31 de agosto de 2017

PORÇÕES



Nei Duclós

Sei que é melhor o verbo sem dor
Que flui em tuas mãos de sonho
A rima conforta a percepção
E a conduz para fora como um rebanho

Mas há ladrões, e sabes bem
Que levam o pão e o peixe
Roubam a palavra, que então se perde

Sou o farol, ilumino as porções de mar
na escuridão do agreste litoral
Só posso falar de amor
quando amanhece


A CARTA



Nei Duclós

O poema é um refúgio na trincheira
No canto dos feridos, longe da cartucheira
No intervalo das sessões de metralhadora
Quando os canhões meditam mudos e raivosos
aguardando os cálculos da mira

Dada a emergência, a situação insustentável
Só se exercem versos urgentes para o futuro luto das famílias
Oficio a cargo de oficiais desesperados
sargentos arrependidos

Dificilmente um soldado raso se arrisca
Temendo o deboche dos camaradas
pelos seus garranchos e a gramática
E principalmente se forem cartas de amor

Por isso ele criptografa
Colocando desenhos variados no papel
Querida, ele põe um anel
Te amo, um jarro de flor
Saudade, uma palmeira de praia

Sua carta chega depois da guerra
junto com o telegrama das baixas
O que ele escreveu para ti? perguntam
Nada, diz ela, mostrando a charada

À noite ela lê com o auxílio de um caderno escolar
Do tempo em que, ainda criancas, ficaram noivos


30 de agosto de 2017

NOS MUROS



Nei Duclós

Ultrapassei a fase
de ser foda
Agora estou na moda
Cumpro a cota
de desimportância

Até os insetos
tem mais a dizer
do que o meu grito

Vem a furo
a surdez do poder
e as falas do conflito

E mais este poema
borrado nos muros derrubados


29 de agosto de 2017

PESADELO



Nei Duclós

Quando vier a guerra, e será breve
Veremos nosso bairro como a Síria
Fugiremos entre corpos empilhados
do quarto que perdeu quatro paredes

O barulho das balas, os pedágios
Onde o passe é tudo o que salvamos
Mais o terror de ver humanos
A criar atrocidades entre lobos
Cairão sobre nós junto ao remorso
De não termos levantado a tempo

O pesadelo é querer a paz
depois de mortos


E O VENTO LEVOU: CINEMA SOB AMEAÇA

Nei Duclós

Donos de cinema de Memphis, EUA, que só passa filmes clássicos, concordaram em retirar de cartaz E O VENTO LEVOU por ser "racista" conforme a visão de grupos de militância da cidade, de maioria negra.

Ninguém está livre da ignorância, mesmo quem luta por direitos. Baseado um best seller escrito por uma mulher, Margaret Mitchel, o filme é antes de tudo uma saga pacifista protagonizada por uma herdeira (Scarlet O´Hara, interpretada por Vivien Leigh, memorável) que perde sua riqueza com a guerra. A história é um libelo contra a estupidez masculina e uma lição de sobrevivência das mulheres brancas e negras. A obra é também um marco por ter a primeira atriz negra, Hattie McDaniel no papel de Mammy, a ganhar um Oscar, servindo de exemplo de superação e estímulo na luta contra o racismo.Vivien também ganhou o Oscar, o filme todo levou 8 (direlção, roteiro, edição etc.).

A obra mostra personagens da época da escravidão. Mas foi lançado em 1939 quando o mundo enfrentava exatamente o que o filme condena: a barbárie da guerra desencadeada pela opressão. Época em que as mulheres de todas as raças foram convocadas para a sobrevivência diante da ameaça de, mais uma vez, a escravidão, no caso o nazismo..

Filme que é um monumento da Sétima Arte, amado e celebrado por muitas gerações e que reporta um grande desencontro amoroso (onde desponta o cínico Rett Butler, interpretado por Clark Gable)num mundo em extinção. Não há na história do cinema cena mais impressionante do que a multidão de moribundos na Atlanta sitiada num cenário de horror onde se destaca o desespero da heroína, representação de todas as vítimas do conflito.

Mais importante: o filme não doura a pílula de ninguém, não há inocência, apenas a garra humana para driblar a morte. As duras consequências do terror ambiente está na insanidade de outra grande intérprete negra do filme, Butterfly McQueen no papel de.Prissy.

Lamento que as pessoas sejam impedidas de ver esta obra prima por força da ignorância fantasiada de boas intenções.


MUDAR


Nei Duclós

Todas as cidades são iguais
Assim como as pessoas, e tudo mais
O tempo não sai do lugar
O vento é inútil no cais

A não ser quando voltas atrás
e me pedes para enfim te ver

Aí muda o que parecia normal
E viramos um outro ser, 
como os animais