Nei Duclós
Várias vezes o que estou lendo ou vendo conflui para um
mesmo ponto. Aconteceu com um onto impressionante de Kafka sobre uma cantora,
chamada Josefina, que se destacava numa comunidade pouco musical. Kafka nasceu
na Boemia, hoje República Tcheca, mesma região do compositor seu contemporâneo,
Gustav Mahler. No mesmo dia em que estava lendo o conto vejo na TV Cultura de
São Paulo um documentário sobre Mahler que diz exatamente o contrário: que a
riqueza musical da região influiu decisivamente nas sinfonias do grande
compositor erudito.
O maestro britânico Michael Thomas foi até a cidade onde o
gênio se criou e mostra como a casa dele, em cima de uma taverna da família
judia, ficava a poucos metros da grande praça onde pontificavam as retretas, os
dobrados das bandas militares. Embaixo do piso onde morava, na taverna, todo
tipo de musica popular impregnava o ambiente. Havia também a influência da
Igreja, onde Mahler entrou em contato com compositores sacros como Haendel. O
programa mostra como tudo isso confluiu para a Sinfonia Número 1, que soma
vários momentos de motes populares e hinos marciais na elaboração da obra.
Lembro então que Kafka trabalha exclusivamente no terreno da
linguagem, como todo gênio, e não se deixa levar pela percepção que temos da
realidade. O povo pouco musical que ele fala pertence ao conto, à literatura e
talvez tenha algum vínculo com o povo da Boemia, mas não é ele. O objeto de
observação de Kafka é uma criação literária e não tem identificação com o
histórico regional. Assim, o autor fica livre para contrapor a platéia
imaginária à sua personagem, a artista que cantava e assobiava e se sentia
superior ao povo que a idolatrava.
Ao mesmo tempo, notei mais uma esquina cultural, essa confluência
que tanto me impressiona: a identificação profunda entre a obra de Mahler e a
obra de Nino Rota, o genial compositor dos filmes de Fellini, autor daquele
fraseado inesquecível que define O Poderoso Chefão, de Coppola, entre outras obras primas.
Me pareceu ser Rota um discípulo de Mahler, ao impregnar-se de suas estruturas
musicais, suas elaborações de razíes sonoras, sua solenidade poética, entre
outras sintonias.
Certa vez notei que o genial vagabundo criado por Chaplin
tinha bebido nas águas de um conto de John
Reed, o grande jornalista americano que cobriu a revolução Russa. E que
Sartre tinha influenciado Woody Allen num filme. E que o grande filme de Samuel
Fuller, Shock Corridor, sobre alguém que finge loucura e é internado num
hospício mas acaba também enlouquecendo,
é baseado no romance que gerou anos mais tarde outro filme, Um estranho
no ninho, de Milos Forman.
Gosto de seguir a pista das confluências, influências e até
mesmo as cópias pura e simples. A criação é um mistério para muita gente, que
confunde invenção com reprodução. “Criamos o produto”, me disse um empresário. “Meu
filho foi ao Japão e me enviou o desenho por fax”. Picasso falava que roubou a
arte africana quando rompeu com suas fases tradicionais na pintura. Roubar
é um verbo que exerce fascínio. As pessoas dizem até de brincadeira. Compartilhar
é bem mais simpático, mas menos celebrado, apesar de ser a ação ideal para
encontros agradáveis nas esquinas culturais.
RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Veneza, cenário do filme de Luchino Visconti,que usa Nino Rota e Mahler na trilha musical.