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31 de maio de 2006
UMA FRESTA PARA O SONHO
América é um sonho planetário, construído por imigrantes do mundo inteiro. No cinema, foi formatado por grandes artistas de mais de um continente, como o siciliano Frank Capra, o americano John Ford, o polonês Samuel (Billy) Wilder e o húngaro Mihaly Kertesz (Michael Curtiz). Mas, principalmente nesta época Bush, o sonho foi seqüestrado pela xenofobia, o imperialismo e a direita. Por isso ele hoje fica confinado, preso por trâmites burocráticos, por leis providenciadas em cima do joelho, manipuladas por autoridades dogmáticas. É fora de moda resgatar o sonho da nação que se reconheceu livre e acabou virando um império como qualquer outro. Se você fizer qualquer menção simpática ao velho sonho, já sabe: acaba sendo acusado do que você não é nem jamais será. Mas esse é o preço que se paga por ter o espírito livre. Não livre dessa liberdade da bandeira estrelada que sepulta soldados que morreram no estrangeiro, mas de um outro tipo de liberdade, a que se liberta dos caixões de ouro e prata em que a colocaram.
JAZZ - Hoje, o sonho sobrevive em alguns lugares especiais: clubes de jazz e filmes como O Terminal, de Steven Spielberg. O mistério é: como esse tipo de filme leve, emocionante e com sobrecarga do humano consegue funcionar depois de tantas mudanças no cinema? Qual o segredo? Não há dúvida de que duas colunas mestras sustentam esse tipo de obra: o roteiro e os atores (aqui, a palavra ator é usada na boa e antiga solução de linguagem do comum de dois, soterrada depois que o pseudo-escritor José Sarney inventou o "brasileiros e brasileiras", agarrado por unhas e dentes pelo genericamente correto). O script precisa estar vivo, apesar de obedecer a alguns princípios. Nada a ver com as fórmulas prontas, o empilhamento de tijolos da atual fase de Hollywood. E o ator principal precisa ser alguém como Tom Hanks.
MOÇO - É fato que Al Pacino é o maior ator vivo, mas Tom Hanks corre por fora, exatamente por não expressar, nas suas atuações, nenhuma pretensão quanto a isso. Seu trabalho excede a mera empatia ou o jeitão de bom moço. Ele é um comediante de primeira água, um ator dramático que nos gruda na tela e um criador de tipos inesquecíveis, raros no cinema de hoje e que nos remetem às grandes performances clássicas. Pouco ou nada fica a dever a Gary Cooper, Cary Grant ou James Stewart, esses bons sujeitos que já nos levaram para o território inesquecível da arte completa. Por ser essa obviedade mais do que explícita, muita gente esconde que admira Tom. Pois eu confesso: esse, para mim, é o cara. E Spielberg, quando não faz bobagem, acerta no veio.
ANDAR - O que há de excepcional em Tom Hanks neste filme? É que ele concretiza a imagem que os americanos fazem das pessoas do Leste europeu. É assim que eles são vistos e Tom, por ser o americano por excelência, compõe o personagem a partir do que pensa dele. Essa é a única maneira de a América perceber o Outro: por meio da caricatura, que só o espetáculo pode realizar e, quando há vontade, ser desmascarado, tornar-se humano. Tom assume esse papel e cria Viktor, o homem preso no terminal JFK, em Nova York, por meio da sua maneira de andar. Caminha de pernas abertas, jogando os pés bem para o lado, como se estivesse atirando os sapatos para longe. Curva-se um pouco para mostrar rigidez na espinha (e na própria identidade), o que coloca o peito para a frente, os joelhos dobrados, as ancas duras. A voz, claro, é gutural, pois o Outro, para a América dita civilizada, vem sempre de alguma caverna pré-histórica.
CONCESSÕES - Mas o personagem se humaniza na medida em que consegue aprender inglês, a ganhar dinheiro, fazer amizades, namorar e peitar a segurança. Ele faz todas essas concessões para poder romper o isolamento e realizar seu projeto: o de conseguir a última assinatura de um gênio do jazz que faltou à coleção do pai já falecido. O sonho assim está agora muito perto, mas a atual fase da América impede que ele chegue lá. Falta ao Estado compaixão, como disse o velho chefe de segurança do aeroporto, que está por se aposentar. A compaixão definiu o país, diz ele. O que há é exclusão, fazendo com que os foragidos do mundo em guerra, acumulados no mesmo terminal, acabem se encontrando e formando um círculo de solidariedade. Esse pacto influi no ritmo do aeroporto e acaba sendo definitivo para que o protagonista vá até o músico, ídolo do seu pai, e consiga o autógrafo que faltava.
PASSAPORTE - Mas não há mais clima para a imigração. Num recado direto, o filme coloca Viktor de volta à sua terra, que agora encontrou a paz depois de um golpe de estado. Home ( de "não há lugar melhor do que a nossa casa", de O Mágico de Oz), nesse caso, não é mais a América, mas a terra natal. Desde que, na bagagem, seja possível levar um tesouro: a identificação com o que a humanidade produz de melhor, único passaporte para uma vida verdadeira.
RETORNO - Imagem de hoje: Tom/Viktor preso no JFK - o Outro, sem passaporte, não entra em Nova York nem consegue voltar para a pátria em guerra.
30 de maio de 2006
CINEMA DE EXTERMÍNIO
Vejo um filme atrás do outro. A reflexão se atropela junto com as imagens de O pianista, de Roman Polanki, com Adrien Brody, que é sobre invasão e resistência na Polônia, mais do que sobre judeus (não há Bar Mitzvah, nem sabat, nem rabinos nesta obra-prima que faz chorar as pedras); de Dogville, o celebrado cult com Nicole Kidman, de Lars von Triers, que descobre a crueldade na pacata cidade imaginária de portas invisíveis do interior dos Estados Unidos; e 21 gramas, do mexicano Alejandro González-Iñárritu, com Sean Penn, Benicio Del Toro e Naomi Watts, que acompanha o destino de pessoas terminais na mais radical edição de uma obra cinematográfica, que procura enterrar para sempre a narrativa linear e bem comportada. Há outros, mas esses três definem um cinema de extermínio, que não cuida só do passado (Polanski), ou da América (von Triers) ou da vida dos outros ( Iñárruti). Mas da armadilha da vida deste início de século, em que as populações são jogadas dentro de uma favela sob os ditames da lei do cão e em que a única resistência é a arte e a chance maior de sobrevivência fica nas mãos do acaso.
ACENO - Não há pessimismo ou otimismo, apenas constatação feita com uma sobriedade que não passa para as festas de lançamento. Há duas realidades: a dos filmes e a dos eventos. A chuva de festivais e prêmios contrastam com o desespero evidente das obras, que acenam enlouquecidas para o público para chamar a atenção sobre o que se passa, mas esse gesto é soterrado pelo que chamam de glamour (a mais execrável palavra desta década). Os protagonistas morrem ou sobrevivem marcados pela barbárie , que é a vingança dos medíocres contra a civilização pautada pela paz e o conflito ordenado pela lei. O ressentimento dos bárbaros arrastam na lama ou fuzilam com um tiro na cabeça, em série, os pacatos cidadãos desarmados. Mas não há piedade no cinema de extermínio. Polanski, que supera todas suas obras anteriores com O Pianista, denuncia a omissão dos poloneses diante do invasor, a divisão interna nas comunidades e famílias, que deixam a nação à mercê da bandidagem, e a conivência dos conterrâneos que fazem o serviço sujo da polícia do gueto. Von Triers acusa a falsa aparência da cidadezinha isolada e temente a Deus, colocando os seres humanos que nela sobrevivem como os carrascos de hoje e que manifestam sua ferocidade quando encontram uma chance. E Iñhárruti reporta a indiferença assassina dos moradores das metrópoles mergulhadas no caos. Não há inocentes porque o Mal venceu graças à passividade e ao pânico da cidadania.
ROSNAR - Esses cineastas mantêm vivo o chamado cinema de autor, em plena hecatombe comercial hollywoodiana. São filmes que ficam cercados nos circuitos dos cinemas e agora dos dvds. Não chegam à TV aberta, tomada pela brutalidade audiovisual. Mas como não há inocência nos personagens, também não há entre os cineastas. Von Triers me invoca. Quer dizer que o Mal reside no ermo e o Bem vem de fora, de alguém que precisa provar que existe humanidade nas pessoas? A outsider se decepciona com a reação dos seus hospedeiros e vai até o osso da auto-punição, deixando-se torturar por idosos, idiotas, brancos ou negros, mulheres e crianças, camponeses ou aposentados. O intelectual da cidadezinha é uma síntese do escritor fundador, como Mark Twain, que inventa a nação pela literatura, mas é impotente (também por ser culpado) diante da crescente crueldade, que salta na tela depois de rosnar o filme todo. A vingança da forasteira é desejada pelos espectadores do filme, pois essa é a justiça existente hoje, quando a Lei é letra morta e as armas ditam comportamentos e destinos. O público já está domado no horror e Von Triers (talvez seja essa sua denúncia) nos faz ver o quanto somos cruéis por torcer pelos gângsters contra a representação de nós mesmos, a população sem voz na mãos dos mais variados tipos de algozes.
FOCO - Como em "Amores Perros", Iñárrúti coloca um ponto focal da narrativa, um acidente de carro. Tudo o mais gira aos pedaços, como um gigantesco quebra-cabeças, onde as relações humanas são ditadas pela carência e o medo, e a morte é a única certeza. O cinema de extermínio não nos mata, apenas nos diz que estamos agonizantes. Ou talvez estejamos já do Outro Lado, olhando catatônicos o que fizemos da vida na terra. Mas nem tudo morre, porque há autoria e cinema de primeira grandeza. A arte sobrevive e retoma a peça musical interrompida pela guerra. O marido agônico e pai de família volta para casa. A viúva espera um filho. E Dogville sucumbe para que voltemos à lucidez perdida. Estamos vivos e esta é a nossa única chance. Ainda temos 21 gramas, o peso da alma, em nossas existências escassas.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: Adrien Brody no gueto de Varsóvia na obra-prima "O Pianista", de Roman Polanski. 2. O Cine Diário da Fonte é patrocinado e programado por Miguel Duclós. A seqüência de filmes obrigatórios tem sido indicação dele, participante ativo do circuito da sétima arte. Ontem, 29 de maio, Miguel completou 28 anos de vida, fato comemorado pelas suas inúmeras amizades, que enviaram votos de saúde e felicidade. O DF junta-se aos convivas e deseja longa e proveitosa vida ao Miguel, com quem tenho o privilégio de conviver neste mundo com raras pessoas que têm algo a dizer e a mostrar.
29 de maio de 2006
O IMPERIALISMO FIEL
Vejo tardiamente grandes filmes e fico invocado. Um deles é O Jardineiro Fiel, projeto multimilionário baseado num thriller de John Le Carré, que já tinha produtor e roteirista quando Fernando Meirelles foi convidado a dirigir. Fiquei impressionado pelo making off, quando Le Carré fala que Meirelles trouxe a visão da cozinha, do terceiro mundo, para a história. Colocaram um dos nossos melhores cineastas lavando pratos. Meirelles diz que fez a história sob o ponto de vista do Quênia, o que não é verdade, pois a megaprodução deixa bem explícita quem são os protagonistas (os branquelos em meio à massa negra) e quem são os coadjuvantes (a massa negra). Outra coisa que me invocou foi como a grave denúncia contra a indústria farmacêutica é produzida com bufunfa pesada internacional, é tratada como entertainement e tudo fica por isso mesmo.
Descobri, sem ser convidado à reflexão (já que reflexão não precisa de convite) que o filme faz parte do esforço do Primeiro Mundo em abraçar o políticamente correto (por uma questão de marketing, de conquista da opinião pública em pleno vendaval do Iraque), colocando no lixo os diplomados ultrapassados e as indústrias mal sucedidas, as que não possuem cacife para concorrer com as grandes marcas mundiais do setor. Tudo isso não tira o mérito do filme, que é impressionante nas imagens, no ritmo, nas interpretações e na viagem que faz África adentro, com um Ralph Fiennes que se desveste da pompa e se encharca de areia e luz. Essa desconstrução tem um motivo: Rachel Weisz, a combatente que vira pelo avesso a vida do bem comportado diplomata subalterno (ficar envolvido com o jardim confirma sua preferência de classe - ele se identifica com os trabalhadores braçais, por mais charme que exista na dedicação à terra e às plantas).
QUALIDADES - Meirelles é do ramo. O uso que faz da webcan, da internet, dos arquivos digitais para compor sua narrativa é de uma competência que emociona. Seu travelling na paisagem do Quênia, o encontro mítico entre o falso jornalista e o médico enterrado no ermo (um resgate do famoso encontro entre Stanley e Livingstone), o partido que toma a favor das crianças (como aconteceu com Cidade de Deus) são qualidades do nosso cineasta maior que o cinema americano valoriza até o limite, pois sabem que um profissional desses não se encontra em qualquer canto do mundo. Ele destaca personagens negros, como o homossexual parceiro da esposa do diplomata, ou a mulher que morre devido aos testes de um remédio venenoso, ou mesmo a menina que decide sair do avião para que os outros se salvem, que nos tocam pela grandeza em meio à miséria absoluta. Não é uma postura falsa, comercial e talvez seja esse um dos motivos para trazer Meirelles ao primeiro nível do cinema mundial: o de que ele não trairia seus princípios ao filmar uma história de corrupção que denuncia a pata pesada do imperialismo. Mas como um camaleão, o poder das grandes potências usa de todos os truques para continuar em frente. Usa certamente este filme, mas não o desmoraliza, por mais contraditório que isso seja.
DOCILIDADE - É certo que a arte e a produção intelectual sérias no Primeiro Mundo não ficam a reboque diretamente ao Império. Existem gargalos fechados nesses vasos comunicantes, apesar do avanço que a direita promoveu no cinema, principalmente depois dos atentados de 11 de setembro. Algo sobrevive e muita coisa pode sair dessa abertura. Mas precisamos ficar atentos às armadilhas, sem querer dar uma de vestal ou de correção acima de qualquer suspeita. É direito nosso duvidar das boas intenções, não dos profissionais e artistas envolvidos, mas do sistema que torna viável o filme. Notem que o alto comissariado britânico no Quênia apoiou e o governo local também deu força, já que as denúncias se referiam ao governo anterior. Mas tudo isso pode ser encarado como uma forma de limpar a sujeira acumulada pelo imperialismo e torná-lo mais dócil, aparentemente, para a opinião pública mundial (já que existem diplomatas honestos e a nova relação internacional entre as nações pode incorporar as denúncias contra os abusos).
UAU! - Fico invocado também que esse tipo de debate não tenha vindo à tona durante o lançamento do filme. Seria irresponsabilidade dizer que isso se deve ao envolvimento dos jornalistas da área com a campanha de marketing do filme. Acredito que não existe tráfico de influência ou corrupção. Mas não há dúvida que o clima de sedução do dinheiro investido na publicidade do filme, que convidou os críticos para alguns eventos, deixa pouca margem para uma crítica mais contundente e profunda. Façam um teste: na próxima megaprodução, me convidem. Vamos ver se eu caio de pau no lançamento ou me desmancho em análises elogiosas. Uau, Nova York, lá vou eu! Agora, sem brincadeira: como o filme em questão, a crítica dos grandes veículos também possuem inúmeras qualidades e geralmente nos informam de maneira correta, pois existem excelentes profissionais cuidando do assunto. Mas a conexão do sistema de publicidade com a redação lança dúvidas sobre alguns aspectos do resultado.
RETORNO - Imagem de de hoje: a fuga de Stanley/Livingstone do massacre dos cavaleiros do deserto, cena antológica do impressionante Fernando Meirelles.
28 de maio de 2006
MÍDIA E MANIPULAÇÃO
A ditadura não dá mostras de perder a força porque se instalou na cabeça das pessoas. Vejo isso entre os jornalistas. Há um pacto de elegância entre os que ocupam cargos de confiança. Há alguns temas tabus e uma visão arrogante do seu entorno, formado por aquelas criaturas que envelhecem sem ter importância nenhuma e acabam se retirando para lugares isolados, onde o vento sopra nas dunas. Os chefetes, equivalentes a feitores que gozam de boa saúde junto à direção, dividem a mesma roupa e restaurante e fazem rodízio entre os veículos poderosos. Gostam de usar expressões como "Lula está convencido", pois isso dá um certo ar blasé aos textos não comprometidos, a não ser com a continuidade do arbítrio. No fundo, se cagam de medo de dar uma bola fora, por isso elegeram a prudência bem fornida para se perpetuarem no poderzinho das redações, que nada mais é do que uma clonagem do poder maior, o financeiro. Conheço essa raça de víboras. São capazes de dar credibilidade a uma calúnia, a de que Pedro Simon desistiu da candidatura, e quando pegos em flagrante fazem tardiamente uma reparação, sempre dentro das suas veleidades aristocráticas.
OSTRACISMO - Quando cheguei nas redações gigantescas de São Paulo, nos anos 70, a ditadura já tinha feito grande estrago entre os jornalistas. Eles usavam camisas quadriculadas bufantes, olhavam para o infinito e se manifestavam de maneira chula, pois isso dava status de poder. Falavam que isso não falava ao pau (com perdão da expressão ) ou que dois repórteres deveriam produzir o texto a quatro patas. Os subalternos não escreviam matérias, perpetravam. Já estavam colocando no ostracismo os talentos que acreditavam ser a imprensa um foco de resistência. Os resistentes se refugiavam na imprensa alternativa, onde em alguns casos reproduziam vícios adquiridos nos jornalões e revistonas. Poucos sobraram com dignidade e o resto acumulou esqueleto no armário. Você não confronta um poder armado, você, serzinho inerme, que vive dessa coisa escrava que é batucar pretinhas. Então você se cala ou se convence que esse é o mundo possível e vira um jornalista político que consegue passar alguns recados por meio de um pacto de normalidade com a violência institucionalizada.
CHICOTINHO - Primeiro, a censura se disseminou em rede por toda a sociedade, depois penetrou as pessoas, impregnou o coração e colocou uma capa protetora na cabeça. Foi assim que chegamos à atual manipulação da mídia. É de ver o pânico que se instala quando alguém destoa desse consenso. Os 12 milhões de votos de Garotinho em 2002 assustam a direita, por isso colocaram um sujeito evangélico com cara de diabo na capa da Veja. Qual o grande paradigma de honestidade anti-populista do Brasil, segundo a revista? Juscelino Kubistchek!, um cara que nem fez seu sucessor porque seu governo foi pautado pela gastança, a inflação galopante e o narcisismo predatório. Quem venceu as eleições foi Jânio Quadros, que tinha como plataforma a limpeza da bandalheira política, o que acabou em golpe de estado e eterna ditadura. Esse é o modelo de quem estocou mortalmente o pré-candidato. Sujeitos que fazem uma capa desse naipe são do tipo que descrevi. E pior é que se acham modernos, isentos, interessantes. São capazes de visitar a redação no plantão de domingo batendo um chicotinho nas botas de montaria, como acontecia com certo diretor de redação que acabou fuzilando a namorada pelas costas.
ESTOCADA - Por que eles continuam dando as cartas? Porque você, amigo jornalista, permite. Você se borra nas calças diante desses merdas. Então vou te ensinar, como na cena de Quase dois irmãos em que Flávio Bauraqui fez Caco Ciocler xingar a mulher traidora. Diga para ele: "Seu filho da puta, seu bundão, seu cagalhão caga pau do poder. Isso eu não vou fazer, seu porra. Isso não me fala ao pau. E fica quieto senão te ponho quatro patas na tua cara". É assim que se faz.É assim que se derruba a ditadura.
RETORNO - Imagem de hoje: Crumb e o blues - talento e liberdade.
27 de maio de 2006
TRUMAN REVISITADO
Sabe aquela vibração dos telespectadores quando Truman encontra a saída da sua jaula de luxo e se salva? Más notícias: era tudo representação. Truman não existe. Quem está lá é um ator, Jim Carrey. Sabe o desencanto de Christof, o criador e diretor do show, que tenta manter seu personagem prisioneiro? É tudo mentira. Trata-se de Ed Harris, que finge estar decepcionado. A parábola da libertação da sociedade do espetáculo (expressão usada aqui para fazer justiça a Guy Debord e sua obra imortal de denúncia, publicada nos anos 60), ao contrário das narrativas anti-alienantes, é apenas a confirmação do que o próprio filme denuncia. É a cobra mordendo o rabo. Não há escapatória. Você se mantém no cárcere de Truman, com a diferença de que você não é o astro, nem sequer o coadjuvante, você é o espectador imobilizado. Você é enganado pelos atores que fingem ser você, pelo diretor Peter Weir e sua brilhante obra, pelo comediante que convence ser dramático, exatamente porque esta comédia, a vida sob o tacão da representação, é a tragédia a que nos acostumamos a viver e só saímos quando o diretor manda, e não conseguimos chegar ao outro lado da porta, como Truman, que some no escuro da saída para que o filme acabe.
BUTIM - A esperança se acendeu quando Simon acenou com a possibilidade de ser candidato a presidente? Última forma. A ditadura veio para ficar. As pesquisas encomendadas são festejadas no Planalto. Nem precisa eleição, a mesma ratatuia irá dividir o butim. Por isso encerro minhas atividades de espectador da TV aberta e me concentro nos filmes que vejo em série, para compensar o tempo que perdi vendo noticiário comprado na TV, em que os apresentadores, sem mover uma linha do rosto, se inclinam um pouco para a frente a fim de impressionar quando mentem. Vejam aquele repórter tão bem plantado num departamento público, a desovar alguma denúncia e a assumir esse papel de isenção civilizada no país em ruínas. Aturem os animadores de auditório, a celebrar sempre os mesmos cantores, que berram nossa desesperança, enquanto cada milímetro do espaço da cidadania é tomado pela publicidade. Escutem a algaravia politicamente correta de ecologistas e todos os defensores das minorias, além das lágrimas de crocodilo sobre as vítimas. Vejam quanto incêndio, tornado, enchente para encher de conforto suas noites, em que você é um Truman feliz, e tão bem resolvido que pode a toda hora achar que se liberta por meio de um bom espetáculo.
FÉ - Relaxe, a Copa vem aí. Junto, aquela arenga anti-patriótica de que o futebol ajuda a alienar o povo. Torça com vontade, faz de conta que é turista em plena Alemanha, a envergar o verde amarelo tão caro a todos nós, que somos italianos, japoneses, alemães, portugueses, baianos, gaúchos, mineiros ou nordestinos. E que só somos brasileiros quando alguma grande vitória se aproxima. Vi a mini-biografia de cada craque da seleção. Tudo obra de ventre de mulher, para usar a imagem de João Cabral. De mãe viúva, de vida difícil, de cabelo enrugadinho, de dente para frente, de pernas franzinas. Tudo filho do país que entregou seus filhos para serem criados por outras nações. Hoje eles são espanhóis ou italianos, possuem o que chamam de dupla nacionalidade. Juraram bandeira alheia, falam com sotaque. Mas continuam os mesmos, de chute forte, de graça e mágica nos pés. Eles nos trazem um pouco de fé no mundo em queda. O problema é agüentar o monopólio da mesmice nas matérias, nas transmissões, que possuem aquela intimidade comercial com os ídolos.
CÃES - Crie seu próprio show. Como cansam de dizer, você merece. Seja o astro. Diga algo engraçado antes de encontrar a saída. E parta para uma vida plena, no outro lado da redoma, onde te esperam os cães ferozes da aldeia, ou os preparados donos do poder, os que se revezam há décadas e aqui ficarão até te verem ir desta para a melhor. Mas uma coisa é certa: a articulação mimosa dos lábios do Alckmin, ou a voz insuportável do presidente ágrafo, não quero nem ouvir.
RETORNO - 1. A imagem de hoje é do filme "O show de Truman": Jim Carrey procurando a saída. 2. Caí no conto do vigário (tanto é que decretei última forma no post acima): o JB anunciou e o blog do Noblat repercutiu a desistência (desmentida pelo próprio senador) de Pedro Simon à presidência. Noblat, além da barriga que deu, ainda foi arrogante, invocando a profecia do seu blog em relação à chance nenhuma de Simon. Que me sirva de lição: todos perderam a credibilidade. De agora em diante, só confio no Diário da Fonte. Parafraseando Oscar Wilde: "Vou levar meu diário na viagem; pelo menos terei algo para ler".
26 de maio de 2006
A ORIGEM DAS GRANDES QUADRILHAS
Que o Comando Vermelho surgiu no presídio de Ilha Grande nos anos 70 devido ao contato entre prisioneiros comuns e políticos é um fato conhecido, mas o filme Quase dois irmãos, de 2004, leva essa revelação às portas de uma epifania. Os presentes que os reis magos da diretora Lucia Murat nos trazem são o ouro (ou a grana que define papéis sociais insolúveis e incomensuráveis), o incenso (a fumaça do fogo generalizado que queima as gerações desde o golpe de 64) e a mirra, o antisséptico que pela lucidez lava a ferida aberta que jamais cicatriza. Porque esse filme tão premiado e incensado retirou-se para um lugar oculto, como se carregasse um estigma? Será porque revela, vertendo do contato com a esquerda, a origem das grandes quadrilhas, que hoje tem no PCC seu maior destaque? Será porque é mais uma obra que mostra a traição de alguns ex-combatentes, que enriqueceram depois de sobreviver ao cárcere e à tortura? Será porque Cidade de Deus fez sombra a esse documentário em forma de ficção, filmado de maneira crua e composto por um quebra-cabeças circular, que nos traz de volta o que queríamos esquecer e nos leva adiante como um acidente de trem?
GUERRILHA - O filme tem site razoável, com todas as informações mais importantes. O intertexto nos liberta da necessidade dos tradicionais serviços. Sempre impliquei com o enorme espaço ocupado pelos serviços. Houve uma época em que isso era um pesadelo. Havia uma febre de serviços, como se o jornalismo fosse o serviçal dos leitores e servisse de vitrina apenas para o que produz mercadoria. Não nos interessa a mercadoria, a não ser como reflexão. O que pega é o que pseudo-marxismo e os lobos do capital dizem que não existe, ou seja, o humano em toda sua escassez e divindade. Fiquei impressionado que jamais tinha ouvido falar nesse filme, que economiza décadas de perguntas por trazer de maneira explícita o resultado da militarização da sociedade imposta pelo golpe de 64. Lembro até hoje o dia em que insinuaram para eu entrar na guerrilha. Me mostraram um revólver, que estava escondido no sótão. Morava numa república, na época, e declinei do convite.
EXEMPLO - Disse que tinha sido criado entre armas, já que meu pai fora da Brigada Militar e era caçador. Também por um tempo comercializava armas de caça, até que foi denunciado por um concorrente, em pleno arbítrio nas mãos dos militares. Alguém que tinha assinado um manifesto pó-Prestes nos anos 40 não poderia vender armas na fronteira, sob pena de o regime cair como um castelo de cartas. Imagino seu Ortiz dando uma tosse mais abrupta e fazendo desmoronar todo o horror da repressão, aquela cortina de tristeza que baixou sobre nós e ainda não nos abandonou. Seria o máximo. Bastava um peido do Brizola no Uruguai para que a direita ficasse de prontidão. Uma tosse do seu Ortiz teria efeito parecido. Mas ao mesmo tempo em que ele me ensinou a atirar, me deu o exemplo de alguém que tem armas e não é irresponsável. Nunca houve acidente com tiro na minha casa de Uruguaiana. Tínhamos um arsenal para fazer uma revolução, mas dali só saiam debates, palavras, gargalhadas e choro, quando a conversa atingia a sensibilidade de alguém. Mas nunca guerra. A guerra se fez contra nós e não a confrontamos como os guerrilheiros ou os criminosos.
TIROTEIO - Decidimos ficar excluídos desse tiroteio e estamos aqui, às portas de uma nova eleição, vendo a direita fazer de tudo para continuar sua obra de destruição do Brasil. Quero que os heróis da nossa humanidade precária se levantem, dêem aquela olhada-fuzil que os mais velhos davam contra nossos desaforos quando crianças. Quero que se levantem todos ao mesmo tempo e tussam juntos, para varrer o trágico veludo que encheu nossa vida de sombras. Traga de volta o sol, meu pai, e contigo todo um contingente de camaradas, rindo do que fizeram um pouco antes, com os cartuchos vazios, os cães exaustos e as perdizes minguadas de um safári que não pegou quase nada, mas serviu para fazer de cada amigo uma peça sagrada desse convívio que perdemos. Somos hoje reféns do nosso medo. Não possuímos mais o dom dos guerreiros que se impuseram pela moral e que nos velavam o sono quando sonhávamos com a vitória.
RETORNO - Imagem de hoje com Caco Ciocler e Flavio Bauraqui em " Quase dois irmãos" : vítimas e algozes.
25 de maio de 2006
BRASIL DESPEDAÇADO
A tragédia do Brasil é que a mediocridade clonou o talento, o bandido assumiu o papel de legislador, a pequenez substituiu o carisma, o vazio faz pose de estadista e todas as qualidades humanas que sobreviveram emigraram, ficando o país na mais completa solidão, impregnada por um clima de funeral em ritmo de festa, de alegrias forçadas, de patriotismo de eventos. Viver se transformou numa campanha de marketing e a liberdade, esse vôo rumo às estrelas, virou uma roda-pião de frustrações e vingança. Tal qual nesse filme soberbo (mais um) de Walter Salles, Abril Despedaçado, que reporta o sol como pesadelo, a luz como redenção, o ódio como intensidade do impasse e o sair porta afora como único caminho possível para a existência real.
LUTA - Ficar e entregar-se ao conflito seria capitular. Desistir da luta e assumir uma contradição mais vasta (ser feliz sabendo que vai morrer um dia), é a maneira de encontrar a salvação. Diante do mar depois do seu gesto de transfiguração, Rodrigo Santoro (esse ator raro, que nos surpreende desde o Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky) enxerga uma possibilidade: o de se misturar ao que vê, infinidade de sonhos que fluem pelo horizonte de promessas. Na terra nua, no povoado em ruínas, no velório em chamas, nos rostos crispados, nasce o riso, fruto da fraternidade, e o amor desencadeia a chuva. E ainda teve gente que falou mal do filme, que o achou pesado e arrastado. Querem certamente aquela corridinha americana em que tudo explode atrás. Querem ação! Não sabem que a verdadeira ação está no olhar e que tudo o mais é alienação. Se te enganaram com câmaras espertas, perseguições de automóvel, cortes apressados e expressões cool, você já sabe: estão te fazendo uma cama de gato, te levando para lugar nenhum.
IMPECÁVEL - Mas experimente seguir a narrativa do Menino Pacu, interpretado pelo menino de teatro de rua Ravi Ramos Lacerda. E veja o que ele faz com um chapéu e um pano negro de luto familiar. Siga suas histórias, que inventa a partir de um livro presenteado por Clara, interpretada por Flávia Marco Antonio, que engole fogo, rodopia no ar e veio do circo. Siga o círculo do Pai, interpretado por José Dumond, que faz parte da linhagem de grandes atores brasileiros. E acompanhe a dor da Mãe, interpretada por Rita Assemany, premiada atriz de teatro da Bahia. E ria com Salustiano, o que nasceu morto, interpretado por Luiz Carlos Vasconcelos, o Drausio Varella de Carandiru, que conquistou o Brasil com sua performance circense. Abrace o cinema brasileiro, não para prestigiá-lo, mas aprender um pouco sobre a sétima arte, para se aprofundar em Brasil, para entender que a vida pode sair da percepção viciada de uma realidade que nos mata. Viaje com Walter Salles, essa bênção do cinema, essa inteligência superior, esse texto impecável, essa imagem que fica impregnada como cheiro de terra em dia de chuva. E não escute os medíocres, não se deixe enredar pelas artimanhas do nada e descubra que a emoção nos leva para outra verdade e é de lá que precisamos olhar o país despedaçado.
24 de maio de 2006
A SÍNDROME DE ESTOCOLMO
A demonstração de força dos criminosos em São Paulo provocou pânico nas pessoas normais e admiração nas anormais. Há uma onda de paixão pelos líderes do movimento. Um deles foi chamado de galanteador pela Folha. Comentários do Comunique-se referem-se a ele como senhor. Arnaldo Jabor meteu sua colher torta para reforçar suas teses. Disse que o crime é globalizado, ágil, tecnológico e rico, o que é uma declaração de amor ao que nos ameaça. Jabor contrapôs esses maravilhosos criminosos ao estado pesadão e burocrático. O recado é claro, como a regra: esse estado pesado, herança, óbvio, da Era Vargas (quem mais seria o culpado?) não se modernizou como o crime, por isso paga agora o pato. Muitos reféns do presidente Lula, que ao trair as convicções e aspirações dos militantes deixou todos numa armadilha, vão votar nele de novo (desprezando assim a argumentação alheia e, o que é pior, tentando nos convencer que isso é muito natural). É pura Síndrome de Estocolmo, aquele vício psicológico que faz o refém se apaixonar pelo seu seqüestrador. Almodóvar abordou esse tema em Atame e inverteu o enfoque em Fale com ela, o primeiro de uma série de filmes que começo a ver, já que a redação foi brindada com um aparelho de dvd. A sétima arte voltou ao Diário da Fonte.
MATANÇA - A ressurreição dos matadores profissionais, que encheram as ruas de cadáveres, vingando-se nos inocentes (única explicação para não liberar a lista de mortos) da surra que levaram do crime, é típico dessa covardia que está no poder há 42 anos. Eles contam com nossa omissão e ainda gargalham da tesão que despertam na pseudo-intelectualia. Esta, usa a matança para justificar o ódio ao governo paulista, que está na campanha presidencial. Isso tudo é muito nojento. Perdemos a pista do humano. A única boa notícia é que o trabalhismo vai fechar com a presidência Simon, o que me dá razão ao fazer a escolha na primeira hora. Tinha lamentado que não votaria no trabalhismo, pois agora, se tudo dar certo, votarei. Há uma comoção nacional favorável a Simon, um nome à altura para resolver esse embrulho. Precisamos nos livrar desse circulo vicioso, essa república café com leite (petucanato de que nos fala Gilberto Vasconcellos). Precisamos virar esse jogo, para que nos respeitem. Pois estão tentando nos envolver com suas melífluas observações. Tem gente que estava próxima e que tentou me enredar na sua indiferença pelo que penso e defendo publicamente. Não se dão conta que estão prisioneiros, apaixonados pelo algoz. Adoram o traidor e querem espalhar o vírus para quem está perto e confiava neles. Meu recado é direto: afastem-se. Estou em pé de guerra. Não confunda meu abraço com capitulação.
SALVAÇÃO - Achei Fale com ela um filme e tanto. Pelas imagens, pelo ritmo, pela história trágica que se desenrola em sussurros. Pela música, a maioria brasileira, com uma performance inesquecível de Caetano Veloso. A história é conhecida: dois homens cruzam com o destino de duas mulheres que ficam em coma. A salvação virá da fé, não da ciência. Acreditar que a pessoa deitada escuta, sente e pensa poderá salvá-la. O enfermeiro responsável pela mulher prisioneira se apaixona por ela e a desperta com um filho, ato considerado crime pelos costumes oficiais. O jornalista que não sabia que a mulher reatara com antigo amor e ainda imaginava estar ligado a ela, não acredita que falar com ela mude alguma coisa. A falta de fé condena seu amor à morte. A falta de confiança condena seu amigo enfermeiro à morte. A tragédia é exposta em cenas fortíssimas, que deságuam na possibilidade de um novo amor. Gosto de Almodóvar, com todos os seus excessos. Alguns me incomodam, mas no geral é um cineasta forte e importante.
RETORNO - 1. A foto é da personagem Alicia, a bailarina que ressuscitou ao ter um filho, no filme de Almodóvar. 2. O esforço da ditadura para impedir a candidatura Simon dá bem a dimensão da importância do Senador nesta quadra decisiva da vida nacional.Sarney luta pela sua obra, a ditadura civil, da qual é representante máximo e fundador. E Renan Calheiros...não era aquele sujeito asqueroso envolvido com as barbaridades do Collor, ou estou enganado?
23 de maio de 2006
O HÁBITO E A ESPERTEZA
Depois da confronto entre o exército organizado do crime e a polícia descosturada e dividida em São Paulo, qualquer chance de voto do sr. Alckmin terá de ir forçosamente por água abaixo. Não se sustenta também qualquer simpatia para os desabafos do sr. Cláudio Lembo, que usou a velha artimanha de atacar as elites, como se à elite não pertencesse, juntos com os veículos que celebraram sua falsa autenticidade. Votar em Pedro Simon ainda é uma impossibilidade, pois os caciques horrorosos do PMDB é que mandam no pedaço e tudo farão para fechar com Lula. E votar novamente em Lula, depois da seqüência de erros do seu governo, é insistir no mesmo crime e fechar com suas traições. Esse é o balanço. Ontem conversei com alguém que vai cometer de novo o voto ao atual presidente. O hábito imprime o raciocínio: quem é culpado pela corrupção é o José Dirceu; o governo precisava fazer caixa para a campanha; o que há com a Bolívia e a Venezuela é pura esperteza política do Lula; o Brasil está crescendo!; existem menos pobres no país! Meu Deus, somos em política o que somos em cultura. Estamos fritos.
PALAVRAS - Há um travo amargo de campanha na nossa conversa. É o momento de fazermos inimigos. As amizades somem, os ressentimentos afloram. O que levas a vida inteira para construir é demolido em poucos meses. Há, ao mesmo tempo, obsessões e preguiça nas mentes e corpos. Por que se meter nessa arapuca? No momento em que recebemos ligações de criminosos querendo levantar nossos dados, em que a violência se espalha por todas as relações humanas, em que todos empinam o peito como se fossem infalíveis e corretíssimos; em que obrigam a mentir no trabalho porque é assim e sempre será; em que vês a enormidade dessa armadilha, então pensamos em cair de banda, nos encerrar em casa e calar-se para sempre. Será um alívio para todos, seu grande boquirroto. Vê se te fecha, como diziam os adultos para a gurizada da minha geração. Essa proibição nos levou às ruas para berrar palavras de ordem. Abaixo a ditadura e fora o imperialismo era a melhor delas. Ainda está valendo.
IDIOTIA - Existe uma espécie de loucura permanente no país que se expressa nos programas de televisão aberta. A qualquer hora do dia ou da noite há um monte de imbecis, normalmente seminus ou de roupinhas coladas, dançando a berrando freneticamente e agitando lenços. Há também especialistas em inutilidades a proferir sua oratória nauseabunda em todos os programas. Quem elegeu essa súcia como porta-vozes da correção? Quem disse que a população suporta a livre expressão da bandalheira explícita em cima de palcos de idiotia? Vejam o Gilberto Barros. Numa demonstração de uma banda cover do Credence (o Brasil adora macaquear, já avisou Sergio Buarque de Holanda há quase um século), lá estava ele com seu terno marronzinho, seu bigode, seu bem fornido entusiasmo, dizendo que um dia ele foi assim, livre, mas agora... Ou seja, quem desistiu assumiu o posto chave de ensinar idiotices para o povo, demonstrar que somos um bando de macacos, impedir que o Brasil se manifeste em toda a sua grandeza.
BARBIE - Vejam a carinha pó de arroz do Gugu Liberato, com sua pretensa seriedade, ele que é um apelador-mór; tentem suportar o Faustão berrando horas em horário nobre, justificando tudo o que sua emissora faz, chamando o telespectador de galera, como se as galés fosse nosso único destino; tentem entender o sofá mofado de Hebe Camargo; e o qwue fazer com a vontade que existe de excluir aquela cara de porquinho do Luciano Huck, oferecendo mulheres peladas para a audiência? E a porção mulher das posições corretas, a Angélica, enchendo o saco de todo mundo com seu perfil de Barbie temporã? Vamos confrontar essas pessoas, denunciar quem os patrocina, impedir que venham à tona. Vamos derrubá-los dos seus fétidos pedestais.
RETORNO - A foto de Marcelo Min no largo São Bento entra aqui pela excelência do trabalho do Olhar Absoluto. Mas é um abuso de minha parte, pois Min achou corajosa a entrevista de Lembo a Monica Bergamo. Vejam tudo no Fotogarrafa.
20 de maio de 2006
PEDRO SIMON: REFUNDAR A REPÚBLICA
No site do senador Pedro Simon, pode ser visto e ouvido seu discurso de dez minutos sobre a obrigatoriedade de o PMDB apresentar candidatura própria, contrariando assim os caciques José Sarney e Renan Calheiros, que são achincalhados nesta manifestação que poderá mudar o rumo da campanha eleitoral, atualmente às voltas com as duas faces da mesma moeda da ditadura civil. É uma aula de política, não só pelo conteúdo, em que prega a união nacional a favor de um projeto de salvação do país, mas pelo tom da voz, pela postura, pela veemência, pela emoção que transmite e pelo compromisso de não fazer dessa candidatura própria uma ponte para o enriquecimento ilícito. É sintomático que o senador de 76 anos use a sigla MDB, como a resgatar as origens de uma luta, que se desvirtuou com a morte de Tancredo e a presidência de Sarney, o fundador do atual regime. Simon prega a união do partido, mas joga fora os caciques que hoje são responsáveis por inúmeros cargos deste governo traidor, que pelas evidências (e a conclusão do Procurador Geral da República) no mínimo deixou roubar.
ADVERSÁRIOS - Votar novamente em Lula é expressão máxima de obscurantismo. Você insiste não só em reeleger o traidor, mas ainda me convencer que ele não é a bisca que é? Então somos adversários, não vou compactuar com isso. Você insiste que Lula é de esquerda ou representa a esquerda, quando ele mesmo admitiu que não faz parte dessa corrente? Então você é tão traidor quanto o Lula. Você acha que Lula não sabia de nada, do seu entorno que veio com ele do PT e que tudo não passa de armação da direita e da mídia comprada? Então você não está raciocinando, não enxerga o que é fato e o que é manipulação e usa o ódio dos reacionários para justificar tudo o que este governo representa: esvaziamento das lutas populares, aprofundamento da crise institucional e econômica. A direita tem culpa hoje e sempre desse quadro? Claro que sim, mas a direita não tem compromisso com o país, apenas com seus interesses e ideologia. Lula tinha um compromisso e traiu. Manteve anos um ministro na Fazenda que sufocou a nação e foi expulso como um meliante qualquer. Até hoje tem como conselheiro uma pessoa que foi expulsa do Congresso e foi acusada de chefe de quadrilha.
GOVERNO - Eu já me decidi. Vou votar em Pedro Simon, mesmo que ele faça parte desse partido que foi um desastre no governo Sarney. Votarei em Simon não só por sua biografia, mas porque ele teve noção histórica de virar o jogo numa hora trágica como esta. Não há como duvidar da sua sinceridade e de sua análise. Ele garantiu, e decidi acreditar, que o candidato que sair da convenção (só se for ele; Itamar e Garotinho não servem) não vai compactuar com o arrocho da atual política econômica e da dívida externa. É impressionante como arregar as calças para os gringos é uma espécie de consenso e dignidade intelectual entre muitos jornalistas. Eles não só acreditam nisso, nessa coisa irreversível, como pregam. Passaram décadas apoiando desde Roberto Campos a Pedro Malan, desde Delfim Netto a Palocci, que fazem parte da mesma súcia de entreguistas e vendilhões. Por que não vou votar nos partidos trabalhistas? Porque o PTB está abaixo da crítica e o PDT é de uma modorra sem fim. É capaz de colocar esse mosca morta do Cristóvão Buarque, egresso do PT, para defender educação (é a mesma tese de Lula, pregando estudos no meio do tiroteio). Educação não se prega, se exerce. Educação não é panacéia. Solução é governo. E com Simon, teremos governo.
RESPOSTA - Sei, vou votar em Simon só porque ele é gaúcho. Só, não. Mas o Rio Grande do Sul é uma escola política e seus quadros formados no estado tem tradicionalmente um senso de responsabilidade diante do destino da nação. Viemos de longe e fomos formados na guerra. Meu pai lutou em duas guerras, minha mãe, muito menina, se escondia em baixo da cama para escapar das balas que pipocavam na janela. Um povo criado na luta não vai ficar de braços cruzados diante da incúria. Grande parte dele foi enganado e ludibriado por esse traidor que está no poder fazendo asneira e sendo tratado a pontapés por seus amiguinhos cucarachos. Pelo menos isso: nós, os gaúchos, sabemos o que é um sujeito ambicioso na vizinhança do continente. Lutamos séculos contra eles. Os gaúchos também produziram os piores ditadores do Brasil, de Médici a Geisel. Têm uma dívida com a nação soberana. Simon é a resposta. Penso na sobrevivência do país.
RETORNO - 1. Enviei mensagem ao senador Pedro Simon dizendo que votarei nele. Não é grande coisa, pois minha influência política é zero. Mas exerço a cidadania e insisto que vivemos numa ditadura, a não ser que coloquemos na presidência a pessoa certa. Não sou, nunca fui e nem serei jamais do PMDB, esse partido que tem Quércia em seus quadros. Mas acredito que a força institucional de um presidente pautado pela correção poderá devolver a paz e a grandeza ao país. 2. Claudio Lembo colocou a boca no trombone na coluna social da Folha. Está sendo muito festejado. Foi tão conivente quanto Alckmin nesse goiverno paulista que se rendeu ao crime. 3. Parece que José Genoíno esta de volta, reclamando que o colocaram no limbo. Esqueceu os motivos, de que é suspeito de fazer parte de um sistema de desvio de dinheiro. Quanta injustiça, não é mesmo? E eu, que votei em Genoíno e Lula. E também um dia em Fleury e Quércia. Votei no cabresto, votei útil. Agora votarei consciente. A não ser que o candidato do PMDB seja outro. Aí vou reavaliar meu voto. 4. Quer dizer que agora o Diário da Fonte pode ser usado como moeda política? Não, não pode. O que escrevo aqui é uma posição contra a ditadura, representada por Lula e Alckmin. No caso, a ditadura das chapas eleitorais viciadas, que não oferecem uma solução. Simon propõe uma saída: um governo sem os vícios do fisiologismo e sem a política econômica de arrocho. E sem os equívocos do PMDB de Sarney. Minhas palavras não são a favor do PMDB, mas de uma candidatura que pode resolver o impasse gerado pela ditadura. Não se deve usar o texto de um homem partido. Apenas considerá-lo um exercício livre de um cidadão exausto. 5. Simon nasceu em 1930, quando foi fundado o Brasil Soberano. Tinha 34 anos quando esse projeto foi abortado. Aos 76, Simon tem seu momento decisivo. Nessa hora, ele não pode ficar só no que prega e assume.
19 de maio de 2006
A NAÇÃO EM PEDAÇOS
O Brasil é composto de inúmeros pedaços que não formam um todo, uma unidade. Essas postas, para comparar às partes de peixes prontos para a fritura, não se comunicam, antes se expressam corporativamente, ou seja, cada nicho tem uma linguagem própria, que exclui todas as outras. A massa dos policiais fala um dialeto, a cúpula da polícia outro. O governo do Estado está voltado para si mesmo (o governo, não o estado), e não se entende com Brasília. Os partidos até podem se unir em acordos em votações e eleições, mas estão irremediavelmente separados. A mídia tem jargão próprio e finge que faz intermediação desses códigos, antes impõe o seu. A imagem que cada fonte quer passar para os outros públicos é a da fofura infinita. São tão corretos em suas lógicas que gostam de convidar a massa à reflexão. Convidam para pensar, como se produzir pensamento não fizesse parte da criatura . No fundo, querem manipular a cabeça alheia, já que estão certos de uma asneira, o de serem formadores de opinião. Ninguém forma opinião. Cada indivíduo desta nação em pedaços tem sua própria certeza. É por isso que, ou se diz obrigatoriamente "com certeza", ou todas as frases começam com uma negativa. Você diz: hoje o dia está bonito. Ao que replicam: não, mas dizem que chove à tarde.
BANCO - A expressão da moda é a execrável "presta atenção". Como são indivíduos inteiros em sua natureza de pedaço único, cada um acha que deve chamar o Outro à compostura de se alinhar aos seus propósitos. A verdade é que ninguém presta atenção, já que estão todos ocupados em chamar os outros para esse encargo. Mas toda essa confusão tem uma razão de ser. Começa lá por cima, em Washington. Para arrancar muitos bilhões de dólares do suor da população, o Consenso de Washington precisou da corrupção. Pagar essa fortuna para os gringos exige que não exista ética por aqui. Se você está no poder e paga religiosamente uma dívida contraída por governos corruptos, é que você faz parte da curriola (os juros são como o pagamento pela proteção da máfia). O pedaço do butim que sobra do pagamento dos juros da dívida externa é disputado pelas várias corporações. Quem tem levado a melhor são os bancos e seus lucros fabulosos. É emocionante ver Kaká, futuro hexacampeão do mundo, sorrir para você abrir conta no bancaço estrangeiro. É sintomático: na próxima Copa, o Brasil (Ricardinho e Rogério Ceni) está no banco. Quem é titular são os clubes europeus. Por isso temos Renato, Fred e Juan, e não temos Alex. O grande e genial craque está na Turquia. Ora, a Turquia...
CONVITE - Como todos precisam pegar uma parte da bufunfa pública, todos sentam em poltronas confortáveis e te convidam à reflexão. Levam anos para colocar bloqueio nos celulares nos presídios, e assim mesmo, quando fazem isso, não incluem o cárcere do chefão. Os motivos estão na cara, nem precisa mencionar. Aí a polícia leva uma tunda da bandidagem, que de repente pára de atacar depois de uma coincidência, o encontro com o líder preso. Quando a poeira baixa, a matança toma proporções de catástrofe. A situação é muito grave para ficar nas mãos só da polícia. Dizem as autoridades que a presença do Exército seria muito pior, pois as Forças Armadas são treinadas para aniquilar o inimigo, com pesadas conseqüências. É que não levam em conta o que significa Exército na rua numa guerra civil urbana. Imaginamos que o Exército tenha eficiente serviço de inteligência, saiba reprimir os ataques sem massacrar a população (ou é isso que está acontecendo no Haiti?). Chamar o Exército provoca traumas insolúveis. É que o Brasil em pedaços não cuidou disso também, o de incluir a farda vede oliva na grave crise nacional. O perigo são as vivandeiras de quartel, que sempre apelam para golpe de estado. O problema é que vivemos um clima de golpe, com a campanha eleitoral se servindo do massacre.
HORROR - Adeus, Brasil. Te cortaram em postas e te colocaram no azeite quente. Não querem solucionar nada, pois estão envolvidos até o osso no partilhamento do butim. Vivemos o falecimento do Estado de Direito desde abril de 1964. A Constituição frankestein de 1988 só é cumprida no que interessa, no que não interessa é ignorada. As armas estão no caminho de casa. E William Bonner aproveita a tragédia para falar ao vivo, vejam só, logo em frente ao complexo viário jornalista Roberto Marinho. Veio trazer para a cidade a solidariedade da rede Globo, disse ele. Ah, bom. O horror precisa desse tipo de manifestaçãp corporativa.
RETORNO - Imagem de hoje: mais uma foto de Helcio Toth, "Campinho de Itaguá". O jogo de várzea transformado em arte.
18 de maio de 2006
LICENÇA PARA MATAR
Todos agora podem matar. O velho que foi deixado pela jovem namorada pode dar um tiro nela pelas costas e outro na cabeça. Os criminosos soltos matam policiais no trabalho e na folga. Os policiais matam todo tipo de suspeito e não divulgam o nome dos mortos. O falso empresário com medo de perder a teta nos serviços terceirizados da prefeitura manda matar o prefeito. As famílias se eliminam mutuamente: marido acerta a ex-esposa, o neto adolescente escolhe a avó, o padrasto se atira sobre os filhos. Você precisa de uma gentileza no trânsito? O sujeito vê a chance de te eliminar e acelera em cima do teu carro. O ônibus não desvia do garoto que está na pista, que não possui acostamento. Que interessa se a vítima está usando um espaço que lhe foi negado? O motorista joga cem toneladas em cima do pedestre. O racha mata em série. A estrada não duplicada mata os habitantes que moram ao longo do caminho. Os assaltantes matam na hora de roubar e se matam na hora de dividir o butim. Há incentivo por todos os lados: a corrupção, os vídeo-games, toda indústria áudio-visual. Os filmes dizem: matar é bom e é justo. Quem resiste a um agente britânico que tem licença para matar? A resposta é Jean Charles Menezes, um assunto que também foi assassinado, especialmente depois que o Brasil tomou chá com Queen Elizabeth.
HISTERIA - Mata-se com uma expressão, um comentário. Coloque na capa da grande revista semanal o evangélico pintado de dito-cujo para feri-lo mortalmente em sua fé e sua biografia. Exponha uma conta inexistente do presidente no Exterior para aumentar a histeria em cima do governo. Minta que não houve acordo com bandido, na maior cara de pau, como se todos fossem uns tratantes. Engula a declaração do líder da gang de que isso foi pouco, pode ser muito pior. Saia correndo como Mel Gibson em Maquina Mortífera antes de o cenário explodir. Deixe atrás de si um rastro de fogo, destruição e morte, mas não esqueça de olhar fixamente a câmara com teu olhar sampacu, representação da indiferença absoluta. Permaneça bem sentado enquanto a idosa cai pelas tabelas no corredor. Ou levantes-se acintosamente para dar lugar a alguém que não precisa, só para humilhá-lo (não esqueça de jogar em cima da vítima aquele sorrisinho "jovem"). Abra bem as pernas para ocupar o espaço do vizinho de banco. Fale sem parar todas as abobrinhas que te ocorrerem sem prestar atenção na irritação alheia. Faça o que quiser contigo, como aquela criança que se prostitui e diz que ninguém tem nada com isso.
CARIDADE - Mas já que optaste por este caminho, então prepare-se: como você quer a eliminação total do Outro, fique atento porque vão te pegar. Pois fazes parte de uma corrente infinita de horror. És o Outro que não suportas. O sujeito te olhou feio? Mate-o. Não conseguiste teu objetivo? Alguém é culpado e merece morrer. És o alvo. Não aposte na gentileza, sinônimo de fraqueza. Não seja solidário, a não ser que ganhes uma boa grana com isso. Como não há solidariedade, o amor ao próximo virou um grande negócio. Sempre achei a frase dos espíritas " fora da caridade não há salvação um grande exagero". Hoje não acho mais. Não falo aqui da caridade que tentar tapar o sol com a peneira, o falso bem se manifestando numa sociedade perversa de classes. Mas a caridade que gosta de conviver com o próximo e acha que cada um faz pare não só de uma nação, cidade ou comunidade, mas de uma poderosa sintonia entre criaturas. Perdemos a emoção da convivência. É só começar a falar que as pessoas bocejam. Ou completam o que acham que querias dizer. Ou avisam: isso você já falou. Sim, falei, mas cada momento é diferente. Vejam as dunas de David Lean: nunca são as mesmas. O vento sempre sopra de uma fonte invisível e diversa.
RETORNO - 1. Meu conto " Deve ser os nervos" foi publicado hoje no espaço Literário do Comunique-se. 2. Miguel Ramos cria a comunidade Diário da Fonte no Orkut. Participe, comente, opine!
16 de maio de 2006
AQUI, SÃO PAULO: AÇÃO E DIAGNÓSTICO
A análise sobre o desfecho da crise em Sampa está brilhantemente analisada e de maneira sucinta neste blog. No blog do Noblat, coloquei que a democracia não falhou na área de segurança simplesmente porque ainda estamos na ditadura ? a situação apenas ficou pior. O que temos em tempos agudos, quando a coisa fica feia, é o diagnóstico boquirroto veiculado pela mídia, que acaba sempre em promessa de mais verbas, reuniões às pressas, e declarações de otoridades fazendo cara feia. O fato é que o Brasil, atingido mortalmente na sua capital, está refém da bandidagem. Eles são o poder e poderão atacar novamente a qualquer hora. A grande piada foram as manifestações de Heloisa Helena ( o ex-petismo agora psoliano em plena forma) dizendo que o problema é social, e a do presidente, que falou que o problema é de educação (alé, é claro, do governador de São Paulo, que chamou os bandidos de "traidores"). É impressionante como os quadros políticos que emergiram das lutas populares assumiram uma idiotia ainda mais profunda dos que foram combatidos por elas. Conseguem ser piores do que a direita. Há ainda a pseudo-sociologia que fala em crise do capitalismo, como se capitalismo tivéssemos.
BARBÁRIE - Temos pré-capitalismo, barbárie pura. O problema é anti-social e o que falta não é educação, é governo. O que propôs o governo? Colocar em ação sua nova guarda pretoriana, a Força Nacional. É a reconstituição de um anacronismo: a velha Guarda Nacional, criada na época da época da Regência de Feijó, que dela se valia para se contrapor às Forças Armadas. Ficamos sabendo que Lula tem à sua disposição uma força composta pela chamada elite das polícias, um contingente de sete mil homens, para fazer intervenções nos estados. Se não houvesse o cessar fogo, ao que tudo indica promovido pelo acerto (como diz a Folha) entre governo estadual e a bandidagem, teríamos a chegança da guarda pretoriana salvadora da situação. É pura campanha presidencial. O assunto é para o Exército, que tem em sua doutrina o combate não só ao inimigo externo, mas ao interno - no caso, os assassinos, e não, como foi moda na época da mais dura repressão, os opositores do regime. Um estado sob o ataque do inimigo interno não deveria pedir intervenção federal, o governo federal deveria intervir de qualquer jeito. É o problema da federação, do partilhamento do país (para melhor entregá-lo): o fim da União, tão criticada como se fosse ditadura. A União é a soberania.
LIMBO - A ditadura, que se serviu dos militares de 1964 a 1985, tem como seu maior feito a desmoralização das Forças Armadas como agente político. Não aceitar de volta à vida política a presença militar é um acinte contra a força e um potencial explosivo. Em contrapartida, o Exército, posto no limbo, goza hoje de grande prestígio junto à população, como comprovam inúmeras pesquisas. Os soldados deveriam estar no primeiro minuto nas ruas de São Paulo, combatendo a guerra desencadeada pela incúria administrativa e política do sistema paulista de segurança. Não deveria pedir licença para entrar. Mas estamos numa "democracia", que, ao que tudo indica, negocia com bandidos e assim aprofunda o fosso entre a possibilidade de uma verdadeira democracia e a população escaldada pelos desmandos do coronelato civil. Estamos chegando perto de 1922. O que poderá acontecer com o país desarmado diante de tantos crimes? O impasse gera mais violência.
VINGANÇA - Enquanto os grandões arregam, a massa das polícias pagam o pato, enterrando seus mortos, enviuvando, chorando. E se vingando, como mostram os jornais. Para isso se fala tanto em democracia. Para enterrar a possibilidade de uma convivência pacífica, já que as instituições de mostram incapazes de reagir. Fartos de diagnóstico, aguardamos ação. Mas ela sempre vem de maneira errada.
RETORNO - A imagem de hoje é de autoria de Marcelo Min, que estava a postos no front, na Praça da República.
SÃO PAULO, CIDADE ETERNA
O que fizeram com São Paulo, a cidade da ação e do destino, fizeram como o país. Sugaram ao máximo a força da grande cidade, a que nos criou para a vida adulta, porque nos colocou contra a parede e também abriu as janelas para podermos viver. Décadas de indiferença e ganância transformaram a capital num pesadelo. Lembro momentos terríveis que vivi ali. O s saques de 1982, o grande black-out de 1985, as enchentes que me cercaram e impediram de chegar em casa por mais de uma vez. Lembro os momentos grandiosos e assustadores como a gigantesca manifestação da Praça da Sé em favor das Diretas-Já, em que me espremi pela multidão achando que dela não sairia inteiro. Lembro o corpo de Ayrton Senna passando diante da população em prantos. Ou a celebração de vitória de Lula no primeiro turno em 1989, na avenida Paulista, em que fui espectador mudo, pois sabia que ali o trabalhismo tinha perdido sua oportunidade histórica.
CORAGEM - Lembro, São Paulo, cada gota, cada passo, cada lufada de frio e calor que tuas ruas me proporcionaram em três décadas de convívio contigo. Agora que estás entregue à sanha assassina de governantes e bandidos, te vejo assustada, em pânico, tu que és a coragem feito cidade, tu que me recebeste depois de tanto exílio interno, quando cheguei a ti pensando em voltar logo. Mas me acolheste, São Paulo, me deste tudo o que tenho ou terei. Foi duro cruzar o tempo, passando pelo teu centro majestoso, tuas avenidas lotadas, tuas ruas incompreensíveis, teus bairros ocultos ou explícitos. Estive em cada pedaço de chão construído pelo Brasil em frangalhos. Vivi contigo o amor de um cidadão pelo lugar que o adotou. E nem posso te agradecer, São Paulo, porque és maior que todos nós e temos contigo uma dívida impagável que só contraímos com nossos pais ou com os camaradas de guerra. Não podemos te homenagear dizendo que te amamos, São Paulo, porque és gigante para tão pouco amor, o maior que podemos ter. Não cabes em nosso coração pequeno, cidade da minha vida. E agora que te enxergo longe como se nunca tivesse vivido aí sei o quanto dói ser teu e não poder fazer nada. Porque te destruíram, São Paulo e sobrevives porque és eterna, como toda cidade verdadeira.
SOLIDÃO - Nada seria se não tivesse contigo essa dívida, São Paulo. As pessoas que vieram de todo mundo e encontrei aí, nas tuas esquinas, restaurantes, praças, locais de trabalho. Elas me ensinaram tudo, eu que vim de longe, do deserto, das cidades fechadas e tão famosas mas nenhuma como tu, que pulsa em cada rosto, em cada corpo, em cada idéia. Apodreceram teus rios, pixaram tuas casas, incendiaram teus ônibus, mataram teus habitantes. O que mais querem de ti, São Paulo? Que continues dando o que eles adoram sugar, que continues atraindo a solidão dos ermos de toda a nação perdida e transforme essa tragédia numa edificação, num concerto, numa revoada de fogos e pássaros? Já deste tudo, São Paulo e agora restas aí, sobrevivente de ti mesmo, ainda viva, porque se o mar também morre, como queria Lorca, tu, cidade maior, ficarás. Vais permanecer como no verso de Maiakovski, cruzando os séculos como os aquedutos romanos. Porque este foi teu destino desde o início. Foste o oásis dos desterrados das praias, foste o porto em cima da serra que inventou o país que não conhecia seu interior.
PORTAL - És a porta para o Brasil soberano, cidade dos meus sonhos. És fábrica, ilusão, corte marcial, vôo de luz. Quando te vi pela primeira vez era julho, São Paulo, e do Pacaembu até o Paraíso andei a pé e vi tua cor, tua grandeza depositada em majestade. Quem viveu e vive contigo São Paulo, é teu filho, que vê em ti o regaço de um projeto ainda em andamento: o de sermos livres, porque nos ensinaste a liberdade, como um herói que enfrenta os canhões sem nenhuma lágrima, apenas com o sorriso dos que se vêem humanos, precários, escassos. Mas por isso mesmo, donos dessa violenta paixão por uma cidade que provou ser o Brasil capaz de gerar sua própria transcendência.
MONUMENTO - Sou teu, São Paulo, e quando te ferem, sangro, quando te destroem, tombo, e quando te reconhecem, exulto. Quem hoje te mata passará. E sobreviverás a nós, monumento do que somos de melhor, representação de nossas vidas que encontraram em ti o caminho mais duro, e por isso mesmo, o mais belo.
RETORNO - Foto majestosa de Sampa, por Marcelo Min.
14 de maio de 2006
NAVE DE OUTONO
Sempre espero que uma nave prateada surja por trás do morro e raspe o azul do céu. Depois me dou conta que a nuvem branca é a nave que aguardo. Há o mistério de ser vista assim, majestosa como escultura a se desdobrar lentamente, sendo acompanhada por fiapos de algodão, que dão o tom deste outono claro e frio. O mistério está sobre nossas cabeças e olhamos maio como um Deus em plena criação. Esta parte do território tem a grandeza das estações, ainda intactas, que mostram sua doçura quando não há vento nem chuva. O tempo bom aclara o corpo e mantém a esperança. Quando olhamos a terra de frente, sob o manto do silêncio, nos descolamos de todas as intervenções. O que chamam natureza é apenas a integridade do que somos. Por isso nos afastam dela, para que possamos ser manipulados num jogo mortal. Na rede estendida na varanda, sigo o dia em sua plenitude e avisto, quando as horas passam, no crepúsculo, o sol a pintar de roxo o horizonte, enquanto a abóboda que chama estrelas ainda invisíveis parece uma superfície lixada, areada, quase fosca. Aos poucos a lua cheia chega para iluminar a noite e noto que a felicidade é estar envolto no cobertor salpicado de luzes vivas, que se anuncia pelo som dos últimos pássaros em direção ao ninho.
PASSO - Não, meu amigo, não fazemos parte deste mundo. Basta cruzarmos o portal para ficarmos sós. Para onde foram aquelas notícias ruins, as sirenes violentas, o matraquear agônico? Somos de outra têmpera, nós que nos aproximamos tanto do fosso feito para nos engolir. Não, meu irmão, não viemos da mesma infância. Somos opostos, embora a nação nos costure. Basta uma pequena distração e eis que ficamos longe por mil anos. Não minha mãe, não te conheci e de ti guardo minha presença, meu passo pesado tão diverso do teu. Aquele teu passo miúdo, longilíneo, conduzido por um rosto pensativo, um vestido que descia até o sapato, o cabelo arrumado para o trabalho. Sim, minha mãe, sou o que ficou de ti e jamais te vi como deveria. Porque me contentei em ser sombra do mundo que teceste ao redor, como tua paciência de vime, tua alegoria de sonho, teu pragmatismo róseo, teu humor que afastava a tempestade. Não, companheiros de estrada, não temos nada em comum. Basta um fim de semana para nos apartar do que fingimos ser durante a época que nos deram para viver. E não adianta escrever sobre o que não entendemos. Nada nos salvará do naufrágio que é a voragem do destino, a nos acenar de cima de uma nuvem tardia, a que não soube se recolher junto com o sol.
MAPA - Para que serve a poesia se viver ficou impossível? Para que serve a certeza, se a presença mais sólida se transmuta em algo etéreo, e vira lembrança com a qual não sabemos lidar? As palavras estão soltas neste mundo sem lei. Jamais saberemos do que estamos realmente falando. E quando partirmos, quem decifrará a passagem terrena de criaturas desatentas como nós? Agora faça a mala, e consulte o mapa. Algo poderá acontecer que nos tire deste limbo. Talvez uma notícia oculta, como vésper, a estrela guia para onde navegaremos nossa ilusão. Palmilho a falta que nos faz o abraço, o entendimento mínimo e prevejo nova dispersão. Por um momento acreditamos estar próximos, mas nos vemos novamente no barco em alto mar, a olhar o céu estendido como um presságio. Quando anoitece em nossa nau à deriva, os fantasmas nos visitam. Eles sussurram na correnteza uma canção do exílio. Cantamos juntos, nós que batizamos este barco com um nome qualquer e dependemos da sorte para que alguém nos recolha.
LEME - Mas basta uma lufada mais forte para mantermos o prumo. Apertamos o leme e vemos a imagem da nossa vida deslocada do mundo cada vez mais feroz. Sim, minha mãe, ainda navego. Teu filho procura a aurora.
RETORNO - A imagem desta edição é mais uma do artista Helcio Toth.
13 de maio de 2006
NÃO ENTENDI, CLAUDIO LEMBO
O governador paulista Cláudio Lembo acusou os criminosos que atacaram a polícia do seu estado de "traidores". Ouvi essas sua declaração no noticiário da TV (acho que na Record, que está com um jornal muito bom). Quer dizer que eram aliados? Que existia um acordo? Só existe traição se houver um pacto. Não quero pensar o pior, mas os atentados extrapolam o que Carlos Nascimento disse no SBT, de que o crime organizado está disputando espaço com o poder público. Quando o Procurador Geral da Justiça detecta uma quadrilha no mensalão, quando dezenas de parlamentares estão envolvidos no escândalo das ambulâncias, quando o assassinato do prefeito Celso Daniel não é suficientemente esclarecido, quando há suspeitas de contas no Exterior de grandalhões em evidência, temo que haja algo maior: os dois lados se misturam, apesar das pessoas honestas que existem neles. Estamos entregues aos ratos. E devemos rezar para que os 26 mortos da polícia em São Paulo em 24 horas não sejam vítimas de algo ainda mais podre, que possa envolver a campanha presidencial. Tudo pode acontecer, quando está em jogo o gordo butim que é o Tesouro Nacional, enquanto o presidente se abraça de novo com o sr. Imorales, depois que este tungou o Brasil e ainda achincalhou o país fazendo as mais torpes acusações. Tudo nos leva de volta à direita, que esfrega as mãos de contente.
TUNGA - Converso no fumódromo do edifício onde trabalho com simpático bombeiro aposentado e ele me diz o seguinte: as lojas hoje são financeiras, os móveis e as roupas estão ali apenas de fachada. O que querem é cobrar juros da população, que fica dependurada no cartão. Ele me alertou que alguém que tem crédito de mil reais para torrar e só usa o mínimo, cinqüenta, acaba pagando o juro do total e não apenas do que tirou. Será verdade? Tudo pode acontecer quando estamos entregue à ditadura, que, pelo tranco que vai, acabará mudando novamente de mãos. Pois não é possível se instaurar uma democracia quando a paz pública é ameaçada por todos os cantos. Parece ser de propósito: provocar pânico no eleitorado, que tende a se refugiar em qualquer um que acene com um pouco de sossego. Não vai adiantar tanta propaganda oficial. Agora o governo celebra a venda de remédios a granel, e gasta uma nota preta para divulgar isso. Defina a coisa e cale a boca. As pessoas vão acabar sabendo, apenas indo na farmácia. Não precisa anunciar e posar de gestor dinâmico. O que precisamos é de garantia de que o celular não será usado na prisão. O governo paulista diz que isso sempre haverá, pois há inúmeras formas de se burlar o bloqueio. Ou seja, são incapazes de qualquer coisa. Estão de mãos atadas, esses sujeitos sem espírito público, explicitamente incompetentes, que nos dizem o tempo todo: vocês estão por conta, virem-se.
ANDRAJOS - Temos inflação em dólar e os salários diminuem de volume a cada ano que passa. A classe média acabou. O que dá para comprar com merreca? Nada, já que a bufunfa está toda na mão de quem detém o caminho para o desvio. Nunca chegamos ao capitalismo weberiano, aquele que em tese teria uma ética, nem ao fordiano, que produz para os operários poder comprar. Estamos em plena antropofagia global e as populações migram para servir de escravos em países ricos, que assim amealham mais fortunas, que acabam sendo investidas de volta aos países pobres, para arrancar daqui os recursos suados da população via política econômica muderna. Por que voltei a falar dessas coisas? Quando tudo parecia calmo, o Diário da Fonte abriu o berro. Hoje está tudo nos jornais. Decidi dar um tempo nessa linguagem em andrajos que representa a situação política econômica no país. Mas volto sempre ao tema, já que é mais desesperador ainda se calar.
ARCA - Mais do bombeiro aposentado: Estamos numa arca, diz ele, à deriva. Mas a arca ainda tinha um comandante, Noé, que era um cara responsável. Nem Noé temos. É assim que se sente a população. Ambiente propício para os falsos salvadores da pátria. Até quando, Brasil?
RETORNO - Nesta edição, foto magnífica de Regina Agrella: a realidade se decompõe diante de nós.
12 de maio de 2006
COMO NÃO TE AMAR?
Nei Duclós
Como não te amar, se a doçura ressuscita em ti?
Como adiar esta paixão, se já perdi mais de uma vida?
Como evitar o amanhecer da noite aflita?
Como não falar em poesia, se me devolves o sentido?
Por que tornar ao limbo o que nos falta de delírio?
Chamam romantismo o que é apenas viço,
quando assomas feita seda e vinho,
núcleo de um poder que me redime.
E basta um copo de cristal sobre o linho
para que esqueçamos tudo.
Entrego esse amor ao seu destino.
Não vou interferir com minha sina.
Confio no abrigo da pele nua.
Decido te cercar, mesmo contra o vento.
Atraio o extremo amor que se aproxima.
Como não te amar, vésper e orquídea,
Apesar da escuridão e do vazio?
Colho o fruto que cresceu oculto
e sinto a sede que me torna intruso
na tua sombra vazada de perfume.
Impossível este amor que não recuso,
esta danação na sintonia,
estas asas borradas pelo abismo.
RETORNO - Paisagem (1919), de Anita Malfatti, ilustra este poema inédito. Arte é uma opção para quem se sente exausto de tanta guerra.
11 de maio de 2006
RITO DE PASSAGEM
Nei Duclós
Talvez não tenha sido o AI-5, decretado no ano anterior, mas o horror às aulas de taquigrafia o motivo principal para eu abandonar as aulas do Curso de Jornalismo da Ufrgs. O tranco da nossa professora alemã assombrava aquela matéria que substituía os garranchos por hieróglifos, o que nos transformava em escravos egípcios ou no máximo em secretárias da ONU. Já era o segundo ano que eu enfrentava o rigor de uma prática cara à segunda Guerra Mundial. Tinha certeza de que seria novamente reprovado por não saber que dois pontinhos ao lado do arabesco significavam "segundo o senhor presidente da República".
Por isso, escudado nas mais justas desculpas, como o fato (real) de que os melhores professores tinham sido expulsos e restávamos sós depois da grande dispersão e derrota, aceitei o convite absurdo de um grupo de desocupados como eu. Partimos numa viagem suicida cruzando o pampa, em direção a um destino que decidimos ser Montevidéu, mas que apenas revelou a armadilha onde estávamos metidos. Antes, precisava passar pela minha cidade e pegar uma declaração paterna, já que eu era dimenor (naquela época completávamos 80 anos sem atingir a maioridade; hoje é diferente; com apenas um ano já é possível zapear do programa da Xuxa para o noticiário).
O álibi era a viagem encarada como a verdadeira iniciação do jornalista. Nem precisava mais ir às aulas que eu abandonara covardemente diante da perspectiva de me transformar no ghost-writer do Faraó. Moço, eu já esgrimia essa instituição nacional que é a meia verdade. A viagem patrocinada pelo emprego, com tudo em cima, era diferente daquele ermo onde nos metemos. Simplesmente fomos para a estrada com quase nada no bolso. Eu nem levava caneta e papel, que dirá gravador ou máquina fotográfica. Simplesmente arrastei pela estrada as congas, cholitas, coturnos ou não lembro mais que tipo de pisante me acompanhou naquele delírio.
A idéia era ir de carona, mas sabemos como aquele miolo do Rio Grande gosta de preservar as tradições. É possível encontrar até hoje o célebre slogan "aqui tem mumu", e as cidades ao longo da carreteira ostentam ainda aquele ar blasé de fog em meio à madrugada, entrevisto na parada de uma interminável viagem de trem rumo à fronteira. Não havia carona porque nenhum carro passava por ali. Precisei pegar alguns ônibus, já apartado do resto da turma, que fez sucesso em Santa Maria e resolvera ficar por lá. Até hoje a estadia do grupo no coração do estado gaúcho é lembrada por uma frase dita para a massa de meninas deslumbradas e rapazes desconfiados que rodearam a troupe por mais de uma semana: desculpem não vomitar na cara de vocês! dita pelo mais radical dos artistas de rua. A transgressão chegava ao solo sagrado da pátria pampeana, impulsionada pela nação em silêncio e o raspar de sabres.
Eu vagava só em meio aos quero-queros, preparando meu discurso para quando chegasse diante do último obstáculo: a licença para sumir do mapa. Ainda tinha esperança de reencontrar a turma já em Livramento, que, ao contrário de Uruguaiana, que guarda prudentes dois quilômetros de rio de distância, está abraçada aos castelhanos como irmã xipófaga. Eu já me sentia no Exterior, no momento em que atravessava a rua para mendigar um café. Faltava apenas esperar o circo chegar para então inaugurarmos a nossa operação Condor.
Como não podia gastar nada, já que a perspectiva era chegar até o Prata, fui dormir no lugar mais improvável para uma época hoje lembrada como de terror absoluto: a delegacia de polícia. Já tinha feito a experiência meses antes, em viagens paralelas que prepararam esta que agora tomava todo o meu tempo. Conseguia um lugar fora da cela, mas minha mordomia acabou quando mudou o plantão. O novo hospedeiro desconfiou do meu aspecto, e das mumunhas ditas em tom sério demais para alguém que estava simplesmente matando aula. E me encaminhou para o quartel mais próximo, onde eu deveria enfrentar o temível S-2.
Por sorte o capitão não estava e fui então convidado a sair da cidade. Você vai hoje, se amanhã te pegamos por aqui...E foi assim que juntei minha mochila e usei os últimos tostões (amealhadas na rápida estadia na casa paterna)para a volta. Era o fim da ilusão de que eu poderia escapar de uma vida normal e viver um romance de aventuras. Quixote sem ter lido livros suficientes para alimentar a loucura, saí de cena antes do primeiro moinho de vento. Trazia o ar atordoado de quem procurou algo impossível de achar, como o personagem de Paris, Texas, de Wim Wenders, mas sem a guitarra ao fundo. A solução era ficar na fila de espera dos poucos jornais que de vez em quando abriam alguma vaga.
Será que precisavam de um escriba que não fechava os punhos em cima da mesa, com os braços estendidos, desapertava a gravata e olhava para o infinito como faziam os jornalistas bem postos? Será que era possível confiar em alguém que não andava apressadamente na redação para sugerir dinamismo? Ou que não pedia o lanche logo que chegasse, sempre no final do expediente, só para impressionar o diretor ("veja, estou aqui desde cedo, nem tive tempo de al-mo-çar", diriam esses com a boca cheia de iogurte)? Será que precisavam de um ex-viajante, que por pouco não dançou numa cela qualquer e foi salvo pela própria falta de importância no concerto internacional das nações?
Não, não precisavam. As empresas já estavam ocupadas pela carranca que acabou empurrando a nata da geração para a imprensa alternativa. E quem tinha sido expulso do romantismo da primeira grande viagem e agora aportava nas redações em pânico, esse era o momento de iniciar uma longa jornada. Completamente inverossímil, como todas as outras. Porque tudo passou como se fosse apenas um instante, e nossa vida encontrou o caminho simplesmente fazendo as malas toda vez que o jornalismo nos pregava um novo susto.
Por vingança, inventei minha própria charada taquigráfica. Os garranchos eram a forma de ocultar a identidade perdida na época em que cruzei o pampa. Era um código, que nunca decifrei. Passo os olhos pelas folhas borradas de sinais e noto que a única forma de salvação foi guardar tudo na memória, não para usar no fechamento, mas para que o tempo me fizesse companhia, como um cavalo encilhado que jamais montamos.
RETORNO - 1. Texto publicado hoje no espaço Literário do Comunique-se. 2. Imagem de hoje: um clássico por-de-sol de Anderson Petroceli.
10 de maio de 2006
ROSA DOS VENTOS
Nei Duclós
Eu perdi aquele tempo:
Eu de branco em frente
ao manto azul
que o mar estende
Eu perdi aquele tempo:
Ponte entre a ilha
e o continente
Dias de súbitas gaivotas
Noites de lisérgico espanto
Eu me lembro: aquele tempo
tinha nas mãos a luz
de uma tormenta
Palavras de fina lâmina
Rosa dos ventos
Hoje estamos sós
De olhar vazio
como os gigantes
RETORNO - 1. Mais um poema do meu livro inédito "Partimos de Manhã". 2. Sem micro em casa, e com trabalho acumulado, só hoje vi que Urariano Mota enviou para Jesús Gómez publicar no La Insignia meu texto Plantão de aeroporto. 3. Espero resolver em breve os problemas técnicos, que estão interferindo no fluxo dos posts do DF. 3. Daniel Duclós publica no seu site do curso de Leras, o ensaio sobre um conto de Hemmingway, que arrancou nota nove nas aulas de inglês. 4. Bebeto Alves me faz uma homenagem no seu blog, comentando o post de ontem, sobre os homens partidos. Li e chorei.
9 de maio de 2006
UM TEMPO DE HOMENS PARTIDOS
Estão usando trechos do Diário da Fonte para atacar ou defender o governo Lula. Isso significa corromper as palavras. Meus ataques são contra a ditadura em suas faces distintas: governo, oposição tucana, PT, PSDB, pirataria financeira, mídia comprada. Desvirtuar o sentido é me colocar num ou noutro lado da campanha política de cartas marcadas. É um tempo de partido, disse Drummond, tempo de homens partidos. Numa das citações, me colocaram como uma pessoa íntegra. Não sou íntegro, sou um homem partido. Sobreviver a 42 anos de ditadura não recomenda a integridade de ninguém. Calei quando deveria falar. Permaneci quando deveria cair fora. Menti porque assim decidiram. Não matei nem roubei, mas isso não me torna íntegro. Portanto, me coloca fora da moeda corrente da campanha política. Não contem comigo, com meu nome a zelar, com minha biografia. Sou um homem partido, de um tempo em ruínas. Sou daquela espécie de gente citada por Fernando Pessoa quando escreveu: "arre! basta de semideuses!" No armário, meus esqueletos dançam a rumba.
Foi esse eterno bater no peito de pessoas que juraram inocência, coerência e integridade que nos colocou na atual arapuca. A ditadura está dentro de nós. Não suportamos a idéia de um espírito livre. O fato é que as pessoas entregaram a alma para um projeto, o governo petista, e agora fogem do barco do partido para refugiar-se no capitão que não afundou com o navio. Porque reconhecer no capitão do navio a fonte de toda a tragédia que nos abate seria jogar fora mais de uma vida. Foi uma luta de 30 anos, como escapar sem ficar ferido? As pessoas querem manter acesa a chama da grandeza que cultivaram em pessoas que não mereciam confiança. Lutaram com todas as forças, se expuseram. Agora que está escancarada toda a barbaridade cometida, resta uma esperança, como se dizia de Lacerda em 1964, na véspera do golpe.
Pois sente no chão e chore. Foi uma vida jogada fora. Perdemos mais essa chance. Assim como perdemos quando as diretas-já foram derrotadas no Congresso; quando Tancredo foi eleito de forma indireta; quando o vice que não assumira o cargo tornou-se o primeiro presidente civil; quando Brizola foi derrotado pelo Lula em 1989; quando FHC assumiu com sua biografia de homem íntegro e entregou o país para os bandidos de todas as nacionalidades; e finalmente quando o atual governo assumiu para empurrar de novo o eleitorado para a direita. Ou reconhecemos que perdemos e que não somos íntegros, ou continuaremos jogando o Brasil para a lama cada vez mais funda.
E o que é insuportável é o deboche. Na publicidade, os cretinos se revezam em tirar um sarro da cara do povo. Você que ganha o seu dinheirinho, você sim pode usar o desodorante, Ronaldinho não; você que está aí no sofá, não se mexa, dizem os apresentadores. E dê-lhe Chitãozinho e Chororó, micaretas, sangalões, sem falar no Carlito Marrón, que celebra o Brasil fazendo o rasqueado cucaracho em publicidade milionária. Pode tudo no país que perdeu a soberania, que é tratado como palerma em Foz do Iguaçu, que entrega todo seu suor na dívida externa, que só ganha do Haiti em crescimento, que manda ainda mais soldados para o Haiti. Esse pesadelo acabará quando nossa auto-estima se insurgir e disser: fui enganado porque me enganei e não quis reconhecer. Agora que estou de frente ao espelho e tenho mais de mil anos, chegou a hora.
Basta de chefões da máfia eslava vir aqui querer comprar a Varig; basta de usar uma carência extrema, a necessidade de ambulância, para enriquecer; basta de dizer que o chefe da quadrilha não pertence à quadrilha; basta de achar que a direita até que é mais elegante; basta de desistir diariamente da democracia que ainda virá; basta de dar guarida à ditadura que implantaram em nós.
Quero ser livre, meu pai. Basta ser livre um só dia para minha integridade emergir. Basta um só dia de liberdade para que suspendam o pelotão de fuzilamento.
RETORN - 1. A conhecida obra-prima de Goya é sobre o serviço feito pela Revolução Francesa na Espanha saqueada. Os franceses da Revolução eram homens íntegros.
8 de maio de 2006
VINÍCIUS DE MORAES: A SÍNTESE DA PAIXÃO MORENA
Nei Duclós
Soneto é paradoxo: apesar do destino traçado em quatro estrofes, se desdobra. Quer tocar o outro lado, sem perder a forma. Por isso seu capricho é repetir-se dizendo coisas novas. Território ideal para Vinícius de Moraes, poeta plural que no início de carreira possuía de herança apenas a letra morta de antigos sonetos: amada noturna, de carne branca ao luar, imutável e única. Clima de culpa, doença, desmaio, fastio. Um fardo romântico de palavras funcionando como um baú de ossos: pálida, fria, lúbrica, devoção.
Desarrumar esse espólio com algumas provocações foi sua grande emoção aos 24 anos. Em 1937 começou a rimar ciúme com estrume, bela com cadela (1). Procurou enfrentar o paradoxo: amor, se é fugaz, pode ser profundo? Se o presente é tudo, é possível ser eterno? São contradições que a modernidade do poeta não resolve na primeira tacada. Ao contrário: carregado pela tradição, Vinícius precisa optar dolorosamente.
Foi assim que, em 1938, do momento imóvel se fez o drama (2). É o fim de antigos laços, a vida torna-se uma aventura e o poeta despede-se, mais do que da amada, de toda uma velha poesia. É chegada a hora de não temer mais o fim da madrugada. Não é mais preciso fugir ou esconder-se. "Ela despertará sob o meu beijo/enquanto a treva se desfaz lá fora" (3). O dia ilumina o amor com todas as suas contradições. O que era pesado, triste, se revela complexo, estranho, real. Os gemidos, antes desolados, possuem agora um calor rude. "Amamos, vagamente surpreendidos/pelo ardor com que estamos unidos/Nós que andávamos sempre separados" (4).
Em conseqüência o poema, que era pálido, se torna translúcido. A fraqueza enfrenta a escuridão, a palavra perde a saudade e, enfim: a "mulher me ama e me ilumina" (5). Assim o sol - o amor, no espelho de metáforas do jovem Vinícius - começa a passear pelo corpo branco da amada. Há, porém, dois problemas: tanto a mulher, objeto de desejo, quanto o poeta continuam presos ao passado. "Como ocultar a sombra em mim suspensa?" (6), pergunta-se.
É o momento de uma nova dolorosa opção: romper o cerco da treva significa um desenlace espiritual? É possível amar intensamente longe de antigas obsessões e arrancar pureza à carne intransigente? "Brancas trevas" (7) espicaçam o poeta nessa fase. Quem resolve o novo paradoxo é a própria poesia, através de uma obra-prima: o amor, já que não pode ser imortal, torna-se infinito(8) e o verbo, então livre de culpa, pode unir-se à natureza.(9). E definir Vinícius, identificá-lo: "Nasço amanhã/Ando onde há espaço/Meu tempo é quando" (10).
Tendo encontrado o seu caminho e sem ter jogado fora totalmente suas heranças - pois as coisas que passam urgem e o que é morto vibra - Vinícius atinge finalmente a maioridade. Aos 41 anos: "Nascemos para o sol: és mocidade /em plena floração, fruto sem dano" (11). A nudez da mulher amada agora é diferente da nudez lunar. "Uma mulher ao sol, eis todo o meu desejo" (12). A chuva e o vento cedem "à pura claridade/do sol do amor intenso". A conseqüência de tanta iluminação no corpo branco da amada só pode ser uma: a "rosa morena". Todas as cores, unidas, leva a mulher morena ao "branco negrume do meu leito em chamas"(13). Mas, se a natureza salva o amor e provoca a síntese da paixão morena, a maldição do poeta criado na penumbra não o abandona. Ele tem ciúmes da terra, do ar, do fogo e da água que tratam sua amada sem muita cerimônia. E, apesar do amor sem culpa e da mulher morena e linda, existem ciladas contra a luz: "Descubro meu reflexo obscuro/num soneto de espumas inexatas". Num dos sonetos inéditos (existem, neste lançamento, nove), ele identifica-se com a treva e a mulher (a baiana Gesse, em 1971) com a luz(14).
Esse novo paradoxo produz o poente, a morte. Para nós, órfãos de Vinícius, iluminados pelo seu exemplo e coragem, é impossível evitar a saudade. Resta-nos acompanhar sua trajetória da treva para o sol nestes sonetos ontológicos, viajar nas paisagens contraditórias de sua poesia. E morrer de amor pela palavra, resgatar sua emoção, fazê-la ocupar seu espaço. Em vez de pó, pólen.
1. Soneto de Devoção e Soneto de Identidade, 1937
2. Soneto de Sepração,1938
3. Soneto de Oxford,1938
4. Soneto de Agosto, 1938
5. Quatro Sonetos de Meditação,(II),1938
6. Soneto de Véspera, 1939
7. Soneto de Londres, 1939
8. Soneto de Fidelidade, 1939
9. Soneto da Rosa, 1944
10. Poética (1),1950
11. Soneto da Maioridade, 1954
12. Soneto da Mulher ao Sol, 1956
13. O Espectro da Rosa, 1958
RETORNO - O Diário da Fonte está mais devagar nas edições, por problemas técnicos. Enquanto isso, coloco o texto acima, que foi capa do Caderno 2, resenha publicada em 18 de maio de 1981, no jornal O Estado de Sáo Paulo e está no meu site.
4 de maio de 2006
PLANTÃO DE AEROPORTO
Nei Duclós
Lupicínio Rodrigues desce do avião e coloca o pé no aeroporto, onde faço plantão, depois de um dia pesado em que obedeci às pautas de cidade, aquela famosa sucessão de buracos de rua. Ele tem a cara redonda, covinhas no rosto quando sorri com a boca fina e o brilho no olhar. É gentil e doce, e ao caminhar deixa a cabeça pendendo levemente para o lado, como se estivesse ao sabor de algum vento.
- De onde você vem, Lupicínio?
- Fui gravar um disco para a Abril, em São Paulo.
- Tem alguma música inédita?
- Tem. A guarânia Judiaria.
- Canta para mim?
E o foca dos focas, aquele que assume tarefas desprezadas pelos veteranos, enfrentando o rito de passagem que é esperar personalidades em viagem, ouve, de viva voz, uma das canções do gênio, bem ao pé do ouvido: "Agora você vai ouvir aquilo que merece/ As coisas ficam muito boas quando a gente esquece/ Mas acontece que eu não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão/ A judiaria que você um dia fez pro coitadinho do meu coração". O verso final saía com aquele jeito rasgado dele. Sussurrado em meio à balbúrdia, era o maior dos privilégios, nesta profissão insuportável, mas que não tem outra igual.
- E agora, Lupicínio, qual o próximo passo?
- Aqui em Porto Alegre é só trabalhar.
E seu olhar se perde. Lembro que o tinha visto antes por duas vezes. Primeiro, num elevador no centro da cidade, onde ele envergava uma calça apertada, um sapato branco sem meia e uma camiseta listrada. Já estávamos nos 60, mas ele era um recado dos anos 40. Depois, numa madrugada, junto com um grupo de universitários, fui conhecer o Clube dos Cozinheiros, onde Lupicínio apresentou, todo encapotado (era inverno) alguns dos seus clássicos imortais.
Mas o plantão do aeroporto também podia ser perigoso, como no dia em que o local estava coalhado de pessoas fardadas. Deveria ser alguém importante, deduzi, num raciocínio rápido como a luz. Não tive dúvidas. Cheguei para o primeiro sentinela (ah, a juventude) e lasquei:
- Quem está sendo esperado?
Imediatamente fui cercado por homens de sobretudo e terno, de cabelo de corte escovinha (só o tampo a cabeça tinha uma pequena relva), olhos azuis faiscantes de ódio e desconfiança. Fui levado a um reservado onde tentaram arrancar a confissão daquele terrorista. Eu não atinava com o problema. Estava vestido de maneira normal: cabelo comprido despenteado, casaco de brim tingido de preto, presente de um cunhado capitão do Exército, calça verde desbotada de veludo, feito sob medida a partir de um cotelê importado da Argentina, que usava no inverno e no verão, botas de borracha que iam até o joelho, já que eu não dispunha de nenhum outro tipo de calçado. Qual o problema, qual a estranheza? Estava apenas fazendo o meu trabalho!
Toda aquela vestimenta me dava um peso extra no corpo que deveria pesar uns 30 quilos na época. O vento poderia me carregar, por isso talvez usasse tantas âncoras. Os meganhas não acreditaram na minha história. Como poderia, com aquela aparência execrável, ser repórter da Folha da Tarde, da Caldas Junior, a mais importante empresa de jornalismo do Rio Grande do Sul? Onde estava meu comprovante? Minha carteira profissional? Minha identificação como jornalista?
Eu não tinha. Acabara de ser selecionado para a vaga e estava completamente desprevenido. O fotógrafo que me acompanhava ficou branco de susto, mas telefonou para a redação, e o equívoco foi desfeito. Caí fora de fininho e jamais soube quem deveria chegar naquele dia.
Plantão era obrigação de foca. O encargo era repassado no final do expediente, depois de uma tarde de cão. A tortura começava a uma hora da tarde, quando o chefe de reportagem chegava para distribuir as tarefas. Para todos dizia sua máxima:
- Vai lá ver o que tem e o que não tem.
As ordens eram incompreensíveis. Um dia fiz uma pergunta tão absurda para uma fonte que ele me pediu a pauta, que estava escrita num pedacinho de papel, datilografada. Ele desenrolou o papel que eu tinha amassado no fundo do bolso, leu e entendeu. Aí me deu a entrevista. Depois de desovar a produção diária, tinha o plus, que era cercar passageiros, um expediente que se estendia até tarde da noite. Os veteranos, espertos, diziam que o plantão de aeroporto era uma aula de jornalismo, que aprenderíamos tudo ali: dar um furo, conhecer pessoalmente as personalidades. Ficavam na redação, e ainda tiravam sarro no dia seguinte dos contratempos dos focas.
O aeroporto era o olho da imprensa, que precisava saber o movimento das fontes mais importantes. Pouco se tirava de lá, a não ser algumas frases esparsas, uma plantadinha de notas, um futuro governador ainda desconhecido (já que eram nomeados e não precisavam de exposição pública para assumir o posto). As viagens eram mais raras, não é como hoje que toda celebridade trafega pelo ar a todo momento. Imagino como seria redundante ficar num plantão aeroporto, ainda mais nesta época de conexão total, em que dá para cobrir o fim do mundo só com a ajuda do mouse.
O jornalismo feito a martelo exigia esforço de estiva. A informação era rara e não estava sobrando como hoje, em que podemos acompanhar a intimidade dos astros como se estivéssemos aboletados na sala de visitas, ou descobrir o que fazem pessoas importantes quando acham que ninguém está olhando. Havia uma pele pública sobre a escassez humana. A viagem de avião tinha certa solenidade, especialmente para o repórter iniciante, que jamais saíra de seu torrão. Mas não se esperava muito do plantão. As melhores coisas não poderiam ser ditas. Como "entregar" o esforço de determinado deputado federal em inocular informações que beneficiassem sua candidatura a ministro de Estado?
Já estávamos escaldados pelo AI-5. O governo era ilegítimo. Os cargos eram ocupados todos pela direita. Não era possível fazer perguntas simples como: quem vai chegar hoje? Não se podia tratar uma sentinela de tchê-loco. Eles saltavam. Queriam pegar na jugular do foca despreparado, de aspecto rude e roqueiro num mundo de gravatas, quepes e sapatos com brilho. Hoje todos se vestem como presidiários. Macacões, camisetas, abrigos, tênis. Continuam todos iguais, nesta sucessão de personalidades enigmáticas, que vistas de perto perdem todo o encanto que a mídia tenta lhes dar. É impossível vê-las com uma certa emoção e solenidade, como víamos os lideres antes de 1964, quando a imagem era formatada pelo rádio, imaginada por emissão da voz e vestida de mitos que se foram.
Mas é bom que todo esse carisma se perca. Pelo menos não poderemos cair no erro que cometi quando vi Oito e Meio, de Fellini, pela primeira vez. Cheio de fumaças intelectuais, eu observava o longo travelling do início do filme, aquele em que as pessoas cumprimentam a câmara bebendo algo desconhecido e que tem por desfecho a aparição de Claudia Cardinale, mais bonita do que um anjo. Eu estava no cinema de Uruguaiana ao lado do meu colega de aula Rubens Lenar Güez. De repente, no meio do travelling, ele me perguntou:
- Sabes o é que isso?
Respirei fundo e defini:
- A humanidade em desfile!
- Não, disse o bom Rubens. É uma fonte de água mineral.
Tinha matado a charada. Enquanto eu me esforçava em ver algo mais do que simplesmente uma cena humana, ele decifrava o mistério apenas com a melhor qualidade de um repórter: a observação pura e simples, sem ilusões, tambores ou clarins. Era um sinal de como deveríamos nos comportar a partir daquela data: enxergando no anonimato da massa em trânsito aquilo que se destaca como fato. A aparência singular da notícia depende da vocação do jornalista que assume a profissão para o resto da vida, mesmo que o prendam pela falta de preparo.
RETORNO - Este texto foi publicado hoje, 4/05/06, no espaço Literário do Comunique-se.
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