31 de março de 2011

BALA PERDIDA


Nei Duclós


Acharam bala perdida
No corpo reconhecido
A morte veio de cima
Cruzou o país a tiro
A pólvora ainda viva
Onde o povo não respira

Disseram: foi a polícia
ninguém sabe se mentiram
Gritaram pelo socorro
ao coração que partia
Mataram esse menino
todo país agoniza

Não quero ler a notícia
de tanto ver repetida
acaso feito de crimes
intenção de artilharia
lei do acordo sinistro
em prática de extermínio

Tudo some num clic
nação comete suicídio
infância perde o sentido
o sonho some no exílio
enterrem quem só passava
alheio ao seu destino

A poesia com sangue
ocupa a mente sem fibra
sobe ao céu o que matamos
com nossa dor encardida
talvez a Lua receba
esse pássaro ferido


RETORNO - Imagem desta edição: obra da Itamir Beserra Sousa, da Mostra Arteduca 2009 - Mostra dos trabalhos produzidos por alunos do curso Arteduca: Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas, da Unb. Tirei daqui.

30 de março de 2011

OS GIGANTES


Naquela época existiam os gigantes, diz a Bíblia, que fala de um lugar especial, um vale, onde eles viviam. A Biblia conta também que Moisés, na sua peregrinação, enviou olheiros para ver onde tinha comida farta para seu povo. Acharam uma região rica em figos, uvas, tâmaras e todas essas maravilhas da antiguidade. Trouxeram algumas amostras para o chefe. Os assessores se apressaram em sugerir um saque em regra, pois perambular pelo deserto dá uma fome danada. Ao que os viajantes replicaram, apavorados: “Não podemos fazer isso! Eles são gigantes. Perto deles somos como gafanhotos”.

Conhecemos também a história de Golias, que, burrão, deixou-se abater por um guri, Davi. Os textos sagrados dizem que os gigantes foram exterminados por sua estultície e também porque não pediram perdão pelos seus pecados. Para mim foi obra dos baixinhos, que não suportam gente com altura. Depois que acabaram com os bocós, colocaram a culpa neles, como se fossem grandes pecadores. Os gigantes eram especiais, tanto é de suas relações com as mulheres dos humanos nasceram os heróis antigos.

Isso me deixou bem invocado. Existiam os homens e os gigantes, ou seja, estes não eram humanos, portanto. Seriam pré-humanos? O Conceito Rosacruz do Cosmos, de Max Heindel, um dos autores dessa religião de iniciados, diz que os seres gigantescos, como os dinossauros, surgiram quando a terra ainda não tinha se adensado o suficiente, como é agora. A bola de fogo que era o planeta foi se resfriando e passando do estado gasoso jupiteriano para algo mais sólido. Nessa trajetória experimentou várias atmosferas e forças diversas de gravidade. Quando a gravidade era mais frouxa, as criaturas alcançavam tamanhos estratosféricos.

Os Titãs vieram daí e certamente as lendas que povoaram aquele sujeito, o Jonathan Swift, talentoso escritor que sugeriu o abate de carne humana para matar a fome do mundo. Carne, claro, dos mais pobres. Mas poderiam ser dos gigantes. Como dominá-los ele mostrou no seu clássico “As viagens de Gulliver”, em que os baixinhos amarram o grandalhão e fazem dele gato e sapato. Aliás, Swift virou marca de carne enlatada, de frigorífico. Talvez tenha sido inspirada nesse autor cheio de idéias.

A fortaleza de Machu Picchu, no Peru, é um mistério para todos. Como puderam encaixar tão perfeitamente aquelas pedras no alto dos Andes? Os gigantes eram feiticeiros, de grande poder, movimentavam pedras e fizeram uma obra em todo o planeta, em que suas ruinas viraram a paisagem, como notou Jerônimo Monteiro em seu grande livro, A Cidade Perdida (ele fala dos atlantes). Vejam como as cachoeiras tem em suas bases lugares apropriados para estar, e com pedras lisas. O que chamamos de natureza, principalmente as montanhas e rios, foram obras dos gigantes. Os homens apenas herdaram o tesouro que as criaturas forjaram antes de desaparecer. Eles sumiram pois, como os dinossauros, não aguentaram as condições da nova densidade da terra. Deve ter sido um processo rápido. Meteoro caído das estrelas? Dá um tempo.

Escrevi sobre os gigantes no meu conto O Refúgio do Príncipe. Aqui onde moro, é um enorme sitio arqueológico. A história me foi soprada pelo vento. Eu acredito no que o vento sopra no meu ouvido.


RETORNO - Imagem desta edição: pedras gigantescas super bem encaixadas em Machu Picchu.

29 de março de 2011

À FORÇA


Nei Duclós

(para Mario Covas, escrito no dia da sua morte)


Foi-se
como um sol
posto
como a flor
num poço
com o som
de um soco

Foi-se
com a dor
no bolso
com pesado
ombro
no mais longo
sopro

Foi-se
na bandeira
envolto
com a erguida
fronte
pelas mãos
do povo

Foi-se à força
Foi-se o homem

28 de março de 2011

QUATRO LINHAS NA ARGILA


Nei Duclós

A leitura de toda a vida depende da relação afetiva que adquirimos na hora da alfabetização, normalmente feita na primeira infância. O amor ao ensino, fruto do carinho de quem alfabetiza, se transfere para a linguagem. Lemos porque gostamos, mas isso não significa que procuramos apenas divertimento. É gratificante a conquista do conhecimento, especialmente se ele for árduo. Não queremos passar lotados pelo que nossos olhos e mentes aprendem com tanta disposição e tempo. Algo fica e isso acaba fazendo parte da nossa identidade.

Por mais que existam apelos para a leitura fácil, ou diversidade oferecida por todas as mídias disponíveis hoje, é ainda certo que a âncora dessa formação é o livro. É ele que consolida a cultura e não precisam ser muitos, basta que sejam bem lidos e significativos. O bom é reler, já nos diziam Drummond e Borges, que acabavam sempre voltando para seus autores favoritos. Não faço parte dessa tribo que refaz o caminho percorrido por grandes escritores. Leio pouco e espaçadamente e por isso não posso me deter num volume mais do que uma vez.

Aprendi na faculdade de História que um documento - no caso aqui, o livro – precisa ser visto pelo que ele é. Parece uma obviedade. Talvez seja, mas exige atenção. Já resenhei vários lançamentos sem ter lido nada antes do mesmo escritor. Peguei apenas o que vi naquele momento e dali parti para a análise. Não me reportei a resenhas feitas por outros, nem quis saber o que disseram os pares do resenhado. Simplesmente me ative ao que estava escrito e com essa técnica consegui contribuir com alguma coisa para o que acabara de ler.

Aconteceu várias vezes. A primeira resenha que fiz para a Veja era sobre um autor então desconhecido, Darcy Ribeiro. Ele acabara de voltar de longo exílio e era conhecido como educador, sociólogo e político, mas não como romancista. Sua estréia na literatura deu-se com Maira, grande romance que tive o prazer de analisar para a mais prestigiada revista semanal dos anos 70. Escrevi sobre o livro e só depois descobri quem Darcy era. Ao meu redor, ninguém sabia. Não havia a facilidade de hoje, em que a wikipédia e inúmeros sites e jornais on line te dão o serviço completo sobre autores e obras. Era tudo feito no acervo pessoal, visita a bibliotecas, compras raras de livros etc.

Outro autor do qual nunca tinha lido nada foi o poeta Rainier Maria Rilke. Fui convidado pela Editora Globo para fazer a apresentação do seu clássico Cartas a um jovem poeta. O resultado foi gratificante: o texto é citado em vários trabalhos acadêmicos e foi saudado pela grande imprensa como uma análise certeira. Apliquei a técnica que aprendi na História: um tablete de argila é tudo o que temos sobre uma civilização e é nele que devemos nos concentrar para entendê-la. Se o documento tem apenas quatro linhas, é isso que devemos analisar.

Mas quando nos deparamos com escritores maravilhosos, o acervo oferecido em algumas páginas é mais do que suficiente para viajarmos no espaço que ele nos abre. Assim, podemos contribuir com algo original sobre aquelas obras, graças a essa relação afetiva que adquirimos lá na mais profunda infância, quando somos despertados para o universo da leitura.


RETORNO - Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana.

PAJARITOS


Nei Duclós

Éramos pregos, a mais baixa qualidade humana no colégio dominado pelos adultos. Por isso nos coube o pífaro, o estranho e insignificante instrumento da banda que estava sendo formada. Era um canudo preto cheio de furinhos. Não tivemos chance na disputa por bumbo, tarol, tuba, clarim, surdo. Por impossibilidade física, não brilharíamos na bateria ou no sopro nobre das afiadas cornetas, a que assustava os pássaros e as avós. Cabia a nós soprar melodias melífluas e anódinas para o deboche da bagacerada que não tinha aderido à moda, ou da turma de desocupados que se postava na rua para se divertir não apenas com o rififi do pífaro como do uniforme de gala espalhafatoso, que incluía calça branca, casaco brilhante azul e um quepe com penacho amarelo, parecido com as imagens dos bonecos das latas de flit, o inseticida da época.

Hoje todos cuidam para não traumatizar os petizes. Naquele tempo não havia misericórdia. Até dentro de casa sofríamos com a gargalhada dos mais velhos, vizinhos inclusive. Compadres, irmãos, tias e pais de riso solto tiravam sua lasca. Como nossa música recorrente, a única que aprendemos de verdade, dizia “canta canta pajarito”, minha mãe apelidou a turma pré-adolescente dos trinados mínimos de pajaritos. Era cruel demais. O pior é que em pouco tempo cresci mais do que meus companheiros de infortúnio e arquei com dose extra de anedotas, pois não adiantava me curvar sobre o instrumento para disfarçar: minha altura já batia no teto e eu media o dobro em relação ao meu entorno.

Implorei a migração para a ala das cornetas, no que fui atendido depois de ameaçar deixar a banda, o que causaria uma tragédia, pois ninguém mais queria ter o privilégio de participar da troupe. Pior para eles, pois nos divertíamos nas excursões, onde meninas de Libres ou Alegrete aglomeravam-se para ver os bravos rapazes da banda uruguaianense, garbosos em seus uniformes e arrancando suspiros generalizados.

Quando minha ameaça deu certo, me deparei com novo problema: eu não sabia tocar aquele troço, o clarim. Não tinha pulmão, não conseguia tirar uma nota sequer, que dirá um dobrado. Jamais chegaria aos pés dos bambas da área, verdadeiros virtuoses que sustentavam todo o esplendor sonoro daquele grupo de alunos sem talento e improvisados de músicos. Mas como diz o ditado, “não tem tu, vai tu mesmo”, acabei ficando, sem deixar de ser um enganador nessa fase obscura de minha vida escolar. Não fazia mais parte dos competentes intérpretes do canta canta pajarito que, mal ou bem, já era um hit na cidade. Tentava desempenhar minha nova função, mas não dava nem para o gasto.

Um dia me invoquei e resolvi enfrentar o impasse. Numa solenidade importante, decidi que extrairia o som mais espetacular, fruto do meu esforço e vocação sem reconhecimento. Foi baixarem a baliza para eu sair mandando mecha no bocal. Mas tive sorte. Não saiu um pio, como era natural, o que me salvou de um vexame, pois o sinal era para o bumbo, não para nós, do sopro.

Depois dessa, encerrei minhas atividades de músico. Decidi tocar apenas rádio. Nisso, sempre fui um especialista.


RETORNO - 1. Imagem desta edição: alunos em frente ao Colégio Caetano de Campos, em São Paulo. Época da formação escolar. 2. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana.

26 de março de 2011

HATARI!, A NARRATIVA DE CRISTAL


Nei Duclós

A estrutura narrativa de Hatari!, de Howard Hawks, pode ser comparada a um cristal dividido em gomos luminosos, que confluem para o mesmo ponto. Cada gomo é um capítulo da aventura narrada e o ponto comum (e final) é o amor que se concretiza entre seres desenraizados.

As palavras não trazem o filme de volta, nem fazem justiça ao que ele é (a obra como foi concebida e realizada). Podemos apenas lembrá-lo com nosso verbo escasso, depois de vê-lo, sem cansar, mais de um milhão de vezes. A captura de animais selvagens na África é uma frase que nada diz sobre Hatari! É algo diverso. É a composição musical de uma saga, em que o alvo (o animal que precisa ser agarrado para o zoológico) impõe o ritmo e o perfil da narrativa. Assim, o filme torna-se veloz quando os caçadores tentam pegar o felino, perigoso quando o jipe provoca o rinoceronte, cômico quando se trata de enredar dezenas de macacos com a ajuda de um especialista em fogos de artifício (Red Buttons, como Pockets, antológico).

Cada captura (o gomo do cristal) é um primor de estratégia. E as relações humanas (um grupo de homens que vê-se surpreendido pela fotógrafa vinda de longe) rolam num acúmulo permanente de algo que não tem lugar naquele safári, os sentimentos (há apenas camaradagem, inevitável quando qualquer grupo enfrenta o perigo).

O amor se manifesta sem ser convocado e usa a chantagem para se consumar. A seqüência final, em que todos os animais se soltam, pode ser vista como a representação dessa manada de emoções guardadas dentro dos personagens, que diante da perda desandam como avalanche.

Mas o mestre não deixa que esses fios soltos temporariamente arruínem a perfeição da narrativa ao longo de 160 minutos. É preciso que tudo fique amarrado e isso se faz contra a vontade do personagem encarnado por John Wayne. Ele precisa assumir o amor, apesar de querer continuar com a mulher (a atriz Elsa Martinelli) sem dar bandeira dos sentimentos. O filme então define o papel de cada um: o casal, que ocupa o centro, e os coadjuvantes, os que ajudaram a buscar na savana a emoção selvagem que era para ser guardada como relíquia. O amor não cabe numa jaula e é preciso ceder para que ele ocupe seu espaço.

Homens turrões como Hawks sempre foram sentimentais. Mas nunca deram bandeira. São espécimes extintos, como o primoroso cinema que inventaram.

24 de março de 2011

GOSTO DE MARÇO


Nei Duclós

Gosto de março pelas promessas
Pelo fim do calor em excesso
Pela luz filtrada em cores básicas
Pela chance do sonho que começa

Gosto de março, não há pressa
Em dominar o mundo ou ser poeta
Tudo passa menos esse fruto
Forjado em íntima floresta

Gosto de março porque viajo quieto
No lugar onde estou e não arredo
Não pago bilhete para o deserto

Fico no sol amigável de leste
Que desperta a grama e espera a rosa
Desfolhar-se, dança de retorno breve


RETORNO - Imagem desta edição: The Sea from the Heights of Dieppe, de Eugène Delacroix.

23 de março de 2011

INSIDE JOB: CRIMES DO ABUSO DE CONFIANÇA


Nei Duclós

O primeiro crime revelado pelo documentário Inside Job, de Charles Ferguson e Audrey Marrs , que ganhou o Oscar da categoria neste ano, é a tradução brasileira: no lugar de Abuso de Confiança, que é a versão correta, foi escolhido o literal Trabalho Interno, o que não faz nenhum sentido. É o mesmo do que traduzir Best man (padrinho), para “melhor homem”, como já aconteceu. O filme mostra como os executivos de Wall Street incentivaram os clientes a jogar uma grana preta, entre 2001 e 2007, em investimentos que eles mesmos cuidaram de destruir, para assim poder lucrar. Abusaram da confiança dos investidores e saíram com as burras cheias de dinheiro e o que é pior: seus principais criminosos foram empossados por Obama, que tinha sido eleito criticando a sacanagem da pirataria financeira internacional.


O truque deu certo e ficou impune, pois o governo americano pegou trilhões do dinheiro público para sanear o mercado, sem ter impedido que uma parte leonina dessa bufunfa fosse parar nas mãos dos responsáveis pela crise de 2008. Nomes, depoimentos, detalhes, dados, gráficos, montantes esclarecedores, em minúcias são mostrados didaticamente no filme, que não deixa dúvidas sobre o gigantesco crime que sucateou a economia mundial e gerou milhões de desempregados. E faz um balanço de como isso aconteceu, como foi gerado a partir da desregulamentação da economia e seu entorno, ou seja, as justificativas, a cargo dos lobbies, dos advogados, dos acadêmicos, que também ganharam seus dividendos e ficaram todos milionários.

“Não era lucro nem renda real, apenas dinheiro criado pelo sistema e contabilizado como receita. Em 3 anos, tudo sumiu“, diz Martin Wolf, do Financial Times, num dos vários depoimentos avassaladores mostrados no documentário. Ao escolher a Islândia como o exemplo de como um país seguro financeiramente foi destruído pelo artificialismo do esquema, o filme contrapõe o excesso ao bom senso. Banquinhos provincianos da Islândia foram inflados até fora dos limites da irresponsabilidade e quebraram o país, que pela primeira vez teve desemprego em massa, entre outras conseqüências nefastas. Islândia era uma espécie de paraíso do capitalismo ético weberiano, regulado e voltado para o bem estar social, como queria o calvinismo nas origens do sistema fundado no capital.

A partir desse exemplo, o filme parte para a radiografia pesada dos Estados Unidos, pois é disso que se trata (o resto do mundo é só um apêndice, conseqüência do que se passa no coração do Império). Os americanos jamais traem sua cultura, como costumo dizer em minhas resenhas e ensaios sobre cinema. Este não foge à regra. Narrado pelo ator Matt Damon, que participou de alguns filmes da reação anti-Bush, como Zona Verde, a saga faz um mea culpa gigantesco dos rapazes bem nascidos e bem formados que acumulam todo o lucro da especulação, o 1% da população que leva tudo e deixa multidões na mão.

Ninguém se importa, ninguém tomou providências, apesar de tantas instituições reguladoras, que no fim colaboraram com a fraude. O que o filme mostra do esquema acadêmico é assustador: os artigos de especialistas que influíam em políticas públicas favoráveis à desregulamentação total e das megafusões, era regiamente pagos. Os vasos comunicantes entre cargos públicos estratégicos e decisivos para a política econômica e as funções exercidas nos grandes conglomerados, como bancos de investimentos, mostram que tudo não passa de uma quadrilha apoiada de todos os lados para meter a mão na poupança alheia.

Quando engenheiros usaram seus conhecimentos para criar produtos financeiros on line e de alta tecnologia digital agregada, inventando os caminhos para CDOs, derivativos e outras baboseiras que nos jogam na cara como se fossem próprios de divindades inacessíveis ao leigo, o mercado explodiu no que chamam bolha e eu chamo de mercado mesmo. Porque a bolha é o normal dessa maré alta do capitalismo predatório, que descobriu o ovo de Colombo: basta expropriar o mundo sem fazer força por meio de um sistema infalível de carreamento de recursos para os bolsos dos espertalhões. E estamos falando de bônus de muitos bilhões de dólares. Uma corrupção que envolve drogas pesadas,prostituição, entre outras barbaridades. Provectas instituições financeiras lavando dinheiro de ditaduras e de cartéis mexicanos são apenas detalhes do que é mostrado.

Esse é o mundo que Obama criticou e acabou favorecendo, pois não há como escapar da safardagem. Com esse sistema é possível manter no jugo os países, seja qual for o governo que houver neles. É o que fazem conosco. Pagamos regiamente os bandidos especuladores com o suor da nação. E aqui a conversa fiada é a mesma. O governo trabalha com créditos podres para a população. Assim pode manter o continuísmo no poder. Agora todo mundo vai pagar a conta. A farra sempre dá com os burros na água. Até a crise seguinte.

21 de março de 2011

O ESTRAGO OBAMA



Nei Duclós


A máscara do marketing político expresso em citações sob medida e piadinhas prontas esconde, na visita do presidente americano Barack Obama ao Brasil, Chile e El Salvador, a realpolitick do Império. Ou melhor: revela. Pois reproduzir uma frase do Paulo Coelho, falar em jogo do Vasco ou Flamengo no meio de uma palestra, coroando os insights com carinhas interessantes ou gargalhadinhas de deboche, mostra o vazio desse oba-obama cretino que galvanizou a mídia comprada e as celebridades de gênero e raça que pontuaram durante toda a estadia. Um vazio preenchido pelo que realmente interessa: enquadrar o Brasil no esforço de guerra contra países do Oriente Médio e tomar conta do território econômico e político que historicamente “ pertence” aos americanos.

Os EUA se recusam a “perder” o Brasil e seus vizinhos. Por isso Obama nos visitou. Isolou a Argentina, porque lá tem opinião pública, evitou obviamente a Venezuela, declarou guerra à Libia dentro do palácio em Brasília e colocou o Brasil como exemplo de democracia para os árabes. Seu gesto foi muito claro: como fomos plataforma para a declaração de guerra, temos agora a obrigação não apenas de apoiar a carnificina dos bombardeios (que desde o Vietnã está provado que não funcionam) como, eventualmente, mandar soldados para lá. Basta destruir a Líbia e depois mandar soldados multinacionais para fazer o policiamento, como acontece com o Haiti. Tem mais: declarar guerra num país não alinhado com a invasão é mais do que humilhante, é crime político.

Obama causou grande estrago ao colocar o Brasil abaixo da sola do sapato. Alguns importantes ministros de Estado tiveram que se submeter a uma revista completa a cargo dos meganhas americanos, inclusive baixando as calças para provar que não portavam armas. Quem é contra o governo continuista do PT vibrou, mas as atuais autoridades representam o país e não podem ser humilhados dentro ou fora de casa. As mudanças bruscas de agenda, deixando na mão os organizadores da recepção, o domínio absoluto do território por terra ou por ar, a fala de um presidente estrangeiro para o povo brasileiro, tudo isso significa um estrago gigantesco na idéia de nação.

Que exemplo de democracia que podemos dar aos árabes? Fizemos uma transição casuística, consolidando o regime de 1964 por meio de estadistas medíocres, medidas provisórias, política econômica atrelada ao capital especulativo, sucateamento do parque industrial nacional, engessamento político, fraudes eleitorais, marketing milionário, domínio de capitães do mato em currais eleitorais, políticas públicas de compra de voto, entre outras providências. Obama atribuiu a Dilma a redemocratização brasileira. Então tá. Os EUA providenciaram uma ditadura por aqui em 1964, como provam os documentos do Pentágono e o depoimento do embaixador americano no Brasil na época, Lincoln Gordon, e aí a Dilma roubou o cofre do Ademar e fomos redemocratizados. Ara.

O fato é que os EUA não estão preocupados com o povo líbio ou brasileiro, querem apenas negócios. A Líbia tem petróleo e gás, e o Brasil tem tudo. Além disso, nós temos os grandes eventos esportivos para esta década, que movimentam uma grana preta e os americanos não querem ficar de fora, ou seja, pegar apenas uma parte, eles querem a parte do leão, obviamente, e foi isso que Obama também veio dizer.

O que se destacou na visita foi a fraqueza do nosso governo, a figura anódina de quem exerce o cargo maior da nação, a exposição de nossas fraquezas levando o visitante e sua comitiva para ver capoeira e favela, como se fôssemos um paiseco de nada quando ostentamos tantas performances econômicas, que não passam de venda de insumos básicos, já que ninguém quer saber de nossos produtos agregados, com algumas exceções que não pesam na balança comercial.

Quando vier um visitante desses, levem para visitar o Masp, a Fundação Getulio Vargas, as universidades, Curitiba, Belo Horizonte,por aí. Basta de mostrar o Rio. E não deixem que os seguranças apalpem autoridades brasileiras. Pega mal, fica feio. Nem permitam que declarem guerra daqui. Vão bombardear para lá. Não temos nada com isso.

RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

20 de março de 2011

OBAMA DEITOU E ROLOU


Passei o os últimos dias no Twitter enchendo o saco da visita do presidente americano ao Brasil. Obama declarou guerra à Líbia na capital do Brasil numa entrevista coletiva só para jornalistas estrangeiros, depois de escutar de Dilma que seria melhor uma solução pacífica porque a guerra faz vítimas (!). Ministros de estado foram revistados por seguranças estrangeiros e acharam ruim – por que permitiram? Veio avisar que são donos de uma parte dos negócios da Copa (já que Chicago perdeu), das Olimpíadas e do Pré-Sal. A seguir, uma seleta de frases que tuitei só para chatear os ex-gringos.


Obama não irá à Argentina. Prefere visitar a capital do Brasil, Buenos Aires

Os militantes que protestam contra Obama não entenderam ainda que o governo é de esquerda, ou seja, aliado dos americanos?

Obama deveria fazer o discurso no Sambódromo, de camarote e depois sair sambando em carro alegórico. Mas não dá tempo para ensaiar

"O presidente, conhecido por sua retórica", diz a Folha. Ei, você conhece o Obama? Conheço, é aquele da retórica

Só espero que Obama não anuncie o bombardeio à Líbia dentro do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Seria um péssimo resumo da ópera

Hoje só vou dizer "sim, majestade", em homenagem ao presidente EUA, do qual fazemos parte como região mais ao sul do Texas

A foto mostra Obama acenando. Legenda: "Obama acena..." É o jornalismo dos atordoados

Lázaro Ramos diz que queria "ser" a família Obama. Admirar o Outro tomando o lugar dele? Isso tem outro nome

O que veem em Obama? Que ele é negro. O que veem em Dilma? Que é mulher. São dois presidentes. Nada a ver pele ou gênero

Dilma apóia o país que apedreja mulher e o que mantém prisão sem direitos humanos. Ambos merecem consideração

O almoço era entre presidentes (que Lula não é) e ex-presidentes (que Lula também não é, já que ainda não desencarnou).

Quem fala de negócios é CEO de muiltinacional ou ministro da Indústria e Comércio. Presidente deve falar de política, humanidades e cultura

Dublagem de Obama com chiado de chaleira no Globo News é de lascar

No Brasil os sonhos podem se tornar possíveis, sim, Obama.Nós,por exemplo,sonhamos com toda essa corja na cadeia.Mas eles cresceram no pode

Obama não deu força para o Brasil no CS da ONU, declarou em Brasília guerra à Libia, lamentou ter perdido o Carnaval. Sambou como bem quis

Obama é americano, formado em Harvard. Essa é sua identidade, suas raízes. Somos seres culturais, nascidos em tabula rasa. Não há "sangue"

Lázaro Ramos, você é brasileiro e Obama americano. São distintos, entende? A cor da pele não os identifica. Mesmos princípios, sim

Obama, a guerrilha de Dilma apenas deu sobrevida ao regime que os americanos ajudaram a implantar aqui na Guerra Fria. Viu, ô essemenino?

Obama, V. Excia já ouviu falar na operação Brother Sam, denunciada pelo embaixador americano no Brasil em 1964, Lincoln Gordon? Leia.Faz bem

Então, Obama, a ditadura foi implantada aqui sob inspiração,apoio e financiamento americano. Não nos venha falar em democracia

Obama, não fazemos parte do sonho americano. Quem faz parte do sonho americano são os ameircanos. Viu ô essemenino?

Sou 13 anos mais velho do que o Obama. Preciso lhe falar como a coisa funciona aqui no Brasil. Não é assim chegar chegando e dizer dizendo

Ministros de estado do Brasil foram revistados como meliantes pelos seguranças do Obama. Os americanos deitaram e rolaram

O Brasil treme de emoção diante do todo poderoso, que veio dizer abobrinhas e tratar o país como território americano.

Meia dúzia de seguranças americanos tomaram o país pelo telefone.Fizeram o serviço na nossa cabeça e limparam com os cabelos.Brasil de Dilma

Nos EUA, o correspondente da Globo declarou guerra à Líbia. No Brasil, Obama só repercutiu

Obama "respeitou a opinião" de Dilma sobre solução pacífica na Líbia ("porque a guerra custa vidas", disse ela). Em seguida, mandou bala

Obama declarou guerra à Líbia numa entrevista coletiva no Brasil, só para jornalistas estrangeiros. O desprezo não tem limites

O Brasil é uma porção dos não-países, pura paisagem vista de satélite. Não existimos para eles

Sabe o Brasil? Morreu. Obama veio rir do defunto

Obama deitou e rolou. Declarou guerra aqui, seus seguranças revistaram ministros de Estado. Deboche contra país sem soberania

Com este governo e sob este regime, não existimos como nação. Precisamos recuperá-lo. Primeiro passo é entender como o mataram

RETORNO - Em agosto de 2008, escrevi um discurso para Obama dizer, se fosse um político sério.

18 de março de 2011

OBAMA NO BRASIL


O Rio não é mais uma cidade, assim como o Brasil desistiu de ser uma nação. O que temos é um resto de país, com alguns sinais do que fomos, como o Cristo Redentor, algumas árvores sobreviventes e praias fotografadas de longe. A Cinelândia também não existe mais como o coração da cidade maravilhosa, como se costumava dizer. Essa deve ter sido a constatação dos agentes de segurança que vazou e fez o presidente Obama cancelar seu discurso aberto na Cinelândia. Ele decidiu falar num lugar aparentemente mais seguro, o Teatro Municipal, um desses vestígios que sobreviveram á ruína do Brasil.

Talvez Obama tenha acreditado um pouco que o Brasil cresceu na Era Lula e que uns trocentos milhões “ascenderam” à classe média. Talvez tenha achado que ainda há por aqui governantes, democracia e povo, coisas que não existem mais. Não temos mais políticos que roubam, temos ladrões que fazem política, com honrosas exceções, que no fim não pesam na balança, completamente tomada pela canalha (vemos isso todos os dias). País que para roubar vale até colocar lombada em caminho de carroça não pode ser considerado uma nação.

Não temos democracia por motivos exaustivamente apontados aqui, mas não custa lembrar: sistema político engessado, com quadros vetustos que assimilam, com sua política perversa, quem chega na arena; marketing milionário e pesquisas suspeitas pontificando nas eleições; economia que suga os recursos da nação para remunerar regiamente o capital especulativo; medidas provisórias; inexistência de oposição de verdade; continuísmo em todos os níveis etc. Nossa democracia é um espanto: nasceu de um casuísmo, a posse da chapa eleita indiretamente que perdeu o titular antes de assumir, mas invoca, para se justificar, o movimento de massas que foi derrotado em primeira instância no Congresso para que medrasse a consolidação do regime tirânico implantado em 1964.

E não temos povo porque nossa relação uns com os outros é sempre de domínio. Fruto da escravidão, essa situação se cristalizou por todo o tecido social e gera um ressentimento surdo e permanente, que deságua na violência sem limites, provocando centenas de milhares de vítimas por ano, numa guerra não declarada e que transcende a luta de classes: é ódio puro e simples, retaliação e irresponsabilidade, com a morte em todas as faixas de idade. Como não temos mais educação, aumentam as multidões ágrafas, o que gera um buraco enorme de vagas no mercado de trabalho, que precisa de gente pelo menos alfabetizada. Esse vácuo é preenchido pela importação maciça de mão-de-obra estrangeira.

O que Obama visita então, se não temos país, nem democracia, nem povo? Ele simplesmente cumpre uma agenda diplomática internacional para reiterar os laços que nos unem aos americanos desde a II Grande Guerra, quando lutamos com os Aliados e a FEB foi anexada ao V Exército americano. Esse foi o começo da perda da soberania, precedido pela morte de Roosevelt, que nos tinha em alta conta e foi substituído pelos piratas, que no fim preparam a erradicação do trabalhismo, fonte política e econômica do Brasil soberano (1930-1964). Obama visita a casca do país e deve ter notado que a Cinelândia é uma casca tão fina que não suporta a simbologia que quiseram lhe atribuir nesta altura do campeonato.

O que cresceu no Brasil foi a superconcentração de renda (exibimos novos biliardários todos os anos), a inadimplência (os pobre se endividiram, achando que ascendiam socialmente), o sucateamento das cidades (onde tudo vira favela), o espaço da terra arável para o agrobusiness transgênico e predador e a possibilidade de destruirmos o que resta, como acontecerá se resolverem “transpor” as águas do São Francisco e furar o pré-sal sem tecnologia suficiente para evitar desastres.

Obama deve lamentar tudo isso. Gostaria de visitar um grande país, parceiro do seu, independente da ação nociva dos EUA nessa destruição (a autoria deve ser creditada a nós; fomos ajudados, só que a maior parcela da responsabilidade está dentro das fronteiras). Mas o que temos é uma ininterrupta campanha de publicidade dizendo que somos o máximo, quando estamos num nível muito abaixo do mínimo. Já que abrimos mão da nossa importância, talvez o minúsculo Chile, para onde Obama irá depois de sua visita, desempenhe esse papel jogado no lixo pelo gigante.

17 de março de 2011

TIAS


Nei Duclós

Tia Maria era professora de escola primária do subúrbio. Dura, vestia-se com extrema sobriedade e jamais sorria. Solteira a vida toda, morava em um apertado quarto de hotel, completamente tomado por vidros e caixas. Todos com tampa. “É para quando a gente precisar”, dizia ela. Mestra tradicional, não dava colher para aluno, mas a proximidade com a miséria a emocionava. Contava sempre a história do garoto problema que um dia estava absorto. “O que te aconteceu?”, perguntou Tia Maria. “Hoje estou feliz por causa que eu comi”, respondeu o aluno. O detalhe era o “por causa que”, proibido naqueles tempos, quando o rigor do ensino não permitia defecções. O defeito carregava ainda mais o drama da confissão espontânea.

Tia Sarinha era a que tomava o pileque tradicional de Natal e acabava dizendo o que ninguém deveria ouvir, principalmente as crianças. O escândalo datado e doméstico não provocava grandes conseqüências, mas era aguardado com entusiasmo, principalmente pela gurizada, que adorava rebuliço. Por muito tempo trabalhou no Palácio Piratini. “O Perachi é tão lindo!” costumava dizer nos saraus etílicos permitidos, declarando o amor platônico pelo seu chefe, o folclórico governador que veio da Brigada Militar.

Tia Ceci, ao contrário das outras, dividia o mesmo teto conosco. Não construiu uma biografia muito evidente, apenas memórias de um noivado desfeito com o vendedor ambulante e galanteador popularmente conhecido como “Sapato Perfumado”. O tal escafedeu-se e deixou a noiva só e agregada .

Na sua avoação vocabular, Tia Ceci era capaz de grandes feitos. Ensinou palavrões para nossa caturrita, a Lorita, enquanto tomava mate na varanda. Também foi o primeiro ser humano próximo que nos falou na mudança das estações, provocada “pelos russos e os americanos com suas bombas atômicas”. Dizia também que os discos voadores eram coisas deles e isso chegou quase a ser comprovado em vários vídeos que descrevem experiências com naves espaciais desde a época dos nazistas. Suas profecias eram devidamente celebradas como delírios e por isso, talvez, tenha sido uma precursora das teorias conspiratórias.

Havia ainda a Tita, uma geração acima das demais. Ela não me contava a histórias dos meus avós, que nunca conheci – e as pistas que nos deixaram sobre eles são muito nebulosas. Mas me chamava carinhosamente de meu poeta. Morava numa casa típica italiana com grande quintal forrado de uvas. Para lá íamos, compensar nossa vontade de devorar o mundo. O local estava à altura: era o espaço gastronômico mais amplo que conhecíamos.

A fala carinhosa, o tom professoral, a língua solta tinham assim representantes que ajudaram a me formar. De todas, Tia Maria foi a mais importante. Era minha madrinha num batizado clandestino, sem padrinho. Foi preciso jogar água benta no pagão já taludo, com três anos, mas de maneira que o pai, ateu, não desconfiasse. Ele permitia a religião da esposa e filhos, desde que a prole não fosse batizada, como se isso fosse possível. Por muitos anos, debocharam do relato que fiz depois da cerimônia, imitando meu gesto inocente e a boca mole, no tom afetivo a que fui acostumado com tanta mulher adulta ao redor, contrapondo a presença maciça do mundo masculino, feito de encontrões.


RETORNO - Imagem desta edição: Cena de escola básica integrada em Springer, Oklahoma, em 1958. Tirei daqui. O mundo era assim.

16 de março de 2011

REMORSO


Nei Duclós (*)

Remorso é necessidade de perdão. O tempo lava, mas não elimina. Há sempre aquele sobressalto na memória, o murmúrio de autocrítica, o espanar de lembranças. Só me arrependo do que não fiz, costuma dizer a arrogância, faltando com a verdade. Pode acontecer, uma oportunidade perdida corroer o esôfago por décadas. Mas normalmente é sobre o que fazemos que o sentimento azedo se manifesta. O que dissemos na hora errada, o erro que insistimos em cometer apesar dos avisos, a exposição pública de algo que nem deveria existir.

Remorso está normalmente vinculado à covardia. Quando nos prevalecemos de alguém, fomos duros com quem não podia se defender, quando debochamos da inocência. Fantasiamos nossa coragem enquanto fugimos dela repetindo as mesmas maldades. Mas a consciência que nos esclarece sobre esses eventos trágicos é a porta para reverter tudo. Se somos capazes de nos arrepender, então temos potencial. Poderemos evitar algumas catástrofes e no fim usufruir de um balanço a nosso favor. Nunca vi você cometer um deslize, dirão os amigos, generosos e esquecidos.

Mas sabemos que a imperfeição é a regra e a nossa vontade de acertar um jogo de cabra cega. É como aquela brincadeira das reuniões familiares e aniversários, quando alguém de olhos vendados, armados de um porrete, tenta acertar uma alvo que se mexe, pendurado no teto. Fracassamos miseravelmente, mas às vezes podemos atingir o alvo. É quando detonamos nossas falsidades, orientados por uma percepção oculta, uma vocação ainda em repouso, uma vontade louca para se manifestar. Somos criaturas misteriosas que precisam habitar o espírito tão crivado de setas como aquele santo de olhar para o teto.

Lembro de todos os episódios em que me arrependi no minuto seguinte e com mais intensidade dos que não pude remendar imediatamente. Há ainda os que passam por nós sem que a gente perceba e só nos damos conta anos mais tarde, quando tudo se esfumou nas ruas baldias do tempo. É quando tentamos remendar o mal feito e reatar as amizades rompidas à toa, por obra de nossa desatenção, pressa ou simplesmente precariedade humana. Costuma dar certo. Os antigos conhecidos podem assim começar a amizade antiga, passar por cima do passado e compartilhar novos tesouros.

É preciso que o remorso seja a baliza, o parâmetro, para que possamos errar menos. Isso não acontece naturalmente. É preciso formação. A consciência não existe por acaso, ela é fruto da semeadura árdua que os adultos exercem sobre a tabula rasa dos seres que chegam do Outro Lado. Trazemos no berço a marca das iluminações possíveis, mas elas precisam ser despertadas. Senão viramos bichos, sem ninguém para trabalhar a alma aberta para todas as possibilidades.

Precisamos da experiência, dos mestres, das leis, da tradição, das ousadias, dos vislumbres, das artes, das inúmeras literaturas, dos gênios e de todos os anjos que habitam a terra, que nos cercam desde a infância e lamentam o que fazemos de errado, mas celebram quando, estocados pelo remorso, corremos para evitar um mal maior.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada na edição 332 do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Fantoche, obra de Ricky Bols.

O PALHAÇO INVISÍVEL


Nei Duclós (*)

Sonhos nada significam. Pelo menos, não obedecem às interpretações correntes, tiradas de alguma cartolas. Há a psicanálise e suas chaves, mas mesmo esse acervo sofre de padronização. Ficamos assim à mercê do bate-pronto dos comentários. Sonhei com um rio, você diz, e imediatamente vinte vozes se levantam: ah, é sexo. Com fogo? Sexo, certamente. E por aí vai. Esses dias falei que tinha sonhado com um palhaço com a cara do Ankito, aquele comediante das chanchadas dos anos 60. E que ele ficava invisível. Na mesma hora alguém falou: ou é sorte ou é morte!

Prefiro acha que é apenas um truque misterioso que captamos quando estamos imerso em outro mistério, o sono. Os motivos de precisarmos desligar oito horas por dia podem ser explicados à luz da lógica e da razão, mas no fundo não fazem sentido. Estrelas jamais dormem. A Lua fica de olho parado te vendo o tempo todo. As montanhas estão em vigília permanente. Os tubarões nunca param de se mexer. E, claro, os mosquitos e moscas, esses apenas fingem que descansam, porque estão sempre prontos a dar o bote. Portanto, dormir é um enigma e seu subproduto,o sonho, uma charada indecifrável.

O fato é que estava eu diante do palhaço com a cara do Ankito, sentados um em frente ao outro, numa espécie de pôquer. Nunca aprendi a jogar pôquer, por mais que me ensinem. Nas cenas de faroeste, fico pasmo com a linguagem cifrada em que os jogadores ficam mostrando as próprias cartas, blefando ou quebrando a banca por motivos desconhecidos. Porque o sujeito tem que pegar tudo o que está em cima da mesa depois de mostrar as cartas é um tremendo de um enigma para mim. Mas não costumo espalhar esse tipo de incompetência, pois senão vão querer me ensinar de novo e eu fingir que desta vez aprendi.

Pois como ia dizendo, estava eu diante do palhaço com a cara do Ankito e ele sumiu da minha vista. Só que alguém atrás de mim dispunha de uma luz que incidia sobre espíritos, silhuetas, aparições, assombrações. FoI então que a luz amarelada se projetou para o espaço que estava vazio na minha frente: eis que aparecia o palhaço todo transparente a roubar uma carta que estava na mesa. O sujeito roubava usando mágica, mas, como diz o Chapolin Colorado, não contavam com minha astúcia.

Esse tipo de cena que a minha mente produz não deve ter nenhum sentido. Ao contrário de outras, explícitas. Uma vez sonhei com meu colega Itamar, do ginásio, em que ele caía num precipício num acidente de ônibus e no dia seguinte abri o jornal e lá estava o evento, com a morte do meu amigo. Em outra, sonhei que um militar graduado na época do golpe do Chile em 1973 interferiu a favor de um amigo e logo depois recebi notícias de que estava salvo, na embaixada argentina em Santiago.

Ou seja, sou capaz de ter sonhos poderosos e premonitórios, como qualquer pessoa. Só acho que os sonhos, quando querem dizer algo, mostram na lata sem metáforas. Não precisam de palhaços invisíveis para nos convencer de alguma coisa. A não ser que o velho Ankito tenha algo a me dizer e não apenas me fazer rir, como na época em que o mundo tinha mais graça.

RETORNO - 1. Crônica publicada na edição 331 do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagens desta edição: a foto maior tirei daqui e a menor é Ankito vestido de palhaço.

15 de março de 2011

O MITO NOS EIXOS


Nei Duclós (*)

O boxe é a lenda americana: o sujeito comum em desvantagem se supera e torna-se campeão graças ao seu esforço e ao destino, que no fim jamais lhe vira o rosto. Quando tudo parece perdido, eis que surge a oportunidade de redenção, que se consuma, contrariando todas as evidências. Ficar por baixo antes da grande decisão é uma situação limite representado ou pelo veterano, ou o migrante que sonha em dar a volta por cima com uma luta definitiva. O Outsider assim pode ser incluído na América por meio da vitória final, saindo do gueto para abraçar a causa patriótica do país hegemônico, que precisa de representações da hegemonia em toda a escala social.

Depois de tantos filmes sobre personagens periféricos (étnicos, principalmente, como Rocky) que conseguem chegar no núcleo do mito americano, há novidades em “O Vencedor”, de David O. Russell, com Mark Wahlberg e Christian Bale. O lutador é de Lowell, berço da indústria têxtil, cidade pequena e decadente, que tem um ídolo, o anjo caído interpretado por Bale (Oscar de coadjuvante neste ano, cada vez melhor; um ator que arduamente ascendeu ao primeiro time). É a América que precisa voltar ao centro do drama, é o mito que precisa ser colocado nos eixos e para isso se presta maravilhosamente a cidadezinha e a família amontoada ao redor de sua única chance de superação, que desta vez, ao contrário do primogênito, poderá chegar à vitória.

O drama se divide entre o filme da HBO que está sendo realizado sobre a dependência de crack do irmão mais velho (e que faz a radiografia do fracasso) e o outro, o chamado filme real, que mais parece um documentário com o mesmo ritmo da caminhada dos lutadores em direção ao ringue. A missão coincide com o amadurecimento pessoal por meio dos relacionamentos familiares reciclados.

Essa jornada em direção ao cinturão de ouro reproduz a luta da nação pela predominância sobre outros povos. O lutador nocauteia hispânicos ou italianos e acaba decidindo com seu igual, o britânico. Para isso conta com seu espelho, o irmão treinador que vive de uma tradição, o mito fora dos eixos e que, com o vencedor, recupera o carisma perdido. A cultura americana jamais trai seus princípios. É uma questão de sobrevivência nacional.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 15 de março de 2011, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Wahlberg recebe instruções de Dale em The Fighter.

14 de março de 2011

O BOI ESTÁ SOLTO


Nei Duclós (*)

O escritor Lima Barreto era contra o futebol. Criou até uma liga para reprimir o esporte. Achava que era violento e facilitava o crime. Estava cheio de razão, o futebol é mesmo uma peste. Lembram dos hooligans ingleses que mataram um monte de gente provocando sururus em estádios? E quanta gente morreu na várzea disputando um pedaço de couro entre tiros e garrafadas? Mas nada disso tira o encanto do futebol, que cresceu e se consolidou como um esporte dentro da lei. Faz vítimas, mas não pode ser criminalizado.

Tourada então nem se fala. É uma sacanagem com os touros, empurrar aquelas espadas, fincar-lhes bandeirinhas afiadas, toureá-los com uma capa vermelha. É uma tortura a céu aberto, nas fuças de todo mundo, que aplaude a grande arte ibérica da tourada. No Brasil esse era o esporte favorito antes dos ingleses romperem a tradição trazendo o biroço d´além mar para criar uma espécie de elite esportiva em que só brancos ricos entravam. Imediatamente, a bagacerada pegou a sobra dos lances que expulsavam a bola para fora dos estádios e começou a chutar a esmo pelos arrabaldes, o que gerou o futebol brasileiro, como conta Mario Filho em seus textos inesquecíveis.

Imaginem Pamplona sem aquela corrida de touros em que todos cometem suicídio coletivo se atirando na frente de touros furiosos. Já existe até um movimento para acabar com a festança, mas talvez não cole. A cidade ficou famosa por sua farra do touro e ainda não existe força suficiente para evitar que ela aconteça. É diferente daqui, onde a tourada foi esquecida e hoje sobrevive em algumas lugares, como no litoral catarinense. O pessoal se reúne na época da Páscoa e faz do boi uma espécie de Judas, como arrisca dizer a Wikipédia. Mas, como no futebol, se cometem excessos.

Em função dos energúmenos que torturam o boi , proibiu-se toda a prática. Você não acaba com uma tradição,um hábito de gerações,com fundas raízes na época colonial e que mantém viva a vontade de transgredir, como acontece no carnaval. Imaginem se todo o esforço em acabar com o carnaval, como era comum no início, desse certo. Teríamos até hoje algo pulsando forte abaixo do piso da nação.

Mas o carnaval, como o futebol e as touradas de Madrid, sobreviveu e hoje faz a alegria de um monte de gente. Criminalizar toda a Farra do Boi e não apenas seus excessos é erro grave. De mais a mais, o povo é invocado e vai continuar farreando. Não fazem farra em Brasília e fica por isso mesmo? Ara. Porque liberam a Farra do Homem Vestido de Mulher e reprimem a Farra do Touro Eunuco? Não é um caso de polícia . A Farra do Boi poderia ser liberada e monitorada, como o Carnaval e o Futebol, que quando soltam os freios fazem vítimas .Torturar o boi ou invadir e destruir casas não podem ser ações permitidas. Mas a tourada dentro de limites deveria ser atração turística .

Por enquanto fica o rolo. O povo insiste na tourada não só por hábito, mas para implicar e contrariar. O boi está solto.

RETORNO - (*)1. Texto publicado originalmente no Cangablog. 2. Imagem desta edição: Tourada à corda na ilha Terceira, Açores, Portugal. A Farra do Boi foi trazida para a o litoral catarinense pelos açorianos.

12 de março de 2011

A CATEDRAL DE CADA UM


Nei Duclós

Cada pessoa constrói uma abóboda virtual onde trafega, exposta para a observação alheia ou recolhida em si mesma. Gostávamos da igrejinha da bossa nova, do uísque do Vinícius e das conversas do Tom. Vivíamos encantados com a secura e o mau humor de Drummond de Andrade, pois a cada momento poderia surgiu um jardim, brotar uma rosa na sua poesia avessa. Quisemos um dia morar no texto de Saint-Exupery e viramos fiéis dos assombros de Borges. Seguimos os passos de Carpentier e Conrad tomando notas. Fizemos parte da roda de Simões Lopes Neto e Guimarães Rosa. Mas esses exemplos são raros. O que temos é uma overdose de ofertas na indústria do espetáculo ou fora dela, que circulam em personalidades toscas.


O mais notório desperdício de tempo é ficar prestando atenção nos diversos pseudogênios que tentam tomar o lugar dos grandes mestres. Temos sobrando Goethes, Gabos e Nerudas, mas nenhuma migalha de gente mesmo, de sua precariedade não vaidosa, a legítima, que encara a humanidade manifesta em si e nos outros com desprendimento, sem querer fazer disso literatice ou auto-ajuda. Recebo e-mail ou visito páginas de pessoas previsíveis, com suas sugestões de filmes, livros, frases e artes, suas notícias sempre grudadas em algum objetivo ideológico. O aparelhamento do imaginário talvez seja a grande tragédia atual, quando tudo tem a ver com a mesquinharia de mundinhos. Pior são essas celebridades que vendem caro seus selinhos e rebolados.

Não dá para confiar em quem vem com conversa sobre algum evento ou acontecimento se essa pessoa está cem por cento alinhada com determinada corrente política. Tudo o que fizer ou disser se reporta sempre ao mesmo núcleo. É como drogado, só pensa naquilo, por mais que você tente desviar a atenção para outras paragens. A pessoa sorri complacente, espera você acabar e retoma a conversa onde parou: “Então...”, diz, se servindo de algum produto que fixa a percepção no seu foco indevassável. Pode ser qualquer coisa: sexo, crack, tucano-petismo-emedebosta, aquecimento global etc. Há droga para tudo.

Somos reféns da nossa catequese. Queremos fazer a cabeça dos infiéis. No fundo, exercemos uma guerra santa contra os que nos contrariam. Já sabemos o que todos pensam, o que cada jornal dirá, cada personalidade fará. Já traçamos o mapa desse rolo. Qual a saída? Entregar-se ao poder da surpresa. Principalmente as que são oferecidas por pessoas aparentemente sem importância, os que não possuem capital simbólico, aqueles que você enquadrou há décadas e não tiveram mais nenhuma chance de mostrar o que existe fora dessa gaveta. Amor aos contemporâneos e rigor aos malfeitores: acredito quem seja esse o rumo.

Também temos nossas catedrais pessoais e elas incomodam muita gente. Vasculhar a abóboda em busca de predadores, abrir janelas inacessíveis, reforçar os tons desmaiados de nossos sonhos: há muito o que fazer nos templos, religiosos ou não, da nossa vida imersa em pensamentos e pulsações.

RETORNO - Imagem desta edição: bela foto da catedral de Santana, de Uruguaiana. Tirei do orkut. Não lembro mais a autoria da foto. Se souberem, me digam.

11 de março de 2011

O FALSO CINEMA DA MISÉRIA


Não vi filme sobre a miséria americana que acabasse mal. O único que me assustou de verdade foi Deliverance (1972), de John Boorman. Ou o marginalizado filme de Hector Babenco , Ironweed, mas aí não vale, Babenco é argentin...digo, brasileiro. Mas o que tenho visto é sempre uma falsa abordagem. No fundo não é sobre miséria, mas redenção. Sobre miséria é Cidade de Deus ou Tropa de Elite. Nisso somos profissionais. Mas os americanos sempre dão um jeito de, sob o som sedutor do country ou do blues, fazer dos seus personagens arrebentados uma lição positiva de vida. Alguns se estropiam de verdade, mas nunca os protagonistas. Como acontece com Winter´s Bone (traduzido bregamente para Inverno na Alma), da diretora Debra Granik. Como filme é recente, aviso que este texto contém spoilers. Não leia se não viu ainda.

Cinema, na mão de alguns filmakers, não passa de vingança. Debra aborda mulheres e seus maridos malvados. Sozinhas, loucas, abandonadas ou em grupos que formam o harém de um traficante, elas buscam/escondem o mal de suas vidas, um pai omisso e drogado e delator desaparecido. A exposição de baixarias não faz de nenhum filme um portento revolucionário. É o caso aqui. A cena da serra elétrica é digna da série do mesmo nome e está no nível dos tomates assassinos. Para vingar-se do mundo masculino, vale qualquer expediente.

Leio as críticas e elas são tão confusas quanto o roteiro. As pessoas não sabem se devem gostar. Mas a charada se resolve facilmente: o plot é interessante, mas a solução da trama não convence, o roteiro se perde. Em O Terceiro Homem, Carol Reed mostra o desaparecido vivo (Orson Welles, inesquecível). Faz sentido.Você não perde tempo vendo um suspense que patina em algo óbvio como a elipse total. Esconder um personagem precisa ser algo passageiro, não definitivo. É o que funciona em cinema. Lembrem de Rastros de Ódio. A garota seqüestrada estava viva? Todas as esperanças se foram. De repente, o olhar de Jeffrey Hunter se incendeia. A índia que mostra os escalpos na tenda do cacique Scar...é ela! São lições básicas de cinema que Debra não assimila. Um mistério não pode aparecer morto. Ele deve pulsar para salvar o filme.Senão o universo perde a graça

Para provar que a adolescente (a bela e excelente Jeeniffer Lawrence, na foto acima) não abandona suas responsabilidades e tem mais tutano do que toda a testosterona reunida no mundo, não precisava exibir uma sequência tão inverossímel de maldade. A cena do barco é de matar o espectador,pela bizarrice e apelação. E aqueles mal encarados não assustam ninguém. São representações do mal masculino, não o mal em si, como Jack Palance em Shane. São extremamente frágeis em suas ameaças e no fim quem dá um pau na vítima não são eles, é o harém – uma forma de mostrar igualdade de gêneros, uma preocupação que ainda vai tomar o imaginário nas próximas décadas, já que estamos ainda começando (coragem!).

Mas a verdade é que as pessoas miseráveis desse filme tem recursos, patrimônio, ganham uma bolada no final, resolvem suas vidas, acham o que procuravam e ainda tocam banjo para alegrar os corações. É um filme bonzinho, mas que se revela vazio apesar de toda a aparência de densidade. Portanto, não há o que confundir. O filme não faz parte das obras cinematográficas que valem a pena. Pode ser visto,mas depois não se queixe.

9 de março de 2011

POR QUE NO CINEMA FUNCIONA?


Os americanos se especializaram no “it works”, aquilo que funciona no cinema. É quase uma identidade nacional: nenhum outro país a exerce com tanta regularidade e maestria. Talvez seja o diferencial decisivo, fruto de uma radicalidade cultural: a de que a representação tem vida própria e regras específicas, que, se forem obedecidas podem inclusive ser mais significativas nas suas ligações com a realidade. É um paradoxo: como a traição ao real pode ser seu aliado? Talvez isso nem importe, pois de que vale a realidade se ela não tem a mínima graça? O que pega, talvez, é o usufruto dessa arte, que faz do espetáculo algo inesquecível e perene. Mesmo que seja uma bobagem como Midnight run.

Fuga à meia noite, de 1988, dirigido por Martin Brest e escrito por George Gallo, com Robert Robert De Niro, Charles Grodin e Yaphet Kotto é uma sequência de impossibilidades num roteiro batido, mas que funcionam maravilhosamente. É um road movies fundado num anacronismo, o caçador de recompensas, que precisa levar o contador da Máfia, escondido e testemunha chave contra a bandidagem, de Nova York para Los Angeles. O truque é impedir que eles façam uma viagem normal e cada peripécia se transforme num transtorno divertido para os espectadores, e mortais para os protagonistas. Quais são as impossibilidades que funcionam?

Ninguém revista o contador apesar de passar por várias mãos. Ele carrega 300 mil dólares numa cinta colocada nos países baixos, que são repassados para seu algoz e depois salvador no desfecho da trama.No caminho, o mesmo sujeito que carregava uma fortuna passa fome porque não dispõe de um tostão. Ao mesmo tempo, o perseguidor conta todo seu trajeto para seu empregador, sem desconfiar jamais que suas informações estavam sendo repassadas para a máfia. Só cai a ficha quando acontece pela milésima vez.

Não faz sentido, mas a grana preta carregada pelo contador é o prêmio que De Niro ganha no final, ele que tinha sido expulso da polícia porque não tinha aceitado suborno e agora sai rico por aceitar o presente de sua ex-vítima. Ninguém pergunta nada sobre essas contradições. A cena final, em que recebe o dinheiro e implora troco para notas de mil dólares para os taxis o levarem, é emocionante. Se o cara tinha 300 paus o tempo todo, porque não subornou o outro caçador de recompensa, que fazia o mesmo serviço por 25 mil? Porque a história perderia a graça, e portanto, o sentido.Os americanos são ciosos da fisga sobre o público e não abre mão do que funciona para o filme fazer sucesso.

Se o relógio estragou para sempre, por que De Niro vive mexendo com ele, tentado trazê-lo de volta à vida? Porque é um objeto de estimação e sua insistência faz parte de sua identidade. Não só psicológica, mas também visual, pois só no cinema um personagem é caracterizado pelor sacudir interminável do relógio de pulso enquanto fuma sem cessar. Lembrei de Lima Duarte fazendo o mesmo em Roque Santeiro. Mas a novela foi feita três anos do filme, portanto Duarte precede De Niro.

Outra coisa que funciona é a duplicidade ética dos personagens. Charles Grodin (na foto acima sendo levado pelo cangote por De Niro), excelente como o perseguido, é um contador honesto que queria pegar a máafia no flagrante, mas dançou porque tinha policial corrupto no meio. Ou seja, é um sujeito ético no meio da bandidagem. Como prisioneiro, é visto e tratado como um meliante, mas aos poucos vai se revelando honesto. Só que, no meio da viagem, precisando de dinheiro, rouba uma birosca fingindo-se de agente do FBI. De Niro também rouba a identidade de um agente ( o magnífico Yaphet Kotto, que define seu persoangem com a disputa de um par de óculos escuros e alguns olhares sinistros), rouba carros pelo caminho, tudo pelo social: precisa da recompensa para montar uma lanchonete.

Mas ele sabe que irá entregar a vítima para a morte, pois na prisão a máfia dará um jeito de apagá-lo. Essa contradição acaba levando-o para a libertação do prisioneiro, gesto que é recompensado com grana do Mal guardado por sua vítima. Tudo funciona nessa sequência de impossibilidades. A relação complicada e cheia de sintonias entre os dois, a briga pelos óculos escuros com o policial, a velha perseguição de helicóptero contra um automóvel na autoestrada e outros lugares comuns levaram muitos críticos a torcer o nariz. Mas eu gostei. Achei no De Niro ótimo, ator que não em agrada e costumo implicar bastante, pois conseguiu consenso fazendo careta demais para o meu gosto.

Mas é isso. Queria falar sobre o filme que vi na Band no domingo passado e falei. Pronto.

8 de março de 2011

TIOS


Nei Duclós (*)

A palavra tio perdeu o valor quando virou apelido de desconhecidos. Mas tive tios inesquecíveis, personagens de uma literatura que roda pelo Brasil profundo. Com pai de origem muito pobre, conheci seus irmãos que gravitavam em torno da nossa vida. Ganharam nomes comuns na época, como Valdemar, que se aposentou como sargento da Brigada e não teve filhos, e Antenor, pescador de casamentos e proles inumeráveis. Alguns acontecimentos protagonizados pelos dois se tornaram clássicos na família.

Valdemar lutou em quatro guerras, de 1923 a 1932. Primogênito, precisou trabalhar desde cedo e encontrou a salvação na farda do exército estadual, onde era possível ter um soldo, rancho e até mesmo uma certidão de nascimento, rara naqueles ermos. Grande cozinheiro, especializou-se em pães saborosos e pastéis de fechar o comércio. Como éramos uma quadrilha de petizes vorazes a rondar o padeiro, que conseguia o ponto quando a primeira gota de suor caía na massa, ele um dia propôs um desafio.

“Vocês vivem reclamando que faço pouco. Hoje vou fritar pastel até arrebentar”. E começou a gincana. No milésimo exemplar depositado na enorme bandeja e devorado em meio segundo, jogou tudo para o alto. “Não adianta. Vocês tem ácido de bateria no estômago”. É célebre sua predileção pela carne de frango, que exigia nas campanhas militares, quando acampava com seu destacamento em sítios de criação. “Tem galinha?” era a senha que decidia o pernoite. Um dia resolveu criá-las. Comeu tudo antes do lucro.

Conto sempre as histórias de Valdemar e deixo de lado as peripécias de Antenor, mais ausente, mas não menos folclórico. Jogou fora o fogão presenteado por meu pai porque a comida tinha gosto de gás. Morava em barracos caídos e por muito tempo dispensou as portas. Costumava apertar os dedos nelas porque não estava habituado. Vivia na beira do rio desenredando linhadas. Quando foi contratado para cuidar do armazém montado no grande galpão nos fundos da minha casa, acabava dormindo em cima da balança que pesava os sacos de mantimentos.

“Vão comprar no Mirotti”, dizia para os fregueses insistentes, encaminhando-os para o bolicho mais próximo. Virava-se para o lado e continuava a dormir. Grandes tios.


RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 8 de março de 2011, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: tirei de um power-point sobre remédios antigos.

6 de março de 2011

UM POUCO DE CIÊNCIA


Nei Duclós

A ciência é cheia de novidades e revelações. Sabe o chiado de rádio de onda curta, você que tem mais de cem anos? Pois é o barulho do big bang. O troço explodiu lá no pré-Gênesis e faz ainda barulho, que você capta se colocar uma antena direcional no arame preso no telhado. Depois de nos assombramos com os buracos negros, que devoram tudo, até mesmo a aurora boreal, se ela ficar dando muita sopa, veio a incrível história dos buracos brancos, que parecem vomitar o que engolem. É uma espécie de anorexia cósmica. Mas, como dizem os formadores de opinião, as coisas não param por aí.

Sabe o sistema solar, esse que tem um Planeta X oculto e que expulsou Plutão para a periferia depois de decretar que ele não é nem traque de asteróide? Pois esse troço de ter um sol que ostenta astros frios girando ao redor é idêntico ao do átomo, só que o próton assume o papel principal e os elétrons o dos coadjuvantes. Mas descobriram montes de planetas fora da ordem, ou seja, sem nenhuma estrela para girar em volta. Vai ver a gravidade não existe, é lorota, é uma lei que não pegou. Os caras giram sobre si e ao redor dos outros porque assim lhes dá na telha e a qualquer hora poderão pegar seu boné para Andrômeda, que parece ser o destino de todo mundo, espécie de Florianópolis no verão.

Vão ter que arranjar outra explicação para a eletricidade. Até agora acharam que os elétrons fugidos do sistema, livres da atração dos prótons, formavam uma corrente para dar choque em todo mundo e, quando necessário, gerarem apagão pela ausência. Para onde vão os elétrons quando falta luz? Param de existir? Se acumulam nos postes? Vão dar um passeio nos raios para fazer ginástica de zigue zague? Sabe-se lá. Talvez os elétrons nunca escapem do rodeio do núcleo e a eletricidade seja uma espécie de má digestão de alguma estrela distante que solta seus gases pelo éter e o troço vem parar aqui em várias pousadas. Como são muito quentes e precisam de uma fresca, gostam muito de se hospedar em hidrelétricas. As usinas nucleares não são as favoritas, já que aí tem que passar protetor.

Só sei que a ciência está nos devendo explicações. Os vulcões cospem fogo quando querem, os terremotos fazem e acontecem quando menos se espera, um tsunami surge do nada e nunca mais aparece, os tufões carregam crianças chinesas no colo e as depositam em cima das árvores, Ovnis são filmados a três por quatro, sobram comprovações da existência de duendes, o teletransporte e a viagem no tempo estão cada vez mais próximos e nada de uma teoria englobante, mais quântica do que relativista, tão sólida quanto o universo newtoniano.

Ficamos à mercê do you tube, do facebook, do twitter e boiamos em todos os assuntos, desconfiando que esses geninhos que estudam física e são contratados já no ventre da mãe porque batem na barriga em código Morse que serão técnicos em petróleo ou informática, não sabem mesmo é nada e só repetem o já sabido para impressionar o Steve Jobs , fazendo atualizações permanentes de alguns princípios básicos, como o sistema binário ou a álgebra euclidiana.

Não é má vontade. É tentativa e erro. Quem sabe aplicando a velha expressão do meu pai “que vai sê, guri!” os cientistas se toquem e partam para algo mais consistente. E não me venham de placas tectônicas ou Estreito de Bhering. Isso já deu pra bola.


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

5 de março de 2011

SOM DE SINO


Nei Duclós

Um ruído noturno insistente e de origem desconhecida vibra por toda parte. No quarto, na sala, no escritório, ele toca metal ressonante, seguidamente, depois some por alguns momentos. De dia, não se manifesta. À noite, quando estamos ainda despertos e fazendo alguma algazarra , também não se ouve. Mas basta um súbito silêncio, na noite alta, para reaparecer, sem que possamos atinar de onde vem.

Já ultrapassei minha fase mística. Não que não acredite em nada, mas entendi como funciona a armadilha da curiosidade sobre acontecimentos misteriosos: você se envolve, acredita e depois passa, esquece. Fica o dito pelo não dito. Essas percepções parecem fantasmas se forem relacionadas com conceitos, idéias e hábitos, firmes, que adquirimos na chamada vida real. A toda hora vejo notícias sobre a possibilidade de viajar no tempo, do teletransporte, do infinito número de universos, mas já me acostumei ao que tenho ao redor e isso acaba se impondo.

No fundo, acabo duvidando que espíritos possam existir de fato, a não ser como evidência cultural, já que estão presentes em todo o mundo e em todas as épocas. Não há civilização que despreze a existência do mundo dos mortos. Mas as contas a pagar, os projetos travados, as inundações e o mormaço, as manifestações de massa e a história verdadeira do início da República acabam me tomando toda a atenção e não tenho energia ou paciência para ficar cuidando de coisas do além.

Mas confesso que o som surdo de sino de toda noite me invoca. Seria um chamado? Estaria sendo produzido em algum recanto inacessível da matéria escura? Seria para me lembrar das badaladas de igrejas ou do colégio, quando éramos convocados para a aula ou a missa? Será o anúncio espiritual do carnaval por chegar? Bong, bong, bong. Reviro armários, gavetas, esquadrinho cantos, olho sótão, vou mil vezes ao quintal, ponho o ouvido na parede e nada. Fico então imaginando coisas.

Seria eu mesmo avisando que uma parte de mim está presa num corredor de sombras? Seria um náufrago no mar ignoto que, como último recurso, bate um pedaço de cobre que achou na praia deserta para onde foi empurrado e que o acompanha nessa viagem desesperada em busca de salvação? Ou seria apenas um vazamento, ou até mesmo implicância dos vizinhos, tão afeitos à vocação de faze barulho por nada?

Não consegui desvendar o mistério e deixo para lá. Tem tanta coisa que não conseguimos entender. Por que colocam meia dúzia de homens e mulheres cheios de saúde a deitar-se em frente às câmaras se roçando ou falando besteira, ou pior, se condenando uns aos outros ao paredão? Por que implicaram com o vestibular? Por que antigos corruptos voltam lampeiros à cena do crime como se nada tivesse acontecido?

Bong, bong, bong. Talvez seja um anúncio do juízo final, cada vez mais próximo e evidente. Ou então é imaginação minha, com a mente exausta de tantas perguntas e que se entrega a algo indecifrável, talvez para ficar atento ao que possa existir embaixo do piso, na casa ao lado ou lá no último céu, onde anjos nos aguardam, com agogôs e tamborins, preparados para sairmos num bloco de sujo.


RETORNO - 1.Crônica publicada na edição 329 do jornal Momento de Uruguaiana. 1. Imagem desta edição: escultura de Jason DeCaires Taylor. Tirei daqui.

4 de março de 2011

PEGADA MUSICAL DE OUTROS CARNAVAIS

Um post pode suportar numa só edição Jorge Ben, Rita Lee, Alceu Valença e A Cor do Som? Pode. Fica sendo uma edição especial para ler no carnaval. Aqui vai uma coletânea dos textos que eu publicava na Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em 1978. Vamos cair de banda por aqui. Uma arqueologia pessoal do jornalismo cultural da época, escrita com os olhos e ouvidos livres. Era assim que eu via e pensava na época. Mudamos todos em muita coisa. Mas a essência permanece: o som e o jornalismo do Brasil que buscava caminhos quando tudo parecia perdido na política. Hoje, tudo parece perdido na política e o som, bem, deixa para lá...

A GARRA DA COR DO SOM

Folha de S. Paulo, Ilustrada, em 1978

NEI DUCLÓS

Primeiro foi a Warner, depois a Imprensa e os músicos e finalmente o organizador do Festival de Jazz de Montreux, na Suíça (Claude Nobs) que se renderam ao fascínio do conjunto A Cor do Som. Formado por cinco músicos de 20 a 26 anos, a Cor tem a garra de um conjunto de rock, mas é muito mais do que isso. Muito mais até do que um simples "conjunto de música brasileira" ou mesmo de "música Internacional". A síntese que eles conseguiram e que vâo apresentar hoje e amanhã no Equipe (rua Martiniano de Carvalho, 156), a partir das 20 horas, felizmente foge a todos os rótulos, já que inaugura — ou desenvolve — vários rumos musicais, que convivem simultaneamente graças à riqueza acumulada em todos esses anos de batalha, quando cada um à sua maneira manteve o espirito aberto para todas manifestações do som.

Pela história de Dadi,(Eduardo Magalhães Carvalho), dá para sentir um pouco o clima das cabeças dos rapazes da Cor: "Eu me liguei primeiro em bossa-nova, depois obviamente no rock, em Jimi Hendrlx, no Cream, todas aquelas coisas. Mas o mais importante foi o convívio que eu tive de quatro anos com os Novos Baianos, principalmente com o guitarrista Pepeu, que é um cara Incrível. Eles é que mais desenvolveram essa transa de colocar a música brasileira em outros termos, juntando todo o conhecimento que a gente acumulou ouvindo a música internacional dos últimos anos."

Eles estão com multa esperança no festival de Montreux, onde vão se apresentar em julho deste ano. O show será gravado ao vivo e lançado em disco possivelmente em setembro. "Na Europa e nos Estados Unidos não existem os preconceitos musicais que existem no Brasil e é mais fácil para eles aceitarem a música da gente", diz Dadi. Além de Montreux, a Cor vai se apresentar também no festival de L'Haye, na Holanda, e no de Anilus, na França.

Antes, entretanto, de todas essas atividades internacionais, eles vão ficar todo o mês de Junho se apresentando Junto com Moraes Moreira no Projeto Pixiguinha. Em São Paulo, estarão de cinco a nove de Junho. Já com um trabalho novo, diferente do apresentado no disco, lançado no fim do ano passado e que vendeu apenas quatro mil cópias: "Isso Já era esperado, explica Dadi. Nosso contrato com a Warner é de quatro anos, ê um trabalho a longo prazo que eles querem desenvolver conosco. Inclusive achamos que essa nossa estréia em disco foi multo bem recebida: poucos compraram o disco, mas todo mundo está falando da gente".

Entre as modificações está o percussionista Ari Santos Dias, da Bahia, e que é o novo elemento do conjunto; e a vontade que todos têm de começar â organizar melhor o vocal. Além dos Já citados, existem ainda outros elementos importantes do conjunto: Armandlnho, ou Armando Costa Macedo e Gustavo Augusto Schroeter.


ALCEU VALENÇA CONTRA A FRIEZA MUSICAL

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 13.04.1978

NEI DUCLÓS

O show que Alceu Valença começa a apresentar a partir de hoje às 21 horas no Teatro da Fundação Getúllo Vargas, (Av. Nove de Julho, 2029) faz parte do esquema de lançamento do seu novo LP, Espelho Cristalino Som Livre). Mas, felizmente, esse show não se limita a uma apresentação rotineira das suas músicas, como acontece com a maioria dos artistas. Alceu arma uma trama teatral para apresentar não só um compositor-cantor e sua banda, mas um ator de qualidades Já suficientemente divulgadas desde o seu primeiro espetáculo no Rio. em 1975 e sua participação no filme "A Noite do Espantalho", de Sérgio Ricardo. Neste "Alceu Valença Em Nolte de Black-Tle", ele faz de tudo — pula, provoca. Imita Cauby Peixoto e Nelson Gonçalves, se veste de louco nordestino — sempre preocupado cm passar para o publico uma Imagem não comportada, suja, para, como ele mesmo diz em uma das suas músicas (Agalopado), "Incendiar esses tempos glaciais".

— O Espelho Cristalino 6 um talismã, um talismã do povo. E uma imagem que eu usei também para mostrar que eu sou reflexo de tudo o que está ai. Sou inclusive o reflexo das contradições do próprio cara que está me ouvindo.

As metáforas de Alceu são bastante puxadas para o cordel, para a cultura popular do Nordeste, onde nasceu e se criou ouvindo todos aqueles ritmos que hoje são apresen-tados no seu show, como o maracatu e o coco. Filho de latifundiários de São Bento do Uma, pequeno município do Interior pernambucano. a 250 quilômetros de Recife. Alceu, entretanto, não seguiu os rumos traçados por seu clã e tornou-se músico profissional depois de ter se formado em direito. Suas tendências foram para a cultura popular, com quem ele conviveu durante toda a sua infância: Foram mais importantes, para ele, as coisas que viu e ouviu em São Bento do que tudo o que precisou estudar. Inclusive, sua decisão aconteceu na época em que foi fazer um curso em Harvard. quando se convenceu que precisava optar pela música.

Espelho Cristalino é o quarto LP de Alceu. Ele gravou, primeiro, um LP com Geraldo Azevedo, com quem conviveu nos primeiros anos de sua carreira, no Rio, tocando e compondo juntos. Mas essa estréia não vendeu quase nada e praticamente, cm termos de público, não aconteceu. Mas multa gente se ligou na força de Alceu, que explodiu no excelente "Molhado de Suor", surgido logo depois que ele se apresentou no Festival Abertura, da Globo «1975). com seu forró "Vou Danado Prá Catende". Mas Alceu só aconteceu mesmo com o LP "Ao Vivo", lançado cm 1976 e onde mostrava toda a garra do seu show que. na época, por falta de divulgação. Obrigou-o a sair às ruas com um megafone na mão e vestido de palhaço para chamar a atenção do público.

E é essa garra, essa vontade de batalha que faz de Alceu uma pessoa totalmente elétrica. Ele fala sem parar sobre qualquer assunto. Mostra-se particularmente interessado (e aprofundado) na história da música brasileira: fala à vontade, e com conclusões próprias e criativas, sobre Jackson do Pandeiro. Luiz Gonzaga. Adelino Moreira. Nelson Gonçalves. Fala multo também sobre a música brasileira atual, mostrando sempre que não está multo satisfeito com o clima gerai do som. (multo certinho, muito classe média, apesar de ter um grande número de predileções, como Walter Franco, Luís Melodia), Macalé ou Caetano Veloso. O mais interessante em Alceu Valença, entretanto, é que toda a sua segurança verbal e teórica convive com uma agradável confusão de frases e conceitos, o que torna qualquer conversa com ele uma fonte constante de piadas. E é assim mesmo, sério sem ser serioso, brincalhão sem ser inconseqüente e agressivo sem ser pedante, que Alceu mostrará toda a variedade de climas que acumulou dentro de si em 31 anos de vida. Com seu espelho cristalino — ele mesmo — espera "clarear o negror do horizonte" com um trabalho Importante - e infelizmente ainda pouco conhecido pelo público.


RITA LEE, A RAINHA DA NOVA BABILÔNIA

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 18.04.1978


NEI DUCLÓS



O novo disco de Rita Lee e o conjunto Tutti Fruttl, "Babilônia", que há um mês está nas lojas, foi lançado oficialmente ontem ás 21 horas na Shadow Discoteque, na rua Pamplona, 1.109. O bom em Rita Lee é que o seu trabalho não depende diretamente de sofisticação ou de mensagens profundas -e sérias, mas da sua persistência em rumos pouco considerados pela cultura oficial, como a alegria, o deboche e temas místicos e .domésticos onde entram discos voadores, gatos, ficção cientifica e anjos da guarda. E, o que ê mais Importante: ela consegue, cada vez com mais eficácia, criticar as coisas ao seu modo. contribuindo para derrubar a rigidez cultural sem abrir mão da lucidez e da análise.

Basta dar uma olhada em algumas letras do seu novo LP, como em "Agora é Moda", música feita em parceria com Lee Marcucci, baixista do Tutti Frutti: "Agora é moda/ poupar dinheiro pro futuro/ Agora é moda/ pegar alguém pulando o muro/ Agora é moda/ acontecer uma tragédia/ Agora é moda/ A Inquisição na Idade Média". / Agora é moda/, bancar o fino e educado/Agora é moda/ dançar para não ficar parado/Agora é moda/fazer novela de van-guarda/Agora é moda/ chegar depois da hora marcada".

Além da simplicidade contundente de suas letras. Rita cultiva um rock básico, bem parecido com aqueles momentos do rock paulista do tempo de "entrei na rua Augusta a 120 por hora". Com uma diferença fundamental, entretanto: o som é muito bem trabalhado, múltiplo até, com os solos de um dos bons guitarristas do rock brasileiro, que é Luís Sérgio Carlini, os teclados de Roberto de Carvalho, o baixo de Lee Marcucci. a percussão de Sérgio Della Monica e Naila Skorpio e os vocais de sustentação de Lucinha Tur nbull, uma artista que Já deveria ter gravado seu disco solo.

Entre as melhores faixas do LP está "Miss Brasil 2000". a primeira do lado A, onde Rita mostra um dos seus temas prediletos: a nova geração. "A Miss Brasil 2000 pode estar nascendo agora", diz ela. ligada nos adolescentes e mesmo nas crianças que formam a maior parte do seu público. Ela Já prometeu, quando começar a apresentar seu show ainda este mês. fazer sessões "zig-zag", â tarde, só para a garotada.


JORGE BEN, FACILITANDO O SOM, MAS AINDA ORIGINAL

O som do Jorge Bem, depois do 15 anos, continua entusiasmando a nova geração

Folha de S. Paulo, Ilustrada , 22 de março de 1978


NEl DUCLÓS

O som de Jorge Bem, que manteve sua originalidade na bossa-nova. na Jovem Guarda e no Tropicalismo, poderá sobreviver ao samba-discoteca que ele agora apresenta no seu novo disco, "A Banda do Zé Pretinho"? Se depender do acompanhamento, não. Se depender de sua voz e de suas músicas, talvez. Jorge, agora num ritmo sempre alucinado, sem as sutilezas do seu começo de carreira, e uniformizando as conquistas do seu próprio som, corre perigo como criador, apesar de, historicamente, ter garantido um lugar de honra na música popular brasileira. Pois não se pode contestar a firmeza de sua linguagem, suas músicas do forte identificação popular. Hoje, seria uma injustiça dizer que ele faz sucesso porque aderiu a um som mais fácil e assimilável, procurando internacionalizar o samba que ele inventou. Seu sucesso, sem duvida, vem de sua garra de grande músico. Pode-se contestar seus caminhos, como aconteceu principalmente no tempo em que aderiu à Jovem Guarda, mas ninguém conseguirá simplesmente "apagá-lo" do mapa, aproveitando sua atual fase de superstar.

É sintomático que "A Banda do Zé Pretinho" tenha sido lançado num esquema da Rede Globo de Televisão- sua mitologia - particular o Flamengo, o Patropi, Fio Maravilha, a nega Tereza e uma transformação alquímica individual da festa carioca, que a Globo ex porta para todo o Brasil. Por isso. o lançamento feito na segunda-feira, no Rio. foi uma soma de Jorge Ben, Rio de Janeiro e Rede Globo. O local foi o Clube de Regatas Flamengo, onde aconteceu um jogo entre duas equipes fictícias, o Zé Pretinho e o Troca-Troca nome de duas músicas do LP, formadas por artistas Paulinho da Viola. .Jair Rodrigues. Mário Gomes, Miele. Francisco Cuoco (que salvou o gol, de cabeça). Moraes Moreira. Ingrid Rodrigues. Jorge Ben, entre outros, e jogadores profissionais Marinho, Paulo César, Carbone, Cafuringa, Carpeggiani, Doval. Na platéia. além dos fãs e curiosos, outras figuras da Rede Globo, como Sandra Bréa e Nelson Motta. Um espetáculo longo, com partes completamente desnecessárias como o próprio jogo e que culminou com a apresentação de Jorge e sua banda, formada por Bidu surdo, Nenem e Joãozinho -(percussão), Dadi (baixo), Gil (piano), Pedrinho (bateria) e Wagner (baixo) Foi mais um baile de carnaval do que propriamente um show, já que o público, formado principalmente por adolescentes, pulou o tempo todo dentro do ginásio coberto que. como todos os outros, tem uma péssima acústica. O destaque da cozinha acabou por soterrar qualquer outro elemento mais sutil, como o próprio plano, que não emitiu qualquer som audível durante todo o espetáculo.

Tudo era bateria, guitarra de Jorge e baixo. E, apesar da frágil estrutura do palco, o público acabou invandindo-o, cercando a banda e abraçando Jorge Ben completamente cansado depois de uma hora e mela de show e 45 minutos de jogo (ele participou só do primeiro tempo e alguns minutos do segundo).
Foi impressionante constatar que a nova geração está aceitando com entusiasmo o som de Jorge Ben. um artista com mais de 15 anos de carreira. Mas isso já é um fenômeno do próprio Rio de Janeiro, onde, em sua maioria, as platéias de música são formadas por adolescentes É uma geração desvinculada das obsessões da década de sessenta, onde a discussão aberta convivia com a furiosa defesa das raízes da música brasileira. Ao mesmo tempo que é possível fazer criticas a Jorge por ter facilitado seu som. oferecendo arranjos mastigados para o público jovem, pode-se também argumentar que ele está conquistando a juventude para a cultura do patropi. Afinal, ele canta em brasileiro, faz todo mundo gritar "Mengo" e conquista a emoção do público para Berenice. Bebele, Tereza e frases ótimas como "posso não ser um grande líder, mas lá em casa os camaradinhas me respeitam" (*)

Se Jorge Ben é um assunto que interessa a 110 milhões de brasileiros, está na hora de vê-lo sem posições pré-determinadas, sem colocá-lo no "lado de lá", como se fosse um simples músico comercial. Compará-lo com outros grandes criadores da música brasileira, como Cartola, é manter o debate nos estreitos limites que costumam orientar a critica musical. É preciso vê-lo em toda a sua riqueza e com todos os seus defeitos.

Jogar pedras contra Jorge, só porque está (também) ganhando dinheiro, é uma atitude injusta. Como seria injusto elogiar o incondicionalmente tudo o que ele faz.

RETORNO - 1.(*) Jary Cardoso, jornalista de primeira, ficou escandalizado com “grande líder” no lugar de band-leader. Mas o erro estava feito e assim ficou. Eu escrevia de ouvido. rs. 2. Para cobrir o lançamento da Banda do Zé Pretinho, de Jorge Ben, O jornalista viajou para o Rio a convite da gravadora. Fiquei no Hotel Olinda, na beira do mar, e compartilhei uísque com camarão com outros profissionais que usfruíram da boca livre. Lembro que Alceu Valença, em início de carreira, chegou atrasado no ágape e pediu rabo de galo. No final, quando veio a conta e o assessor de imprensa puxou o talão de cheques, ele estrilou: "Vocês não me avisaram!" 3. Mais tarde, entrevistei Rita Lee para as revistas Nova e IstoÉ.