Nei Duclós
Inventei uma biblioteca semi-submersa, guardada por um negro
velho, que dormitava com os óculos comprados em camelô pendurados no nariz,
rodeado de algas, liquens e peixes. Havia uma craca de ostras no teto.
Um resto de rede tapando quadros borrados nas paredes. Uma cabeça de golfinho
sorrindo sinistramente para mim.
Um volume detonado boiava na recepção e eu sentei com água
pela cintura para tentar folhear, mas as páginas se despregavam, rasgavam ao
meio e misturavam narrativas de memórias de alguém sem a mínima importância,
mas que tinha uma história completamente louca para contar. Resolvi destacar
alguns pedaços , aproveitei que o porteiro continuava dormindo e me mandei com
alguns pedaços do livro.
Decidi enviar o material bruto para meu editor, que tinha
faro, fazia as pautas e era melhor economizar tempo e ver o que achava
daquilo. Ele me respondeu na hora: escreva um romance com isso e me entregue na
segunda-feira, que estou sem nada para a Bienal, que começa no mês que vem. Meu
editor se mal acostumou comigo quando produzi mil páginas de uma biografia
histórica que chupei de alfarrábios perdidos. Escaneei um monte de volumes e
depois fiz uma mistureba randômica. Deu certo. Não leram, mas fui premiado.
Jurado de concurso literário não lê nada e premia por via das dúvidas. Vai que
a porra gigantesca seja uma obra-prima. Ganhei algum dinheiro e fama. Por isso
não estranhei o pedido.
Mas a maçaroca não fazia sentido. O autor contava sua vida
com uma tal Ermengarda, filha adotiva de um aventureiro inglês que tinha
fundado algumas cidades no interior da floresta no oeste sul do país. Ele era
um engenheiro de minas e tinha ido para lá fazer serviços civilizatórios em
troca de uns trocados em libras. Pretendia comprar sua passagem de volta para a
Inglaterra, pois tinha vindo fazer fortuna e viu que aqui só podia se estrepar.
O cara é chato. Dedica a maior parte do texto a aspectos
técnicos do seu trabalho, datados e desinteressantes. Mas deixa escapar o caso
misterioso de um crime acontecido no ermo e que envolvia Ermengarda. Ela fazia
serviços de caridade com os miseráveis que trabalhavam numa carvoeira quando
descobriu um corpo carbonizado que viria a ser do inspetor chefe, um alemão chucrute
temido e jurado de morte. Não haveria nada demais se o dito inspetor não fosse
também o proprietário dos mil escravos que trabalhavam para o inglês. As
suspeitas caíram sobre o pai da Ermengarda, que assim se livraria da
dívida contraída com o feitor. Mas quem acabou pagando o pato foi o autor do
livro.
Ele fica se explicando, nos intervalos de seu exibicionismo técnico (como se o preparo profissional fosse prova de inocência); se justificando e se perdendo, pois quanto mais contava mais se enrolava. Pelo que deu para notar, acabou apodrecendo numa cadeia onde escreveu suas memórias e entregou para um amigo médico, que acabou casando com Ermengarda. Por descargo de consciência, o médico publicou o volume mas estocou-o num depósito, e aí tudo se perdeu (fiquei sabendo por uma carta grudada no final do livro, escrita pelo advogado da vítima). Como um exemplar foi parar na biblioteca condenada, não sei. Talvez o encarregada recolha seu acervo em galpões em ruínas e lixões.
Ele fica se explicando, nos intervalos de seu exibicionismo técnico (como se o preparo profissional fosse prova de inocência); se justificando e se perdendo, pois quanto mais contava mais se enrolava. Pelo que deu para notar, acabou apodrecendo numa cadeia onde escreveu suas memórias e entregou para um amigo médico, que acabou casando com Ermengarda. Por descargo de consciência, o médico publicou o volume mas estocou-o num depósito, e aí tudo se perdeu (fiquei sabendo por uma carta grudada no final do livro, escrita pelo advogado da vítima). Como um exemplar foi parar na biblioteca condenada, não sei. Talvez o encarregada recolha seu acervo em galpões em ruínas e lixões.
Resolvi inventar um detetive que descobria o verdadeiro culpado
do crime: o médico, claro! O safado fez de tudo para incriminar o engenheiro,
ficar com a herdeira, colocar seu adversário na cadeia, providenciar uma volta
do sogro à sua Londres querida (para evitar que se envolvesse mais no caso) ,
ficar com os escravos do alemão e vender as terras devolutas para os imigrantes
da Moldávia, Polônia Bohemia e de outras plagas, Cheio da gaita, mudou-se para
Paris, onde viveu até os 104 anos. Ermengarda morreu misteriosamente num
acidente de bonde quando fazia um passeio com alguém que dizia ser o próprio Proust.
Não gostei, disse o editor. Está uma merda. Não tem sexo
embaixo desses panos? Não tem detalhes de crueldades contra animais e escravos?
Nada ambiental e politicamente correto? Ficas celebrando a vilania do médico, a
perspicácia do detetive, a idiotia do engenheiro e me deixas na mão! Quero
coisa melhor,quero uma obra-prima, não um livreco de detetive menor, um Raymond
Chandler da praia.
Aquilo me ofendeu profundamente. Não por ter achado uma
merda, mas por me comparar a Chandler, me diminuindo, foi demais. Então terás apenas o
making of, eu disse, aprorrinhado. E mandei este texto que você está lendo agora.
Por e-mail. Até agora não me respondeu nem me depositou a merreca mensal para eu
pagar as contas Vou ter que voltar na biblioteca (se é que ela não afundou de
vez) e encontrar outro mote. Talvez algo que não precise trabalhar nada. Um
Moby Dick esquecido. Um coração das Trevas oculto. Um Dom Quixote das grotas.
Quem sabe. Esta vida literária é cheia
de truques.
RETORNO – Imagem desta edição: Joan Crawford em Mildred
Pierce (1945).