29 de março de 2023

SOBERANO

 Nei Duclós 


Ainda está escuro quando os passarinhos começam a se manifestar

Acendendo pequenas fogueiras de pios nas árvores da beira mar

Sentem a proximidade do sol, soberano

Com seu plano de despertar na noite

O poderoso incêndio do seu corpo, monstro misterioso


O canto tímido emplumado sabe o seu lugar

Anuncia por vocação o dia que está por chegar

Tomado pelo movimento de um gigante de fogo

Que por misericórdia é brando

Depois da surra que deu na terra no começo do ano 


Até quando será bom a inventar a vida?

Junto com as aves rezo na vigilia. 

Piedade, Senhor

MADELEINE

 Nei Duclós 


Amamos de memória

No mapa dos corpos isolados

O sabor da madeleine

O doce cheiro que foi embora

Marcas do toque em tua flora

Trilhas jamais repetidas

Namoros que viraram pó


A brisa em tua penugem.

Cabelos que descem aos pés, ninfa gloriosa

E a falta que faz teu rosto proximo

Em minha inútil obra


Nei Duclós

DOCUMENTO

 Nei Duclós 


Eu já fui uma pessoa

Hoje sou tombo de Outono

Poema escrito no joelho

E publicado à toa

Antologia de riscos

Rosto de rua tardia


Eu já fui e hoje sou

Folha do vento morno

Enquanto segue no arranque

De uma estação esquecida

Do verão que a antecede


Não serei mais o verbo

Que inaugurou novo espaço 

Ocupo o centro do drama 

Vivo de alegorias

Animo o fim e uma festa


Sou pessoa na essência 

Não tenho o que identifica

Veja no docunento

As sobras da poesia


Nei Duclós

26 de março de 2023

SORTE

 Nei Duclós 


Você fala por flores

Não importa nome, cor ou perfume

Você fala por flores


Amor no lugar do ciúme 

Gesto em vez de palavra

Na entrega e não na conquista

Força do abraço suave


Você fala por flores

Guardas a dor e o teu luto

Queres viver sem ter medo

Sem trair o sentimento

De perda e corpo em conflito


Você fala por flores

Modo alto da alegria 

Todos entendem

Não precisas do discurso 


Já preparei o jarro

Já revolvi o canteiro

Adubei com a esperança 

Reguei com água de cheiro


Você fala por flores

Que sorte, Deus, que eu tenho


Nei Duclós

25 de março de 2023

OUTONO

Nei Duclós 


Outono chega, mesmo que o verão, irmão mais moço 

Espiche a estação do sufoco 

E torne tardio o clima doce

O frio que nos liberta do calorão em pele e osso


Outono é o coração do ano

Sua pulsação, seu abandono

Encontro que vira adeus

Janela de trem em cais do porto 


É quando vens, no colo do sonho

Braço de mim, saída de banho

A dormir comigo, depois do tombo

Da fruta que cai ao desistir da planta que a sustenta

E se aninha em fogo brando 


Nei Duclós

ESFORÇO

 Nei Duclós 


Você chega lá, mas a que custo

E nem usufrui os frutos 

que são teus

E somem em mãos alheias


O semeador anônimo 

Só tem Deus por testemunha

Do cultivo feito por vocação e sem retorno

A não ser ver que seu esforço 

É caroço em ti e polpa em outro sitio 


Nei Duclós

TRÊS PRINCESAS

 Nei Duclós 


Três princesas prisioneiras

Em idade para casar

Tem um pai que é uma fera

Que se chama Valdemar


Marina, Flor e Teresa

Não conseguem namorar 

Cuidado quem por lá chega

Com intenções de pousar


Não bula com meu sossego

Diz o guardião do solar

Não importa que as morenas

Estejam cheias de gás 


Três princesas prisioneiras

Abertas de par em par

Aguardam dias de festa

Enquanto estão a rezar


Nei Duclós

MISTÉRIOS

 Nei Duclós 


Será que levamos as dores para o outro mundo?

Chagas da Cruz em corpo ressuscitado?

Gemidos no escuro, feridas da memória?

Citaras de anjos consolarão enfermidades

da alma impura pela passagem terrena?


Sentiremos necessidades de medicina?

Um leito no paraíso, uma temporada nas nuvens?


Quem trocará os curativos onde não há mais sangue?

E qual bisturi cortará a falta de corpo?

Quem gritará conosco pela cura que tarda?


Nossos passos em corredores escuros 

Evocarão mistérios? 

E quem dará alta para enfim chegarmos a Deus

Como garotos de rua que se atrasam para o almoço 

Sujos e suados, mas com fome ?


Nei Duclós

24 de março de 2023

ROMPER

 Nei Duclós 


Separação também é luto 

Vestir preto por um longo tempo

Depois do adeus, quando o tempo para

Sem túmulo para visitar, como na pandemia

A vala comum do desperdício

A vida sem força para ir em frente

A dose de paixão socada na estante

E o amor, o amor...

Deixa para lá 


Nei Duclós

22 de março de 2023

NO ESTÁDIO

 Nei Duclós 


Só então eu notei

Teu rosto todo voltado para mim

Teu olhar como um céu estrelado

Sentada na fileira da frente do estádio 


Minha atenção era nas provas

Nos jogos do gramado

Mas súbito por um instante

a multidão silenciou

E eu vi o que o amor aprontou 

Enquanto eu virava para o lado


Tínhamos em comum

A vida em eterna observação 

Eu distraído com as palavras

Tu sozinha como vítima de um temporal 


O dia desceu sobre nós 

Como um pássaro azul depois do incêndio


Nei Duclós

VIDA

 Nei Duclós 


Vida é o que esquecemos

E ressurge pontual

Em alguns momentos


Vida é o que não temos

Na memória morta 

e seus venenos


Vida é o que não vemos

O amor que assassinamos

Por sermos cegos

O tempo todo


Vida é o que resta

Este poema

E teu corpo úmido 

De desejo


Ainda assim conservo

Essa vontade seca

De viver mais longe

Porque a alma cava no escuro

Por destino manifesto


Vida é o tesouro

Que depois de viver

Em vão procuramos


Nei Duclós

ESCAPE

 Nei Duclós 


Não cabe o poema na abordagem alheia

Não por incapacidade de quem não compreende 

Mas porque o verso sobra e dribla o esquema 

Não por genialidade de quem escreve

Mas porque o verbo sempre escapa pelas reticências 


Não há mistério 

É apenas arte fora da encomenda


Nei Duclós

PERSONAGEM

 Nei Duclós 


Sinto vergonha do papel que desempenho

Neste drama de erros em teatro de segunda

Vilão a maior parte do tempo

Tropeço na biografia de dispersa rede

Precoce terminal, vândalo do tempo


Um dia fui herói, mas era só um roteiro

Aprovado previamente pelo ego pleno

Tudo é um mal entendido, fechem as cortinas

Foge o personagem diante do espelho


Nei Duclós

11 de março de 2023

O MELHOR DE MIM

 Nei Duclós 


O melhor de mim está na madrugada

Salas escuras quintais com lua

Fantasia no lugar das armadilhas

Deita comigo o acervo da doçura


O dia ainda não voltou da rua

Está na balada tomando todas

O tempo adia o toque da alvorada

O amor aproveita o breu e sonha


O melhor de mim pousa no silêncio

Para ouvir teus passos mas recusas

Único defeito que comete a musa

Levar o coração e sumir para sempre


Nei Duclós

10 de março de 2023

GARIMPO

 Nei Duclós 


O amor é uma promessa 

Das garimpeiras do ouro

Cavocam com saias rotas

No barro das amazonas


Procuram o veio mais fundo

Onde se esconde o tesouro

Corações que já se foram

Alianças de um tempo novo


Elas descartam palavras

Que formam um pedregulho

Lavam montanhas de sonho 

Com as mãos sujas de sangue


Garantem com seu orgulho

Momentos de corpo humano

Que ainda ficam ocultos

Em barrancos do futuro


Nei Duclós

PEDIDO

 Nei Duclós 


Só sou feliz contigo, ela me disse

Pedindo para eu ficar


Aceitei, sem noção do perigo


Mulher é sentinela de um anjo caído 

O amor, que nunca faz sentido


Nei Duclós

CAVALO BRANCO

 Nei Duclós 


Estou disponível para o amor que me acompanha

Seja qual for a idade, rústica fantasia

Embrulhada em poesia ou notas ao pé da página 

No corredor ou na sala, no quarto ou na cozinha

E no cenário imaginado de um roteiro absurdo

Onde sou o autor e o mestre de cerimônia 

Que dispõe os convivas conforme dá na telha

E se serve da vida alheia sem nenhuma vergonha


Mas não sou invasivo, fico entre quatro paredes 

Lá fora me aguarda o cavalo branco 

e uma voz me chama de principe, rei de uma terra estranha


Nei Duclós

8 de março de 2023

MINHA MÃE

 Nei Duclós 


Minha mãe se foi cedo, aos 62

Para mim, que hoje sou dez anos mais velho

ela era uma anciã, de lentes grossas devido à catarata

E ficava em pé cada vez mais frágil

Nunca vi minha mãe correndo

Andava devagar e a tudo observava

Parada e só como árvore isolada no pampa


Criou sete filhos, sendo quatro marmanjos que lhe deram trabalho

e cada um jura que era o favorito

Levava as gurias para os bailes e a todos encaminhava nos estudos


Lecionava multidões de alunos que iam dividir o café da tarde conosco

Só sei até o ginásio, dizia

E isso bastava


Tecia puloveres com mangas enormes pois cresciamos e a lã durava mais de um inverno


Decifrava charadas dos jornais usando dicionário Lello

E foi a primeira leitora das minhas poesias

Aos dez anos eu já era um intelectual e dizia para ela

Fiz um poema mas acho que tu não vai entender

Ela achava a maior graça e contava para as amigas


Foi assim que eu não sendo nada virei coisa

Pela mão de quem representava a divindade na terra


Nei Duclós

4 de março de 2023

O ANJO

 Nei Duclós 


O anjo que sopra o poema

Anônimo perfil de um sistema

Cansou de ser coadjuvante 

Invisivel e sem reconhecimento


Quer brilhar, dizer sou eu mesmo

O cara que seduz com a palavra

E se confunde com quem na aparência

Incorpora mas não reinventa

Recita a refeição que vem pronta


Nesse ofício cumpro uma pena 

Estou preso sem assinatura

Sou aquele que não se revela

o anjo que ainda nos  resta 

Das antigas hostes celestes


Sou o exímio flautista da lenda

Que atrai sentimentos e sonhos

Sou a verdade que enfim se liberta


Nei Duclós