CONDIÇÃO
No fundo queremos companhia
Remorso por tanto tempo sozinho
Nascemos para nos projetar em luz e sombra
Acolher e ser acolhido
Chamam de amor essa emoção de arrimo
É a condição de abraçar o que evitamos
Sermos humanos
Nei Duclós
CHARADA
Para ti sou novo, me conheceste agora.
Mas não sou moço, tenho História
Para mim sou antigo, mas não me conheço
Quem sabe me dizes o que ignoro?
Nei Duclós
DENTRO E FORA
Não estou sorrindo
Mas isso não importa
Guardo o que não vês
Escondo o que sinto
E exibo a boca torta
De um rictus cevado pelo sofrimento
Mas estou contente
Com minhas provas
De que estou vivo na tormenta
Não estou chorando
Mas dentro medra a dor que não compartilho
Minha alegria é o espírito que me anima
A poesia
Nei Duclós
SÓ
Não use nada
Só tua alma
Teu coração
Solitário
Tua porção
Do itinerário
Não pegue carona
No notório
Só tuas mãos
Vazias
Só teus dias
Nem mesmo
Tuas memórias
Enfrente o mar
Com teus braços
Finos
Teu peito de cão
Teu corpo tímido
Saia do chão
Com asas ainda úmidas
Presas na oficina
Só tens a poesia
Unico clarão
Nei Duclós
FÁBULA
Tirou-me a bala do peito
O cirurgião residente
Apostou que havia vida
No corpo já sem proveito
O coração se salvara
Por falta de pontaria
O gatilho obedecia
Ao tremor do assassino
Voltei à tona um dia
Depois desse desperdício
Quis a vingança do crime
Mas na hora me contive
Um anjo encarregado
Por Deus ou o seu pupilo
Para livrar-me do erro
Veio então falar comigo
Deixe a obra do destino
Diga sim à sua vontade
Disse a doce entidade
Com a voz de profecia
Tirou-me toda a maldade
Embora eu seja a vítima
Convivo agora com o tiro
Não permito que se espalhe
Nei Duclós
CENA
Na fresta do luar colhi a estrela
Que pousara seu corpo ainda quente
Na areia improvisada de uma praia
Eu era moço, feito de sistemas
Que permitiam viver sem ter acesso
À natureza íntima dos mistérios
Mas foi chegar na rústica morada
Que a onda construira sem alarde
Junto ao aglomerado de um rochedo
Depósito de astros em recesso
Para eu provar o bálsamo do enredo
A trama do convite a uma festa
Em que dancei patrocinado pela lua
Não faz sentido o gesto de Netuno
Que empurrou do mar uma sereia
Eu não estava a merecer aquele sonho
Ainda engatinhava no poema
Mas a cena me ensinou a transcendência
Nei Duclós