29 de abril de 2004

JÓIAS DA CORRESPONDÊNCIA

Dois espíritos livres e que fazem parte da geração entre 25 e 30 anos nos brindam com suas palavras absolutamente fora da ordem mundial. O que gosto neles é o desplante de pensar sem nenhuma amarra, a contundência de dizer o que sentem e sabem, e a alegria em compartilhar conosco essa aventura.

O BRASILEIRO CASTANEDA – Uma jornalista de Nova York, montada na sua arrogância meramente geográfica, achou que suas informações poderiam iluminar Miguel Duclós, brasileiro e paulistano, sobre o antropólogo Carlos Castaneda. Miguel, pessoa aberta a toda contribuição ao conhecimento, não conseguiu tolerar o tom metido a besta da carta e deu o troco (só publico a resposta, porque a resposta basta) : “Obrigado pelos esclarecimentos e por me por a par das últimas investigações feitas aí nos maravilhosos EUA. Mas não há nenhum dado novo no que você disse. As datas que existem sempre foram essas: 1925, 1931, 1945. Quem divulgou que Castaneda é de Cajamarca, no Peru - onde há uma farta colônia de Castanedas, nascido em 1925 - foi a revista Time na sua matéria de capa. Ela se baseou nos documentos do carro e da imigração americana. Ela não consultou Castaneda sobre a investigação. A revista Time cometeu outras atrocidades, como o próprio autor comenta no livro Conversando Com Carlos Castaneda, de Carmina Fort.Ele tira um sarro falando do esforço para situar seus antepassados entre indígenas peruanos. Castaneda falava que havia nascido próximo de Mairiporã, São Paulo, no Natal de 1935. Se você ler o livro O lado ativo do infinito verá que as história lá contadas só poderiam ter se passado - e ter sido contadas - por quem conhece a realidade do interior paulista. Existem vários pontos que elencam isso. Além disso, em 1960, quando se deram os primeiros encontros com D. Juan, Castaneda era um estudante de pós graduação. Tendo nascido em 1935 ele teria então 25 anos, o que é coerente. Em 1925 ele já estaria com 35 anos, o que não seria coerente com sua brilhante trajetória acadêmica. Com Erva do Diabo ele adquiriu o grau de mestre e com Viagem a Ixtlan de doutor, conforme pode ser verificado na UCLA. O repórter da revista VEJA que o entrevistou em 1974 notou o seu português fluente.”

OPORTUNISMO – “Bom, esses são os dados básicos. Você não deve ter lido a obra para dizer que o "autor mente descaradamente" sobre sua história pessoal, tentando infligir uma carga moral ao que ele fez. O que existiu foi um esforço de acobertar sua história pessoal. Não tenho tempo para lhe explicar como essa polêmica sobre seus dados pessoais é vazia. Apenas observo que, mesmo que todos os livros não passassem de ficção, e toda sua teoria não fosse mais que compilação de outras fontes, ainda assim a obra não perderia seu valor. O que é condenável é o espírito americano de transformarem tudo em Business. É a apropriação da marca Castaneda pela ClearGreen Inc, Tensegridade etc. O que é lamentável é o senso oportunista das tais bruxas, Donner, Abellar Tiggs de lançarem livros execráveis com a mesma temática. O que vemos é a total separação do autor com seu conceito original. E espertinhos de plantão querendo desbancá-lo depois de morto, espevinhando com o velho papo da falsidade em tudo. E por conta dessas picuinhas a academia vira as costas para o autor que criou, e que depois se desgarrou dela. E uma uma discussãoo mais séria, aprofundada sobre seu legado é postergada. E todo mundo usa e se lambuza com os conceitos de Castaneda mas não lhe dão crédito (como em Matrix, StarWars e vários artigos intelectuais), fica uma coisa entranhada, mal-resolvida, pernóstica. Ninguém quer mais admitir que leu e gostou. Abs. Miguel”

GIM TONES NO PAMPA – A outra correspondência me foi dirigida por Fabio Murakawa, personagem real criado pelo repórter policial Gim Tones. Vejam: “Caríssimo Nei. Finalmente concluí a leitura de Universo Baldio. Por uma grande coincidência, passava hoje pela linha leste oeste do metrô e, do alto do viaduto, fiquei imaginando onde diabos o fantasma do Honório chegou para assombrar teu personagem Luís pela primeira vez. Tive ganas de descer do trem para procurar a tal rua e, talvez, o buraco de bala na parede, mas tinha um compromisso em Ermelino Matarazzo _entrevista com o subprefeito, que atrasou. Faltava apenas a leitura do último capítulo, que fiz num cantinho nordestino da avenida São Miguel, antes de comer um baião de dois e enquanto esperava o subprefeito.
Quanto ao livro, tive sentimentos muito confusos em relação a ele. A primeira parte me deixou um tanto perdido com a abundância de personagens e o vaivém dentro da casa. Mas, com o passar das páginas, e do tempo dentro da casa, fui me familiarizando com cada um deles. A cena da despedida do "do cooper" foi uma das mais emocionantes que eu já li. Seria de longe a minha parte preferida de toda a obra, não fosse a gravidez de Irma e o fim da solidão anunciada na última frase do último parágrafo do livro. É um desfecho maravilhoso para a história corre em ritmo frenético, um final que abre possibilidades em vez de amarrar toda uma história. E o interessante é que esse final, ao mesmo tempo em que evita amarrar a trama, dá sentido a toda a loucura que se passou durante o período em que os chapas viveram na república de Itaguaçu. É lindo, lírico, emocionante, me encheu de esperança. Para mim, ao contrário do disse o teu amigo Raduan Nassar, dá a impressão de que o teu romance - um grande romance, diga-se de passagem - acaba ali.

BRASILZÃO VÉIO - Com relação a "Papel de Bala", confesso que esperava outra coisa desse salto de 30 anos no tempo. Eu achava que seria uma reflexão de Luís em relação ao que se passara na república de Itaguaçu. Em vez disso, o fantasma de Honório o leva para uma viagem ainda mais distante: às suas origens, no Pampa. Tive por vários momentos a impressão de estar lendo outro livro, outra obra, por essa falta de diálogo com a primeira parte. Papel de Bala tem também, sem dúvida, um sotaque mais gaúcho, mais regional. Algumas vezes eu me sentia irritado por não saber exatamente o significado de várias palavras, ou por não ter nenhuma afinidade com aquele cotidiano e os personagens. E o sotacão dos pampas, assim como todas as referências à terra, deu-me a impressão de ter sido escrito apenas para quem vem de lá. Mas logo vi que isso é autoritarismo típico de um paulista. Estamos acostumados à idéia de que apenas o que nasce aqui, ou, no máximo, no Rio, tem apelo nacional _enquanto tudo o mais deveria ficar confinado em seus rincões longínquos, como um artigo exótico, esperando a visita de um paulista ou carioca às diversas regiões desse Brasilzão Véio.
Tirei, então, essa idéia da cabeça, a de que se tratava de um livro regional, e a leitura fluiu. Não é, sem dúvida, uma obra de leitura muito fácil. Mas o importante ali é o conflito de Luís, esse retorno forçado às suas origens, para, no final, descobrir que a felicidade não estava nem no claustro na Torre nem nos Pampas. Mas na praia, ao lado de irma, e justamente em Floripa, se bem te conheço e se entendi bem a obra. Mais uma vez, um desfecho maravilhoso, se bem que, na minha modestíssima opinião, não tão belo quanto o de "República de Itaguaçu". Pareceu-me que Luís caiu na praia mais por cansaço do que por esperança. Talvez seja a idade, mas me agradam mais os finais que abrem novas perspectivas, que me enchem de esperança, como o da primeira parte do livro. Apesar de saber que isso é apenas o meu gosto.(...) Um grande abraço, Fabio.”

28 de abril de 2004

A PRINCESA PEDE SOCORRO


Quando todos os telespectadores, exaustos de tanto procurar algo que preste, desistem e vão dormir, os cruéis programadores colocam no ar, no fundo da madruga, algo como The Biographer: The Secret Life of Princess Diana, que é um filme da TV americana sobre o ofício do escritor e não apenas mais uma baboseira sobre a família real. O drama, lançado em 2002, gira em torno da relação entre o biógrafo Andrew Morton e a prisioneira que em vão tentou escapar da armadilha.

A VERDADE – É um filme que trata da vida dentro de uma editora, o que me toca muito de perto. O editor envia seu talento para Los Angeles para fazer uma biografia de Marilyn Monroe. Mas a princesa Diana convoca Morton secretamente para contar tudo o que está sofrendo no casamento e isso provoca incredulidade do editor, ou, como é moda agora, o publisher Michael O'Mara (interpretado magistralmente por Brian Cox).

A estratégia da confecção do livro é o forte do filme. Para despistar o temível serviço secreto britânico (que se reúne em clubes masculinos de Londres, hábito que deu má fama aos ingleses) tudo foi feito escondido, inclusive da própria mulher de Morton. Este, conta com um intermediário, que lhe fornece as fitas gravadas pela própria princesa. A primeira versão foi totalmente destruída pela biografada, o que provocou a ruptura provisória do escritor com seu editor. E que também desencadeou o principal: obrigou o biógrafo a ir mais fundo, a procurar mais dados, a buscar mais aliados.

Esse trabalho da segunda versão, de convencimento das pessoas que estavam em volta da princesa, de embates com o editor, de desespero no trabalho oculto, confinado, é a prova dos nove do escritor, testado na seriedade do seu ofício, pressionado pelas emergências da sua época, jogado na rua do próprio destino, diante do perigo que corria junto com a família, o risco de perder tudo, casa, carreira, vida. Chamam esse tipo de filme de docu-drama, o que considero um palavrão. Prefiro chamá-lo de um belo filme sobre um assunto muito pouco enfocado. Escrever profissionalmente é um trabalho de cão. Todos usufruem do resultado, mas pouco sabem do que realmente se trata.

A PROFECIA - O filme é também um relato de como funciona a indústria cultural. A estratégia da impressão, distribuição e venda do livro enfrentou não só o esquema da coroa, mas a confortável posição de livreiros e editores, todos satisfeitos com os livrinhos anódinos sobre a realeza. Do outro lado do balcão, os ferozes tablóides, que acabaram consolidando a desgraça da princesa, num acidente muito mal explicado, exatamente cinco anos depois, como ela mesmo previra: “Não sei o que será de mim daqui a cinco anos”, dizia, profética.

Segundo o filme, Diana foi usada como reprodutora e depois jogada fora. Não está explícito, mas, como se rebelou, sumiu do mapa.O importante é que o conteúdo do livro jamais foi desmentido. Foi considerado bizarro e mentiroso quando lançado, confundido com matérias de jornalismo marrom. Mas era tudo verdade.

Quem poderia apostar nisso? O diferencial foi o escritor ter assumido o risco, mergulhado no trabalho, aceito as injunções a que foi submetido, para sair-se com uma obra que vendeu cinco milhões de exemplares e demoliu a imagem da família real. Charles, o cruel, nunca mais foi visto da mesma maneira. Uma maldição caiu sobre ele. Corre o risco de jamais ser rei. Poderia ser uma pessoa melhor, se tivesse a coragem de casar com sua paixão em vez de submeter-se ao ex-império fanhoso e prepotente, que procura perpetuar-se como um navio fantasma num mar de tempestade permanente.

RETORNO - Jorge Freitas derruba-me com seus elogios aos textos aqui, Gim Tones emociona-se coma despedida de um personagem de Universo Baldio, Fernando Pereira da Silva e meus irmãos me convidam para ir a Uruguaiana num encontro de ex-alunos maristas, Marco Celso Viola me envia seu livro seminal de poemas definitivos, confirmando ser ele o grande poeta oculto que o Brasil precisa, ganho novos leitores fixos como Márcia Hatomi, Paulo Paiva e Zé Medeiros. Tudo isso me faz a cabeça e o coração.

27 de abril de 2004

O QUE É O RIO GRANDE DO SUL?

Parece ser impossível imaginar o Rio Grande do Sul fora dos lugares comuns. Todos falam a mesma coisa e esquecem o principal. Agora vem o Jabor dizer que no lugar de coqueiros o Rio Grande tem pinheiros, que é uma árvore típica do Paraná. É como eu digo: para quem não é de lá, tudo abaixo do rio Pinheiros é Porto Alegre. Jabor também diz que temos frio e vento e não calor. Não há lugar mais quente do que o Rio Grande do Sul no verão, que além disso possui 700 quilômetros de praia. Então como é que fica?

EUROPINHA - A frescura mais recorrente sobre o estado onde nasci e me criei é que ele é uma espécie de Europa em miniatura. Como ninguém quer ser brasileiro e todos, absolutamente todos, possuem “sangue” de europeus, russos ou sei lá quem mais, tudo o que o Brasil possui teria sido feito por povos fora daqui. Vi recentemente uma propaganda colocando o mérito do desenvolvimento de São Paulo nos italianos. Aliás, em São Paulo sobra italiano. Todos possuem dupla cidadania, ou seja, são italianos de fato. Quem construiu São Paulo foram os brasileiros, e nessa categoria incluem-se os que se acham europeus ou asiáticos. No Rio Grande do Sul a mesma coisa: vasta população negra e mestiça, já tendo inclusive um governador negro (Alceu Collares), aquele é um estado feito pela mão xucra do Brasil. Mão que acolhe os estrangeiros e lhes dá guarida, e que constrói a riqueza do Estado, mas dessa riqueza não compartilha como deveria. Pois o mérito do fazer fica fora da sua alçada. Como só alemães e italianos são operosos (e só eles existem, especialmente nas materinhas da televisão, que só abordam esse aspecto do Rio Grande do Sul, mostrando a minoria loura como se fosse toda a população gaúcha), o que sobra para os brasileiros é a fama de vagabundos, párias, fracassados. O Rio Grande do Sul é composto basicamente de descendentes de indígenas, misturados com negros e brancos. A minoria loura, que tinha suas próprias escolas, num gueto horroso até a segunda guerra mundial, levou um tranco de Getulio Vargas, que acabou com o pangermanismo e as escolas fascistas. Colocou tudo nos devidos eixos, bem brasileiros.

RAÇA - Um dia um padre metido a doutor em genealogia foi visitar Getulio e se oferecer para fazer a árvore genealógica do novo presidente. “Não faça isso”, advertiu Getulio. “No Brasil, toda raiz familiar acaba na senzala ou na aldeia indígena.” E soltou uma gargalhada. O especialista saiu ressabiado. Tinha levado uma lição e não sabemos se entendeu o recado: o de que pertencemos ao que Gilberto Freyre definiu como uma meta-raça. Como o ser humano não é cavalo e não pode portanto ser dividido entre asiáticos, caucasianos e hispânicos; como somos todos seres culturais e não raciais, nossa identidade vem do gesto, do comportamento, da entonação, da formação. Jamais do “sangue”. Sangue-bom é expressão nazista. Outro equivoco é enfocar o gaúcho fantasiado pelos CTGs como se fosse o gaúcho autentico. Nunca se aborda o gaúcho urbano, o da periferia ou o verdadeiro gaúcho rural. Este, gosta de músicas como a guarânia, a música sertaneja, o chamame argentino. Não fica apenas cantando gauchadas. No Fantástico, uma saraivada de asneiras foram veiculadas sobre o que cada estado acha do outro. O gaúcho por exemplo, se acharia “macho”, mas os outros o acham “machista”. E aí aparece um povo-fala de alguém de Porto Alegre dizendo: “É, eles não cuidam das mulheres deles.” Tipo de matéria feita pra reforçar preconceito. Com tanta mulher no Rio Grande do Sul, como pode uma população inteira se achar macho? A parcela homossexual da população no Estado também não pode ser enquadrada nesse tipo de rótulo. Sobra o quê? Os amorosos pais de família, as crianças, os idosos. Todos machos, machistas? Dá para entender o alcance da besteira?

DIVERSIDADE - O Rio Grande do Sul, como o resto do Brasil, não é para amadores, como diria Tom Jobim. A criatura mais internacional e anti-machista que conheci chama-se Caio Fernando Abreu, de Santiago do Boqueirão, cidade situada bem no miolo do Rio Grande. Descendente de mexicanos, italianos, índios e portugueses, jamais me senti outra coisa do que brasileiro. O gauchismo, da maneira como é colocado por essa invenção dos anos 50, os CTGs, é algo discutível. É um movimento folclórico importante, mas não serve para definir todo o ethos do Estado. Mario Quintana se intitulava riograndese, jamais gaúcho. Quem é de lá, tem o direito à diversidade. Que o Brasil saiba disso e o Jabor pense um pouco antes de escrever sobre os gaúchos. Não somos “diferentes” do resto do Brasil: somos exatamente iguais, já que somos brasileiros. Nossa diversidade interna, como em qualquer outro Estado, precisa ser vista e entendida.

26 de abril de 2004

O PERIGOSO MAR DE CAYMMI


Dorival Caymmi não canta a praia ou o mar, canta a pesca, atividade do trabalhador que arrisca a vida todos os dias no desempenho do ofício. Sua obra é um épico sobre a morte dos que lutam para sobreviver num ambiente hostil, o oceano, que atrai pela necessidade e seduz para uma armadilha mortal quando acena para o lazer em pleno expediente. O bem que o pescador tem no mar é a ilusão de que pode abandonar o trabalho enquanto navega e entregar-se ao que lhe é vedado, o prazer.

DOCE MAR - O verso de Caymmi “é doce morrer no mar”, ou mesmo o outro “o mar quando quebra na praia é bonito” são ironias de um rapsodo, de um cantador de romances, um Homero do litoral da civilização atlântica. O turista tem uma doce ligação com a praia, não o pescador, que amarga uma vida curta, dolorosa. Doce é a nostalgia, único remédio para a dor da lembrança dos que morreram lutando pela vida da família. A mulher que fica na espera da jangada que não volta tem uma rival, Iemanjá, que rapta o pescador exausto daquela tragédia. Voltar para quê? Melhor entregar-se nos braços da deusa que é o movimento feminino das ondas, que o leva para longe, para o fundo, para a euforia do afogamento, para fora das necessidades. Não precisará mais o pescador voltar com algum peixe, não enfrentará mais a fome e a frustração. Será tema de canções e de pranto.

A pesca que leva a vida dos homens serve para interromper o pouco de alegria que existe na vida em terra. Chico, Bento, os heróis da Suíte dos pescadores, animam festas, são galanteadores. Suas ausências são pranteadas pelas mulheres e camaradas. Caymmi é a voz desse lamento profundo e por isso sua voz tem a gravidade da tragédia. Ser confundido com o bom baiano que leva a vida na flauta é um erro gravíssimo. É impressionante como essa gravidade passa para sua descendência. Não existe maior gravidade na voz feminina brasileira do que em Nana Caymmi, não existe maior seriedade musical do que em Dori Caymmi, o erudito que resgata a complexidade da obra do pai e a projeta para o infinito.

PERDA, PERDÃO - A dor tempera a convivência, é insumo para a civilização atlântica, da qual Dorival é o representante máximo. Sua presença chama-se tolerância, seu trabalho vem do fundo da tragédia brasileira de um litoral ainda extrativista e abandonado à sua sorte mesmo 500 anos depois da Descoberta. Conviver, sorrir, abraçar, ser doce: esse é o privilégio de quem realiza uma obra perfeita, genial até no mínimo detalhe, grandiosa e sedutora. Caymmi toma partido do pescador que morre pelo peixe, pelo pão. “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento.

A jangada voltou só. Cadê você, cadê você?” Essa civilização de perdas precisa do perdão para continuar vivendo. O que chamam de conformismo, é na verdade o superlativo da perda, o sentimento do perdão. O ritmo do mar dita a canção, que eterniza na arte o corpo do pescador que foi-se para sempre. A tempestade, a chuva, são os vilões dessa obra maravilhosa. O bom tempo define a boa terra, mas não adianta a calmaria na terra se não existir bonança no mar. Enfrentar esse perigo exige uma postura de solidariedade.

Pescar é uma atividade coletiva, plural. “Minha jangada vai sair para o mar, vou trabalhar, meu bem querer, se Deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer; meus companheiros também vão voltar e a Deus do céu vamos agradecer.” O destino, o desfecho gratificante do trabalho, está nas mãos de Deus. Quando Deus é contrariado, o pescador some. Sua ferramenta, a embarcação que o leva para a luta, volta intacta. Quem pesca o pescador é o mar que fica com seu corpo. Resta da tragédia a canção. A música soprada pelo vento. A voz que vem do fundo. O mar é perigoso. Exige respeito. Por isso as canções de Caymmi são sagradas. Elas são como capelas à beira mar, e sua obra, ditada por essa voz, compõem a imponência de uma catedral.

SOBERANIA - No documentário "Um Certo Dorival Caymmi", produzido em 2000, biografia dirigida por Aluisio Didier, que passou ontem na TVE do Rio, o gênio aparece cantando na TV americana, em bom português baiano, ao lado de Andy Williams, que o homenageia, fazendo dueto. Caymi é o brasileiro poderoso, carregado no colo pelo estrangeiro deslumbrado. A gravação é de 1965. Éramos um país naquela época. Somos hoje uma nação invadida, sem soberania. Temos vergonha da língua. Qualquer merdinha estrangeiro vem aqui faturar dólares, arrancados do nosso deslumbramento e irresponsabilidade.

Caymi conta que chegou no Rio de Janeiro, compareceu na rádio e lá foi recebido, desconhecido como era, pelo deus da mídia, Assis Chateaubriand, que o chamou de poeta, de artista e o contratou imediatamente. Se ele chegasse hoje da Bahia, iriam querer que cantasse rap ou hip hop, se tanto. Quanto talento jogamos fora com os medíocres no poder da mídia?


25 de abril de 2004

O IMBATÍVEL CHARME DA DIREITA

Recebo Veja de graça, numa promoção da revista para conquistar assinantes e redescubro a quadratura do seu círculo: tudo é feito para a vitória do conservadorismo e da exclusão social, adereçada por penduricalhos da moda e pelo travestimento da verdade em olhares pomposos de colunistas, que projetam esgares inteligentes, e notinhas apimentadas sobre a desimportância de tudo, e a necessidade de se manter tudo conforme o combinado pelo pacto da violência institucionalizada. Sem falar nas pseudoreportagens contra os sem terra e um vasta paga-pau para o novo candidato à presidência da direita, o bonequinho de luxo Aécio Neves.

DÚVIDAS - Tudo bem, depois desse lead, vamos beneficiar a dúvida e tentar provar a inocência de Veja. Digamos que Aécio seja um case bem sucedido de governança. E que a foto institucional do governador mineiro com pose de presidente da república, tirada em contra-plongée para destacar seu gigantismo moral, seja apenas um recurso estético. Também vamos admitir que a má vontade histórica de Veja contra o antecessor de Aécio, Itamar Franco, não seja implicância, ou algum negócio entre ambas as partes jamais vindo à tona. Assim mesmo, coloca-se em dúvida se o texto, totalmente favorável, seja realmente uma reportagem. É, o que digo acima, um paga-pau. Vamos também levar em consideração que os lábios apertados e o olhar inteligente do colunista seja apenas uma pose inocente e que realmente o narcotráfico queira unir-se aos sem terra para faturar na Amazônia, pegando carona na atual internacionalização ongueira. E que sua frase “e se, por acaso, os narcotraficantes também perceberem uma oportunidade...”seja uma especulação jornalística. E que colocar a culpa no governo de acobertamento dos crimes indígenas tenha fundo de verdade. Pergunto: não é má vontade demais num artigo de meia página? Onde estão as dúvidas do colunista, afora suas perguntas que apenas reforçam seus preconceitos? Em outra página, a revista denuncia o esquema dos sem terra com a lapidar abertura: “Os líderes iluminados do lumpesinato que compõe a turba dos sem terra usam um expediente ilegal, a invasão, para pressionar o governo a fazer a reforma agrária.” Turba? Afora a distorção jornalística da primeira parte da frase, cheia de ironias e acusações, nenhuma palavra sobre gigantesca grilagem de terras feita pelos poderosos. Vivo aqui criticando o movimento dos sem terra. Acho que dão munição para a direita e que seus líderes são totalmente analfabetos políticos, a começar pelo Stedile e o Rainha, que vão acabar afundando o movimento. Mas uma revista metida a indispensável não pode tomar partido assim, impunemente.

EXCLUSÃO - Feito o serviço na área ideológico-política, Veja se dedica ao que interessa: o charme da exclusão social, que passa pelas matérias sobre a nobreza, as estrelas e outros milionários. Comete o mau gosto de atacar Jennifer Lopez – “ela pode não saber nem cantar, nem dançar, muito menos atuar, mas compensa tudo isso com outros amplos atributos” – o que é de uma grosseria e uma ignorância sem fim. Ou seja, como ela não sabe fazer nada como atriz, vence porque não passa de uma prostituta com seus “amplos atributos” (que só podem ser seus seios, coxas, bunda). Além de perguntarmos quem é o redator anônimo da seção Gente para fazer esse tipo de acusação, quem viu a maravilhosa Jennifer interpretando aquela cantora americana de origem mexicana que foi assassinada, sabe que isso é uma injustiça atroz. Mas Veja sabe quem são seus verdadeiros aliados. Marcelo Anthony, por exemplo, que foi flagrado comprando droga em Porto Alegre e é brindado, junto com seus pares como Michael Jackson, com uma auto-ajuda de como as celebridades devem se defender desses incômodos. Ou a simpática materinha sobre o bilionário russo que venceu na vida participando do saque ao patrimônio soviético e hoje é darling na Inglaterra porque comprou um time de futebol. Ou sobre a dissidência desse ícone ideológico que é a TFP, brindada com materinha isenta, bem ao contrário das reportagens sobre os sem terra. Temos ainda matéria sobre a imperatriz Sissi (nossa, como ela era anoréxica), o que serve para jogar um pouco de bosta em cima de outra maravilhosa mulher, Romy Schneider, que glamourizou o personagem no cinema. Parece que Veja gosta mesmo é de Prince, o chato que voltou e ganhou texto elogioso babão na revista. Tudo isso contrablançado com matérias de capa sobre a corrupção em tempos democráticos (como a democracia é incompetente, meu Deus) e o massacre dos garimpeiros. Tudo em papel couchê brilhante e vastas páginas bem fornidas de publicidade. Dizem que a dívida da mídia brasileira é de dez bilhões. Um jeito de sair desse buraco é voltar ao velho e bom jornalismo. Aquele, sabe, aquela atividade em desuso.

24 de abril de 2004

VISITAS FORA DE HORA

No meio do expediente, aí pelas três da tarde, um convite: dar um pulo no bar em frente. Aconteceu várias vezes. Foi assim que conheci pessoalmente Paulo Leminski, que me visitou na redação da revista Senhor e repartiu comigo uma cerveja no Barba, o mitológico bar em frente da Editora Três, na Lapa de Baixo. Ou o mímico Ricardo Bandeira, que me atraiu para uma conversa frente a vasto copo de algo sem nome (que era meio avermelhado). E também teve a vez de Cacaso, que preferiu conversar dentro da Folha de S. Paulo, sem tentar me puxar para qualquer tipo de mesa fora do trabalho.

COISA - Naquele tempo eu era coisa na imprensa e a todos recebia. Descobri, por exemplo, que nada saía sobre os Novos Baianos na grande imprensa porque nada saía na grande imprensa. Ou seja, o boicote era espontâneo, parecia combinado e era decisão das editorias de cultura. Nada havia, nos andares do patronato, contra a baianada. Publiquei (sem tomar conhecimento do boicote nem consultar patrão nenhum) na Ilustrada um artigo sobre Baby Consuelo, outro sobre Pepeu e outro sobre todo o grupo. De quebra, abri vasto espaço para A Cor do Som, filhote superdotado daquela junção de talentos. Ficaram encantados. Até hoje não descobri porque havia o boicote. De outra feita, estive num ensaio do grupo Oficina, que também naquela época (1977/78) sofria execrável boicote. O Zé Celso chegou a levar um susto: “A Folha está aí?”, perguntou. Estava. Era ieu. Dei capa na Ilustrada. Fiz também extensa matéria sobre outro assunto proibido, punk rock, que naquela época era novidade (o título era: Punk rock: e o Brasil com isso?). Sem falar que guindei Rita Lee a assunto sério de revista semanal, abordando-a pela sua contribuição cultural e de comportamento. Na Istoé, fiz a primeira matéria sobre o filme de Hector Babenco, Pixote, escancarando a foto de Marilia Pêra amamentando Fernando Ramos da Silva (de autoria de Ayrton de Magalhães). Comparecia em shows de artistas desconhecidos, na periferia e dava destaque. E tratava todo mundo da mesma forma: fazia análise engajada, batendo quando achava que devia bater. Destaquei, entre os grandes, Luis Melodia (o que arrancou elogios agradecidos do seu protetor, Wally Salomão), Raul Seixas (pouco considerado pela imprensa, na época), Roberto Carlos (que provocava as mesmas resenhas, falando mal dele; inovei, abordando-o com seriedade). Sempre fui desafinado. Não escrevia música, escrevia texto.

LEITURAS - Não foi desta vez que minha entrevista para o programa Leituras, da TV Senado (canal 68 da TVA) foi ao ar. Vamos aguardar. Sorte que o programa deste fim-de-semana destaca, em longa entrevista a Mauricio Melo Junior, a professora de música Liana Justus, que diz algo que sempre desconfiei mas que agora ela dá status teórico: a de que a música brasileira é a mais rica do mundo por ter em suas raízes a música clássica. Isso pode surpreender, mas nem só de bachianas brasileiras vive o Brasil. Você pega a parceria Bach-Vinicius, você pega a Ave-Maria do Morro de Herivelto Martins, você pega todo o clima de partituras e conservatórios musicais e ensino de música no sistema público no início do século 20 e fim do 19 e você terá grandes artistas formados na música clássica (lembrem o pianista Ary Barroso, lembrem Zé Gomes, que revolucionou a música popular e é concertista de Villa Lobos). Liana lembra que a primeira música de carnaval, O Abre-Alas, foi composta por uma maestrina, a Chiquinha Gonzaga. Pois tudo isso foi jogado no lixo em favor das porcarias importadas (e não do refinamento importado), dessas coisas chamadas raps ou hip hops, que são esgares mecânicos de ruídos implantados pela nossa falta de soberania, pela entrega que se fez do território e do povo para os poderes fajutos e anti-culturais do Império. Transformamos Bach em música popular, mas nossa música popular não é bachiana, é brasileira. O rap, ao contrário, transforma todo mundo em rappers, e nada dá em troca - a música deixa de ser nossa, passamos a ser seus clones pobres. Liana diz que tocou Vivaldi, Mozart e Carmina Burana na periferia de São Paulo e todos adoraram, chegaram a chorar em sua maior parte. “A música desperta compaixão, que é o sentimento da solidariedade”, diz Liana, na sua simples e eficiente receita contra a violência. O programa será repetido hoje, sábado e amanhã, domingo, em horário nobre. Ligue a partir das 20 horas. É minha receita anti-zap. Descubro no Google, no site da revista Bravo!, que o livro de Liana Justus é “ Formação de Platéia em Música (Fundação Cultural de Curitiba, 208 págs., R$ 45), que agora vem com um alentado CD-ROM, e traz, entre tantas outras informações, mais de 800 imagens, um filme digital que apresenta todos os instrumentos de uma orquestra sinfônica e trechos de várias peças musicais”.

REGRESSÃO – Cacaso, autor do clássico poema minimalista “nasceu/fudeu”, tinha o cabelo cortado e penteado a Principe Valente. Era suave, doce, denso, absolutamente crítico e talentoso. Leminski era um anarquista em tudo, principalmente nos gestos. Falamos sobre literatura e autores. Ricardo Bandeira olhava para o infinito e elogiava meu primeiro livro trocando o nome do título (em vez de Outubro, Outono, mas isso já faz parte do folclore). Moraes Moreira, Galvão, Paulinho Boca de Cantor passeavam na garoa de São Paulo e eu estava junto. Essa é a vantagem de um jornalista sem importância: estar presente nos momentos importantes da vida nacional. Ninguém presta atenção no observador anônimo, o passageiro das redações e cidades, mas um belo dia ele desova suas memórias, ou um romance baseado no que viveu. Então, o que não existe em nenhum lugar a não ser ali, naquele território de linguagens ocultas, assume um lugar qualquer. Normalmente não é grande coisa, mas é um milagre, o que o torna único. Os resenhistas, claro, estão ocupados com outros afazeres (como escrever infinitamente a mesma matéria sobre as crianças na Bienal). Destacam sempre os mesmos autores e esquecem aqueles que abriram as comportas do jornalismo cultural numa época que deveria ter sido muito mais fechada e medíocre. Pois não era. O jornalismo cultural dos anos 70 na grande imprensa dá de dez no de hoje. Regredimos. Ou melhor, regrediram.

RETORNO - Logo que terminei a edição de hoje, liguei no SPTV. Lá veio a matéria da Bienal: as crianças, os palhaços e os unicos autores abordados, Ziraldo e Mauricio de Souza. As crianças são atraídas para o não-livro: o joguinho eletrônico no computador, a performance do palhaço, o conteúdo fundado basicamente em imagens e não em textos. Ainda não se deram conta do recado explícito do best-seller Harry Potter: livrões grossos, cheios de histórias e não nheco-nhecos desenhados sem palavras. Mas não adianta. É um desespero só. Isso não mudará?

22 de abril de 2004

O MITO CEDE AO CERCO


Maradona agoniza e com ele sua esperança de uma vida pessoal. Na Argentina, o mito é a confirmação da superioridade mundial da nação autosuficiente. Como são imbatíveis em tudo, seus mitos servem para registrar essa hegemonia. Mas esse registro, por natureza, é precário, pois a realidade cerca o mito com a insuficiência humana. A saída é a morte, batismo da eternidade. Os argentinos não idolatram os heróis mortos, eles gostam do que os heróis fazem em vida, mas transformam a morte física no passaporte para o lugar onde o mito – a superioridade Argentina – jamais será destruído.

VINGANÇA - O esboço de risinho sarcástico que Marcelo Araújo, jornalista esportivo argentino, fez na CNN ao colocar Ronaldo como uma coisinha acanhada, dentro das fronteiras da Espanha e ... Brasssil (como eles desprezam essa palavra!)! Ronaldo, na visão tosca do jornalista, nem chega aos pés do genial Maradona. Primeiro, coloquem o Pelé no meio e depois conversamos. Segundo, para mim Ronaldo, apesar de limitado, já fez muito mais do que Maradona. Mas isso seria entrar no jogo deles. O importante é notar como a construção do mito depende do critério seletivo, da percepção distorcida. Maradona ficou desesperado porque não conseguia ter uma vida pessoal, apesar do dinheiro que ganhou. Não tinha liberdade e não podia mais jogar devido à idade. A solução Pelé, que foi coroado em vida e mantém-se em forma, não serve para Maradona. Pois Maradona fica sendo o típico mito argentino: a nacionalidade tenta se impor por meio da vingança (a comemoração de um gol argentino é a celebração de um assassinato), já que ninguém, em sã consciência, vai reconhecer tanta hegemonia em tudo. De minha parte, admiro os argentinos pela sua politização e luta e pela qualidade dos seus produtos (nasci na fronteira), e claro, por seus grandes e geniais escritores, a começar com Borges. Mas não suporto esse desespero que entroniza heróis como consagração da hegemonia enfim intocada. Isso tem raízes, possivelmente, na tragédia de Gardel (ou será que esse evento foi forjado pela predestinação Argentina?), que morreu no auge, ou seja, não conseguiu ir até o fim da sua carreira e despedir-se com grandeza. Foi colhido depois de muito ter feito, mas muito havia ainda a fazer. O destino foi cruel com a Argentina, que não tinha mais vivo seu grande ídolo. Então a morte entrou como a palavra final sobre a superioridade mundial da nação. Com Evita a mesma coisa, tanto que tentaram, primeiro preservar seu corpo e depois ressuscitá-la em Isabelita, o que redundou num golpe de estado que faz estrago até o hoje.

REIS - A ansiedade da mídia que cerca o homem para alimentar-se do mito é a tragédia final de Maradona. Ele poderá escapar da atual crise, mas sempre terá esse cerco sobre seu corpo que enfim encherá, morto, Buenos Aires de um mar de gente. A morte virá para tirá-lo do pesadelo e colocá-lo no pantheon dos heróis nacionais. Inconscientemente ele procura essa morte consagradora, já que não lhe é permitido mais viver. Maradona e Gardel são grandes em suas respectivas artes, e lavam a alma de uma nação que a auto-suficiência tornou isolada em sua mania de grandeza. A Argentina é um enigma difícil de decifrar. Gera heróis trágicos, talvez porque a maior tragédia seja essa tentativa desesperada de ser a melhor do mundo. Ninguém é melhor. Cada país tem sua identidade e seu destino. No Brasil não cultuamos heróis mortos (pelo menos por muito tempo; dá forte e passa logo). Cultuamos reis, já que expulsamos o rei para colocar no seu lugar uma máfia cruel, desprovida de carisma e que implantou-se pela guerra. Pelé e Roberto Carlos são nossos exemplos de mitos em vida. Precários, porque conseguem ainda viver suas vidas humanas. Mas não são melhores do que ninguém. Toda vez que o Pelé faz um anúncio e dá aquela risadinha forçada e sem som, mudo imediatamente de canal. Roberto, então, nem se fala (tantas emoçõeshhh...). Mas, eles podem. Acertaram muito mais do que erraram.

DESPREZO – O mundo hispânico despreza a palavra Brasil porque conseguiu engolir a América portuguesa, nós, no seu imaginário fajuto. Basta ver um filme da Carmen Miranda ou verificar que o mundo pronuncia samba como se fosse rumba. Como não temos existência – e quando temos a chance, nossos ídolos cantam em espanhol ou inglês – somos chutados. A CNN em espanhol então, gargalha com o Brasil. Não há uma reportagem decente. Sempre é nossas violência ou miséria. E futebol só quando perdemos, para darem aquela risadinha execrável. O Brasil precisa dar um chega para lá nisso. Dizem que na Inglaterra nosso embaixador está fazendo um trabalho magnífico e chamando a atenção para nossa cultura. É um passo para difundirmos nossa identidade, longe dos cucarachos. Lutamos 500 anos contra eles para os caras, enfim, nos devorarem. Por que? Uma jogada de Pelé vale por mil Maradonas. Pelé é a grandeza de um império, Maradona é o esplendor de um estilo que comparo a uma correria com precisão de relógio cuco. Espero que ele se livre da armadilha e possa sobreviver ao mito que o empurra para a morte. Já vi Maradona fazer altos elogios ao futebol brasileiro. É uma pessoa que teria chance de sobreviver, não fosse a pressão da ansiedade pela hegemonia.

RETORNO - É o seguinte o horário do programa Leituras, da TV Senado, que vai transmitir minha entrevista para o jornalista Mauricio Melo Junior:
sábado: 9h30, 20h
domingo: 20h30
Ontem, no Momento do Livro, da TV Cultura (22h15), Jefferson del Rios indicou Universo baldio. Baita força do veterano amigo, meu editor da Folha ilustrada nos anos 70.

19 de abril de 2004

O PASSAGEIRO BATE O BUMBO


Uma entrevista para o jornalista Mauricio Melo Junior, do programa Leituras, da TV Senado, que irá ao ar no próximo fim de semana, uma entrevista para a Radiobrás, que tem 500 emissoras filiadas, e uma resenha que saiu hoje no Diário Catarinense, assinada por Dorva Rezende, são as primeiras manifestações fortes da mídia em relação ao meu romance Universo Baldio. A resenha de Dorva é a primeira dedicada exclusivamente ao meu trabalho em 23 anos. A imediatamente anterior saiu na IstoÉ em 1980. Desta vez, o bloqueio acaba. Transcrevo abaixo o texto que saiu no Diário.

Literatura

Relato de Floripa no tempo do desbunde

Romance autobiográfico recheado de invenção do poeta Nei Duclós

DORVA REZENDE

"Florianópolis, início dos anos 70. Praia de Itaguaçu. Um grupo de jovens vindos de diferentes lugares do Brasil (a maioria de Porto Alegre) divide suas misérias, sonhos e uma quantidade considerável de drogas, além, é claro, de um teto, em plena ditadura.
Primeiro romance do poeta e jornalista gaúcho Nei Duclós, Universo Baldio é um relato do desbunde, período em que uma boa parte da juventude brasileira trocou a rebeldia pelo niilismo. "Depois do AI-5, depois de 68, a universidade perdeu o sentido. E com a repressão pegando firme, Floripa, antes do aterro, foi como um paraíso descoberto por uma primeira leva de gaúchos que fugiam de Porto Alegre numa época de terror", diz o autor, que morou em Florianópolis entre 1972 e 1973 (trabalhou na Propague), comprou há uns anos uma casa na Praia dos Ingleses (ele estava aqui durante o Apagão) e pensa em se mudar em definitivo para a Ilha. "É uma paixão antiga", confessa.
Em São Paulo, onde fez carreira jornalística, Nei trabalhou na Folha, nas revistas IstoÉ e Senhor e no jornalismo empresarial. Atualmente, é coordenador editorial da W11 Editores, por onde saiu, através do selo Francis, o seu novo livro. Anteriormente, Nei havia publicado os poemas de Outubro (1976), No meio da rua (1980) e No Mar, Veremos (2001).
Universo Baldio é dividido em duas partes e expõe panoramas de quatro cidades: Florianópolis, Porto Alegre, São Paulo e Uruguaiana (onde Duclós nasceu, em 1948). O primeiro tempo, intitulado República de Itaguaçu, narra as desventuras de quatro amigos (ou cinco, ou seis, o número de pessoas na casa variava), todos sem grana, uns deles repórteres free lance, entre outros bicos, que sobreviviam graças à boa vontade de dona Isaura, a empregada. Quando ela se demitiu, um da turma não suportou a perda e foi embora também. Época em que, entre experimentos com vários tipos de alucinógenos, os "desterrados" partilhavam da amizade com o cantor e compositor Luiz Henrique Rosa, passeavam no Simca Chambord do músico bigodudo e de pedalinho na Praia de Itaguaçu, escutavam rock'n'roll: "Os discos não eram muitos. Hoje, meu filho cata coisas daquela época na Internet e vêm me perguntar se eu ouvia. Coisas que eu nunca conheci. Quando muito escutávamos Hendrix, Caetano, essas coisas", fala Nei, cujo alter ego, no livro, é o personagem Luís, que adota com relação ao desbunde uma postura crítica, embora não deixe de participar da farra permanente. "Como não tínhamos importância, éramos uma geração excluída. Não acreditávamos mais na militância, então a nossa forma de reação era através da arte", diz ele.
A segunda parte do livro, intitulada Papel de bala, transcorre em São Paulo, três décadas depois, quando Luís é assombrado pelo fantasma de um velho caudilho da revolução de 1923, o general Honório de Lemos, que o leva de volta para o pampa num percurso expiatório. "Quis fazer uma espécie de viagem na emoção, em busca da sinceridade da linguagem. Num país que desperdiça tudo, essa segunda parte do livro seria como uma ferida aberta", afirma Duclós.

Universo Baldio - Nei Duclós (Francis/W11 Editores). 192 págs. R$ 29,50"

18 de abril de 2004

A DOENÇA INFANTIL DO LIVRISMO


A insistência na abordagem de apenas um dos aspectos da Bienal do Livro – enfoque nos leitores mirins – direciona a cobertura do evento para fora do verdadeiro impacto, a dos livros de autores importantes. O livro, que está na vanguarda, fica parecendo brincadeira de crianças. Nada contra as atrações para o público infantil, mas como o resto do conteúdo exposto nem chama a atenção devida da mídia, não seria o caso de perguntar: a quem serve essa distorção?

EXCLUSÃO - Serve aos poderosos de sempre, claro. Para que cultura, para que consciência, para que seriedade? Desconfio dessa história de carregar compulsoriamente a criançada para um ambiente fechado e enchê-la de coisas, como clássicos infantis embalados como sabonete, um espaço especial que tem a forma, segundo da TV Cultura, de ”um livro sem nada dentro”(ah, chegaram à perfeição), e palhaços gritando no microfone para ninguém (por que não um microfone para que autores leiam trechos dos seus livros?) . “Formar futuros leitores” na Bienal quer dizer isso: o mercado acha que ninguém lê, portanto enche as prateleiras de porcarias e volta-se para desvirtuar o gosto infantil pela leitura. Pois um leitor forma-se dentro de casa e na escola. Se dentro de casa não existe um livro e na escola nenhuma biblioteca, não adianta encher a criançada de coisas inúteis, para ir “se acostumando”. A Bienal acaba sendo um enorme evento de quadrinhos, livrinhos sem nenhuma importância e volumes de coisas inúteis e bizarras. O que não corresponde à verdade. O conteúdo mais impactante fica à margem. Por que insistir tanto em desenhistas e não em escritores, por exemplo? E o pior: sempre os mesmos artistas. Outra distorção é chamar qualquer idiota estrangeiro de gênio ou coisa que o valha. Nem memorizo o nome de autores que aparecem na foto de casaco pendurado nas costas com olhar cool, na faixa dos 15 anos (mas que no fundo estão com trinta, já que a infantilização das pessoas chegou ao biotipo), que “fizeram furor”no estrangeiro. Ou seja, na frente da fila, temos uma montanha de coisas ridículas e ao lado disso os emergentes sem importância do lado de lá da fronteira.

BIMBOS FORA - Recebo agora de graça a Veja (durante seis semanas, diz a promoção) e vejo que ela, apesar de uma lista idônea dos mais vendidos e a boa seção Veja recomenda, não tem uma seção de resenhas. Ou seja, erradicaram a análise e a opinião das revistas semanais, com algumas honrosas exceções. Carta capital ainda possui uma seção de livros, mas muito pequena. Lembro minha seção na revista Senhor, com cinco páginas semanais, cheio de gente de primeira analisando toda espécie de livro importante e áreas pesadas, como economia, história e sociologia (incluí mais tarde uma estante de literatura). Mas isso foi no século passado! Vivemos uma época em que, apesar da pressão dos leitores por qualidade, o mercado insiste nas bobagens, porque acha que isso sim é que é mercado de livros. Daqui a pouco, quando o marketing não funcionar mais e sobrarem os títulos bobos nas prateleiras, sem vendas, eles vão acordar. Por enquanto, procura-se aplacar essa sede com autorezinhos bimbos do estrangeiro. E não se presta atenção à verdadeira revolução promovida por inúmeras editoras, que estão oferecendo novas traduções de clássicos, relançando papa fina de todos os continentes e apostando em novos autores, dentro e fora do Brasil. É isso que precisa ganhar destaque maior. Bienal é evento cultural e não play-ground da mediocridade. E viva o Ano do Livro!

RESENHAS - Por que serve aos poderosos? Porque leitura boa atrapalha, forma eleitores de qualidade, o que significa tirá-los do poder. Então se encara o livro como mero entretenimento. Não é! Um livro pode mudar sua vida e mudar o mundo. Esse perigo é o que querem evitar. Não significa que um livro não possa ser uma delícia de ler. O bom do livro é quando ele me estoca, me enche de perguntas e dá um banho gratificante de revelações. Para fazer isso na mídia, é preciso trabalhar muito, compor equipes, chamar consultores culturais, mergulhar nos conteúdos. Para substituir esse esforço, destacam-se alguns autores e dê-lhe resenhas em cima deles. Disse para Marcelo Pen e Cassiano Elek Machado, da Folha: parece pauta autista essa obsessão por alguns autores, essa mesmice da abordagem. Pessoas cultas como são, concordaram. A Folha embarca em muita canoa furada, mas pelo menos tem, além da excelente coluna do Cassiano e as belas resenhas do Marcelo (entre outros), o Mais!, que é o melhor caderno cultural do país. Precisamos de mais Mais! Sorte também que o Caderno 2, de O Estado de São Paulo, mantém em alguns dias da semana o esquema clássico de resenhas, voltado para a análise. Isso deve servir de exemplo para outros veículos. Mas o que falta mesmo são mais reportagens culturais focadas no que interessa. Isso deve ser feito na rádio, na televisão e nos cadernos da imprensa. Ou estou muito enganado, ou a Veja não deu uma linha sequer sobre a Bienal do Livro. Espantoso!

17 de abril de 2004

A SÍNDROME DE BUENOS AIRES


Falou em livro no Brasil, lá vem a história de Buenos Aires ter mais livrarias do que o Brasil todo, acompanhada pela majestática besteira “o brasileiro não lê”. Esse confortável álibi para justificar a exclusão social – e distorcer o mercado de livros - é repetido sem provas, há décadas, tendo se transformado numa espécie de idiotice oficial da ignorância bem fornida. Esquece-se que a economia da Argentina inteira é menor do que a do estado de São Paulo e que desde a revolução de Monteiro Lobato os pontos de vendas de livros multiplicam-se no Brasil. Até estação de metrô vende livro, sem falar nas papelarias, bazares, lanchonetes, super e hipermercados. E quando chega uma Bienal do Livro, explodindo de fartura, as asneiras voltam a se repetir, como se fosse importante mantermos uma auto-estima baixa, a serviço dos espertinhos de sempre.

O BRASILEIRO LÊ! – Claro que em relação à gigantesca população deste país-continente, com péssima distribuição de renda, escolas insuficientes, livrarias idem, há muito o que andar. Mas o pouco que temos é MAIOR do que existe em vários lugares conceituados. Nossa classe média é o triplo da classe média da Suíça, o dobro da que existe na França e bate, em números, em todos os países da América do Sul. Além disso, lê-se em todas as classes sociais, e muito. Multiplicam-se as bibliotecas populares, cada cidadezinha começa ter seu ponto de venda desse produto e muito comerciante sabe que, estando hoje na vanguarda, o livro está começando a vender mais do que as revistas, que estagnaram no tempo com seus falsos conteúdos cheios de “dicas” de como dar na esquina, entre outras preciosidades didáticas. Há uma fome de conhecimento, buscado com paixão por uma população que foi abandonada às própria sorte e que mantém o país de pé, funcionando, e que é saqueado diariamente por uma política econômica ditada com crueldade e apresentada sempre com sorrisinhos anódinos de superioridade. As editoras estão acordando para a essência da sua atividade, que é focada no autor e sua criação e não no marketing equivocado ou na oferta gigantesca de porcarias para um público que pretensamente “não lê”. O que é preciso mudar é dar uma chance ao livro bom, investir nele e não em porcarias. A Folha de hoje traz um artigo dizendo que o leitor da Bienal é um envergonhado que prefere a impessoalidade do evento a ser humilhado nas livrarias. É impressionante a capacidade de se dizer coisas como essas.

GORKI A PREÇO DE BANANA - Tenho ido na Bienal diariamente e não vi ninguém envergonhado. As pessoas são desenvoltas e procuram os melhores títulos e ofertas. Existe Maximo Gorki a dois reais (como descobriu a graduando em Letras na USP, Tabata Marques, e colaboradora fixa da W11 Editores), chovem promoções como descontos de até 50% por uma hora etc. Claro que existe muita chatice de marketing sacana, mas o grosso da Bienal é focada na diversidade dos autores e livros – portanto não se justifica dizer que essa é uma Bienal da mesmice por destacar os mesmos autores de sempre (o que vale não é a programação oficial apenas, mas o que realmente as editoras estão oferecendo, e o que está se oferecendo é trabalho duro, suado, feito com ânimo - ou seja, o que vale é a percepção desse movimento) . Outra impropriedade do referido artigo é cair na tentação de dizer que "a literatura sempre foi mantida numa aura de sacralidade”. Não é verdade. Shakespeare fazia teatro popular (seria patético falar na sua qualidade, mas é o que ele oferecia: alta cultura para a população), Garcia Marques (o maior escritor do mundo) vende milhões de exemplares. A literatura vem da cultura oral, aquela dita em voz alta para a massa. Uma parte dela passou pelo processo de erudição, mas mesmo autores considerados difíceis costumam se impor e vender muito. A Bienal atrai gente não porque é estuário de leitores envergonhados, que fogem da pretensa sacralidade livresca, mas porque lê-se como nunca no Brasil e um evento desses é a oportunidade de os leitores terem uma visão completa do que as livrarias e outros pontos de venda estão oferecendo. O que estraga é mentalidade de que somos uma nação de idiotas iletrados e por isso mereceríamos o excesso de oferta de porcarias (produzidas em função desse equívoco), já que “esse povinho gosta mesmo é disso”. Esse elitismo de galinheiro atrapalha, mas não vence a irresistível tendência de um povo que lê, e lê muito, e fica a par da criação intelectual brasileira e internacional e vai incomodar cada vez mais, porque essa informação rompe barreiras, muda políticas e transforma o mundo. Falar o contrário é apostar no conservadorismo, no narizinho empinado, na exclusão permanente.

UM DIA E TANTO – Ontem, sexta-feira, dei uma entrevista ao vivo pelo telefone para a radio Cultura de Porto Alegre e outra gravada para o jornalista Mauricio Melo Junior, da TV Senado, que irá ao ar nos próximos dias, ainda não tem data certa. Admiro Mauricio porque, além de manter há três anos talvez o único programa especializado em livros da TV brasileira (o que diz tudo do preconceito que existe contra os leitores brasileiros, pois deveríamos ter um programa desses em cada rede) ele é um exímio entrevistador, profundo, que não se entrega a nenhuma pergunta fácil. À noite, o estande da W11 foi honrada com a visita de dois excelentes jornalistas, Cassiano Elek Machado e Marcelo Pen, da Folha. Pessoas finíssimas que foram visitar nosso diretor Wagner Carelli e conversaram conosco sobre a Bienal e o mercado, num ambiente maravilhoso que a maior exposição da cultura de livros do Brasil proporciona, que é o convívio entre profissionais do ramo, autores, jornalistas, leitores em geral. Foi um dia e tanto para quem está lançando seu primeiro romance – Universo Baldio - e prepara-se para lançar seu quarto livro de poemas daqui a algum tempo. Vamos em frente.

RETORNO - 1. O que realmente atrapalha na Bienal são os preços de acesso ao evento: oito reais para entrar, doze reais para estacionar. O que não atrapalha é a organização: talvez essa seja a mais bem organizada Bienal que já visitei.
2. Você conhece alguém que não tenha uma estante de livros na sua casa? E quantos você conhece que tem uma biblioteca? Poderão dizer: mas isso é uma minoria. Não é, cara. Somos milhões. Más notícias para os idéias-fixas: não somos uma elitezinha letrada, somos uma massa impressionante de leitores neste gigante das letras que é o Brasil. Ou seja: não estamos numa fazenda colonial, estamos no meio de uma revolução industrial, um ambiente onde a Internet funciona como fomentadora de mais leitura.

15 de abril de 2004

O LIVRO NA VANGUARDA

É nos livros que o exercício autoral está dando banho na mídia tradicional. Denúncias anti-Bush tomam conta do noticiário e vendem milhões de exemplares em todo o mundo. Ao mesmo tempo, há grande oferta de trabalhos que vêem à tona com grande diversidade, soterrando de vez as figurinhas carimbadas e revelando autores jamais vistos ou lidos. A Bienal que começa nesta quinta-feira traz, em meio a grande quantiudade de obras que não surpreendem, jóias que precisam de garimpo seguro para entender melhor o mundo onde vivemos e como anda a grande aventura da criação.

AVALANCHE - Quando anunciei, no final de 2003, que este 2004 seria o Ano Livro, não estava pensando apenas na Bienal, nem apenas no livro que estou lançando, Universo Baldio. Mas na onda cresscente que essa atividade ocupa hoje no Brasil. Nem sabia direito a posição de vanguarda que o livro ocupa hoje e que, diante do grande cerco da mesmice e da corrupção das mentes, abre novos espaços no coração dos leitores. Isso não estava ainda claro para mim. Foi Wagner Carelli, fundador e diretor da W11 Editores, que teve essa sacada e me deu um banho de informação com os títulos que ele estava lançando ou por lançar. Em poucos meses, mergulhei em autores dos quais jamais tinha ouvido falar, como o grande repórter investigativo Greg Palast, o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, o sociólogo Barry Glassner, os espanhóis Pablo Tusset e Javier Cercas, ou autores como T. H. White, que escrever a definitiva versão da saga arturiana, O único e eterno rei, entre muitos outros. Além dos livros que ele pediu para traduzir e estaremos lançando brevemente. Não se trata aqui de divulgar o trabalho ao qual me dedico mais de 10 horas por dia. Mas de revelar o quanto uma editora pode fazer pela cultura do país, desde que se disponha a um trabalho de qualidade, produzindo livros com entusiasmo, acreditando no que se faz. A Bienal será a grande vitrine desse esforço de militância cultural, do qual participo com todas as forças disponíveis, junto a uma equipe super bala. Este é o Ano do Livro. Não só do meu livro ou dos livros da W11. Mas dos inúmeros lançamentos e relançamentos que povoam os estandes da Bienal e que até o dia 25 estarão disponíveis para que o Brasil se convença que é por esse caminho que se recria o imaginário do País, hoje tão atolado em inúmeras contradições.

RETORNO - Gim Tones me telefona comentando o acompanhamento dos personagens de Universo Baldio e a fabulação que dedico a cada um deles. Meu irmão Luiz Carlos lembra que , no jogo das bulitas – que tem no romance algumas páginas dedicados a suas regras – ficou faltando o grito de guerra “jogo viola e pelo as gralhas”, que dizíamos “pelo as graia”. Ele explica que a gralha, pássaro penoso e altissonante, era a imagem dos jogadores cheios de bico e pompa, que seriam “pelados” pelos seus desafiantes. E viola é sinônimo de bulita, que em outras partes do país chamam de bolinha de gude. Marco Roza, autor de Procurar emprego nunca mais, assume a divulgação entusiasmada de Universo Baldio, colocando inclusive à disposição uma assessora de imprensa, e envia release para sete mil jornalistas. É preciso que o livro seja anunciado para ser procurado e lido. Aguardo as resenhas, que virão. E o retorno dos outros amigos, que aos poucos enviam e-mails ou telefonam para comentar passagens do que escrevi diante do mar ou aqui dentro do meu escritório caseiro, em São Paulo. Meu irmão Elo diz que o livro é bom de ler, o que é elogio de primeira para um escritor ansioso. E Carlos Marques, da revista Ícaro, da Abril, avisado pelo release de Dom Marco, me faz magnífico telefonema carregando altos arquivos do pampa. Por falar em pampa, hoje enviei minhas colaborações para a segunda edição da revista Fronteira, de Uruguaiana, que será dedicada ao futebol da cidade. Só as histórias do lendário Mario Pinto, da radio Charrua, escrita pelo repórter Chico Alves, vale a edição.

13 de abril de 2004

TOM HANKS E O MITO FUNDADOR



“Náufrago”, filme de Robert Zemeckis, com Tom Hanks no papel principal, revisita o texto fundador da literatura de língua inglesa, “A vida e as estranhas e supreendentes aventuras de Robison Crusoe”. Publicado por Daniel Dafoe em 1719, o livro teve ainda duas continuações e é baseado nas experiências de Alexander Selkirk, que em 1704 fugiu e foi parar numa ilha deserta, de onde foi resgatado cinco anos depois. O filme adapta a história para a realidade americana: acaso e decisão nas mãos de um herói solitário, que para sobreviver e libertar-se assumiu integralmente a missão a que estava destinado.

TEMPO E ESPAÇO – O filme é perfeito em todos os sentidos. Afastado da civilização, o cidadão tenta reproduzir na solidão o mundo a qual pertence. E qual é esse mundo? O tempo loteado, a rota definida. Funcionário da Fedex (esse é talvez o mais longo e completo merchandising da história do cinema), ele é um desbravador de mercados e faz treinamento aos berros - na Rússia, claro, onde aparece o retrato de Lenin sendo retirado, uma coisa que os americanos adoram mostrar para provar que são os grandes vencedores da guerra fria, ilusão que resultou no atoleiro do Iraque. Sua mensagem aos pobres russos é simples: somos servos do tempo, precisamos aproveitar esse jugo para faturar, vencer. A servidão revela-se numa situação limite: em plena ceia de Natal, ele é obrigado a tomar um avião para fazer uma entrega. O acaso intervém para desviá-lo da rota, que é o espaço definido para a missão ser cumprida. Quando é jogado fora desses dois vetores, ele precisa agarrar-se às oportunidades oferecidas pelo acaso para poder aproveitar o tempo que dispõe – não só os minutos que escorrem, mas a mudança das estações – e livrar-se do confinamento do espaço, a ilha deserta onde se encontra. Quase se enforca antes de chegar à conclusão de que precisa intervir, construir uma balsa, e assim romper a armadilha onde foi apanhado. Conta para isso com a ajuda do parceiro imaginário – representado por uma bola de vôlei – o que é básico em qualquer filme americano. A parceria masculina é a civilização americana. A mulher, presença imaginária e desejada, não participa da trama, serve apenas como objetivo, inspiração. O que conta é a amizade entre iguais, e quando não existe mais ninguém ao redor, o americano precisa inventar alguém para compor a sua história. É dramática a perda desse companheiro – a bola é carregada para alto mar – e significa o fim da esperança. O acaso intervém para que o herói possa voltar. Mas esse acaso foi inventado por ele, que se colocou na rota dos navios depois de enfrentar o oceano com meia dúzia de paus amarrados.

TENSÃO DRAMÁTICA – O drama aguarda a volta do herói. A mulher dos seus sonhos, a qual abandonou numa noite de Natal para entregar uma encomenda, desviou-se da rota do amor e fundou uma família. Esse é mais um mérito do filme, que não se entrega ao lugar comum e encaminha o personagem para sua libertação depois de mais um rito de passagem, quando enfrenta ressentimento e dor por ter embarcado naquela noite. O resultado é que ele consegue enfim a liberdade, pois pode agora escolher o próprio caminho e dispõe de todo o tempo do mundo. Não é outro o significado daquele sorriso final de Tom Hanks, o rei da empatia no cinema, o ator que tem em todo mundo um vasto clube informal de admiradores, que sabem de cór cada cena que ele fez e gostam tanto dos filmes considerados “menores”, quanto as grandes realizações, como este inesquecível “Náufrago”. O filme foi um presente da TV Globo (Tela quente, segunda-feira, 12/04/04), essa unha-de-fome inominável, que senta em cima de tudo para vender seu peixe a conta-gotas (a começar pela escassez da informação prazerosa, o replay do gol focado apenas na conclusão e jamais na jogada inteira, tudo para economizar espaço para os comerciais). Mas Deus é maior e quem, como eu, perdeu a oportunidade de ver Tom Hanks na tela grande pagando mico na ilha deserta, pôde aproveitar a chance.

AMÉRICA VIVE - O americano não habituado à civilização praieira precisa aprender o que sabemos desde antes de nascer, abrir um côco. E quase morre para acender uma fogueira, coisa absolutamente fácil para nós, que contamos com um litro de álcool e dúzias de papel para fazer pegar qualquer carvãozinho. Como são diferentes de nós! E, nas mãos de seus grandes artistas, como conseguem ser universais! Tão universais que chegamos quase a nos identificar plenamente com eles, como se isso fosse possível. O importante é que aquela América que amamos – e que foi temporariamente derrotada nesta fase tenebrosa dos Bushs – mantém-se firme, apesar de tudo. É uma contradição, pois o filme paga pau para o país imperial que coloca as patas no ex-mundo comunista. Isso é um detalhe, que revela apenas o quanto os americanos estão presos em suas armadilhas. Mas a arte que eles conseguem produzir, apesar dessa prisão, é admirável. Não abrem mão de seu perfil, mas colocam à prova tudo o que são de verdade para entender melhor a humanidade a qual pertencem. Isso é o que vale. No fundo, entregar aquele pacote indevassável no mais ermo dos lugares significa libertar-se do jugo da missão traçada pelo império. É o indivíduo que sai ganhando. Ele submete-se para libertar-se. Ele adquire consciência quando descobre os mecanismos da sua prisão. Ele sai pela porta da frente. Ninguém mais poderá detê-lo.

12 de abril de 2004

IAIÁ VIOLÊNCIA


A privatização da violência está nas raízes da formação do Brasil. O senhor de engenho era obrigado, por lei, a ter determinada quantidade de pólvora e armas, tudo armazenado num depósito com dimensões definidas no papel. A violência, que deveria ser monopólio legal do Estado, formou-se então a partir da única reforma agrária do Brasil, as capitanias hereditárias – conforme sacada de Millor Fernandes. Senhora de muitos caprichos, ela migrou para todos os setores sociais e hoje inferniza o País, especialmente no Rio, onde fica claro que a ausência de Estado nas favelas deu lugar à bandidagem armada. Mas essa situação não é exclusiva do Rio, está explícita em todos os momentos da nossa vida.

GESTOS SENHORIAIS – Como a violência não é exclusiva do Estado, todos se acham no direito de exercê-la. Nesta terra de escravos, todo mundo é senhor. Vejam no trânsito, quando alguém “permite”, com sacudidinhas de mão e braço, que você pode passar, ou que você deve parar. Ligar a lanterna tem o mesmo peso do farol (ou sinaleira, como dizemos em Uruguaiana). O sujeito liga o pisca-pisca e entra, já que sua vontade é a lei. Nas entrevistas da televisão, é comum a expressão “tá!?”, professoral, sinal de que a pessoa não está apenas emitindo uma opinião, está ditando uma ordem. O sucateamento dos direitos trabalhistas também trouxe uma grande distorção. De um lado, o jugo escravo nas empresas, que terceirizaram tudo, ou então a situação de inadimplência empresarial que não consegue honrar tanta burocracia. De outro, como as leis continuam em vigor, no papel, existe muita chantagem por parte de funcionários, que por qualquer coisa processam os patrões. Ou seja, sem um Estado organizado, a violência corre solta por todos os lados. Mas vamos a mais gestos: o dedinho levantado, o nariz empinado, o tom deliberativo, a reação oposta a qualquer manifestação do Outro, quando qualquer frase reativa começa invariavelmente com um “não” etc. Escutar é submissão, dizer é mando (por isso todos falam ao mesmo tempo, ninguém se submete à fala alheia). Iaiá Violência amplia assim seu império. Ela torna-se insuportável quando anda armada. O braço para fora da “viatura” significa que o representante da lei extrapola o espaço que lhe foi confiado. O tiroteio pelo ponto de drogas é a prova que não há repressão eficiente ao tráfico, que corre solto. O desastre chamado Garotinho, que fez um interrogatório fajuto em frente às câmaras para incriminar um suspeito (negro!) é típico deste país sem um dono, o Estado, mas de muitos donos, os senhores de corte e cutelo, que assumem cargos públicos apenas paras aumentar seu poder de fogo.

MONOPÓLIO - A violência é o braço armado da indiferença. Como não se presta atenção em ninguém, só quando for colocado como vítima, o tiroteio atinge a todos, crianças, velhos, mulheres grávidas, a população “inerme” (desarmada, como dizem os livros antigos de memórias dos militares). A paz fica então sendo a verdadeira revolução. A paz só se consegue com o monopólio do exercício legal da violência por parte das instituições nacionais. É comum chamarem as Forças Armadas para dar conta do recado, principalmente quando o Exterior está de olho em nós, como aconteceu na Eco-92. Mas as Forças Armadas, garantia constitucional do território, não podem envolver-se na guerra civil de rua. Essa posição vem do tempo da perseguição a escravos fugidos, quando a polícia não conseguia dar conta do recado e quiseram, em vão, chamar o Exército. O que precisamos é de uma polícia competente e livre da corrupção, bem amparada pelo poder executivo. Equipamentos de última geração (tecnologia, principalmente o da identificação de criminosos), uma corregedoria de primeira, salários decentes. É um escândalo que a Polícia Federal esteja em greve. Não pela greve em si, mas pela situação que empurrou os policiais a essa decisão. A polícia não pode, por falta de remuneração adequada, fazer “bico”, ou seja, não pode participar da privatização da violência. Não é admissível que policiais vendam seus serviços a particulares. Não se pode permitir que flanelinas tomem posse o espaço público. Não se pode permitir que traficantes mandem no comércio.

LÁ COMO CÁ - O governo Lula, de tantas promessas, estatela-se no chão da mediocridade. Nada fez, nada faz, nada fará? Enquanto isso, a direita faz campanha contra a justiça, pregando a matança. No cinema americano, a mesma coisa: de um lado, a incompetência da polícia em resolver a parada, que fica a cargo dos heróis solitários; de outro, os filmecos de tribunal, que tentam provar que a justiça funciona. Como pode funcionar se o Estado imperial invade um país sem licença da ONU? Se os estrangeiros são tratados como terroristas? Se foram suspensos os direitos da cidadania em plena era Bush? A violência de lá tem outras raízes e outra natureza, mas identifica-se com violência colonial de cá. No fim, tudo vira a mesma coisa.

10 de abril de 2004

O SERÃO DE BRÁS CUBAS



O filme de André Klotzel baseado em Machado de Assis transforma as memórias póstumas do anti-herói numa sessão de slides, num álbum de fotografias, narrado por um anfitrião brechtiano, que desdramatiza a própria vida pela técnica do distanciamento, usada de maneira igualmente magistral em outro clássico do cinema brasileiro, Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade. Como nos serões antigos, o objetivo aparente é entreter, mas o resultado é cinema de primeira água, inspirado na máxima machadiana: “matamos o tempo, o tempo nos enterra”.

APARÊNCIAS - O Brasil é um milagre cultural. Memórias Póstumas de Brás Cubas tem tudo de “anti-cinema” – o oposto do cinema americano. É narrado o tempo todo, os diálogos vestem a camisa-de-força do velho romantismo, os personagens não trabalham nem movem montanhas, apenas nascem e morrem, enquanto passam a vida numa modorra de sesta. Ou seja, não há, aparentemente, “ação”. À parte isso, é absolutamente deslumbrante. Não pela sucessão de imagens maravilhosas, pelo figurino caprichado, pela contenção dramática – e nisso os atores todos são perfeitos, desde Reginaldo Farias, o defunto narrador, até Sonia Braga, a amante cara, uma atriz de presença sempre marcante nos filmes brasileiros e totalmente desperdiçada nos estrangeiros, que a submeteram a papéis ridículos ditados pelo preconceito. O filme é primoroso porque inventa sua própria ação, promovida pela autocrítica, pelo desabafo, pelo alívio de não fazer parte dos vivos. O país que exclui a todos é o país excluído. Aceitar o abandono é libertar-se. Livre de qualquer injunção do movimento, Brás Cubas volta-se para seu próprio nariz e faz uma pesquisa minuciosa do seu corpo, que denuncia o frio mortal, a palidez, o sufoco. Sua visão antropológica encara cada parte do corpo como um personagem: as mãos, no ritual litúrgico do humanitismo de Quincas Borba; as pernas, que decidem levá-lo para longe; o andar coxo da adolescente, marca da desgraça e de mais exclusão. Nesse mural humano, a coletividade se identifica pela contrafação. As partes originais do corpo são substituídas por suas representações - roupas e outras aparências: as botas francesas, os coletes, os casacos, as jóias, os penteados, as costeletas. E por efeito dominó, os cargos, a oratória, a pompa. Tudo isso deságua na melancolia incurável, que obriga Brás Cubas a ter a idéia fixa do emplasto que irá salvar a si e ao resto da humanidade da qual faz parte.

MATO CERRADO - O filme aborda a indiferença como segunda natureza de uma nação em desuso, composta de ruínas, de ruas sujas e paredes feias, de escravos por toda a parte, de ostentação como verniz da miséria. A radiografia de Machado serve ainda para nosso tempo, afirma cinematograficamente Klotzel. Somos indiferentes profissionais, daí a ciclotimia. Ou ficamos eufóricos, ou melancólicos. Não há normalidade no país, apenas a prorrogação da sesta e a véspera do escândalo. Esse é o perfil que Sergio Buarque de Holanda batizou de cordialidade, ou seja, o comportamento ditado pelo coração. A falta de solidez no trópico úmido, onde um vento encanado mata em pleno verão, reflete-se na nossa cultura totalmente à mercê do que vem de fora. Brás Cubas, o filme, recupera essa visão crítica num clima de vigília, aquele estado intermediário entre o despertar e o sono, porta de entrada para a magia, as visões, os mundos paralelos, conforme ensinou Juan Mattus para Carlos Araña Castañeda. Nos movimentamos em mundos inventados para não despertar totalmente. O filme assim, sem pretensão de ser vanguarda, utiliza metodologia inovadora para, didaticamente, encher a paciência do caro espectador. A toda hora, o narrador lembra que estamos na poltrona, acomodados, imóveis. É a nossa imobilidade que se projeta no filme, que nos devolve uma obra que é um desfile de fantasias, pontuado pela competência rigorosa de um cineasta maior, que dirige grandes atores. Estes, concentram a verdadeira ação do filme: o da arte como desbravadora da consciência.


RETORNO - Miguel Duclós cria e põe no ar, no seu site consciencia, uma ferramenta maravilhosa para quem quiser pesquisar sobre filosofia. Num trabalho inédito, ele formatou:
Argos - Sistema de Busca em Filosofia
"Este sistema de busca faz a sua pesquisa em todos os sites de filosofia cadastrados. Dessa forma, a busca se torna mais relevante e precisa do que nos grandes sites.
Argos indexou o conteúdo de alguns sites de filosofia listados na Seção de Links. Funciona como uma busca específica de filosofia em sites selecionados. Sugira sites por email para miguel@consciencia.org"

CAETANO E CAT BALLOU

Caetano aproveita a carona das críticas para sentir-se na contramão ao lançar um cd seu cantando músicas americanas, numa época anti-Bush. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Caetano canta a América majoritária, a feita pelo povo, que atualmente atravessa brutal repressão do terrorismo de Estado. No cinema, essa América de oposição nos deu obras-primas como Cat Ballou (1965), dirigido por Elliot Silverstein, com Jane Fonda e Lee Marvin, um filme onde os símbolos americanos rolam na lama, naqueles tempo de coragem entre os cineastas.

TV A CABO - De vez em quando, quando estamos distraídos ou dormindo, os programadores de televisão, sem querer, ou sadicamente (aproveitando o traço no ibope) colocam alguma coisa que preste no ar. Vi dezenas de vezes Cat Ballou (a maioria delas no cinema, quando esse filme passava na tela grande) e só agora, em pleno pesadelo de um império que assumiu totalmente sua face do Mal, me dou conta do que esse filme representa. Do que se trata? Os apaixonados pelo cinema nem precisam de lembrete. Basta dizer que a luta da herdeira de um pequeno pedaço de terra contra a bandidagem do dono da ferrovia é um folhetim tradicional, inclusive com dois narradores – Professor Sam The Shade (Nat 'King' Cole) e The Sunrise Kid (Stubby Kaye) - que cantam as aventuras da heroína e seus três companheiros, um índio aculturado, um pistoleiro bêbado, um galã vagabundo e um falso pastor. Os marginais lutam contra o poder, representado não apenas pelo dinheiro, mas pela carolagem explícita (a mesma usada por Bush e ridicularizada até o osso no novo livro de Michael Moore, Cara, cadê o meu país?), pelo xerife veterano e cínico, pelo pistoleiro de nariz de prata. Nessa América movida pelo ódio, o que conta é o dinheiro e as armas. Contra isso luta Cat Ballou, condenada à morte por vingar seu pai, desapropriado e morto. A salvação que encontra é um primor de ironias: a condenada veste-se de noiva para acabar casada dentro de um caixão de defunto, o que foi construído para enterrá-la; o pistoleiro bêbado derruba uma faixa de rua com as famosas listas da bandeira e as estrelas da nação, que rola na lama e impede a perseguição. Há seqüências maravilhosas, como a recuperação momentânea do bêbado (até descobrir que não era amado), em que é colocado em suas roupas de guerra como se fosse um cavaleiro medieval. A graça, o ritmo, a música, a história, a leveza, a denúncia fazem desse filme magnífico um clássico. Filmes como esse são a única forma de eu colocar o zap de lado.

FILMES OCULTOS - O Império sabe o que faz. Jamais vemos na TV o grande documentário sobre o Vietnã, Corações e mentes, talvez a maior denúncia contra a irracionalidade e a demência dos americanos em guerra. Nem nunca passa, mesmo agora, nesta época da Páscoa, o clássico de Pasolini, O Evangelho segundo São Mateus, que instaurou uma nova estética nos filmes religiosos e devolveu a paixão de Cristo ao seu verdadeiro ambiente, o Terceiro Mundo. A Interfnt nos lembra que esse filme foi vencedor de 11 prêmios, cinco deles no Festival de Veneza e com três indicações para o Oscar, além de ganhar o elogio da crítica mundial e o apoio do público. Passam dezenas de porcarias sobre a Paixão e nada desse filme obrigatório. Por quê? Porque esses filmes são perigosos. O cinema americano conseguiu padronizar tudo a favor da intervenção imperial. Aos poucos, há um cansaço geral dos roteiros programados de Hollywood e há uma fome gigantesca de filmes de outros países. É preciso que essa diversidade alcance mais a TV. Não basta o Eurochannel. Por que a TV aberta não assume essa luta? Filmes feitros fora dos Estados Unidos são infinitamente mais baratos de veicular. Acho que não se trata de opressão do Império. É preguiça mesmo, analfabetismo cultural daqui. Nada justifica que todo, e isso fica claro, todo o horário nobre da Bandeirantes, de segunda a sábado, indo até as altas horas e começando aí pelas oito da noite, é tomado pelo tal de Gilberto Barros, o chamado leão. O cara é um só? Para mim existem vários. Não cansa de nos cansar nunca. Como pode uma rede importante dedicar toda a sua principal programação para um cara fazendo palhaçadas grotescas o tempo todo? Ele canta, ele dança, ele se acha engraçado e não pára de falar. E o pior é o suspense que acha que cria quando anuncia seus manjados quadros. Brrrrrrr.

REDE ALTERNATIVA - Caetano aparece mais falando do que cantando. Precisamos tê-lo mais na telinha. Mais Milton, Chico (e não apenas nos eventos Senna), Gal. Nossos maiores artistas aparecem de vez em quando.E há um sofoco geral: não aparece gente nova, o que tem aos potes, fora do circuito da grande mídia. Nas TVs alternativas, sobra amadorismo e falta de talento, com raras exceções. Vi belos programas com violonistas, acordeonistas, percussionistas etc. de primeiro time. Mas é tudo muito precário. Por que não juntam todos os canais alternativos e fazem uma grande televisão, poderosa, com programação de vanguarda, juntando recursos para peitar as grandes? Daria a maior audiência.

RETORNO - Em recente artigo, o jornalista Antonio Gonçalves Filho escreve o seguinte: "A crítica do historiador Geza Vermes ao filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, é tão visceral que nem parece partir de um homem calmo e gentil de 80 anos, professor emérito da Universidade de Oxford. Vermes, autor de uma tetralogia sobre Jesus que levou 30 anos para ser concluída, é o tradutor inglês dos Manuscritos do Mar Morto e considerado um dos maiores especialistas em assuntos bíblicos do mundo. De Londres, ele atendeu a reportagem do Estado por telefone e confirmou sua aversão a quase todas as adaptações cinematográficas da vida de Jesus. O historiador, autor de The Authentic Gospel of Jesus (sua mais recente obra), livrou apenas a versão do cineasta marxista italiano Pier Paolo Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus. Realizado há exatamente 40 anos, o filme, recentemente lançado em DVD pela Versátil, apresenta um Messias revoltado e envolvido com os problemas políticos de seu tempo."

9 de abril de 2004

O LIVRO COMO PRODUTO

Marco Roza deu uma aula de marketing cultural com o que escreveu sobre Universo Baldio na sua coluna na Istoé Dinheiro. Não é uma tarefa fácil. O que dizer de um produto como um livro, que envolve inúmeras variantes? O objeto livro é, em primeiro lugar, destino do autor, sua vocação e criação. E principalmente, investimento da editora, em papel, em divulgação, em credibilidade, em equipe envolvida (muita gente participa da produção). E o leitor com isso? Aí entra a especialidade de profissionais como Marco Roza, que deu sua contribuição com absoluta sinceridade e por livre e espontânea vontade.

APOIO - O autor de Procurar emprego, nunca mais, que prega a independência da cidadania e mostra eficientemente o caminho de como cortar os laços da escravidão financeira e profissional, me telefonou indignado:
- Como que você lança um livro e nem me comunica? Envie imediatamente um exemplar para cá!
Era verdade! Marco Roza está tão próximo de nós que isso tinha nos escapado! Um erro que remendei rapidamente. Na dedicatória, pensando em escrever algo diretamente ligado ao trabalho de Marco Roza, descobri que os personagens do livro estão todo o tempo desempregados ou procurando emprego. Mas ele nem deu importância para isso. Vamos reproduzir o que escreveu: "Trabalho e Sabedoria: O homem como referência de seu mundo – Li Universo baldio, do Nei Duclós (do selo Francis, da W11 Editores). Levei uma tremenda porrada poética, no meio da testa, e estou ainda catando os cacos. Se você gosta de ler o mundo pela alma de personagens complexos, corra até a livraria mais perto de sua casa ou encomende nos grandes sites. Depois, tranque todas as portas, recolha-se a um ofurô (se tiver) ou consiga aquele estado de relaxamento que só a epiderme alheia e querida permite, e mergulhe no Universo baldio. Não deixe seu analista saber desta sua terapia alternativa. Mas se ele reclamar, demita-o. Com o dinheiro economizado, compre mais Nei Duclós e saia pelo mundo distribuindo reflexões, que impressionaram gênios como Raduan Nassar e Mario Quintana". Ou seja, aguçou a curiosidade do leitor, destacou as vantagens de ler o livro e deu o embasamento: a força que recebi de Raduan Nassar e Mario Quintana.

ATENÇÃO - O genial poeta Mario fez um prefácio para meu segundo livro de poemas, No Meio da Rua, do qual pincei uma frase. E Raduan teve a gentileza de aceitar meu convite para ler os originais e depois emitiu sua opinião, por escrito, em carta enviada por fax. A participação do maior escritor do Brasil no meu romance de estréia é definitiva: ele analisou a fabulação e notou a diferença entre os dois tempos em que se divide o livro. Destacou a síncope narrativa da primeira parte e na segunda, a presença de Honório de Lemos, o grande caudilho da minha terra que estréia agora como personagem literário. Trata-se de um Honório criado por mim e isso está dito no romance. Um personagem que põe a história contra a parede. No dia em que telefonei para Raduan e contei alguns trechos do livro e comentei que seu isolamento era muito precário, pois tinha descoberto seu paradeiro, o grande escritor não parou de rir. Disse Raduan: “Você salvou meu dia! Não sabia que você tinha tanto bom humor”. Ou seja, contei com a generosidade de Nassar, Quintana, Marco Roza, e especialmente do nosso editor e amigo Wagner Carelli e toda a equipe que ele montou na W11 Editores. Que trabalhou duro e me cercou de atenção.

RETORNO – Não contente com tudo o que fez, ainda Marco Roza me envia o retorno de uma leitora sua: “Dom Nei, eis a manifestação de uma leitora: "Gostei demais da tua entrevista, diria até, artigo e como disse irei procurar estes dias Nei Duclós. Obrigada. Maria". Nosso querido colunista, que recentemente deu uma entrevista para o Fantástico, da Globo, tem esse hábito de tratar seus considerados por Dom. Na minha interpretação, uma forma de sermos nobilitados pelo privilégio da sua amizade.

8 de abril de 2004

O SILÊNCIO MONTANDO GUARDA

Cercados pelo ruído da primeira revolução industrial que ainda é hegemônica entre nós, caímos na tentação de mergulhar no silêncio mútuo, uma situação de isolamento que a Internet, esse correio na velocidade da luz, ajuda a transpor. Mas não basta. Precisamos recuperar o prazer do encontro, como existia nas antigas comunidades e até hoje, em muito lugar, é cultivado como hábito irremovível. Como antídoto, resgato alguns poemas do livro que o Mario Quintana apresentou e publiquei pela LP&M em 1980, No Meio da Rua.


Poemas de No meio da Rua
(Nei Duclós)

A porta abriu, aconteceu o milagre
Um pé no portal, um passo grave
olho no temporal, corpo e viagem

*
O passageiro é anônimo
anônimo, anônimo
passa pelos homens
passa pelos ônibus

Mas não passa pelos lobos
pelo fogo das barreiras
quando procuram seu nome
no fundo da bolsa

Com as mãos no pescoço
o passageiro se encontra

*
nesta cidade sacana
minha fome procura uma porta
minha voz é uma fonte com sede
meu sonho é um pastor que se mata

estou sobrando
em volta, o silêncio
montando guarda

nesta cidade medonha
estão procurando
meu tombo na próxima quadra
e a minha vergonha
é ainda não ter uma arma

*
O corredor que me aperta
e a porta que me tranca
não fecharão minha garganta

Não matarão minha vergonha
nem levarão meu sonho
as forças que me cercam

Mantenho a forma
nas curvas da fome
não estou começando

O espanto ainda me segue
com reservas de sangue
Sei o que me espera

Não vencerão meu canto
os corvos da época

*
Pudera ser minha vida
como um campo de caça
Sem arestas, puro pampa

Onde vale a sabedoria
a atenção e o relâmpago

Onde a paciência é uma arma
contra os caprichos do fogo
E o silêncio, uma lição
que está no sangue

Pudera ser minha vida
tão limpa como os arroios
olhados à distância

Sem esta armadilha
onde a mentira
arma o escândalo

RETORNO - 1. A maré começou a virar: Marco Roza, autor de "Procurar emprego nunca mais" escreve magnífica nota na sua coluna on-line na IstoÉ Dinheiro. Diz Marco:
"Trabalho e Sabedoria:
O homem como referência de seu mundo
– Li Universo baldio, do Nei Duclós (do selo Francis, da W11 Editores). Levei uma tremenda porrada poética, no meio da testa, e estou ainda catando os cacos. Se você gosta de ler o mundo pela alma de personagens complexos, corra até a livraria mais perto de sua casa ou encomende nos grandes sites. Depois, tranque todas as portas, recolha-se a um ofurô (se tiver) ou consiga aquele estado de relaxamento que só a epiderme alheia e querida permite, e mergulhe no Universo baldio. Não deixe seu analista saber desta sua terapia alternativa. Mas se ele reclamar, demita-o. Com o dinheiro economizado, compre mais Nei Duclós e saia pelo mundo distribuindo reflexões, que impressionaram gênios como Raduan Nassar e Mario Quintana".
2. Fotos de Daniel Duclós no lançamento. Acesse.
3. Correspondência entre José de Alencar e Machado de Assis sobre um poeta alvo da indiferença: Castro Alves! Contra a conspiração da indiferença, Machado propõe a conspiração da posteridade. Leia.

7 de abril de 2004

AQUELE CINEMA OCULTO

A arte da luz entra no buraco negro do tempo. Aos cinco anos, me levam para um lugar escuro, onde apareciam rostos gigantescos, que tomavam conta de uma parede. Fui informado antes: “vais te assustar!” Cumpri a advertência e tiveram que me tirar no meio da sessão. Aconteceu no cine-theatro Carlos Gomes, que me ofereceu, na placa comemorativa, o primeiro desafio da linguagem: “a Carlos Gomes”, dizia a homenagem. Como aquele bigode todo do maestro poderia ter um substantivo feminino na frente? A estranha preposição, que vestia a roupa da primeira letra do alfabeto, assim como os filmes que sumiram no espaço, permaneceram misteriosos por muito tempo.

A BOBAGEM NO PODER - Quando falei em Maciste aqui em casa, a meninada achou graça. Nem acreditavam que existira um Hércules italiano que puxava um navio, a partir da praia, só com os dentes. “É muita bobagem”, diziam, diante dessa súbita aparição da memória. Meu segundo filme, o primeiro colorido, aconteceu no cinema vizinho, o “novo” – para diferenciar do Carlos Gomes, teatro que existia desde o século 19 e nos anos 40 foi reformado para se adaptar aos tempos cinematográficos. O Novo ganhou o apelido do dono, Corbacho. Esse filme foi basicamente uma cena – entrei no meio da sessão – em que uma carroça da cavalaria americana era empurrada pelos soldados em direção à areia movediça. Entrei na hora do ataque dos índios. Lembro dos bravos rapazes genocidas caírem como moscas, apertando no peito flechas ridículas, que pareciam penas de ganso – é pura verdade. Descobri assim, de cara, que era tudo mentira no cinema. Nosso senso crítico da fronteira jamais poderia aceitar semelhante excentricidade. Mas o incrível foi que ao longo daqueles anos, aceitei de tudo – e reproduzia junto com a gurizada as principais cenas, especialmente as do ataque a carruagens, que tinha o prêmio extra, só no cinema, da mocinha agradecida. Crescido, assisti a todas as asneiras que passavam, de filmes argentinos, mexicanos, franceses, italianos, espanhóis, brasileiros e até mesmo americanos. Vi Rastros de ódio, a obra-prima absoluta, aos 14 anos e fiquei acachapado na cadeira com a cena em que John Wayne abre a porta para retirar-se para sempre no deserto, naquele andar capenga que fez história. Só depois em Porto Alegre, quando aderi momentaneamente à moda da cinefilia, descobri que era de Ford.

TIROS EM GRANDE OTELO - Os filmes eram divididos em gêneros bem específicos. Existiam os filmes dos lenhadores canadenses, sempre de camisas quadriculadas – de flanela ou lã – não estou brincando. Havia uma série de filmes ingleses em preto e branco em que o Alec Guiness era o anti-herói permanente. Vi todos e só lembro o ator maravilhoso tropicando pelas ruas londrinas, mais nada. Nos faroestes, havia um gênero em que aparecia sempre o mesmo herói (interpretado por um jovem Jim Davis, o do sorriso maroto), que usava uma farda toda cheia de botão, dividido em duas histórias completamente diferentes uma da outra. Chamávamos esse gênero de “o abotoado dos dois filmes”. Para quem, como nós, não dispunha de nenhuma informação sobre o que víamos, adaptávamos a indústria do cinema ao nosso vasto mundo da cidade isolada do pampa. O pior é que até hoje nada sei sobre a maioria do que vi na época. Juro que assisti um filme em que o Grande Otelo foi assassinado pelos bandidos. Otelo urrava de dor – era uma sessão vespertina – e fiquei chocado: nunca mais veria nosso ator favorito na tela. Não vê que o estavam matando? Esse filme tinha também Oscarito. Os dois faziam papéis duplos. Cada um era bonzinho e mau ao mesmo tempo. Duas duplas opostas. Pois o grande Otelo foi assassinado. Que filme é esse? Ninguém fala, ninguém sabe. E juro que eu vi. O cinema brasileiro atraía públicos gigantescos. As filas dobravam a esquina. Multidões iam ver as trapalhadas dos comediantes, os beijos das heroínas, as cantorias carnavalescas. Era uma festa. Nos faroestes, havia sempre um palhaço a quem chamávamos de Bobota. Quem é o Bobota de Rex Allen? E o do Roy Rogers? Oscarito e Grande Otelo, ingênuos mas muito malandros, jamais eram chamados de bobotas. Isso era para americano trouxa. Tínhamos respeito pelos nossos gênios.

CHAMUCHALEI - Aí um belo dia, os filmes perderam completamente o sentido. Atores de olhos parados, nenhuma ação. Antonioni, Godard, Glauber. As pessoas saíam aos berros do cinema. O Processo, de Orson Welles, considerado sem pé nem cabeça (vi dúzias de vezes) quase provocou uma revolução. Como eu já estava querendo me livrar das prisões mentais da fronteira, via mais de uma vez, para tentar entender. Não entendia. Só meu amigo Gilberto Gick, príncipe da minha geração e que Deus o tenha, saía dos filmes do Godard na maior cara de pau fazendo ruído com a garganta de “huh”, com agás aspirados. “Huh, entendi”, dizia ele, sacudindo a cabeça afirmativamente e olhando para todos. Era o sarro que tirava dos pseudo, os que achavam que entendiam tudo. Ninguém sabia de nada. Mas aquela ruptura nos tirou do buraco negro da sandice divertida. O país e o mundo tinham mudado. Era o início sinistro dos 60. Estávamos, sem saber, prontos para o tempo mau que se aproximava. Nele até hoje estamos mergulhados. Aquele cinema oculto é o Mundo Perdido. Usávamos calças curtas, cabelo escovinha, revólveres e cavalos de madeira. Falávamos uma língua intrincada, adaptada dos ruídos que ouvíamos nas falas dos filmes. “Chamuchalei”, por exemplo, era mãos-ao-alto. Não me perguntem por quê. Também o Mundo Perdido era difícil de entender.

5 de abril de 2004

O LINCHAMENTO DE JESUS


Quem matou Jesus? Não há dúvida que foi Mel Gibson, que representa o mais alto grau da demência americana livre de qualquer amarra na era Bush. Seu cínico depoimento na TV esclarece suas verdadeiras intenções: ele põe a culpa do assassinato não nos judeus ricos de Nova York - e por isso confessa que não é anti-semita -, mas nos povos oprimidos, que, na sua visão distorcida, são culpados pela situação em que se encontram e por isso justificam toda intervenção da brutalidade do poder imperial.

OS IMPERDOÁVEIS - A cultura americana jamais aceitou o perdão, base do cristianismo. Ao contrário, encara o perdão como covardia. Depois de derrotar militarmente os espanhóis em Cuba – o último bastião do poder hispânico no mundo – no final do século 19, os americanos se especializaram em identificar os derrotados, que viviam sob o poder de reis católicos, com galinhas, ou seja, covardões. Basta ver qualquer filme feito em Hollywood: se aparece um lugarejo do México, Bolívia etc., lá estão as galinhas em polvorosa. A Igreja Católica é alvo da mais completa execração pública nos filmes imperiais. Os padres são culpados de tudo e os rituais católicos são colocados como excentricidades de culturas atrasadas. O deboche é total e a América adora colocar freiras falsas – como Mudança de Hábito, com Woopi Goldemberg – ou apaixonadas, como aconteceu nos papéis encarnados por Ingrid Bergman, Audrey Hepburn etc. Ou seja, sempre há necessidade de desmoralizar o catolicismo. Qual a única maneira de adotar o catolicismo nessa cultura de violência e horror? Por meio do fundamentalismo católico, do qual Mel Gibson é ponta de lança. Filho de um fanático que nega o Holocausto, Mel Gibson tem uma igreja particular na sua casa em que adota os rituais eliminados pelo Concilio Vaticano II nos anos 60, no papado de João 23. Como todo fundamentalista, sua religião é a violência. Esta, serve como apelo de bilheteria e recado direto aos que não adotam a América como paradigma. Essa violência é idêntica em todos os filmes que Mel Gibson fez aos potes numa carreira execrável, desde as máquinas mortíferas às patriotadas de O Patriota, o mais cínico e horrendo filme pseudo-histórico de todos os tempos.

SADISMO - No seu filme, Jesus é tratado sadicamente, arrastado e flagelado nos moldes de Hollywood e não da Bíblia. Um filme sem contexto – “esse não é meu trabalho“, disse ele na entrevista – onde o que parece gratuito é totalmente justificado por sua falta de escrúpulos. O mais torpe é sua manipulação da opinião do Papa, que foi veiculada fatalmente pelos asseclas fundamentalistas, os que não arredam pé de Roma. Um deles disse depois que João 23 morreu: “Levaremos 40 anos para desfazer o que este Papa fez em quatro.” Parece que estão conseguindo. Os atuais carismáticos, que são inimigos da concentração e entopem as igrejas com suas cantorias e gestos exagerados, é o sinal dessa desconstrução católica, que atinge a fé de milhões e redireciona tudo para a superficialidade e o fanatismo. O Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, continua sendo o melhor, mais profundo e mais belo filme sobre Jesus. Perto dele, a paixão de Mel Gibson é uma porcaria execrável, que está fazendo dinheiro em cima da apelação e da falta de respeito.

IMPÉRIO - Mas o que importa realmente é sua identificação total com a ditadura Bush, o falso presidente que tomou o poder pela fraude e enterrou o mundo em nova guerra. Os pobres não sabem se governar, tanto é que matam Jesus, diz o filme explicitamente. É por isso que merecem um poder imperial como Roma, que lava as mãos diante da covardia dos galinhões do Terceiro Mundo. Eis um trabalho comercial que merece ser analisado em profundidade, pois a fome pela palavra de Jesus abre espaço para os aproveitadores e arrivistas.

RETORNO - O site Consciencia, criado e mantido por Miguel Duclós, está batendo recorde de 2.600 visitas/dia. Além disso, está com novos textos. Anuncia Miguel: "O diálogo Íon, de Platão, que fala sobre a poesia, a Ilíada, os rapsodos e a "inspiração" poética. A tradução é inédita e foi desenvolvida diretamente do grego por Humberto Zanardo Petrelli durante seu mestrado na FFLCH-USP. Humberto já publicou no site a sua tradução de Elogio de Helena, de Górgias, em edição bílingue. Na página do Íon encontra-se disponível para download o texto em grego no formato Adobe Pagemaker e o PDF da tradução. Na edição on-line, seguiu-se o mesmo critério da edição em PDF, cada linha corresponde às linhas do original, e a numeração de Stephanus é anotada paralelamente na margem direita. Nos outros diálogos de Platão que publiquei, coloquei a notação de Stephanus entre chaves. A edição no original em grego de Humberto segue o mesmo padrão da publicação de Oxford. Eis os links
http://www.consciencia.org/antiga/plaion.shtml - Edição Web
http://www.consciencia.org/antiga/ion.pdf - Tradução em PDF
http://www.consciencia.org/antiga/ionoxford.p65 - Texto em Grego"