com o voo que o domínio do verbo pode construir.


CONTAR

Nei Duclós


Não precisa viver para contar
Se fosse assim
nada teríamos a dizer

Contamos porque temos tempo por nao ter vivido
Ou porque não valeu a pena nossa biografia

Inventamos por não poder nos render
à imagem que fazem de nós
O de impassíveis sedentários convictos

Encho as paredes de fotos de aventura
E te convido para um café
para comentar os fatos que ninguém viu
mas todos gostam de ouvir



POEIRAS

Nei Duclós


Pequenos momentos
que não deixam rastro
São recolhidos na faxina das estrelas
Três Marias, lembranças, uma refeição, Andrômeda

O movimento dos astros recicla
o que se esvai entre os dedos
Vira poeira, aproveitada em insights incertos

Não há conteúdos, apenas bricadeiras sem noção dos deuses



5 de maio de 2018

A FRIA TORRE

Nei Duclós


Complico a produção do verso
Quebrando sílaba como se fosse pedra
Mudando o sotaque das récitas
Reduzindo a nada o que queria ser algo

É puro exercício, me testo para o salto
Quando cruzar o mar sem pedir socorro
Para boiar em restos de naufrágio
Enquanto tento um sinal sem receber resposta

Será meu grito sincopado no abandono
Eco de involuntário padrão morse
A recitar fonemas sem significado
Um louco está a deriva, dirão na fria torre



4 de maio de 2018

JERRY LEWIS EM MAX ROSE

Nei Duclós


Claire Bloom, a atriz shakespeareana que Chaplin lançou ao estrelato em Luzes da Ribalta, é o vínculo do veterano Jerry Lewis em uma de suas últimas peformances para o cinema, Max Rose, 2013, de Daniel Noah. Ele trabalha com a bela Kerry Bishé em densa interpretação da neta que amparo o avô na viuvez, Kevin Pollak, o filho enjeitado que mendiga amor ao pai em fase terminal, e Dan Stockweell, o amante oculto descoberto tardiamente, depois da morte da mulher, pelo marido de um casamento de 65 anos. Stockwell foi menino prodígio em Hollywood, fazendo filmes no final dos anos 40 e Claire dedicou mais tempo ao teatro do que ao cinema e aparece aqui para ligar Jerry a Chaplin, na sintonia do fino humor que resiste na brutalidade do mundo.

Pois é disso que se trata: um filme sobre a ancestralidade do cinema. O palhaço aposentado que sonha em voltar ao palco em Calvero é aqui o pianista de jazz frustrado que acha toda sua vida miserável. Os dois personagens mostram o gênio de Lewis num libelo contra a distorção do humor e a favor do minimalismo da graça com timidez, imaginação, poesia e inteligência. Ele se recusa a assistir uma comédia apelativa muito comum a partir dos anos 1980 e se dedica a contar e a ouvir piadas com neta. Há também citações explícitas de The Bellboy (O Mensageiro Trapalhão,1960) em que ele finge com as mãos tocar instrumentos enquanto rola um jazz pesado.

A comédia é a sutil situação terminal do drama. Quando não há saída para tanta tragédia, fazemos graça. Jerry Lewis manobrou com esse conceito a vida toda, desde a divisão de identidade de O Professor Aloprado, o mutismo poético e intenso do Bellboy, o palhaço que chorou para fazer a criança rir etc. Em Max Rose, ele torna definitivo seu recado.

No Netflix.


3 de maio de 2018

FOSTE ME BUSCAR


Nei Duclós

Foste me buscar
no fundo da agulha
Eu cerzia o verbo
já sem valimento
Roupas na varanda
medo profundo
O mundo era torpe
na inútil costura

Mas trouxeste flores
sem pedir licença
e fizeste café
para meu assombro

  

SORRISO FORÇADO

Nei Duclós


Esse sorriso forçado, de olhar sonhador
Felicidade padrão, feita para convencer
Até parece você, mas algo não fecha

Que se revela ao acaso, no extremo desleixo
que mostra o ombro no selfie perfeito
ou na transgressão do gesto impaciente
Quando pedem uma pose e viras do avesso

É saudade eu sei beldade com classe
Perfil de um amor no final de uma festa
Quando te foste com a luz que me deste

E hoje és a sombra do tardio remorso
Amargas lembranças na volúpia de um verso