29 de junho de 2004

A GRANDE MÚSICA OCULTA


Vivemos em plena era Muts Weyrauch. Basta ligar o rádio, ops, o cd independente, para escutarmos suas belíssimas interpretações, composições, arranjos. Por ser autêntico, Muts pode ser chamado de roqueiro, mas é muito mais do que isso. É músico brasileiro de primeiro time. Tão grandioso que não cabe, no seu perfil sempre modesto e quase fechado, essa visão majestosa de sua música imortal. Por isso tudo soa exagerado quando falamos dele, e de seus pares, inúmeros, como Carlinhos Hartlieb, Bebeto Alves e Cláudio Levitan, já que o Brasil decidiu prestar atenção em outras coisas. Por falar nisso: o tempo não pára! Puxa! Mas que profundidade! Não pára mesmo! Se não colocassem isso em todas as mídias, jamais acreditaria. Putz. Ou melhor, Muts!

ALMA PRISIONEIRA - Do que estou falando? Parece loucura dizer esse tipo de coisa, mas a ditadura que nos encaçapou deixou de lado o talento e é de talento, enorme, mas oculto, que estou falando. Em Porto Alegre nem precisa dar explicações, todos conhecem o Mutuca Weyrauch, atualmente de luto por perder seu companheiro de banda de décadas, o insubstituível Chaminé. A questão é o seguinte: jogaram o país fora com sua música junto. Mas o milagre é que a música continua sendo feita, e agora toma conta do formato MP3, dos cds anônimos, nos shows lotados mas desconhecidos pela imprensa, que prefere sempre ver as mesmas coisas e falar o que falaram o ano passado. Não arriscamos mais em resenha musical. Deixamos a análise de fatos políticos, canções, filmes, tudo para os estrangeiros. O que fazemos, com algumas exceções? Calamos e escutamos o que os americanos tem a dizer. Chega de artigos traduzidos na imprensa, pelo amor de Deus! Por que existe esse espaço sendo ocupado? Porque primeiro acabaram com a especificidade da música. Nossos sucessos são música pop de ultima categoria e música mexicana gritada com chapéu texano, o que é pior do que o horror, é como viver dentro do ventre em fogo de Godzilla. Nosso analistas não arriscam. Esperam ler o que os estrangeiros dizem para repetir aqui. E fazem resenha,mesmo, e não ensaio, ou seja, contam o filme, o livro, mas não mergulham nele, não ousam, não tiram suas próprias conclusões. É tudo um no cravo e outra na ferradura. Parece fogo feito com esterco de vaca e não com madeira de lei: em dois toques acaba (leia o jornal O Buziano e descobrirá a origem dessa metáfora). O que temos então: milhares de músicos maravilhosos escondidos. O que fazem para revelar talentos: coisas como Fama, o programa da Globo, em que aparecem intérpretes imitando alguém. Exceção nesse quadro são os concursos como o Visa de MPB. Mas os talentos revelados ficam a meio do caminho. Por que? Porque está tudo dominado, as gravadoras e o mercado estão na mão dos incompetentes. Dizem que os chefões são os sub-músicos do tempo do iê-iê-iê nacional. Faz sentido. A musiquinha de lata que dominou os 60 realmente não quer sair da raia, nem mesmo com o rei Roberto voltando-se para a matriz nacional do Orlando Silva.

QUERÊNCIA - Mas fiquei fazendo discurso e não aprofundei o tema Mutuca, Bebeto, Hartlieb, Levitan. É simples: são músicos/compositores geniais. Desconhecidos, porque vivemos na ditadura (Carlinhos há tempos foi-se para o Outro lado). Sem falar, meu Deus, no Zé Gomes, que é maestro e gênio absoluto da raça brasileira. Zé Gomes está com um cd inédito, prontinho, cadê interesse, patrocínio, o que for? Nada. E dê-lhe gritaria. Chega. Hoje, vi a gaivota arqueando as asas em pleno ar, dominando o vento contrário, ficando quase imóvel. Bastou um leve movimento e ela deslizou pelo cobertor do nada. Depois, pousa sobre o poste de luz e olha para os peixes que podem haver no mar. A lua quase cheia aparece no meio da tarde e vai ficando alta, alta, conforme a noite vem chegando. O Cruzeiro do Sul comparece aqui no planeta terra. No aparelho de som, toca a maravilha de Muts, com letra minha, que diz: irei até os anéis de saturno, para encontrar objetos perdidos... É assim a vida no planeta terra, num país chamado Brasil. Voltei, Sul do Brasil (que tanto implico com essa tabula rasa, como se o sul fosse uma coisa só). Voltei, terra querida. Olho para o teu céu e não acredito que fiquei tanto tempo longe. Escuto meu poema alma prisioneira pela voz e música de Muts: o círculo de riso e rotina, verso que fiz quando estava muito longe daqui. Voltei, Sul. Querência. Estou mais perto dos meus heróis enterrados no torrão amado. Contam-me que Teixerinha foi cantado pela multidão quando Brizola chegou a Porto Alegre. Teixeirinha, malhadíssimo por ter criado um clássico, o imortal Coração de Luto (mãe só pode morrer na dramaturgia estrangeira), disse um dia: daqui a vinte anos serei folclore.A música dele que a multidão cantou para o herói é a não menos clássica "Querência amada".

RETORNO - 1. Os quatro textos que escrevi sobre Brizola, durante os funerais do herói, estão agora no meu site, com chamada de primeira página. Diagramação, design e produção técnica do webmaster Miguel Duclós.
2. Tailor Diniz me avisa que o foi publicado na Zero Hora de hoje, quarta-feira, na seção O que estou lendo: "Tabajara Ruas, escritor - Acabo de ler Universo Baldio (Francis, 186 páginas, R$ 29,50), primeiro romance de Nei Duclós, escritor gaúcho que está morando em São Paulo. Nei não é autor que lance com freqüência, mas sempre vale estar atento ao trabalho dele. O novo livro fala sobre os anos 70, em que um personagem expulso de Porto Alegre pela repressão funda em Florianópolis a República de Itaguaçu. Nei também é autor de um livro do qual eu gosto muito, Outubro, poemas com ilustrações de Claudio Levitan."

RAÍZES DA TRAGÉDIA DE 1932

Mestre Moacir Japiassu levanta uma lebre fundamental no seu comentário para este Diário. Diz ele que São Paulo não se recuperou ainda de 1932 e por isso, diz Japi, Brizola só não enfrentou Collor no segundo turno porque os paulistas negaram-lhe um punhado de votos, episódio mesquinho que tanto infelicitaria o Brasil. As raízes de 1932 estão fortemente vincadas na revolução de 1924. Inclusive há grande confusão, pois costuma-se trocar uma pela outra. Sinal de que há uma sintonia, mas, advertidos pela História, jamais uma continuidade. São dois episódios específicos. O que nos importa estudar são as ligações, os desdobramentos. Para quê? Para nada. Todo historiador que se ocupa com o Brasil é um arqueólogo, pois estuda um país extinto.

JUAREZ E AGILDO - São Paulo insurgiu-se contra Getúlio, o presidente dos trabalhadores, em 1932, e desencadeou uma guerra que durou três meses e teve 800 mortos, segundo dados oficiais. Por que a data escolhida foi nove de julho? Quem conta porquê é Agildo Barata, o tenente nordestino revolucionário que em 1930 forçou a mão para entrar no teco-teco que levaria Juarez Távora ao Rio, o que fez Távora deixar de fora seu vasto arquivo na Bahia, perdido então para sempre. A data era o 17 de julho, já que o cinco de julho ? que remetiria às revoltas de 1922 e 24, ambas desencadeadas nessa data ? tinha sido descartada, por não estarem os revoltosos preparados. Ou seja, havia interesse em fazer um vínculo com 24, inclusive quem foi convidado e a aceitou para liderar o movimento foi o mesmo general da reserva, chefe dos revoltosos de 24, Isidoro Dias Lopes. Havia grandes comícios e passeatas nas ruas e isso empolgou Julio de Mesquita, que resolveu, contra a opinião de Isidoro, desencadear imediatamente a revolução, o que aconteceu no dia nove, uma semana antes do combinado. Resultado: Agildo, que estava na sedição e tinha ido de trem para sua casa no Rio, para despistar o governo, foi preso de pijama na sua sala. Bertoldo Klinger, que havia prometido trazer tropas do Mato Grosso, ficou isolado e acabou voando para São Paulo num aviãozinho junto com alguns ajudantes-de-ordens, ou seja, de mãos abanando. Flores da Cunha, que tinha prometido apoio ao movimento, ficou também de calça curta e tirou a Brigada Militar gaúcha da reta. São Paulo, por sua arrogância e precipitação, ficou isolado. Sustentou a guerra, mas acabou perdendo.

SEM PERDÃO - O travo amargo da guerra deveria ter sido tirado logo depois, quando Getúlio aceitou cumprir a data marcada antes da revolução para as eleições da Constituinte, o que de fato ocorreu como previsto. E também por deixar de lado interventores tenentistas, como João Alberto, para aceitar no posto Armando Salles de Oliveira. Mas a Constituinte elegeu Getulio presidente e Armando foi defenestrado das suas pretensões à presidência com o golpe do Estado Novo, de 1937. Ficou portanto a ressaca. A derrota política transformou a derrota militar num épico de vitórias. Como se sabe, a História se faz depois (basta ver o que a Globo faz com fatos históricos). A Revolução Francesa, por exemplo, foi inventada por Michelet 40 anos depois de alguns eventos, como a ridícula tomada da Bastilha, no fundo uma invasão na cadeia que não tinha ninguém dentro, apenas o Marquês de Sade e suas taras. A Revolução Francesa desembocou numa ditadura militar, a de Napoleão, que se travestiu de Imperador e resultou, com sua derrota ( o que custou a vida de mais de uma geração de franceses) na restauração dos Bourbons. Guardadas as proporções, acontece o mesmo com 1932, tragédia brasileira sem vitoriosos, que se alimentou de ressentimentos, em ambos os lados, e que tem a sua trajetória recontada publicamente em eventos que distorcem tudo (isso não acontece com os historiadores, pois é rica a historiografia sobre a revolução). Fui criado na visão de que os paulistas eram inimigos. Quando fui morar em São Paulo, fui olhado com desconfiança. Para desanuviar, digo que me alistei no inimigo.

TENENTES - E 1924 com isso? Além do cinco de julho e de Isidoro, temos o seguinte: São Paulo queria se apropriar do carisma da revolução, que tinha caído nas mãos de Getulio. Queria provar que os verdadeiros ideais das guerras da década dos anos 20 estavam com São Paulo. Isso tinha sido desencadeado pela frustação do Partido Demnocrátrico de São Paulo, que apoiou Getulio em 1930 e não levou nada, ficou na mão. Agora nós! bradou Paulo Duarte, no livro sobre 1924. Chegou a vez de São Paulo ser vitoriosa com uma revolução. O governo da República Velha tinha empurrado os paulistas para a revolução, pois em 24 bombardeou impiedosamente a cidade (alvos civis) e depois perseguiu líderes como o prefeito Paim e o presidente da Associação Comercial, Macedo Soares. Quando chegou 30, São Paulo queria fazer parte do movimento, mas não foi incluído. Levou um João Alberto, totalmente despreparado (além de pernambucano) para a tarefa de interventor do Estado. A saída foi vingar-se do governo federal, do Exército, dos gaúchos que também tinham impedido a posse de um paulista, Julio Prestes. Tudo entrou na cesta do revanchismo. Quando terminou a guerra, os paulistas fundaram a USP, pois precisavam formar uma elite para governar o país. Conseguiram 60 anos depois com a posse de FHC, uspiano de quatro costados. E com Lula, inflado pelas teses sociológicas da USP, que buscava uma liderança operária legítima. Tudo fica em volta de 1932.

FONTES - O livro chave para entender a revolução paulista é da professora Vavy Borges, da Unicamp. Para entender 1924, o da professora Martinez Correa. Para entender a gauchada, Joseph Love, com o clássico "O Regionalismo Gaúcho. Para entender o Brasil, Os donos do poder, de Raymundo Faoro, e Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. Para escutar a trilha musical de toda a obra Sergio Buarque, nada melhor do que nosso querido sessentão, Chico Buarque de Holanda.

RETORNO: Reproduzo aqui o trecho do comentário de Mestre Japi: Em 89, jornalista em SP (que ainda não se recuperou da derrota em 32), anunciei aos amigos que votaria em Brizola. Devo este voto a ele, disse-lhes, a recordar 1961. E digo isso porque não se imagina Brizola derrotado por Collor num debate na TV. Ainda hoje, quando revejo as cenas na memória tão seletiva de velho sertanejo, imagino o herói de minha juventude a dizer aos telespectadores: ?Agora sabemos por que o caçador de marajás não participou de nenhum debate até agora; é porque nada diria à Nação, além de mentiras! É apenas um filhote da ditadura...?. Tudo teria sido diferente, não é? Mas o Brasil é assim mesmo: não está habituado à leitura política e, de resto, a nenhuma outra; e, quando consegue soletrar alguma coisa, não entende o que está escrito.

27 de junho de 2004

FOI CASTIGO, PAI

Nei Duclós


Cheguei atrasado pela primeira vez no Colégio naquele primeiro de abril de 1964, pai. Tinha brigado contigo, não de forma clara e contundente, pois nunca fiz assim, mas da minha maneira de menino, dissimulado, batendo porta e sendo punido por isso. Resolvi não ir na escola no dia seguinte, já que depois de brigar comigo, tinhas viajado, não pela briga, mas porque assim decidiste. Minha mãe então me obrigou a ir à escola, porque não podia depender da tua presença, pai, para impor a autoridade dela. Fui de má vontade e cheguei atrasado, perdi a primeira aula. Fomos, todos os retardatários, para o campo de futebol de baixo, de grama, e sentamos bem no meio do círculo central. Foi então que me avisaram: a revolução tinha estourado.

PLANO SECRETO - Meu primeiro impulso foi de entusiasmo, pois não sabia ainda que tinha sido a direita e não o trabalhismo que estava fazendo a revolução, e que revolução nunca foi, disso sabemos desde o primeiro instante.
- É verdade? exclamei. Não brinca!
- É claro que é verdade me disse o colega que estava comigo, junto com outros dois. Ou tu acha que essa situação vai continuar assim, essa baderna, esse comunismo no governo?
Foi aí que caiu minha ficha, pai. Eu estava naquele primeiro de abril, como um bobo, sentado num estádio vazio, ao lado de colegas ultra-reacionários - pois só eu e mais alguns éramos trabalhistas - recebendo a pior notícia da minha vida. Hoje, lembrando aquele dia medonho, pai, em que me sentia furioso por não ter imposto minha vontade, arrependido por ter peitado minha mãe na tua ausência, com uma sensação de ressaca de vodka, que como todos sabem, é a pior que existe., mas sem ter bebido nada. Aquele dia foi único na minha vida colegial cheia de boas notas, pai, notas tão altas que até mesmo tu ficava um pouco sério antes de me dizer que não iria me elogiar, que eu não fazia mais nada do que minha obrigação.

Talvez por essa aparente indiferença, pai, eu tinha decidido relaxar um pouco, ser rebelde, deixar de lado o cabelo curto demais, a roupa comportada demais. Eu queria outra vida, pai, e ganhei de presente outro país, ou melhor, o não-país inaugurado naquele dia. Hoje só posso constatar que o golpe foi um castigo contra minha má vontade, pai. Eu não queria saber se havia dificuldades em casa, eu queria saber de política e de poesia. Tinha até feito uma diagrama revolucionário, que eu guardava escondido na gaveta da minha escrivaninha, em que detalhava a tomada da cidade. Tinha usado um caderno de desenho, que ficava abaixo de todos os papéis e pastas. Era meu plano secreto para tomar o poder.

CERCO - Foi uma época explosiva, pai, e tu sabes disso. Foste um guerreiro a vida toda e aos 18 anos partiste para o front, para derrubar o República Velha. Mataste, prendeste inimigos nas trincheiras de Paraná, onde houve guerra de verdade. Depois, em 1932, lutaste até quase a fronteira de São Paulo, e disso sei muito pouco, pois a geografia que me descrevias nas tuas histórias nunca ficou clara para mim, garoto que só escutava e jamais perguntava. Fui criado para escutar os mais velhos, pai, mas também me revoltava contra isso. Queria falar e não podia, por isso comecei a escrever. Até hoje, erradicado da vida política, continuo escrevendo, numa obsessão sem fim, como se eu fosse um escritor mesmo e não o que realmente sou, um guerreiro partido por um golpe de estado, alguém que recusou-se a amadurecer porque tinham me tirado a vida adulta que eu sonhava ter um dia.

Estavam preocupados comigo, pai, naquela época. Estávamos na véspera de uma grande eleição do nosso grêmio e íamos peitar as feras reacionárias, aquelas que me gritavam em aula "cala a boca, comunista!", principalmente nas aulas de educação moral e cívica, que tinha até um professor lacerdista. Depois do golpe, filhos de almirante ou generais, não lembro mais, vieram para minha aula por um período, para nos observar. Então um filho do chefe da capitania dos portos - preciso explicar, pai, para quem lê, que Uruguaiana é lugar de água de fronteira, portanto da Marinha - me disse com todas as letras:

- Vi que és um estudioso. Não devias escutar esses comunistas. Te afasta dessa gente.
Foi um aviso. Nem sei o que aconteceria se Jango não tivesse evitado a guerra civil, pai. Talvez te colocassem na cadeia, pois tinhas um dia assinado um manifesto pró-Prestes e por isso arcavas com uma injusta fama de comunista. Mas admiravas o Prestes porque foi teu herói na infância, pai, e não por ser comunista. Talvez nos metralhassem a todos, como quase metralharam a família do Cebola, que foi cercada, e isso eu vi, por estancieiros armados e por soldados. Um desses enormes estancieiros lacerdistas - todos tinham o olhar sampacu, idêntico ao do Lacerda, era a marca registrada deles - sacudia as balas no bolso e completamente armado dizia:
- Vai correr bala, o homem não quer sair.

O pai do Cebola era líder trabalhista na câmara municipal e só entrou milico armado lá porque ele, pai, deixou, já que os filhos dele, o próprio Cebola, o Getulio e o mais velho, o Arnaldo, não deixavam, pai. Isso tudo eu vi, vi como o Arnaldo fez menção de desarmar o milico que queria entrar com metralhadora e tudo e foi repreendido pelo pai, pois a farda entrava para negociar e não para prender. Achei aquilo de uma coragem extrema, não só pelo pai, mas pelos filhos, nossos colegas no Colégio Santana, e que eram corajosos como ninguém, porque enfrentavam uma tragédia familiar e política com as botas postas, com o nariz empinado dos uruguaianenses guerreiros, defendo a casa que era deles.

MELHORAL - A mais patética cena, e essa também eu vi, pai, foi a prisão do Melhoral. O pobre do bolicheiro era assim chamado porque tinha uma propaganda desse remédio na sua porta. Chegaram dois caminhões de milicos armados de bazucas para prender o que tinha fama de ser um comunista. Para mim era apenas um bolicheiro pobre. O neto dele foi quem disse: o vovô está escondido no telhado. Então levaram aquele comunista pai, o Melhoral, coitado, o bolicheiro de esquina, perto da nossa casa. Era esse o perfil do golpe de estado. Trincheiras na praça Barão do Rio branco, sentinelas nos mandando dispersar. Foi o que fizemos. Dispersamos para sempre. Nunca mais nos reencontramos. Perdemos a pista uns dos outros. Nos exilamos daquele Brasil que foi enterrado naquele dia, pai.

Tudo por culpa minha, que não queria ir mais à aula, que estava indignado com minha vida limitada da fronteira, que queria criar asas antes do tempo. Eu tinha o quê? Uns 15 anos, estava na quarta série ginasial e já queria ser alguma coisa. Nunca mais fui nada, pai, a não ser esse pescador de palavras, esse tecedor de textos, de poemas, de matérias. Virei jornalista por falta de opção. O que eu queria mesmo era fazer a guerra e tomar o poder. Eu queria peitar aqueles estancieiros e milicos, eu queria dar tiro, como via nos faroestes. Talvez tivessem me metralhado aquele dia, pai, não sei. Quem sabe Jango me salvou a vida e agora, Brizola, que morreu, me deixa desamparado diante das minhas memórias, diante de ti, único e insubstituível pai, homem de guerra e de decisões, o melhor anfitrião do mundo, a pessoa querida por todos pois a todos estendia a mão. Um homem sem vaidades, que tinha amigos entre o povo, já que nunca fez grandes amizades na elite, com honrosas exceções. Todos iam se aconselhar contigo, pai, porque eras a pessoa que eu tive a sorte de ter como chefe de uma família maravilhosa. Briguei contigo só aquela vez pai. Foi o suficiente para destruírem o Brasil.



AVENTURA - Precisava te dizer isso, pai, mesmo sabendo que fizemos as pazes no dia seguinte, assim como continuei amigo de muitos filhos de estancieiros, porque a política em Uruguaiana não nos separou, apesar do golpe de estado. Parece até que o golpe tornou sem graça nossas discussões e só nos restou então uma infância em comum, uma amizade que acabou se firmando com o tempo, que tudo lava e cura. Mas isso só sei agora, pai. Muitas vezes achei que eu devia me revoltar contra ti porque encarnavas o que eu mais temia, uma vida sem grandes aventuras. Que engano, pai! Fiquei a vida toda diante das palavras enquanto tu fizeste a guerra de verdade. Porque entraste na Brigada não para matar gente, mas para sobreviver, para ter um salário, comer, ter uma carreira. Quando a guerra estourou, estavas de farda e foste para a trincheira sem piscar os olhos.

Ah, pai guerreiro que já se foi, mas que continua comigo, nesta vida de luta sem fim, num país que teimam em enterrar, mas que é o nosso Brasil de sempre, que nos criou, amparou e onde depositamos nossas carnes cansadas depois de tantos séculos de suor.

26 de junho de 2004

EM LEGÍTIMA DEFESA



As calúnias que perseguiram Leonel Brizola em vida não serão mais toleradas depois da sua morte. Por isso seleciono alguns trechos dessa ira justa que está tomando conta da Internet e vindo a furo em alguns jornais impressos, que cometeram a incúria de veicular lugares comuns contra nosso herói nacional, que foi homenageado, ainda governador do Rio Grande do Sul, pelo poeta maior Neruda. A fonte da maioria dos textos, assinados, é de Paulo Nogueira, correspondente do Diário da Fonte em Brasília e editor chefe de sua própria agência virtual de notícias. A edição de hoje ficou meio grande, mas edição dominical é assim mesmo.

NERUDA - Antes de veicular as defesas, vamos disseminar a justiça feita em vida por Pablo Neruda, que escreveu em 1959 o seguinte: "Novas ilhas, novos rios, novos vulcões fazem de nosso continente uma nova geografia. Queremos: nova agricultura,outras forças juvenis, uma sociedade mais pura,novos protagonistas da história que está nascendo e que temos o dever de construir.Quem pode estar contra a nova vida? Celebramos a chegada de BRIZOLA no cenário da América como uma deslumbrante aparição de nossa esperanças. Estamos cansados da rotina de miséria,de ignorância, de injustiça econômica: abramos o caminho àqueles que encaram hoje a possível construção do futuro."

NIILISMO - Carta à Folha de São Paulo,criticando o jornalista Kennedy Alencar por comentários sobre Bizola: "A respeito do lastimável artigo em que procura denegrir a imagem de Leonel Brizola, sugiro a Kennedy Alencar que procure ler sobre a biografia do político gaúcho, ao invés de pinçar momentos de sua carreira e fazer análise bem particular das mesmas. O articulista já ouviu falar de algum político que tenha criado um programa de massificação escolar que alfabetizou todas as crianças de um Estado? Foram 6.300 escolas em quatro anos. O articulista já ouviu falar de um político que, sozinho, fez cumprir a Constituição e dar posse a um Presidente legítimo, enquanto jornalistas, esses especialistas em generalidades, mantinham-se refugiados no mais covarde silêncio? O articulista já ouviu falar de algum outro brasileiro que mereceu um poema de Pablo Neruda ( presumo que, mesmo não tendo lido nada dele, o Sr. Kennedy saiba de quem se trata )? Recebeu também um poema de Carlos Drummond de Andrade. Claro que não é provável que o articulista o tenha visto nesse tipo de leitura_ afinal os políticos de hoje, bem mais admirados pela imprensa, são mais comumente vistos em páginas policiais, enfim, bem mais lidas por jornalistas do que livros de poesias. Talvez a imprensa brasileira hodierna precise abandonar o posicionamento "yuppie-niilista" que tanto preza e passe a adotar referenciais éticos e morais autênticos. Com sorte, aprenderá um dia a distinguir valores como honradez, coerência, dignidade e patriotismo, quando se encontrar diante dos mesmos." Marco Antônio Paiva Nogueira Júnior.

OJERIZA - Outra carta do mesmo autor à Folha refutando críticas a Brizola feitas por Eliane Cantanhêde: "Li o artigo " Brizola e Reagan". Infelizmente, não pude concordar com o teor da matéria. No tocante a Leonel Brizola, não considero exagero afirmar que ele nunca traiu seus ideais e idéias. Infelizmente, a imprensa brasileira utiliza o princípio do " para os amigos tudo, para os inimigos, a lei". Ora, quando Brizola aliou-se a PFL, a Itamar Franco, a Lula, a Tancredo Neves e por aí vai, jamais abriu mão de suas convicções. Alianças políticas não significam abjurar o ideário político. Mais ou menos o contrário do que Lula e FHC fizeram, quando governo. Este último, inclusive, endeusado pela mídia. Quanto a apoiar Collor, lembro-me de que Brizola estabeleceu uma relação de governantes com o deposto Presidente, atitude responsável quando se trata de administradores. Mas, na votação do impeachmente de Collor, o PDT inteiro votou a favor. E como a imprensa acusava Brizola de conduzir com mão de ferro o Partido... Na verdade, desde que se defenda o interesse da mídia, não importa o passado, a incoerência, a desonestidade e a incompetência. O político passa a ser chique, elegante, inteligente e moderno ( o asinino termo criado pela imprensa brasileira para cognomizar quem é liberal ) desde que defenda o desmonte do Estado, a redução da carga tributária e a vista obnubilada para as sonegações e fraudes. Assim, é fácil entender a intolerância dos Jornais para com Brizola. Veja-se um exemplo. Eliane Cantanhêde publicou coluna esta semana em que se referia a Brizola como " pessoa de poucas letras e muita garra". Observe-se aí o revanchismo. Por que pessoa de poucas letras? Brizola, obviamente , não era crítico literário nem literato, como Jânio Quadros e José Sarney, mas engenheiro e político, como Mário Covas e Paulo Maluf. Mas era considerado um dos maiores oradores da política do século XX, ao lado de Rui Barbosa e Carlos Lacerda. Seu português era corretíssimo, ao contrário do de Lula e Fernando Henrique Cardoso ( este, autor de inumeráveis erros gramaticais absurdos, prodigalizados em oito anos de asneiras ). E ao contrário do português de Eliane Cantanhêde, que na mesma coluna escreveu o vocábulo inexistente " ogeriza", ao invés de se satisfazer com o clássico " ojeriza". Assim, creio tratar-se de uma má-vontade da colunista para com o político gaúcho, de resto tão comum na imprensa nacional. Kennedy Alencar esqueceu-se também de mencionar que os momentos inesquecíveis de Brizola na vida pública não se restringiram à Cadeia da Legalidade. Brizola recheou o Rio Grande do Sul de escolas ( 6.278 em quatro anos ), numa época em que a educação era ainda mais ignorada que hoje; criou o CIEP, obra mundialmente reconhecida e reverenciada ( consulte-se depoimento do ator Leandro Firmino, de " Cidade de Deus", o qual afirmou que os CIEP´s o salvaram de cair na marginalidade); foi o principal nome da Campanha das Diretas-Já ( e era sempre o mais aplaudido nos comícios); Deixou, enfim, uma vida dedicada à educação e à dignidade do ser humano. Sintomático, aliás, que o autor do texto dê tão pouco valor à educação ( acho que é por isso que escrevem " ogeriza" ). E equivocado dizer que Brizola teve o seu obituário maquiado. A maquiagem, em seu caso, foi a que a imprensa tentou fazer em sua vida. Mas não deu." Marco Antônio Paiva Nogueira Júnior.

CAMPANHA DA LEGALIDADE - Corretos na sua coragem/ vieram de toda parte/ do porto e do Cafarate/ da Gruta e o campo do Ferro//Das casas de chão de barro/ do cinturão de miséria /vão chegando os voluntários/ para o batismo de guerra//E a multidão enche a praça/apenas com a valentia/ ameaçando os golpistas / com outubro de trinta //Tinha chegado a hora/ de mais um feito farrapo / de atar de novo os cavalos/ nó de lenço maragato//Já estavam com o pé na porta/ sentindo a primeira bala/ quando o corte de um acordo/ varreu aquela batalha//E todos foram para casa/ obedecendo a Brizola/ com gestos já meio largos/ e as camisas de fora//Eram índios da ribeira/ eram os pretos sem terra / Levaram um tiro mais tarde/ em abril de sessenta e quatro. (poema que fiz há alguns anos e que meu irmão Elo me reenviou, pois não tinha mais uma cópia).

MINO CARTA - Reproduzo parte do texto de Mino Carta, "O filho de dona Oniva", publicado no Correio Braziliense, pg. 24, de 19.04.98: "Me deu vontade de falar de dona Oniva e do mais novo dos seus seis filhos, Leonel. O pai morreu em 1923, quando Leonel tinha um ano. Dona Oniva era de origem portuguesa, baixa e sacudida. Camponesa, sabia tudo da terra e cuidou com dignidade e discernimento dos filhos e da roça. Em Leonel observava um talento especial e por sugestão de um amigo, padeiro e de religião protestante, entregou-o a um jovem pastor metodista e à sua mulher para que os servisse na casa e no templo em troca de ensino de graça: eles acabavam de fundar uma escolinha primária em Carazinho. Hoje Leonel conta que, além de aprender a ler e escrever, virou "um verdadeiro sacristão", Leonel Brizola, esclareço, se ainda não entenderam.
Então desenhou-se em Carazinho uma vocação mística que o tempo e paixões terrenas se encarregariam de apagar. Sobraram lembranças comovidas e um estilo de expor idéias e contar eventos e pessoas que é aquele do pastor e mestre. Não é preciso grande esforço para colher nas falas políticas de Leonel Brizola o ímpeto do pregador que verbera e condena ou o tom macio do pastor que persuade. Ele próprio admite que seu primeiro discurso, recém-eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul, "foi uma pregação", bem como o foram todos os demais, ao longo de uma vida riquíssima, embora às vezes atribulada. Vale perceber, porém, que os timbres de Brizola não mudam, mesmo quando não está no palanque, no vídeo, no microfone. Mesmo quando participa de reuniões nos bastidores. E até nas conversas sobre fatos miúdos do cotidiano, entre amigos.
Essa fidelidade ao estilo fortalece Brizola, confere-lhe uma autenticidade rara, alça-o por sobre a categoria dos histriões da política. Por mais que se diga e faça, ele é o que aparenta ser. Mas tem outras qualidades, a meu ver, que talvez não dispensem o aprendizado do contato direto com a consciência ? com Deus, garantia o pastor e mestre ? e da improvisação na oração de cada dia, aquela que não está escrita nas páginas do catecismo. Parece-me que Brizola não é do tipo que arrefece, que entrega os pontos. Que desanima e se queixa da vida. Que remói as adversidades e tomba em melancolia. Aos 76, ele continua indo em todas as bolas e achando graça. Brizola ri com gosto, ainda que não gargalhe.
Dona Oniva deve ter sido uma senhora notável. Terminado o primário de Leonel, foi ela quem empurrou o filho adolescente para o estudo em um colégio de Porto Alegre, descoberto em anúncio de jornal. Escreveu uma carta, pedindo esclarecimentos; veio um prospecto prometendo radioso porvir. Dona Oniva juntou as economias e Leonel partiu nos seus deslumbrados treze anos. Chegou e viu que as promessas não se confirmavam. Ainda assim, mentiu para deixar a mãe contente. Avisou: está tudo bem, às mil maravilhas. Trabalhado e estudando, fez um curso técnico de quatro anos e foi operário em uma fábrica de sabão enquanto alcançava o curso colegial. Enfim, formou-se engenheiro e imagino a felicidade de dona Oniva.
(...)Dona Oniva, o pastor e mestre de Carazinho, os anos duros em Porto Alegre, ensinaram-lhe que a vida está longe de ser uma tertúlia folgazã, conquanto, em qualquer circunstância, mereça ser vivida. Podemos não concordar com algumas, ou muitas das idéias de Leonel Brizola, mas há de se reconhecer nele a têmpera do lutador. A coerência. De minha parte, acredito na qualidade de sua fé. Não é mais aquela da infância, é límpida, contudo. Em primeiro lugar, fé em si próprio, e tal aspecto não me causa mossa, sendo próprio de um eterno aspirante ao poder, que o avalia com precisão porque já o teve. Há mais um ponto, na história. Brizola é um belo espécime de uma categoria de políticos em extinção, personagens notáveis de um país bem mais promissor do que o atual Brasil da imensa, estrepitosa aliança conservadora encabeçada por FHC.
Aludo a figuras que cresceram no embate político contra o pano de fundo da extrema e generalizada confiança no futuro, com excelentes motivos para cultivá-la. Alguns tinham porte natural e cultura de berço. Outros aprenderam pelo caminho e se saíram tão bem quanto os primeiros. Quer dizer, foram tão marcantes e representativos. Ocorrem-me Adauto Lúcio Cardoso e Milton Campos. Gente de trato finíssimo, elegantes na postura e no discurso. Fichas impecáveis, obviamente. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves pertencem a este filão e saíram de cena não faz muito tempo. No confronto com estes cavalheiros, Leonel Brizola era adversário à altura. Fosse ele uma flor, hoje o trataríamos com desvelo infinito para conservá-lo pelo maior espaço de tempo possível.

RETORNO - "Caro Nei: Os seus textos inseridos no Outubro me emocionam. É um orgulho tê-lo como amigo. Abração." Paulo Nogueira."O Diário da Fonte me levou às lágrimas inúmeras vezes, agora que li da cabo a rabo o assunto Brizola." Elo Ortiz Duclós. "Nosso herói merecia textos como esses, consideradíssimo amigo!" Moacir Japiassu. "
Meu artigo "Brizola, do verbo Brasil," foi reproduzido no Jornal O Buziano, de Búzios, que tem edição de arte de Juliana Duclós.

25 de junho de 2004

CAUDILHO É QUEM NOS CHAMA


No momento em que Leonel Brizola era enterrado com toda a pompa, abraçado ao povo que chorava sem parar, como mostraram as imagens da televisão que acompanharam o cortejo, alguns coveiros sinistros escreviam suas torpes catilinárias contra o herói nacional, hoje escancaradas nos jornais. Dois depoimentos são lapidares. Um do golpista José Sarney, que por anos foi líder da Arena, o partido da ditadura civil-militar no pseudo Congresso, e que empalmou a presidência, por voto indireto, num gesto de traição política. Outro é da notória Bárbara Gancia, uma obscurantista de carteirinha.

CAUDILHOS SÃO VOCÊS - Vocês sabem os nomes dos que tentaram dar o golpe de 1961 e não conseguiram, porque nosso herói não deixou? E sabem quem derrubou o presidente eleito pelo voto direto, João Goulart, e fechou o Congresso em 1964? Tenham os nomes que tiverem, esses são os caudilhos. Chegaram ao cúmulo até mesmo de fechar temporariamente um Congresso manietado, como aconteceu com o Geisel em 1976. Pois quem leva a fama é o Brizola, exatamente o político que foi expulso pelo caudilhismo de farda e paletó. Vejam o que destila Sarney na página 2 da Folha: "Brizola tinha na alma a herança dos caudilhos irredentos do Rio Grande do Sul, como Bento Gonçalves, Davi Canabarro e tantos mais, indormidos, de lança em punho, prontos para a peleja e a degola." Além do texto manco e tosco, salta o preconceito e a mentira. Logo adiante, a mentira maior: "Presenciei sua pregação para fechar o Congresso..." Pois quem fechou o Congresso foi a ditadura implantada pela UDN de Sarney, e por uma parte das Forças Armadas. Foi ele que fechou o Congresso e não Brizola, que era o deputado mais votado do Brasil e teve que fugir para não morrer! Sarney, que é latifundiário num país de miseráveis e senador pelo Amapá - outra das suas manobras políticas de última categoria - e que há 40 anos não larga a teta gorda dos sucessivos governos (porque disso depende o seu enorme olho-grande, a sua fome de poder e proventos), se acha muito civilizado ao recitar o seguinte: "Conheci também o outro Brizola: não o guerreiro, mas a personalidade moldada nas raízes rurais, da simplicidade da sua infância". Certamente a infância de Sarney não teve simplicidade nenhuma, ele era sofisticadíssimo de nascença! Quem conhece uma infância que não tenha simplicidade? E quem disse que raízes rurais tem a ver com simplicidade? Claro que, para Sarney, simples quer dizer pobre. Mas como não domina as palavras, ele acaba se traindo.A sabedoria de Brizola, seu talento, podem ser notados pelos textos enxutos que publicou, diretos, super bem escritos, ao contrário de Sarney, que não sabe escrever - e disso temos a prova dada por Millor Fernandes, num antológico ensaio sobre um dos "romances" desse indigitado. O idiota termina sua catilinária entendendo menos ainda: "Brizola conseguiu um milagre. Passou a vida construindo inimigos e guerreando. Morreu cercado de homenagem de todos". Mas que imbecil! Se o cara passou a vida construindo inimigos, como disse, como poderia morrer cercado de inimigos? Vejam o caso de Carlos Lacerda: morreu cercado da mais completa indiferença popular, pois esse sim era uma pessoa cheia de ódio. Brizola também não passou a vida guerreando. Passou a vida fazendo política, quando deixaram. Compôs, seduziu, convenceu, liderou e quando foi preciso, se insurgiu contra os caudilhos golpistas. Esses é que são os inimigos, uma minoria usurpadora, como o próprio Sarney. Brizola usava a cultura popular para se expressar, pois essa cultura era respeitada por ele e contém ensinamentos que servem para todos. Já Sarney usa a expressão nordestina "velho arretado" para não dizer coisa nenhuma sobre a pessoa que ele decidiu abordar no seu artiguete. Usa mal e porcamente o que o povo lhe oferece em palavras.

PICOLÉ DE LIMÃO - A pseudo franco-pensadora Bárbara Gancia diz a quem serve ao chamar de "aviltante" o ato político, no Rio, que denunciou publicamente e aos brados a traição de Lula à plataforma que o elegeu. No artigo intitulado "Morte transforma Brizola em herói nacional", ela esquece que foi a vida dele que o transformou em herói, não a morte. Ela insiste no lado incendiário de Brizola. Repetindo: quem pôs fogo no país, que até hoje está queimando, foi o golpe de 1964. Ela fala na complacência com a bandidagem e os acordos selados com os bicheiros. Isso é de uma má fé a toda prova. Antes de o Brizola, via juíza Denize Frossard, colocar os maiores bicheiros da cadeia, estes viviam aparecendo na Rede Globo, na maior cara de pau. Foi Brizola quem os encarcerou, foi no governo dele que o charme dengoso dos castores sumiu das telas da pseudo-poderosa. Qual acordo com a bandidagem? Bárbara certamente se refere ao ódio que sente por Brizola ter colocado as favelas do Rio em linha direta com a orla da Zona Sul. Claro, a praia era só para turistas e abonados. É disso que se fala: ódio ao povo brasileiro, desprezo às instituições, calúnias contra um herói. Bárbara ainda tem a cara de pau de dizer que Brizola está na raiz da atual violência que assola o Rio. O que está na raiz da violência é a tua indiferença e teu reacionarismo, Bárbara, o teu alistamento permanente nas hostes da bandidagem milionária que transformou o Rio num lugar de ódio de classes e de deboche descarado contra o povo.

CHARADA - A verdade factual, de que tanto nos fala e prega Mino Carta, dança quando este tipo de intervenção pinta na imprensa sob a forma de artigo, para difundir a calúnia e o preconceito. Decifrar o que houve de verdade na História do Brasil, o que representam seus protagonistas, requer estudo, espírito livre e coragem. Temos isso bem claro em dois articulistas: Paulo Henrique Amorim, que detalha a falcatrua que quase destruiu a eleição de Brizola para governador em 1982 (e que lembra que foi desta época a criação do slogan "o povo não é bobo, abaixo a rede Globo"), fato negado no noticiário global; e Mauro Santayana, que ao fazer um ensaio sobre Lacerda e Brizola conclui o que é de fato verdade: que neste embate, há um vencedor, nosso herói que ontem arrancou lágrimas das pessoas, chamadas de "anônimas" pelos bonequinhos de luxo da televisão. Ninguém é anônimo, seus! Todos têm nome. Só porque vocês vivem repetindo o nomezinho de vocês na telinha não quer dizer que só vocês são dignos de ter uma identidade. Os velhos, os meninos, os adultos, todos aqueles que acenaram, choraram e gritaram o nome de Brizola, todos tem um nome a zelar. E esse nome está a serviço da verdade.

RETORNO - Não posso também deixar de comentar o que disse o jornalista Flavio Prado sobre Felipão: entre muitos elogios, de que ele é "tosco". Por que tosco? Felipão é um estrategista de primeira, um lutador, um vencedor, um treinador inteligentíssimo. Tosco porque é gaúcho? Até quando, meus Deus? É bom colocar aqui mais um trecho do desabafo de Elo Ortiz Duclós, que nasceu lá na Fronteira Oeste, numa cidade modelo implantada no vasto pampa: "Nos discriminam porque temos a sinceridade suicida dos bravos, que preferem desagradar os poderosos a ter que jogar a verdade para baixo do tapete e fazer de conta que este é um País pacífico, onde tudo acaba em samba, ou pizza. Nos discriminam porque nesta busca da verdade defendemos nossas verdades, com 'dizidas' que soam arrogantes e polêmicas.Nos discriminam porque nossa intransigência com a verdade incomoda um País inteiro que optou por chamar a vilania, a covardia e a pusilanimidade de 'jeitinho', de esperteza. E se orgulha dessa atitude submissa."

24 de junho de 2004

BRIZOLA, A DEVOÇÃO CÍVICA

Não somos uma religião, Brizola, nem sequer um partido. Somos um sentimento, agradecido pela tua longa existência. Somos hoje o que deveríamos ser sempre, um povo ocupando dignamente a rua. Não queremos revanche, Brizola, porque tivemos a nossa chance. Deus há de nos explicar um dia porque não te colocamos na presidência. E há de nos perdoar por não te enterrarmos hoje como chefe supremo de Estado. Te enterramos apenas como herói da Pátria, como irmão que nos alistou na honra, e como líder que nos ensinou a grandeza que ainda nos falta, aprendizes que somos do civismo verdadeiro, o que não tem volta porque nele devemos apostar não só uma luta, mas toda uma vida.

FRONTEIRA - Foi o que fizeste, Brizola, neste tempo que deveria ser de luzes, mas foi de trevas. Neste interminável pesadelo que acabou nos devorando com suas promessas não cumpridas. Morei anos perto de ti, Brizola. Estavas recolhido no Uruguai, esse refúgio dos guerreiros do pampa, esse lugar que um dia recebeu Honório Lemos e o devolveu armado, à frente de um exército de 800 homens vestindo lenço vermelho. Lembro como tinham medo que cruzasses a fronteira, Brizola. Qualquer movimento e prendiam o orador que saudou o ex-aluno e paraninfo João Goulart numa formatura memorável do Colégio Santana. Como se ele representasse algum perigo. Esse estudante, que sofreu anos a tortura de ser recolhido à prisão me confessou o medo que tinha de acabar sendo o que ele não era, pois exigiam que se declarasse comunista. "Vou acabar me comunizando", dizia ele, amedrontado, com sua cara cheia de espinhas, menino ainda, que no seu discurso havia levantado a voz e a mão para saudar o ilustre presidente que ali estava na sua frente, escutando suas palavras. Tiraram essa glória dele, Brizola, porque tinham medo. E lembro o grande pavor que sentiram quando enfim o coração de Jango não agüentou e aí sim cruzou a fronteira para sempre, num caixão de madeira. Jango foi carregado pela ponte de Uruguaiana, Brizola, para ser carregado até São Borja, onde foi enterrado ao lado de Getúlio. Foi aí que eles sentiram que podiam abrir um pouco, achavam que tinham rompido a linhagem popular que elegia os trabalhistas em todos os níveis, municipais, estaduais, federais. Lembro como foi a gestão de Íris Valls, do PTB, na minha cidade, querido amigo. Uruguaiana era uma cidade esplendorosa, arborizada, rica, cheia de vida. A esposa do prefeito trabalhista foi minha professora do primeiro ano primário e me ensinou a ler. Era assim a têmpera daquelas pessoas maravilhosas que governavam o país e foram expulsas pela incúria, pela violência e pela inveja.

MEMÓRIA - Por isso somos um sentimento, Brizola. Somos essa memória que não cessa de nos estocar com seu arsenal de cobranças. Lembro minha mãe escandalizada com as manipulações do voto que as campanhas políticas já faziam naqueles tempos terríveis. Votem nos trabalhistas, dizia ela, não se deixem enganar. Lembro também meu pai proclamando-se centrista, como Jango, que a todos conseguia passar a perna, dizia, rindo, aquela perna que Jango puxava principalmente quando passava as tropas em revista. Tínhamos então amor às Forças Armadas, Brizola. Elas ainda não haviam sido ludibriadas por essa direita que acabou empalmando tudo, para nos entregar de graça para a pirataria internacional. Lembro que minha mãe ficou de cama quando o novo falso presidente fardado assumiu o poder falando mal dos trabalhistas, os acusando do que nunca foram, de comunistas. Adoecemos todos naquela época, Brizola. Contraímos a tristeza incurável das nações derrotadas. Olhávamos para a fronteira e sabíamos que lá, por trás daquela linha imaginária, estavas em silêncio forçado, louco para voltar. Mas quando voltaste já éramos outros, Brizola. Tiveste que recolher todos os cacos da nação e provar que ainda estava viva a chama da terra brava que hoje faz teu funeral. Foste de rua em rua, de casa em casa e conseguiste de novo a vitória, nesse Rio de Janeiro que será sempre a capital da nação amada e que teve de ser despossuída para que os verdugos triunfassem. O Rio de Janeiro que recebeu Getúlio em 1930 e que te elegeu governador duas vezes, como a repetir que te queria presidente na capital que esvaziaram e que hoje está entregue à sanha da violência.

ACAMPAMENTO - Fiquei impressionado com o rosto de dor da governadora do Rio, Brizola. Como a nos dizer que devia tudo à tua generosidade e que talvez não fora suficientemente explícita no seu reconhecimento. E agora, tarde demais, carrega sua dor incurável pelo velório com a cara transtornada pelo choro sem fim. A política que temos hoje não permite esse tipo de emoção, Brizola. Foi esse sentimento, que desenha o rosto dela, que prevalece nesta hora em que te depositamos na morada definitiva. Apesar das falsidades que desfilaram no teu velório, lá estava o povo, chorando, discursando, levantando os braços, porque algo terrível aconteceu: morreste, Brizola, foste para sempre e levaste contigo a oportunidade de resgatarmos ainda nesta vida o país perdido, a nação brasileira que precisa ressuscitar deste horror a que nos submeteram. Somos devotos do teu civismo, Brizola, e não teus fanáticos seguidores. Não temos fanatismo, porque somos um povo que veio de longe, junto contigo, e soube combater o bom combate. Nossa cultura é de acampamento guerreiro, comandante. Dormimos debaixo de lonas grossas, conversamos ao redor do fogo, nos amparamos no tiroteio, passamos uma bebida amarga e quente de mão em mão. Tem gente que acha graça, Brizola. Mas hoje ninguém ri dos teus compatriotas que te enterram, querido amigo. Mesmo nesta profissão extinta, o jornalismo, houve alguns claros no obscurantismo. Tiveram que fazer a cobertura completa, Brizola, apesar de alguns deboches, de algumas vaidades (todos te entrevistaram!) e desse desfile de fantasmas em vida que se referem a ti como se tivessem te conhecido em toda a tua dimensão. Mas o verdadeiro testemunho já está enterrado, Brizola. Imagino o que diriam Tarso de Castro ou Darcy Ribeiro. Resta apenas a nossa dor e a pobreza destas palavras.

LEVANTE - Porque nasci poeta no pampa que despertaste, te saúdo, Brizola. Assim, sem que ninguém me pedisse e sem que eu tivesse a mínima chance de representar quem quer que seja. Porque também não é a saudade que nos move, Brizola. Não somos saudosos, somos apenas o povo que hoje te enterra. Por nossas mãos desces à terra como um pássaro procura a luz, como a dor que se redime, como o sentimento que aflora. Nosso coração te leva junto, companheiro, nesta jornada ainda no meio, como a bandeira de uma nação que, pelo teu exemplo, se levanta.

RETORNO - "Um texto grandioso para um grande personagem.
Aceite meu abraço." Helena Ortiz (sobre o texto Brizola, do verbo Brasil)."Puxamos o Brasil no laço até as barrancas do rio Uruguai. Somos brasileiros por opção, porque somos livres. E libertários." Elo Ortiz Duclós (num desabafo sincero, no momento em que soube da morte de Brizola).

23 de junho de 2004

BRIZOLA, O FIM DO EXÍLIO

Acabou, Brizola, acabou enfim o teu exílio. Voltas para a nossa terra pela última vez e dela não poderás mais ser expulso. Deixas para nós, como presente inviolável, que só poderá ser reaberto por nossa coragem, o que um dia levaste nas costas quando te empurraram para fora da fronteira em 1964. Pois levaste o Brasil contigo, Brizola, a pátria soberana composta por nós, o povo, e este território sagrado. Quando voltaste em 1979, cercado de incompreensão e inveja, trazias o tesouro nas mãos. Teu heroísmo então foi temporariamente enterrado, e só revelado agora em todas as mídias. Por que calaram enquanto estavas vivo, comandante? Porque tinham medo de ti e do que trazias de volta para nós. O país que perdemos naquele abril medonho.

GRANDEZA - Teu caixão palmilha as ruas e é depositado no Palácio Piratini, onde defendeste a honra do teu mandato, a glória da presidência que nos escapava, de armas da mão e com a oratória que lá no Rio Grande aprendemos desde criança. Olho consternado o comentarista da Globo de dedinhos levantados asseverando: ?Ele não era um administrador?. Quem são eles para te julgar, comandante? Querem usar a Legalidade para te desqualificar como político. Mas o que fizeste, fica. E não é apenas o dinheiro público que usaste com grandeza na educação, na cultura e na infra-estrutura. É o que tinhas de mais precioso, Brizola, a noção exata de pátria e o que ela significa. Aprendeste com teus dois pais, o que foi assassinado e o que te criou. Aprendeste com Getúlio e tentaste, a vida toda, ter aliados à tua altura. Mas nós somos fracos, Brizola. Não tivemos o despreendimento de marchar ao teu lado quando mais precisavas. Votávamos em ti, mas te evitávamos. Queríamos tua presença, desde que obedecesse aos nossos ditames, ao nosso pensamento destruído junto com o Brasil. Chegaste, então, a abrir mão temporariamente da tua contundência. Compuseste até o osso com quem estivesse disponível. Te tiraram a sigla histórica, mas não esmoreceste. Lutaste pelo teu partido para que o trabalhismo verdadeiro tivesse continuidade e não morresse contigo. Sacrificaste tua biografia em função da democracia precária, que enfim estiolou-se nas mãos desses bananas criminosos, FHC e Lula, que tudo tinham para salvar o País e o enterraram às gargalhadas. Agora dizem que, com, tua morte, tudo acabou. Não acabou não, Brizola. Está só no começo.

TRAIÇÃO - Depois vem o Ciro Gomes dizer que foi uma grosseria os trabalhistas chamarem Lula de traidor no velório do Rio. Foi um ato político, mas disso nada entende Ciro Gomes, que foi apoiado por Brizola nas eleições para presidente e hoje faz parte dessa tragédia federal como ministro. Então não vimos o próprio Ciro prometer, messiânico, que os flagelados pela incúria política que destruiu a barragem na Paraíba serão ressarcidos cem por cento. Como, cem por cento, ministro? E os cinco mortos, serão ressucitados? Esses crimes não podem ser perdoados, porque esses sujeitos continuam com a desfaçatez de sempre. Um samba nunca foi tão justo, Brizola. O samba que diz para Lula e seus asseclas sinistros, os mesmos que são flagrados com monstros corruptos em seus gabinetes: ?Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão?. Hoje vemos aquelas imagens em que, de peito aberto, apoiavas Lula e ele sempre de olho virado, de cara amarrada, como se fosse o rei da cocada preta e tu, Brizola, apenas um mandalhete da biografia dele. Pois vemos como ele é horrendo na sua caratonha, na sua desfaçatez mentirosa. Foi expulso do velório no Rio e voou para onde? Para os Estados Unidos, claro. Foi lá atrás de papel pintado. Hoje tudo é financiado pelos dólares da dívida que cresce até não poder mais. Bolsa família, qualquer coisa, é financiada com empréstimos estrangeiros. Para onde vão os bilhões arrancados ao suor do povo? As autoridades suíças parecem que tem a resposta. Pois levam tudo, Brizola, de merenda escolar a fio elétrico. Não deixam nada. O crime organizado está no poder em todos os lugares. Por que? Porque somos medrosos, Brizola, não estamos à altura da tua coragem. Nos ensinam a não reagir, a dizer sim a toda espécie de violência. Perdemos um Vietnã (americano) por ano. Por isso te enterraram em vida, Brizola. Para levar tudo com eles, pois odeiam o Brasil, acham que o povo é incompetente, e quem ama o povo é xingado de populista.

POVO - Vi, Brizola, como alguns professores universitários enriqueceram te chamando de populista. Inventaram que eras o passado, ultra-passado, que fazias parte de uma elite política que enganava o povo e que o bom era o operário Lula, que falava grosso contra a ditadura. Vimos o franguinho que ele é hoje, Brizola, enquanto tu cresce como homem do povo, que veio do nada e que cresceu porque se esforçou, estudou, venceu. Nunca tiveste orgulho dos teus limites, Brizola, foste atrás, e lutaste por teus ideais. Vieste de longe, querido amigo, não só do Sul, como costumam insistir (como se fôssemos uma piada geográfica), mas do povo brasileiro, e eras o seu legítimo líder e representante. Por que conseguiste esse feito? Porque és filho da Era Vargas, Brizola, porque era possível ser do povo e ter dignidade naquela época. Foi isso que destruíram. Agora concentram cada vez mais riqueza nas mãos, fecham-se em palácios de corrupção e deixam as ruas entregues à bandidagem. É isso que colhemos enquanto és velado no nosso Rio Grande do Sul, companheiro, líder, patriota. Nosso coração está ao teu lado agora. Ele fica fora do teu túmulo, ao lado da bagagem que nos deixas como herança. Vamos te enterrar em São Borja, companheiro morto. Mas vamos pegar tua herança nas mãos: o Brasil que levaste embora para o exílio, que nos trouxeste de volta e não soubemos enxergar. Agora somos obrigados a juntar as mãos e carregar esse ilustre presente, companheiro. Vamos abri-lo e ver como fomos tão profundamente derrotados. Precisaste morrer para que nos voltasse a coragem. Não precisavas morrer sem ver teus compatriotas assumirem o País perdido. Mas parece ser esse o destino dos heróis. Eles não conseguem ficar vivos até o momento em que o amanhecer da nação deita seus primeiros raios de liberdade. Eles partem, mas deixam conosco a vida que não merecemos viver, mas que somos obrigados a assumir. Como lembra meu irmão Elo, estudante do segundo ano da engenharia em 1961, testemunha e participante da Legalidade, emocionado com tua morte, aqueles versos do exílio: "Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá". Não permita, Deus. Não permita, querido comandante. Sem que eu volte para o Brasil. Sem uma nação, sumiremos para sempre do mapa.

RETORNO - "Parabéns digo eu pelos belíssimos textos sobre Brizola. Já repassei a vários amigos." Francisco Karam, (coordenador do Jornalismo da UFSC, curso vencedor do prêmio Luiz Beltrão, o que significa destaque como instituição paradigmática)."Vou ler o resto do teu texto sobre o Brizola em casa, com calma e reverência. O pouco que consegui ler agora foi o suficiente para me identificar e emocionar. Só uma alma lavada na sanga e secada ao minuano pode contar para o Brasil quem é o Brizola. O resto é mistificação mal-intencionada, como continuam fazendo com o Jango." Edir E. Arioli."Pena que o Brizola nao se tornou presidente em vida, mas eu coloco a faixa presidencial na representaçao que ficarah na nossa memoria." Helcio Toth. "O nei, agora entendi o porquê de vc querer que eu fizesse os chão de fábrica lá na fiesp! Tu és um trabalhista convicto!" Marcelo Min

22 de junho de 2004

BRIZOLA, DE CORPO PRESENTE

Agora estamos sós, Brizola. Partes para a nossa terra e nos deixas na mão dos tiranos, que se revezam na mídia dizendo as maiores barbaridades, como se pertencesses ao passado, ao que chamam de "História". Eles distorcem a verdade, como sempre, porque disso tiram proveito com seus dentes cheios de sangue. Mas todos sabem que tu és a História, Brizola, não foste a reboque dela, nem ficaste preso ao século 20. Cruzaste o umbral do milênio armado de tua longevidade e estavas no front quando te colocaram na maca para te perfurar os órgãos, pesquisar tuas dores, intervir no teu corpo, agora presente no Rio, em Porto Alegre e definitivamente na terra dos presidentes, São Borja.

SÃO BORJA - Estive uma vez em São Borja numa viagem difícil que fiz com meu pai dentro de um velho jipe Candango, desconfortável, numa estrada de lama. Tivemos que contornar Itaqui, fomos por lugares ermos, caiu a noite. Tínhamos almoçado na estrada na Pensão da Siá Chica, onde fomos servidos pelo dono, um enorme senhor negro, sério, nobre na sua postura de gaúcho estradeiro. Encontrei então no dia seguinte a terra que agora vais ser enterrado, querido amigo. Parecia Uruguaiana, era quase idêntica, com suas ruas, calçadas, praças. Tinha um ar de capital de um país longínquo, o que um dia foi conhecido como Brasil. Fazia sol nesse dia, Brizola, e toda a cidade tinha o clima da grandeza dos heróis que lá estão enterrados. Agora tu, Brizola, que não tiveste a ventura de ser nosso presidente. Tiveste a hombridade de apoiar os que te apunhalaram. Pensando no país, que entregaram, na democracia, que enfim não veio, abriste espaço e deste votos para esse governo que traiu o povo e que subiu ao Planalto graças aos teus votos, Brizola. Um desses votos foi o meu, querido amigo. Agora parece que o tal presidente vai abrir um claro na agenda para visitar teu corpo, como se ele fosse grande coisa, esse engano político, essa tragédia que quer mais um mandato, mais um! Para quê? Mas, escaldado na experiência de Getúlio e Jango, aprendeste que apoiar um presidente eleito é mais importante do que qualquer outra coisa. Por isso apoiaste os presidentes por certo tempo, Brizola, porque Getúlio, do túmulo, te advertia. Claro que não entenderam esse gesto histórico, Brizola. Eles não queriam entender, queriam apenas te enterrar vivo.

PRESIDENTE - Agora clamam tua coerência, tua honradez, tua honestidade. Mas ficaram décadas falando mal da tua fazendinha no Uruguai, a mesma que compraste em troca do pedaço de terra a que tinhas direito em São Borja, e que quase perdeste, pois até isso os verdugos de 64 fizeram. Eles deram o golpe para impedir tua presidência Brizola. O regime de 64, que ainda está em vigor, tinha só esse objetivo: impedir que fosses nosso querido e amado presidente da República do Brasil. Conseguiram, Brizola. Ah, dor infinita dessa chance perdida. Tua plataforma era clara como água que brota do pampa: dar de comer a quem tem fome, dar escola a quem tem sede de saber, permitir dignidade ao povo brasileiro e soberania ao nosso território. Pois tudo isso é considerado passado, Brizola. O eterno presente é esse pesadelo de dor e violência, de morte certa em todas as ruas e casas. Caímos num horror sem fim. Quando chegaste do exílio, bradavas que mulher nenhuma poderia andar pelas calçadas do Brasil empurrando um carrinho de bebê. Porque temos carros, mas não ruas. Temos soja, mas não calçadas. Temos tiros, mas não trigo. Temos gente escandalizada porque teu estado ideal era o estado getulista. Eles preferem a República Velha, Brizola. Eles se acham modernos, mas Getúlio foi o inventor do Brasil moderno, como disse uma vez Samuel Wainer numa edição do Folhetim, da Folha, quando era editado pelo Tarso de Castro. Getúlio amparou o trabalho e a indústria, viabilizou a elite fora do garrote do campo e inventou o operário remunerado, implantou a infra-estrutura em Volta Redonda, a Petrobrás e a Eletrobrás (que hoje são sucatas do que foram, instituições de um país soberano). Foi destruído pelos donos do planeta. Estive com Samuel, estive com Tarso. Ia, no fundo, atrás de ti. Queria ser alguém próximo a ti, mas não deu certo. Por isso fiz aquele poema que deu título ao meu livro, No Mar, Veremos, dedicado a ti, pensando em ti, mas nunca falei isso para ninguém, porque me iludia que o poema poderia te transcender, fazer parte de outras paragens. Mas tu és o pescador de rio moreno, tu és o charrua de preta escama e é tu, Brizola, que vem do levante.

PÁTRIA - Tu é o cara, Leonel Brizola. O cara que precisávamos para ocupar a presidência. Mas foste embora sem realizar esse sonho. Ficamos com sarneys, itamares, collors, fhcs e lulas, sucessão de mediocridades criminosas, que baixaram as calças para os estrangeiros, que entregaram o país de bandeja para posar de estadistas. É coincidência, Brizola, que eu esteja em Florianópolis ao receber a notícia da tua morte? Lembro que aqui estava quando Glauber Rocha morreu. Quando finalmente volto para o Planeta Terra, para o Brasil que ainda existe, um punhal se crava sobre esses brasileiros das alturas, esses gigantes que nos abraçam com sua generosidade. Ligo a televisão e o que vejo? Pobres criaturas sem escola rebolando sem parar (para isso treinam o povo brasileiro, para rebolar diante do mundo pirata e bandido), publicidade sobre tudo, nada de cultura, nada de emoção, nada de arte, nada do teu funeral, Brizola, a não ser esses monstros vertendo lágrimas de crocodilo. E claro, tem o povo. O povo que agora chamam de choldra, patuléia, viúva. Mas que chamavas, com o maior respeito, de meus compatriotas. Compartilhamos a pátria, querido amigo. A pátria que não te viu no poder federal, como impunha a História, e hoje pagamos caro por isso. Hoje choramos de verdade, lágrimas de guerreiros diante da batalha perdida, mas trêmulos de fúria diante da guerra que ainda há de vir. Porque não és passado, Brizola. És História, e ela se faz com luta. O trabalhismo vencerá. Para isso, vamos mover céus e terra. Iluminados pelo teu exemplo. Carregados pela tua força. Lúcidos por tuas palavras. Tua morte desmascara os fantoches que dominam o país. Agora adiam a votação da merreca mínima, deboche contra essa instituição trabalhista, sucateada como todas as outras. Por que? Porque é uma vergonha, uma mesquinharia, diante do teu corpo presente, companheiro, amigo, patriota. Presidente que não tivemos, grandeza que agora herdamos, com os ombros pesados que levam teu corpo, enfim morto, para a eternidade.

RETORNO - Meu irmão Elo me envia mensagens de grande voltagem, que passarei a reproduzir nas próximas edições desta cobertura poética e política. Lenir de Miranda escreve: "Quando soube da morte de Brizola, pensei: isso não se faz, ele nos deixou a sós. Para minha surpresa, a frase de início do artigo de Nei Duclós era: "Agora estamos sós, Brizola." Minha geração presenciou os anos 60, 70 e agora sinto que aquele período heróico está se esvaindo... Mas, como poeira cósmica, logo estará iluminando, na lembrança, outras mentes esclarecidas. "Quem, se eu gritasse, me ouviria, entre as hostes celestiais?" Rilke"

BRIZOLA, DO VERBO BRASIL


Leonel Brizola lutou praticamente só contra a destruição do Brasil, o país inaugurado em 1930 e devastado a partir de 1964. Nasceu como cidadão quando foi testemunha, ainda no colo da mãe, do assassinato do seu pai, guerreiro da revolução de 1923, que fora desarmado e remetido para casa e perseguido pelos tiranos que tinham jurado a paz das Pedras Altas. Nasceu como político em 1945, quando Getúlio Vargas foi destituído por um golpe militar, e ajudou a fundar o PTB. Morreu testemunhando o estrangulamento total da nação a qual serviu como ninguém, como o primeiro - e, portanto, jamais o último - dos patriotas.

LEGALIDADE - O vasto desenho do seu rosto estava escancarado num painel em frente à minha casa, no Colégio Santana, em Uruguaiana, para onde acorriam os eleitores naquele distante 1958. Simpatizei com aquela cara boa e limpa e, aos 11 anos de idade, subi no muro da minha casa e berrei seu nome o dia inteiro. Ele foi vitorioso nessas eleições para governador, quando mudou o país. Estatizou a multinacional que monopolizava as telecomunicações do Rio Grande do Sul, fundou uma escola rural a cada cinco quilômetros de estrada e quando terminou seu mandato era o mais importante e prestigiado político do Brasil. O presidente americano John Kennedy ficou irritado com ele, que tinha pago um Tamandaré (um cruzeiro) para ter de volta a CRT, a Companhia Riograndense de Telecomunicações. Tinha coragem e tinha grandeza. Quando estourou o movimento da Legalidade, improvisamos um quartel no quintal da nossa casa. Empilhamos os estrados que serviam de suporte para as bolsas comercializadas por nosso pai e colocamos bandeiras em cima dessa pilha. Convocamos todos os homens abaixo dos treze anos de idade. Distribuímos as armas: paus, pedras, cabos de vassoura. Estas, eram as espingardas que colocamos a tiracolo para montar guarda. Enquanto Brizola fazia sua campanha de mobilização por uma rede radiofônica a partir do porão do Palácio Piratini, nós nos revezamos, por uma longa semana sem aula, mantendo-nos firmes contra os golpistas. Foi nosso exercício de cidadania: uma representação da mobilização armada . Milhares de pessoas moradoras do campo vinham lotando caminhões e carroças para se alistar. E nós, garotos, da cidade, estávamos lá. Crescemos com aquela vitória. Levamos essa disposição para as ruas em 1968. Depois, invadimos as redações com nossa fúria, com nossa ética, com nossa vontade de reverter a guerra.

ANISTIA - Quando voltaste do exílio vieste até aqui em Florianópolis, Brizola. Eu trabalhava em propaganda naquela época. Encostei rapidamente o carro na calçada e fui te conhecer pessoalmente. Apertei tua enorme mão e a todos atendias com teu garbo, teu perfil de cavalheiro, tua grandeza, teu carisma. Olhaste rapidamente para mim e sentiste que eu não estava disponível para a política partidária. Compreendeste, sem eu te falar nada. Eu não podia te abraçar, Brizola, porque o sucateamento do Brasil já estava na minha carne, já tinha me ferido profundamente e eu só fui te conhecer, mas não me alistar, companheiro leal e líder da vida que compartilhamos tão à distância, mas neste mesmo território nacional de tanta luta. Virei depois, além de teu correligionário - sempre voto no PDT - teu crítico, pois não entendia como puderam te trair tanto, Brizola. Como no samba, foste traído, mas não traíste jamais. Porque esse era teu destino, Brizola, servir de rocha à beira mar, servir de modelo para a nação, quando encarnaste o verbo Brasil, esse verbo tão pouco conjugado e que precisa ressuscitar. Por que perdemos uma vida inteira, comandante, para tentar resgatar o que nos foi roubado quando ainda éramos tão moços? Éramos crianças quando foste expulso, tu e teu rosto de quase menino, tão determinado quanto um guerreiro pode ser. Por que perdemos aquela eleição de 89, Brizola? Consciente da minha total falta de importância política, mesmo assim enviei uma carta para ti que ninguém te entregou, assim como não te entregaram tantas cartas de trabalhistas apavorados com o engodo Lula e com a sagacidade da direita. Falei que ias perder a eleição por causa de São Paulo, Brizola. Aquele Airton Soares, quando soube da minha preocupação, pois enviei também uma carta a ele, me telefonou, sondando alguma contribuição financeira, pois eu trabalhava para uma empresa naquela época. Perdeste, Brizola, porque teus aliados eram fracos e não estavam à tua altura. Perdemos contigo, mas continuaste de vela enfunada, capitão de um navio que jamais será derrotado definitivamente.

LEGADO - Mas nós te criticávamos porque assim nos formaste, comandante, porque foi assim que aprendemos contigo. Não a crítica dos verdugos que acabaram te empurrando para fora da política, apesar de tanta resistência. Não esses que agora lamentam da boca fora e esfregam as mãos de felicidade sinistra. Vi a noticia da tua morte pela Globo, Brizola, esse monstro que devorou o Brasil e agora clona o país na sua novela Celebridade, numa desfaçatez sem tamanho, esse monstro endividado até o osso, sugador de recursos públicos, incompetente e que tentou te roubar uma eleição, a de governador do Rio em 1982, Brizola. Todo mundo viu como derrotaste o monopólio, querido amigo que agora nos deixa para todo o sempre. Como enfrentaste as câmaras e lutaste por uma democracia que afinal não veio. Voltamos à ditadura, Brizola. A mesma que te viu nascer, naquela década de 20 tão importante para ser estudada. É a mesma ditadura, querido amigo. Eles entregaram o país, endividam até o osso, pegam dinheiro emprestado sem parar para no fim entregar toda a soberania. Desces à terra como o maior patriota deste país ainda vivo, Brizola, porque não deixaste morrer. Teu nome começa com as mesmas letras de Brasil. Nos ensinaste a conjugar esse verbo, e vamos conjugá-lo todos os dias da nossa vida. Queremos ação, comandante. Não teremos mais tua análise, teu texto, tua advertência, tua lucidez a serviço da honestidade e da nação. Mas temos teu exemplo. Temos teu corpo, comandante, em nossas mãos precárias. E te depositamos no solo da terra amada com todo o mar infinito em nossos olhos. Agora somos tu, Brizola. Agora somos o sonho que carregaste em vida e que iluminas, bem posto na eternidade. Mesmo teus inimigos terão que se curvar. Mesmo teus falsos amigos terão agora que lamentar. Mas o povo te carregará no coração como um fogo sagrado que nada nem ninguém jamais apagará.

21 de junho de 2004

ENTREVISTA COM SINISTRUS JOE


Quando todos se mandaram do sonho de viver na praia, aí pela grande crise do Plano Cruzado, ele permaneceu. Foi se afastando de todos os expedientes e hoje vive só, numa casa de pau-a-pique, ao lado de gigantesco menir arqueológico, na ponta de uma praia oculta. É direto e definitivo sobre todos os assuntos. Usa longo cabelo crespo branco revolto e vive de pequenos peixes que lhe atiram. Tem o olhar azul furibundo. De perto parece assustador. Mais de perto, sai da frente. Olha agora as pessoas que, cansadas das megalópoles, voltam a sonhar à beira do mar, e sacode a cabeça. Fui entrevistá-lo. De longe, aos berros. As respostas serviram para me deixar desconfiado: estaria ele me tirando um sarro?

P - Ei, Sinistrus, quando é que você vai voltar para a civilização?
R - Tomorrow after rain, responde, recompondo em inglês fajuto o clássico "amanhã depois da chuva".
P - Como você consegue sobreviver nesta ilha?
R - Killing dog screaming (matando cachorro a grito), continua o ermitão.
P - Você torce para qual time?
R - O da véia, sempre torço para o time da véia.
Ele estava mesmo me gozando. Mas não desisti. Subi mais alguns lances da pedra para vê-lo melhor. Usava roupa de papel crepom desbotado e segurava um cajado de osso. De baleia, possivelmente.
P - Você já viu uma baleia?
R - A toda hora. Elas engordam na civilização e chegam aqui para suar um pouco. Sempre penso que é para perder peso, mas é só para abrir o apetite.
P - Falo das baleias mesmo, as do mar.
Não me respondeu. Parece que gritava, não dava para ver. Um eco me trazia um
-...a senhora sua mãe...
mas não deu para saber se era dele mesmo.
P - Sinistrus (eu não desistia), você acha que o Brasil tem jeito?
R - Claro que tem. O Brasil sempre fica no jeito. Primeiro foram os espanhóis, depois os franceses, mais tarde os ingleses, depois os americanos, agora os chineses, os ucranianos, os trogloditas e os saramagos. O Brasil sempre dá um jeitinho de ficar no jeito. É o único país do mundo que, onde estiver, sacode as tetas.
P - Você é nacionalista, Sinistrus?
R - Nada. Sou de antes da nação. Sou do Brasil antes do Brasil. Nasci para enfiar esse cajado na costa brasileira.
E sacudiu o osso gritando para as nuvens.
Sinistrus Joe estava mesmo em forma. Quem mandou entrevistá-lo?

BACIA - Os barcos ficam lado a lado na pequena bacia. O mar deveria ser calmo aqui, mas ronca. São pequenas ondas que lambem a costa. Estariam sendo geradas por algum pesqueiro no horizonte? Não há pesqueiros hoje em toda a ilha. Estão recolhidos. Os pescadores se reúnem nos bares que só funcionam na temporada e exibem esqueletos do que foram ou serão (coisas cheias de gente bêbada). Os pescadores estão sóbrios. Parecem sérios, mas gritam quando você passa. Estão, claro, tirando uma de turistas de inverno. Um deita atirado na areia e te olha de soslaio. Massas de terra ao longe fundem-se com a maresia, que aqui possui carne grossa. Serão ilhas? Será o continente? Não sabemos. Não temos rosa dos ventos. Somos náufragos desse pedaço do planeta terra, escolhendo pequenas conchas, pequenas pedras. Todas as casas estão vazias. O sol a pino diz que é verão no corpo. Basta bater no morro aí pelas quatro da tarde, o gelo começa a descer. O sul me ensina a solidão do inverno. Debaixo de placas proibitivas, o dono solta seus três cachorrões. Eles descobrem a felicidade. Chama-se liberdade, fica na areia e na beira da água. É assim o planeta onde vivemos. Alguém deve ter puxado a descarga para que pouca gente o veja assim. Em cima de um morrete, colocaram algumas estacas e sobre elas um estrado. Alguém do povo brasileiro dorme sobre esse estrado. Viajo no tempo e aguardo. Sonho com algumas providências. O corpo pede ação. Os pulmões se recuperam. A lua nova virou mocinha. Está enfeitada, brilhante, à espera do tempo novo que chega. Lua nova não é só promessa, é feitio de oração. Desce, Mãe de Deus, teu manto sobre nossas vidas e nos proteja. Queremos aquele Brasil, o que nossos pais e avós construíram, e nos legaram. Ele continua aqui, mas precisamos saber viver nele de novo. Mutuca, Zé Gomes, toquem aquelas velhas e inéditas canções. Irei até os anéis de Saturno, para encontrar objetos perdidos...O vento é uma pedra polar...

20 de junho de 2004

A BOLA PASSA POR TODO MUNDO


É a frase dos narradores descrevendo o lance mais comum do futebol brasileiro. A bola cruza o campo sem interferência e vai para a linha de fundo. Basta um jogo da Eurocopa - Portugal x Espanha, por exemplo - para que fique claro o mal que a cartolagem inepta e corrupta e o monopólio televiso fazem ao nosso futebol. O jogo transmitido pela Record - e narrada pelo número 1, Luciano do Vale - alterna plano geral, primeiro plano, zoom, contra-plongée, toda a cultura cinematográfica, para revelar cada detalhe e a riqueza de um jogo movido a proteína na primeira infância. Pela Globo, o apático Corinthians x Flamengo mostra o eterno plano geral com a bola sendo rifada pelos jogadores, ou enrodilhada nos pernas de pau que assombram as transmissões esportivas.

MASSA MUSCULAR - Ora, direis, somos penta. O que estou falando é que, em relação ao futebol, nos comportamos de maneira idêntica à extração do ouro e pedras preciosas. Tínhamos de sobra, extraímos até a medula e entregamos tudo para o estrangeiro. Ficamos com o granito, o calcáreo, a pedra vagabunda. Sim, direis, mas a Eurocopa está cheia de brasileiros, a começar pelo técnico de Portugal, Felipão (quando perdeu para a Grécia, murmurei: ele vai ganhar, ele não vai deixar barato). O que falo é que na Europa Kaká ganha massa muscular enquanto aqui vemos Gil e outros valores com as pernas arqueadas por falta de vitaminas na formação física. Predamos nossos jogadores, vendemos todos os que sabem manejar com a bola ainda com destes de leite e ficamos com a sucessão da mediocridade. Garrincha foi escolhido por Nilton Santos. É a linhagem do gênio, o melhor escolhe um outro melhor ainda. Aqui temos apenas idiotas que colocam para jogar excrescências que nivelam por baixo todos os times. Não há respeito nenhum a nada. Depois que pegaram um cartola, anos atrás, com a féria do jogo escondido no porta-mala do carro fica fácil entender o tipo de gente que manipula o futebol. Inventam esses certames intermináveis, que fazem os jogadores viajarem de avião várias vezes por semana, com jogos transmitidos às três da manhã. A Globo monopoliza tudo. Galvão Bueno reserva-se os melhores e mais importantes jogos e deixa os outros para os clebers machados da vida (a voz insossa, a falta de talento e vibração, bem na medida do temeroso Galvão). Obriga Falcão a falar mais rápido do que a luz, o que torna os bons comentários do craque incompreensíveis. E tem o Casão, que começa toda a frase com "É...", ou seja, sempre com o mando da fala, jamais se deixando empolgar pelo jogo, como se analisar futebol fosse dissecar ratinhos em laboratório - se tivesse competência cientifica para tanto. E fica de fora o magnífico do Valle, que felizmente de vez em quando dá o ar da sua graça com alguns jogos internacionais ou na copa do Brasil.

CORONEL - O modelo de Lula de poder é o do coronel do sertão - assim como o de FHC era o de presidente da República Velha. "Em que língua vocês querem que eu fale" diria este. "Venham todos vestidos de caipira", ordena o primeiro. O país em colapso vê diariamente o massacre da população na violência, no trânsito, no sistema de saúde. Os números do crescimento são fajutos: comparados com época de descenso, índices mais equilibrados saltam nos gráficos, avisa um economista na Folha. No lado oposto da gangorra, cresce a importância de Getúlio Vargas na política, na economia, na História. Coincidência? Não, lógica cristalina. Se aprovarem o mínimo de 275, está aqui a caneta, diz o coronelão, o que nos dá a impressão amarga que Julio Prestes - o candidato que não assumiu o poder devido à revolução de 30 - virou presidente na pele de FHC e foi sucedido pelo Zé Pereira, aquele manda-chuva que em Princesa já roncou, como cantou Luiz Gonzaga e como descreve Moacir Japiassu no seu Concerto para paixão e desatino. Aliás, falando em Japi, fiquei impressionado com a coincidência: na orelha do seu romance A Santa do Cabaré, escrevo que a literatura dele é água de corredeira que se solta por vingança depois de muito tempo represado, deixando um rastro de morte e destruição. Pois não foi na Paraíba de Japi que ocorreu o estouro da represa? Vou cuidar melhor das palavras. Fiquei assustado.

INFINITO - Visito a maior praia do mundo. Absolutamente solitária. O dia azul sem par e a espuma do mar lavando a areia ocre, como se a porção Cinderela de Iemanjá, por puro prazer, esfregasse o chão sem se importar com nossa presença. Mesmo com ventinho gelado, caio na água. No primeiro dia do inverno. Em cada ponta da praia, velam as pedras milenares de um Brasil anterior ao Brasil. O pássaro toma altura e cai como flecha na água, para ferir o peixe de morte. Recolhe o que sobra e voa. Faz tudo isso a poucos passos de mim. Pergunto: tudo isso é real? A lua nova que surge no crepúsculo confirma: mais um turno da magia desce sobre a ilha.

18 de junho de 2004

UMA RESENHA DE RESPEITO


O escritor Tailor Diniz dá uma aula de crítica literária na revista Aplauso, editada no Rio Grande do Sul, ao resenhar meu romance Universo Baldio. Nada lhe escapa neste texto que considero perfeito. Tailor Diniz nasceu em Júlio de Castilhos,RS, em 1955. Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria, período em que publicou seus primeiros contos na imprensa local. Reside em Porto Alegre desde 1982, onde exerce a profissão de Jornalista. Entre suas obras, destacam-se: Armadilha do Destino (novela),Crônica de uma Rádio Pirata (novela), Trégua para o Silêncio (contos), O Assassino Usava Batom (romance). Reproduzo a seguir a sua resenha:

"O UNIVERSO DA FOME DOMESTICADA

Tailor Diniz

O mundo de Nei Duclós não é composto apenas por Primeiro e Segundo Tempo - a divisão cronológica por ele determinada em seu novo livro, Universo Baldio. Há contrastes sólidos nessas duas metades, definidas pelo caráter mais factual de uma e o quase substantivamente pessoal de outra. No Primeiro Tempo, Duclós parte de um fato político e social, indo, mais adiante, na segunda parte, excursionar por universo intimista, no qual, numa espécie de autobiografia que se disfarça na pele do personagem Luis, luta, dialoga, convoca seus fantasmas quando está em busca de perspectivas que lhe abram caminho para salvação.
Raduan Nassar, em carta ao autor reproduzida na contracapa do livro, acha que é no Segundo Tempo que a ficção acontece, onde o romance realmente começa. Pode ser. Mas não se pode desconsiderar que é no tempo anterior que Duclós, por meio de uma linguagem acurada que muito lembra o poeta nos seus três primeiros livros, reconstitui de forma magistral o nascedouro de um período de obscurantismo cultural e democrático da vida brasileira. É aí que o autor criaria a dureza dos primeiros anos da ditadura militar no Brasil, trazendo à luz o cotidiano de um grupo de jovens, que expulsos da repressão em Porto Alegre decide se mudar de mala e cuia para Florianópolis. Num tempo em que a Hercílio Luz era a única ligação da ilha com o continente, fundam a República de Itaguaçu antecipando-se assim a Jurerê Internacional e aos empresários gaúchos da construção civil que ainda não haviam cruzado o Mapituba para fincar âncoras nas bucólicas praias do norte de Floripa.
E, nesse período pré-Jurerê Internacional, o país vivia dias difíceis, nos quais os amigos sumiam "como um sinal do que ainda estava por acontecer: o exílio interno dentro do seu próprio país, empurrado para dentro de uma vida que era mais uma luta diária de boxe, sem chance de títulos". O grande mérito de Duclós na primeira parte do livro, faça ele ficção ou não, está em reconstituir o dia-a-dia desse grupo de brasileiros. Ao contrário de outros militantes que puderam se exilar em Santiago do Chile ou Paris, eram jovens sem alternativas e que necessitavam, como recurso de sobrevivência, esconder-se em territórios excluídos dentro da própria pátria.
Entre idas e vindas sobre a ponte Hercílio Luz, vai se desenhando na lembrança do personagem Luís, sobre quem incide o foco narrativo da história, uma Porto Alegre pré-Libelu de passeatas e protestos, a lúdica Portinho das lanchonetes do Bom Fim, do bar da Reitoria, dos cinemas de rua, da Faculdade de Filosofia, território onde a fome não equivalia mais a um inimigo de peso. "Ao contrário, a fome fazia parte do folclore, já tinha sido domesticada pela sua teimosia..." Assim, em meio a reflexões pessimistas e melancólicas, entre infindáveis diálogos que vão da Revolução Farroupilha à reconstrução da metalinguagem, é que se faz o melhor de Universo Baldio, um mundo habitado por jovens exilados dentro do seu próprio país. Um mundo onde transitam figuras de referência da época (Hendrix, Godard, Glauber, Pasolini, Janis Joplin, Cortazar), e a maconha, o ácido e o guaraná com bolachas se misturam aos sonhos comuns de toda a geração, dispersada ou não."

MAIS RIO GRANDE - E como hoje minha terra está em destaque, reproduzo trecho do texto Prognóstico do escritor Eduardo Frizzo, de Santo Ângelo. O talento e a contundência de Frizzo sâo absolutamente brutais, no melhor dos sentidos:

"PROGNÓSTICO
(trecho)
Eduardo Frizzo

(...)Vivemos atolados num sumidouro impregnado de signos, de discursos que pretendem fazer nosso pseudo-arbítrio transitar por terras de um gerúndio eterno, aonde nos é prometido um gozo imensurável, seguido de um prazer descomunal que em parte alguma pode ser encontrado. Tatuam em nossa mente a desgraçada imagem de ser enquanto consumir, de viver mais quanto mais estivermos imersos nas marcas, nas letras e no riso fácil que alguma deidade multinacional outorgou como essencial. Tentam, de todas as formas, assassinar a arte, trucidar a cultura, embalar o cadáver da inteligência e vender seu corpo num funeral funesto, num manjar bento pelo amém das grandes potências e todo o seu praguejar bélico. Tracejam a lenda do ?basta acreditar que tudo dá certo?, a fim de nos empurrar para terreiros platônicos e torpes, irreais por excelência e grau de periculosidade. Moldam o sujeito desde a infância, inculcam a suposta revolta numa juventude burra, fazem a idade adulta transformar sua existência em roldana do capital, e após o rebentar de uma onda icônica que mescla Guevara e Madona num mesmo patamar quixotesco, cospem na cara da filosofia e taxam como louco aquele que vai contra essa engrenagem que cheira a sangue e suor. (...)"
Teremos mais Frizzo nas próximas edições do Diário da Fonte. Dá vontade de publicar tudo, mas isso depende dele. Eis um trabalho que merece ir para o formato de livro urgentemente.

RETORNO - 1. O que me deslumbra na resenha de Diniz é a profundidade da sua análise, a inteligência da sua percepção. O que me arrebata nos textos de Frizzo é a sua radicalidade.Viva o Rio Grande do Sul!
2. Não resisto e comento a cama-de-gato dos chineses. O Diário da Fonte caiu de pau na tal viagem do Lula à China (bem na época que todo mundo achava o tal tour o máximo) pois sabemos que essa grande ditadura apenas concorre, e de maneira predatória, com o Brasil. Agora Lula está se sentindo traído pelos chineses devido à soja. Já estamos sendo traídos há muito tempo: basta ver a pirataria, o contrabando, tudo a céu aberto. E a soja brasileira é mesmo um equívoco: precisamos plantar trigo e não esse insumo da pior indústria de alimentos e do rango para porcos nos países desenvolvidos. Para isso predamos nosso território?

17 de junho de 2004

REGIME "QUASE" AUTORITÁRIO


Para reforçar o texto que publico na revista virtual Nova Cultura, destaco as várias manifestações sobre o regime ditatorial brasileiro, que estão vindo a furo em cartas de leitores e artigos de jornais. A sempre engraçada Danuza Leão, mas nem sempre feliz na sua superdose de preconceitos sociais, fala em regime quase autoritário ao desancar com o forró presidencial (essa manifestação de indiferença num país em colapso). Quase acerta. Estamos em plena ditadura, a mesma instaurada em 1964, que se consolidou com a chamada Nova República e hoje está em vigor com sua carga de repressões. A diferença é que as tropas federais nas ruas do Rio, São Paulo, Teresina, Belo Horizonte não significam um projeto militar, mas a incompetência dos coronéis civis (o estamento de que nos fala Raymundo Faoro) em manipular seus próprios exércitos estaduais.

MOTIVOS - Por que caímos nesta armadilha? No seu clássico O Castelo de Âmbar, Mino Carta esclarece sobre os bastidores da transição entre as duas ditaduras. O chamado Plano, que era o da distensão, e que foi cumprido de maneira capenga, ferido de morte com o episódio do Riocentro, serviria para consolidar o regime. Para isso era preciso dividir. Aconteceu: PMDB (depois PSDB) x PT, o que viabilizou Collor. Ou como diria Glauber em Terra em Transe (pelas vozes de Paulo César Pereio e Othon Bastos: ?Sua irresponsabilidade política, sua irresponsabilidade política, sua irresponsabilidade política, seu anarquismo!? Num capítulo inesquecível, ditado mais pelo extremo talento do que pela inevitável desesperança, Mino fala sobre o eterno retorno, a eternidade desse imbróglio onde nos metemos. Mudança virá, diz Mercúcio Parla, mas enquanto isso estamos envolvidos nessa eternidades de roubalheiras e violência (não com essas palavras). Mino guarda em seu estojo de âmbar a síntese da sua maestria com a linguagem. É um privilégio para o Brasil contar com um escritor brasileiro que tinha tudo para ser um escritor italiano no exílio. Mino avisa que é brasileiro por opção e não por contingência. Ama o país a ponto de bater nele sem dó diariamente. "Temos de deixar de ser tão brasileiros", costumava dizer, para reforçar sua idéia de que deveríamos abandonar as práticas que fazem o terror do país onde vivemos e adotar novas posturas, que nos desamarrem. Não que devamos ser estrangeiros, mas que precisamos abandonar o Mal que nos é imposto e que encarnamos sem mesmo sentir. Com Mino aprendi a olhar melhor minhas práticas profissionais. Vi o quanto era dependente de opiniões e ordens alheias, coisa comum num país escravagista. Soube como me desvencilhar de muitos nós e também respeitar o espaço poderoso em que os Outros se movimentam. Eu costumava achar tudo uma grande porcaria. Descobri que estava errado, ocupava uma posição cômoda, tipicamente brasileira, irresponsável. "Tudo (ou quase tudo) no Brasil é mistura de QI baixo com sacanagem", dizia também. O que é uma frase absolutamente certeira.

MOITA - Considero o mal maior do Brasil a síndrome da moita. Pouco se fala a sério sobre os contemporâneos. Não há coragem suficiente para as pessoas saírem de seus redutos e em campo aberto dizerem o que pensam. Só, claro, quando o objetivo é diminuir os outros, ou incensá-los, o que dá na mesma. Acho que cada pessoa, dependendo da fase em que está da vida, é visto de maneira diferente pelos que o cercam. Por isso uma pessoa real sugere tantos personagens diversos. O Conde Holderbaum, por exemplo, me telefona falando na inspiração poderosa que o criou, a partir de uma simples visita dominical. ?Depois que virei Conde, fiquei impossível?diz Virson. O Artista, que a todos encanta por ser essa pessoa gentil e carinhosa que é o Luiz Acácio de Souza, mostrou para mim sua principal virtude: o de escutar profundamente os outros, o que é um aspecto raro de qualquer pessoa hoje, época de monólogos simultâneos e de muita ansiedade. O Escritor, que também é Cineasta, mostrou com alegria seus projetos, que demonstram o quanto é importante a obra dele, Tabajara Ruas, um trabalho arduamente conquistado numa vida de lutas em três continentes (América, Europa e África). Taba foi exilado político na Dinamarca, onde lavou hospitais, foi arquiteto em São Tomé e Principe, onde projetou prédios públicos, estreou na literatura em edição portuguesa com seu clássico A Região Submersa (que li ainda datilografado), é autor de mais seis ou sete livros, e prepara novo filme, depois do sucesso de Netto perde sua alma. Lembrando o poeta Bertold Brecht: assim passei o tempo em que me deram para viver sobre a terra - dedicado às palavras, que encarnam o Verbo da Criação, espalhado em tantas criaturas do planeta Terra.

16 de junho de 2004

PONTES NO ARQUIPÉLAGO


Toda casa aqui na ilha é o refúgio de um sonho. Elas encarnam décadas de delírio, jornadas imensas de suor, cargas inomináveis de talento, vestígios de tempos sempre em eterno retorno. Algumas se debruçam sobre dunas, outras sobre o mato, ou sobre águas aparentemente traqüilas, a advertir naufrágios. Todas possuem pedras, estão rodeadas de plantas e nelas pontificam pessoas isoladas ou casais e famílias que faíscam suas vidas em iluminações intermitentes, lançando pontes para todos os lados.

RETRATOS - Não procuro nada, apenas a presença pessoal de amigos sumidos, que hoje me recebem com sorrisos largos e fortes abraços. Todos sugeriram personagens dos quais abusei em histórias que hoje correm mundo e eles se divertem com o retrato nem sempre fiel que fiz das nossa juventude. À beira do fogo, entre cafés e peixes, projetos e lembranças, eles estão solidamente encravados em vidas produtivas e sempre sonhadoras. Admiro essa parte da minha geração que tornou-se pura cultura por dever de ofício e que hoje distribui graças em manifestações as mais variadas, de livros a telas, de revistas a jornais, de poemas a novelas, de romances a cartas. Fizemos história sem fazer muito barulho, pois nem todos nós estamos no front das atenções. Nos recolhemos em vidas cheias de luzes, que nem sempre chegam a conhecimento de um público maior. Mas existe ao redor de cada um a devida admiração. O Brasil é assim, por isso somos os melhores. A grandeza cultural se espalha em rede, infiltra-se em paredes impenetráveis, pinga em grutas ocultas, brilham ao sol e à lua, ciscam estrelas onde outros vêem apenas seixos pobres e perdidos em margens sem atrativos. Somos um mar gigantesco de criações, e nesse roldão somos levados por novas gerações cobertas de desejo e ardência criativa. Estou para receber dois novos romances de jovens escritores. Me convidam para gravar meus poemas, querem ler meu romance, quem sabe dele sai um roteiro, um filme? Teria Luis, meu personagem de Universo Baldio, profetizado de verdade o filme sobre sua vida?

PEPITAS - O Escritor me conduz até o trapiche que fica em frente à sua morada majestosamente abraçada às pedras. Fala de suas histórias e de um naufrágio num pequeno veleiro, numa tarde quente de verão. Vidas intrermináveis nos separam no tempo. Mas continuamos, milagrosamente, os mesmos, apesar de sermos diferentes, como sempre. No dia seguinte, vislumbro vasto horizonte ocupando a varanda da casa maravilhosa do Artista, no lado oposto da ilha. Ele mostra pepitas da sua lavra, produtos que deslumbram pela intensa criatividade. Aos 50 anos, vive ao lado da mulher que espera um novo filho. Começa de novo a vida cheia de força. Por e-mail, recebo as graças de pessoas diversas. Sylvia Leite defende seu mestrado. Marcelo Min manda um alô cheio de promessas. Gim Tones reclama do excesso de zelo à bossa nova. Toth sente saudades e pergunta pela revista que inventamos e ainda não foi ao ar. Luciana volta de uma viagem telúrica à Bahia. Recebo tudo por aqui mesmo, um pouco afastado dos jornais, apesar de seguir o forró presidencial, as abobrinhas da economia, a cama de gato dos chineses. Quem se imnporta com tanta mediocridade, se temos algo maior a fazer, cuidar para que os séculos que estamos atravessando não passem em vão e deixem como legado apenas o que nosso coração mandou diante de tanta miséria e tanta luta?

RETORNO - 1. Visitem e leiam o site da genial revista cultural de Michael Kegler, da Alemanha, que publica resenha de Urariano Mota sobre Universo Baldio e ainda um artigo meu sobre ditadura civil. No endereço: http://www.novacultura.de/
2. Gim Tones publica mini-resenha na revista Playboy de junho sobre meu romance, o que serve de álibi para quem quiser comprar a revista (que tem preço salgado de 9 reais e 90). "É para ler o Gim Tones", diga na hora de corar diante da caixa.

14 de junho de 2004

NO CASTELO DE HERR HOLDERBAUM



Preciso cruzar mais de cinquenta quilômetros de imensas propriedades coroadas de lagoas, montanhas cobertas de mato e algumas de tetos nevados, vales e praias, antes de chegar ao núcleo do refúgio deste território oculto, onde mora Herr Holderbaum num castelo tão imponente quanto simples, um paradoxo que define a vida deste ermitão, colecionador de identidades que guarda em inúmeros aposentos, que vai me mostrando aos poucos, conforme se desenrola nossa conversa ao pé de uma lareira, onde as brasas esquentam um pedaço de pedra lisa. Lá tornam-se digeríveis pizzas e pinhões.

PAISAGEM - Antes que a lenha torne-se brasa, o conde me leva para o alto de uma duna e me mostra o magnífico mar banhando duas ilhas enormes. A praia descortina-se em várias desdobramentos. Tudo está vazio neste inverno de tímido sol. O vento bate em nosso corpo crivado de balas de guerras antigas. Ele não aponta mais o horizonte inalcançável. Coloca as mãos para trás e me conduz até seu mais alto mirante. O chão de areia grossa e amarelo-branca torna o momento ainda mais estranho. Tudo parece desmoronar enquanto o dia se mostra gigantescamente novo, tão novo quanto no dia em aqui chegamos pela primeira vez, vindos de um vale úmido e de um casarão sinistro. Éramos naquela época náufragos de uma batalha perdida. Mas toda essa memória já não serve para o recluso dono do castelo. Descubro que convivi com sua verve apenas uns quatro anos e que ele faz parte de algo maior a qual não consigo alcançar agora. Tento impressioná-lo deitando conhecimentos sobre civilizações perdidas, mas para quem viu pessoalmente Miles Davis tocar com Airto Moreira num bas-fond de Nova York, acho que nos anos 60, nada pode impressioná-lo. Ele tem o passo prudente de Cidadão Kane antes de dizer Rosebud. E fala do tempo em que mergulhou nas minas de ametistas. Abordamos então menos fantasiosamente a grande civilização da pedra construída pelos gigantes e que tornaram o que chamamos hoje de Brasil um jardim de delícias. Vejo as cataratas escondidas no mato em programas de viagens na televisão. É tudo certinho demais. Foi tudo colocado ali, de propósito. Digo isso para o conde. Ele olha para a fogueira. No fundo, o som de um exercício de violão chega aos nossos ouvidos.

ETERNIDADES - Ele abre a primeira porta e um desconhecido virtuose prepara-se para a glória sem fazer alarde. Abre outra porta e alguém toca violino. Mais adiante, um colecionador de conchas levanta os olhos. Além, tecedeiras compõem um tapete gigantesco, cujas dobras tomam conta já do teto. Pergunto por que e para que tudo aquilo. Ele responde que dedica-se a incentivar eternidades e que cansou da precariedade de um país em sobressalto. Costuma reunir amigos de todos os calibres para grandes ágapes de pizzas feitas uma por uma, no maior capricho. Aprendeu pela vida, entre outras coisas. Fala de prêmios perdidos, de vidas passadas, de pessoas mortas, de duendes e saltimbancos. Disfarça-se em algo conhecido para não me assustar. Mas pressinto que toda aquela herdade, não só o quintal do castelo, circundado por um fosso, faz parte de um mundo perdido. Eu só cheguei ali porque não me acostumo à realidade do que vejo, e não me conformo que a percepção que tenho dos amigos. Sempre acho que existe algo muito maior por trás de cada gesto. Dizem para mim: você idealiza demais as pessoas. Mas olho para o alto e vejo um campanário. Existiria uma capela oculta no castelo? Lá o conde faz suas orações, ao som de cantos gregorianos.