Nei Duclós
Gostamos de rever nossos filmes favoritos. Quando assistimos
mais de uma vez é para relembrar os bons momentos, já que conhecemos a história
e o desfecho. Mas quando voltamos aos mesmos filmes uma enorme quantidade de
vezes é por outro motivo. Não nos interessa mais como acaba o filme, qual a
história dos seus personagens ou mesmo saber detalhes dos bastidores da
produção e dos intérpretes. O que nos leva a essa compulsão é que se trata de
cinema, ou seja, nós voltamos ao local do crime porque o núcleo da obra é o
fato de ela pertencer à Sétima Arte e resolver de maneira brilhante, genial ou
simplesmente por pura identificação conosco, os desafios da narrativa
cinematográfica, a estrutura, a continuidade, a relação dos personagens com os
cenários. Ai reside a emoção que nos conquista, a de que o filme trata de sua
essência, o cinema. Vamos pegar um exemplo.
Revi esta madrugada (mais uma noite de insônia) Breakfast at
Tiffany's, de Blake Edwards, baseado em novela de Truman Capote e adaptado por
George Axelrod. Foi lançado em 1961, quando então a civilização fazia uma
imagem ideal de sua realidade(a partir das décadas posteriores, a barbárie
ganhou a parada, como podemos notar hoje olhando em torno). Há nessa produção
tudo o que é explorado hoje de maneira burra e explícita. Aliás, o que me levou
de volta a Audrey Hepburn, George Peppard, Mickey Rooney, Patricia Neal, Buddy
Ebsen e Martim Balsam foi uma cena de curra num terraço da série Marseille, que
tentei ver pela quinta vez, em vão. Vendo os atores da série se retorcer de um
gozo artificial e bruto diante das câmaras desisti, e decidi revisitar os
elementos perfeitos que compõe a joia cinematográfica de Edwards.
Nela há cenas de sexo: por mais de uma vez, o filme sugere,
por elipse, casais que “fazem amor” (para usar uma expressão da época) por
dinheiro ou por atração física e amorosa. Sem esfregar o delírio suspirante na
cara do espectador. A garota de programa que procura marido rico e o jovem
escritor estreante sustentado por uma milionária casada são vizinhos e acabam
se apaixonando. A moça de programa fugiu da casa do marido, um homem mais
velho, veterinário, que a tinha capturado ao flagrá-la, junto co irmão,
roubando o seu pomar. Selvagem e louca, ela tenta mostrar que é livre mas acaba
se enredando na sua verdadeira paixão. Ele deixa de ser dependente da ricaça
para se dedicar ao ofício que tinha abandonado, inspirado pela garota que veio
de longe e caiu no seu colo de presente.
O que pega no filme? O início dá uma pista. Um taxi desliza
suavemente no amanhecer de uma Nova York deslumbrante e a moça elegante desce
para ver as joias na vitrine da famosa Tiffany. Enquanto olha, faz seu
desjejum. É o seu ideal de felicidade e estabilidade. É o que ela quer na vida:
um ambiente cool, sem conflitos. Mas seu apartamento, onde o telefone fica na
mala e os penetras bagunçam sua festa particular, e, nos outros dias sem
balada, ela se refugia dos “ratos” que a compram, tem uma escapatória pela
escada do incêndio, que dá para o andar de cima onde mora o escritor.
Entre a suavidade e o conflito, o filme se realiza
perfeitamente com as grandes interpretações, quando os personagens deságuam na
cena final de encontro amoroso na chuva, talvez o mais belo momento do amor que
se reconhece definitivo na história do cinema. O que encanta é a perfeição de
cada item. Ela cantando Moon River na janela do apartamento, de olhar distante,
sendo obsevada pelo seu apaixonado; os passeios por uma cidade magnífica entre
prédios suntuosos, lugares inesquecíveis, revoar de pombas. E os diálogos,
longe de ser água com açúcar, são ásperos, duros, ofensivos, pois não se trata
de uma comédia romântica, já que o autor por trás da cena é o brilhante e
radical Capote. É um conto sobre o desencontro, a luta pela sobrevivência por
meio de ações ilegais ou condenáveis, o tráfico de influências, a caça ao
tesouro, os casamentos arranjados, a indiferença. Tem até a Máfia, que usa a
garota para repassar recados. E é também sobre a descoberta do amor, esse
magnífico efeito colateral de uma vida miserável.
Tudo isso faz deste filme uma peça inesquecível de
realização cinematográfica e por isso voltamos a ele tantas vezes. Para ver
como o amante rico entra no quarto onde jaz a mulher devastada pela dor da perda
do irmão, com a câmara colocada no alto e as ruínas dos móveis tomando conta do
piso e da cama. Para acompanhar de novo a maravilhosa cena em que o joalheiro
concede fazer uma gravação num anel achado em um pacote de biscoito. Para rever
a emocionante despedida da mulher ao seu ex-marido caipira.
Porque tudo isso já vimos e sabemos de cór. Mas o cinema é
assim. Nos conquista por ser cinema, uma arte voltada para si mesma. E que só
existe ali naquela tela. Mesma na época em que foi lançada, quem viu sabia que
aquilo só existe num filme. É a representação de uma época que se sonhava
perfeita. E talvez voltamos a ele para tentar mais uma vez fazer parte desse
universo maravilhoso. Não por ser rico, capitalista ou sei lá o quê (já que
trata de pessoas pobres que se vendem para sobreviver). Mas por ser encantador
na sua carpintaria perfeita, que ouso chamar de obra prima, pensem o que
quiserem. Mesmo com um espanhol, Jose Luis de Villalonga, interpretando um
brasileiro e falando olé (e sendo sempre lembrado que é mestiço), e um
americano, Mickey Rooney fazendo hilária e execrável caricatura de um chinês, o
que deixava Bruce Lee furioso.
Hepburn foi indicada ao Oscar mas não levou. Já Henry
Mancini sim, com sua trilha musical majestosa. Em 2012, o filme foi considerado
"cultural, historica e esteticamente significativo” pela Biblioteca do
Congresso americano e selecionado para ser preservado no National Film
Registry,
Nei Duclós
RETORNO - Imagem: George Peppard não entende o desinteresse da amada
depois de uma noite juntos e tenta descobrir o que acontece.
A fala mais contundente dele é mais ou menos esta: “Não
quero colocá-la numa jaula, quero apenas te amar. Você se acha livre e
selvagem, mas construiu uma prisão para si mesma e não adianta migrar para um
país distante, você sempre levará esse limite com você. As pessoas se apaixonam
e pertencem umas às outras. Mas você é covarde e não aceita compromisso porque
se refugiou nessa cela.”
A dela é esta: “Aceite meu dinheiro, afinal você está
acostumado a ser sustentado por mulheres.”