30 de novembro de 2004

NA TERRA DOS APELIDOS


Chulé falou sobre o Bolha (professor de Química), o Buda e o Roxo (ex-diretores), Mutuca e Bituca (alunos lendários). Colocamos na roda o Queixinho, o Pipoquinha, o Strops. Mais tarde, na mesa do café, Torico e Cabrito nos derrubaram de rir com histórias do Gaguinho. Chulé, também conhecido como Irmão Arno, faz questão do apelido, tanto que reclamou com Tabajara Ruas, presente ao encontro, por tratá-lo com o nome oficial no seu romance Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierres, que será filmado brevemente. O veterano professor nos recebeu com o entusiasmo dos seus 79 anos, o mesmo que nos encantava quando foi nosso professor de História na faixa dos 30. No pátio do Colégio Santana, que deslumbra pela beleza e a excelência das instalações, e que ainda permite belíssima vista para o rio Uruguai e sua ponte sólida, ele demonstrou ser o mesmo de sempre, e ainda de quebra nos presenteou com uma pequena e significativa placa de agradecimento à nossa contribuição a cultura, pois somos dois dos 19 escritores do Santana, colégio que neste ano celebra seu centenário.

A MEIA MARATONA - Essa só poderia acontecer em Uruguaiana. Organizaram uma meia maratona, com concorrentes intrépidos, todos loucos para ganhar a corrida. Soltaram a turma pelas ruas da cidade e, como tata-se de uma distância razoável, o percurso incluía o subúrbio, mais exatamente no cruzamento de uma linha de trem, que costuma trafegar com seus inúmeros vagões durante o dia. Pois lá estavam os primeiros da fila, certos que o troféu já estava no papo, quando foram surpreendidos por interminável comboio, que deixou todo mundo na mesma, suando de impaciência diante do imprevisto, jamais imaginado pelos organizadores. O município é uma terra de atletas. Há os míticos, como o goleiro Eurico Lara, que tem seu nome imortalizado no hino do Grêmio (com o indevassável Lara no gol, o Grêmio jamais seria rebaixado); ou o Gessy, outro craque local que brilhou nos campos de Porto Alegre. Mas há uma gigantesca massa de atletas que ficaram por lá, lutando pelas cores do Sá Vianna (verde e branco), Uruguaiana (preto e amarelo) ou o Ferrocarril (vermelho e branco). Gaguinho, muito magro, meio torto, acompanhava o Sá Vianna pelas andanças, que volta e meia enfrentavam os argentinos. Ouvir Torico narrar com detalhes um jogo memorável contra um time de Libres bom de bola é um privilégio nesta terra de narradores. Eles eram muito bons, diz Torico. Tinham os Hormiga, conhece os Hormiga? craques. E o técnico era o pai dos Hormiga, enorme, forte, muito brabo. Pois não é que o Gaguinho resolveu apostar cem pilas com os caras? O problema é que o juiz escalado não compareceu e sobrou para Gaguinho, que apitou o jogo. Foi um inferno. Os correntinos não davam refresco. O exímio jogador brasileiro da fronteira que é Pedro Barzoni fazia misérias, todas sem resultado. Gaguinho não teve dúvidas: como estava arriscando o patrimônio, apitou um penalty inexistente que, claro foi aproveitado integralmente por Barzoni. Os adversário vieram para cima do juiz, especialmente el gran Hormigón, que tinha caído na arapuca mas não podia fazer mais nada. Voltaram aliviados de cem paus para o outro lado do rio.

PAPAGAIO - O escritor Ricardo Duarte, de Uruguaiana, vai lançar um livro de História e literatura em três volumes que tem apelido no título. Trata-se do monumental Perico - A Sociedade Rural do Prata e o Mundo Desenvolvido, que reúne, no vasto período de 500 anos, a civilização do pampa. Quem somos? pergunta Ricardo. Ele procura responder nesse trabalho, que consome muito suor e pesquisa. Por que Perico? Ricardo esclarece: "Perico, em castelhano, significa papagaio, apelido aplicado a alguém muito falante. Pode ser um contador de histórias - o que pretendo aqui - e assim eram tratados os estafetas levando mensagens dos comandos das tropas, também chamados, na linguagem do pampa, de lenguarás. Mais precisamente, perico era quem comandava as quadrilhas francesas, ou as country dances inglesas nos bailes de salão do século XIX. Nesses salientou-se Pedro José Vieira, português nascido em Viamão, que em 1811 proclamou a independência da Banda Oriental. Hábil bailarino, recebeu codinome de Perico El Bailarin e se lhe atribui a autoria da dança folclórica gaúcha El Pericón. De todas as figuras analisadas neste trabalho, nenhuma mais apropriada que Perico para sintetizar a idéia da sociedade do pampa. Nele se misturam novamente na América as raízes separadas na Península Ibérica e, sem ser rico, ou poderoso, sem mesmo um grande nome - até o momento - andejou no solo americano em companhia de mais de um herói, caudilho, ou vulto histórico".

LIBRES - Anderson Petroceli ( o melhor guia e o melhor mate da cidade) faz a gentileza de estacionar em frente a grande igreja de San José, em Paso de Los Libres. Entro e dou de cara com vasta catedral, que no momento realizava um batizado. Nunca tinha entrado lá. Conheci também La Costanera, a avenida de beira-rio trabalhada para o passeio e o lazer, coisa que não há no nosso lado, pois Uruguaiana praticamente fica de costas para o Uruguai velho de guerra. Mas o melhor de Libres (de onde não se permite atualmente comprar nem carne nem queijo, que são vetados na aduana, o que é um paradoxo nesta época em que tanto se fala em Mercosul) é, sem dúvida, a vista que temos de Uruguaiana. Parece uma metrópole européia, vista assim de longe, mas é puro Brasil. A vista maravilhosa esconde o que a cidade tem de mais preocupante: muita miséria neste país sem lei, muitos mendigos, violência presente. Ando brevemente pelas ruas da minha terra. A canícula não nos permite aprofundar a caminhada. Qualquer trajeto significa baldes de suor. A cidade mantém sua grandeza, apesar dos problemas. É um Brasil que resiste. Projetada e construída pela engenharia militar e o iluminismo farroupilha, é também uma cidade de escritores. Faço parte dessa comunidade, com muita honra, que tem no topo Alceu Wamosy, Gonçalves Vianna e J.A. Pio de Almeida.

RETORNO - Começo a ler Pampa em 23 e já recomendo para os leitores do Jornal do Comércio, de Porto Alegre, graças ao colunista Jaime Cimenti. Estou ainda no ano anterior à guerra, em 1922, num bolicho perdido, ameaçado por felinos "cevados", que gostam de carne humana, como nos explica o romancista e poeta Bira Tuxo, o Ubirajara Raffo Constant.

28 de novembro de 2004

GRAVETO QUEBRA AO SOL DA MEIA NOITE


Os espíritos guerreiros fazem um aglomerado parecido com os tufos de árvores iluminadas pela lua cheia. Vislumbro a brasa de um cigarro e o volume mais escuro das montarias. Não há como ver os rostos apesar do dia limpo em pleno começo da madrugada. Mal ouço os cascos e alguns pigarros. A lenta viagem cruzando o pampa me transporta até o grupo. O olhar fica preso na janela do ônibus, mas o vidro não é parede para a vontade de saber o que está acontecendo. Descubro então, pelo barulho de um graveto quebrado, o local onde há uma reunião entre adversários, juntos diante do imenso tombo da noite.

MILAGRE - Vozes contidas pela pressão do momento repassam os acontecimentos. Não há mais guerra no Outro Lado. Todos estão um perante o outro, com suas adagas, cartucheiras, chapéus, cavalos. Onde não há mais luta nem sangue, resta o resgate. O assunto é o estrondo que acometeu a cidade dez anos antes. Espíritos desse campo assombrado pela visita que faço a Uruguaiana sussurram e cada um traz o testemunho de alguém que viu o cogumelo de fogo subindo pelo céu azul da cidade, em 1994, perto dali. Nas mesas que existem nas calçadas, nas esquinas de conversas do território que ainda cultiva, apesar dos conflitos evidentes, a paz na diferença, as narrativas sobre aquela explosão fazem parte do tema dos guerreiros encobertos pelo dia noturno. Eles reproduzem as falas sobre o milagre que foi a sobrevivência do atual patrono da 30a. Feira do Livro da cidade, que começou na última sexta-feira dia 26. O poeta Ubirajara Raffo Constant está elegante na sua roupa clara, seu cabelo caprichado, sua voz que entoa Castro Alves com o tom da fronteira. Ele lança seu romance Pampa em 23, que já nasce clássico e enche os olhos de diretores de TV, secos por História. Peço-lhe um autógrafo entre frases que ele mal ouve, seqüela daquela explosão que destruiu sua casa, episódio que não comenta, como um veterano de guerra que evita o toque de clarim porque sabe o quanto de vidas custou cada nota. Os vidros do apartamento tremeram, comenta um. O repórter Chico Alves (homônimo do rei da Voz que até chegou a ganhar um dia direitos autorais por isso, o que é pura verdade) foi o primeiro a chegar, diz outro, e irradiou os acontecimentos. Vi Bira Tuxo (que é esse o apelido do patrono querido) sair do meio da fuligem, lembra Tabajara Ruas, que estava vendo televisão quando assistiu ao milagre ao vivo. Tudo isso é comentado pelos guerreiros da sombra e eu escuto abismado, a pé, olhando para cima os cavaleiros de nenhum rosto. Eles me olham com deferência. Algo aconteceu agora, e não mais dez anos antes. Um tropel vindo de longe vem me anunciar o inesperado.

ATENTADO - A viagem continua irresistível campo adentro e o ônibus desliza num chão de veludo. O olhar se debate no vidro como abelha que tenta voltar ao ninho. Mas continuo lá no miolo da roda, de corpo inteiro, enquanto sobe o balão de luz branca para demarcar o zênite. Chega então o mensageiro. Apeia para me olhar frente a frente. Inclina-se em minha direção e me reporta o covarde atentado que o jornalismo brasileiro sofreu em São Paulo. Tenho um sobressalto! Atacaram Marcelo Min, pelas costas, com uma barra de ferro! Pergunto, desesperado, se o Olhar Absoluto se encontra fora de perigo. O mensageiro balança a cabeça dizendo sim, mas continuo em pânico. Amarrado pelo hábito ao computador, me sinto desolado naquele território nu, onde os lutadores continuam de prontidão, apesar do permanente concílio que promove, de maneira precária, o entendimento. O estrondo dez anos antes e o barulho da barra de ferro vibrado pelo mastodonte na mais privilegiada cabeça do fotojornalismo brasileiro me deixam fora de mim. Sou sacudido pela memória e pela notícia. Imediatamente me vem à mente o primeiro telefonema que dei para Marcelo Min convocando-o para reportar o chão de fábrica.Fiz uma provocação: quero ver se me revela o que está emergindo nos porões das indústrias, no mundo produtivo brasileiro sucateado pela predação pirata internacional. Marcelo ri para seu novo editor e futuro amigo pela primeira vez. Ele topa, ele está pronto. Lembro Thais Rebello, diretora de arte, dizendo que Min dá raiva pois a vontade é publicar todas as fotos que tira de qualquer evento, pois uma é melhor que a outra. Ele não erra um clic, diz Thais. E lembro a ética de Min me apontando inúmeros talentos que eu desconheço, tornando-se parte de um grupo poderoso de olhares de denúncia e de extrema iluminação sobre o Brasil em guerra civil. Queria passar-lhe um telegrama, digo no meu delírio. Mas meu olhar ainda se debate na janela do ônibus.

VIGÍLIA - Chegamos no amanhecer agradável de um dia claro de primavera, e fomos então visitar Miguel Ramos, ator e amigo de décadas, que nos brinda com um chimarrão. Ele fica feliz como menino diante dessa novidade, nossa presença naquele rincão eterno. Naquela noite, Miguel me falava da importância do amor para o país perdido na violência. Há incúria demais, barbárie demais, me diz me olhando fundo. Precisamos de amor, porque tudo se resume ao amor. Em Uruguaiana, penso eu, só tenho amigos. Pessoas que não pensam da mesma maneira, que se digladiam o tempo todo com palavras e são companheiros de jornada. Se espicaçam, se cutucam, se desafiam, mas gargalham todos ao mesmo tempo. Falam em eleições, em gestão, em ruas, em prefeitura. Nas calçadas largas, as pessoas recolhidas em sua solenidade digna te cumprimentam quando te reconhecem, e quando nada sabem de ti aguardam um gesto para só então te olhar nos olhos. Há respeito no andar, nenhuma arrogância. E um rio de afetividade me cerca como um grupo de cavaleiros que um dia fizeram História. A lua cheia continua presente na cidade. As cicratizes estão abertas. Mas há admiração, há reconhecimento e escritores de todas as palavras confraternizam. Chamam isso de evento. Eu digo que é magia. Não fosse o estado atual de vigília e aprofundamento das sombras que seu reúnem no pampa para tecer comentários sobre os acontecimentos, haveria retaliação. Uma vanguarda seria despachada, de trem (como se trem ainda houvesse) para São Paulo. Montariam guarda no hospital onde Marcelo Min foi tratado. Facas brilhariam diante dos flashes. Rostos impassíveis estariam olhando para possíveis inimigos. Fomos convocados, diriam. Somos solidários ao repórter guiado pela coragem.

RETORNO - Viajei a convite da Prefeitura Municipal de Uruguaiana. Tive o prazer de autografar meu romance para o prefeito Caio Repiso Riella, homem público que coloca a cultura em destaque na sua administração. Fico imensamente agradecido ao secretário da Cultura, Bebeto Alves, e à sua equipe, Ricardo Peró Job, Marilda Peró e a todos os profissionais reponsáveis pela Feira do Livro, que há 30 anos é realizada na cidade. Nas próximas edições, o Diário da Fonte estará reportando algumas das alegrias dessa visita, onde dei palestra e autógrafos e fui cumulado pela generosa afetividade dos conterrâneos. Conheci novos amigos e convivi por alguns dias com gente da minha mais alta consideração, como o poeta Luis de Miranda, Rubens Montardo Junior, Anderson Petroceli (que me levou a Libres), e fui agraciado com vasto espaço nos jornais locais e também na rádio, graças a Miguel Ramos (com seu ótimo programa Contraponto, na Líder) e ao jornalista Everaldo Jacques (programa diário na São Miguel). Além, é claro, da conversa amiga com vários escritores da terra como Colmar Duarte (com lançamento de belíssimo livro de poemas pela Editora Movimento, que vou comentar), Vera Ione Silva (que está de volta à terra), Fernando Pereira Júnior (colega e amigo de longa data), entre muitos outros.

24 de novembro de 2004

TOM CAVALCANTI ACERTA NO VEIO


A comédia é a arte de provocar o riso por meio de uma atuação totalmente fundada na seriedade. Buster Keaton jamais movia uma linha do rosto. Chaplin fazia um personagem que se levava a sério, por isso era engraçado. Lição jamais aprendida por Jim Carrey, que debocha da própria performance, ou seja, ri no nosso lugar, por isso não é engraçado. Em O Infeliz, na TV Record, Tom Cavalcanti acerta no veio ao fazer uma paródia de O Aprendiz, onde denuncia, sem babaquice, a essência do papel do publicitário Justus: o de implantar no Brasil escravagista o escravagismo do mundo corporativo americano. O Infeliz resgata o poder da lucidez popular, que está em baixa no Brasil, pois o povo foi eliminado e no seu lugar foram colocadas contrafações em tudo, na comédia, na música, nas atividades profissionais.

EXCESSO - Fazer no rir no Brasil ainda se baseia nos formatos antigos do rádio. O que impera é o excesso: o homossexual estapafúrdio com o Seu Peru, de Zorra Total; o seu Creysson, no Casseta; o travesti na Praça da Alegria. Um comediante como Seinfeld é inimaginável no Brasil, um cara que faz comédia sem se fantasiar. Tom Cavalcanti acerta porque usa o máximo de contenção para destacar o excesso do personagem de Justus. Sua interpretação pega o que a origem tem de excessivo: o topete, a arrogância, a megalomania, a frieza, a violência. Tom fica sério o tempo todo, o que mata todo mundo de rir. Ele repassa o riso para os espectadores, fazendo com que sua audiência vá para o teto. E Justus torna-se um personagem da comédia ultrapassada, pois no fundo é uma caricatura como as outras, que existem nos programas humorísticos. Fica assim com algum sentido a migração de Tom para a Record. Na Globo, ele estava confinado ao que fez sua fama, a comédia escrachada construída em Fortaleza, terra de grandes comediantes. O seu programa ainda não tinha acertado, pois é difícil vê-lo como um anfitrião comum, desses que trazem as figurinhas carimbadas. Mesmo seu concurso de anedotas é fraco. Mas com O Infeliz, Tom alcança o mais alto nível do humorismo nacional. Deixa a anos luz os enganadores do Casseta & Planeta, que se baseiam inteiramente nos preconceitos e no horror ao povo. O povo foi substituído em todas as instâncias. A música country brasileira (filhote da pior música mexicana e que, de quebra, veste chapéu texano) expropriou a música caipira. Os atores que fingem ser feirantes ou pescadores colocam no lugar do povo a pseudo-aristocracia da classe média. E existem ainda os protótipos, como o mineirinho esperto, o gaúcho que insistem em provar que nada tem a ver com a virilidade (o que causa náuseas no Rio Grande), o professor fajuto, a estudante gostosinha.

ESCOLA - A educação, único caminho para denúncia da mediocridade que assola a mídia, é ridicularizada até o osso. No programa do Enjôo Soares, sempre tem um quadro em que ele reproduz as bobagens escritas por estudantes. A exceção é colocada como regra, e intelectual é nome feio em todas as instâncias. Parece que as pessoas deveriam fugir da condição de intelectual. É essa aversão ao conhecimento e à seriedade que faz com que os grandes pensadores dos nossos dias dificilmente apareçam no vídeo falando alguma coisa. Pelo menos, na chamada TV aberta, que eu considero a verdadeira TV fechada. Há ainda a estética de bordel, de que nos fala Luis Fernando Veríssimo. O desfile de lingerie, do qual o Gilberto Barros abusa na Band (mas existe em outros canais) nada mais é do que exposição pública de carnes. A coreografia de É o Tchan (que, para compensar a genialidade do quadro o Infeliz, apareceu ontem no programa de Tom Cavalcanti) revela a sexualidade a serviço da baixaria, com homens e mulheres imitando movimentos sexuais ridículos. Fale contra isso e será alvo do pior xingamento, o de moralista. A direita usa esse subterfúgio: toda vez que o pensamento progressista faz uma denúncia, é tachado de moralista. O moralismo foi apropriado pela direita, o que é uma tragédia. Como dizia o outro Tom, o Jobim, Vinícius de Morais é plural (plural de moral, Morales). O poeta como criatura moral é o feixe de luz que deve inundar a nação, erma de soberania, entregue à sanha dos assassinos da consciência.

23 de novembro de 2004

CARTAS QUE ILUMINAM

Uma carta chega para espantar as sombras. Quantas vezes não aconteceu isso? Lembro da caligrafia da minha mãe, me trazendo de volta o que me formou, com aquele verve que tornava a Dona Rosinha uma das pessoas mais queridas de Uruguaiana, a terra que volto a visitar neste próximo fim-de-semana, em mais uma Feira do Livro da cidade. Outra carta do meu pai, emocionado por eu ter escrito uma carta exclusiva para ele e que sempre se despedia com a frase do pai, amigo certo, que é uma expressão muito usada no Rio Grande, terra da solidariedade e da franqueza. Lembro também as muitas cartas que recebi de Caio Fernando Abreu, que sempre me colocava a par do que acontecia na vida dos escritores da nossa geração. Foi Caio quem me levou pela mão, junto com Juarez Fonseca e Cláudio Levitan, para o Instituo Estadual do Livro/RS, onde estreei com meu primeiro livro, Outubro. Agora é a vez de Cláudio Levitan novamente, que me envia algumas palavras de ouro:

MILONGA - "Nei. Ainda estou zonzo com tanta emoção. Aquela tarde maravilhosa em Porto Alegre. A feira do livro sempre é premiada com muita chuva, mas tem dias de sol e brisa que a tornam o lugar mais lindo do mundo! Foi justamente o que ocorreu no teu dia. Que linda tarde de primavera acolhendo nosso encontro. Saí de lá feliz por reencontrar amigos de tanto tempo atrás e de te ver o mesmo, o sempre poeta cheio de melancolia e humor!! Não protelei a leitura do teu Universo Baldio, já saí lendo ali mesmo no ônibus e fiquei com ele todos esses dias sorvendo cada parágrafo. Cara!! Que maravilha um poeta tornar-se romancista! Tudo é poesia e tudo é história. A vida toma uma outra dimensão e já me veio uma angustiosa espera pelo novo livro. Conta de ti, fala de ti, deixa tua mala/alma rolar ladeira abaixo com suas folhas voando voando como teus pássaros em liberdade plena, com teus angustiosos debates internos sobre as escolhas e nos permite acompanhar teu deleite aos sorver palavras e pensamentos! Na primeira parte de teu livro (o primeiro tempo), lembrei-me do caio que falou daquela mesma época em seus livros sob uma ótica tão dilacerada e corajosa, com seu olhar castanho escuro, e te senti parceiro daquelas viagens, mas transitando com outra melodia igualmente dilacerante sob teu olhar azul claro. E senti saudades de outros livros teus sobre este mesmo período. Saiu com tanta precisão e humor que reviver aquele tempo foi um enorme prazer. Quando iniciou o "segundo tempo", descobri um outro nei, cinematográfico, em que a fantasia não vem para aliviar mas para reconstruir a vida. O tempo não é obstáculo para a palavra. A história é fantástica como todo o pampa, e como a vida de uma pessoa. Pura poesia. Emocionante. Tenho falado a todos, leiam o Universo Baldio, é uma milonga falando sobre o Brasil, sobre São Paulo, o sul do Brasil, sobre o interior do brasileiro. Cara, gostei muito!!! E gostei muito de te ver com o mesmo sorriso gostoso entre divertindo-se com tudo e consigo mesmo, mas dolorido com a tragédia geral. Há sempre esperança nas tuas palavras. E é isto o que vale" (Claudio Levitan).

VIVÊNCIA - Tudo é representação e linguagem. Vivemos para dar nosso testemunho, para incluir os personagens da nossa vida. Para que serve a literatura? Para que nada se perca, e todos os territórios palmilhados tenham existência real para os contemporâneos. Convivemos com muitas pessoas e a maioria delas desconhece o que realmente somos, e isso acontece com cada um de nós. Costumamos guardar pessoas em gavetas de percepção. Mas uma visita, uma conversa, uma carta rompem a barreira e nos despejam na praia habitada pelos pássaros de múltiplos acontecimentos. O tempo se esvai como areia e temos, como disse Drummond, apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Num almoço com Juarez Fonseca (onde recontatei aquela afetividade que nos encanta) descobri seus inúmeros projetos para livros, ele que passou a vida inteira escrevendo sobre cultura brasileira. A cultura somos nós, seres datados que revelam nos livros seus segredos e aventuras. No livro A Construção das Ruínas, que Carlos Eduardo Caramez lançou recentemente, descobrimos esse sentimento de exclusão que nos mortifica. Mas sua poesia resgata iluminações das sombras. Num jantar reencontro Uda, o mítico artista da fotografia Leonid Strelaiev. Mal nos cumprimentamos e começamos a conversar, como se não tivesse passado vinte anos, nós que compartilhamos tantas conversas e viagens. Tudo cabe no paiol, de imagens e à noite, na cervejada, reencontro Olívio Lamas, outro grande fotógrafo que está expondo seus trabalhos numa galeria portoalegrense. É importante o registro de todas essas vivências, pois o que fazemos será um dia lembrado como a época em que não deixamos de lado o coração. As pessoas são cartas ao vivo, que nos iluminam com suas presenças e a alegria de estarmos sempre presentes.

21 de novembro de 2004

CELSO FURTADO, ESCRITOR, PRESENTE


Demorei um pouco para falar da passagem do Mestre, porque vislumbrei o destampe provocado pela sua morte, quando uma enxurrada de besteiras avassala o país com todo o tipo de frieza e indiferença e falta de compostura. Apropriar-se de uma biografia como esta faz parte da luta política pelo poder. O governo vangloria-se, com declarações falsas, da proximidade com a figura ilustre. Chovem textos sobre o grande economista que se foi, o intelectual sem par. Prefiro guardá-lo no coração e na cabeça como um escritor, que merecia ganhar o Nobel da Literatura, segundo Eduardo San Martin. Economista é o Delfim Netto, o Paulo Nogueira Batista Jr., a Maria da Conceição Tavares. Intelectual é o Antonio Candido, o Roberto Schwarz. Celso Furtado é mais. É o autor de textos fundamentais do Brasil soberano. E por ter sido um dia expulso do País, apesar do bem que sempre fez à nação, é um dos nossos heróis da Pátria.

CONTOS - Os magníficos Contos da Vida Expedicionária, que inaugura sua autobiografia, publicada em três volumes pela Paz e Terra, são representantes da mais alta literatura brasileira. São totalmente calcados na sua experiência como integrante da FEB na Segunda Guerra, mas tem o toque do gênio, do criador, que começa uma história assim: Pode-se fazer um exame de consciência no curto período de um cigarro. Ou capaz de traçar um personagem dessa maneira: Mário levantava aquelas mãos grandes, que me pareciam complicadas como bordados antigos, e de dentro do seu macacão enodoado de graxa e malcheiroso queria me explicar certos aspectos sutis da decomposição italiana. São instantes magistrais do talento, tanto o mecânico intelectual, o soldado negro que vingou a morte de uma inocente, a mulher que o narrador defende da ira fundamentalista, e o tenente Cláudio, descrito assim: Era evidente que o Cláudio sofria dessa doença, que tem certa gente refinada, de pôr a cabeça para trabalhar irresponsavelmente, como um catavento. Quando li esses contos, neste ano, fiquei impressionado como eu desconhecida um escritor tão importante da literatura brasileira, pois colocava Furtado nas gavetas que me impuseram e que era sugerida fortemente pela sua biografia. Mas já tinha lido seus textos sobre globalização, que , como tudo o que escreveu, tem o perfil de obra clássica (aquela que merece ser estudada em classe, como ensinam os historiadores).

SONHO - No capítulo seguinte a esses contos, A Fantasia Organizada, Furtado conta como migrou da literatura e do Direito para a economia, mas levou na bagagem esse ofício que nos assalta numa curva da vida, o de escrever sempre e de legar aos contemporâneos e pósteros a carga bruta e esclarecedora da nossa presença sobre a terra. Portanto, em vez de seguir os necrológios de Celso Furtado, é melhor ler seus textos, que nos enchem a alma de orgulho e luzes, porque é do Brasil que trata, no mundo que nos cerca, e é do Brasil do futuro que cuida em projetar, planejar, descrever, sonhar. Dizem que o Brasil ficou mais pobre depois de sua morte. Como pode uma coisa dessas? Depois da vinda de Celso Furtado entre nós, ficamos muito melhores. Ele se foi, vítima de um ataque cardíaco depois de se manifestar sobre a demissão de seu indicado, Carlos Lessa, ao BNDES. Morreu no front, o expedicionário da palavra que nos resgata do escuro. O talento e a grandeza de Furtado, como historiador da nossa formação econômica, apenas reforça essa idéia de que o magnífico escritor nos legou um trabalho que vale por uma semente de infinita capacidade de germinação. Basta tirar o pó que querem acumular sobre sua lucidez para descobrirmos o quanto sofreu, o quanto tentou influir nos governos e como foi sempre voto vencido, esse gigante que agora arranca lágrimas de crocodilo de autoridades mesquinhas.

RECADO - Transcrevo um trecho do conto Humor versus bom gosto, de Celso Furtado, em que o tenente Cláudio explica para um americano como a coisa funciona (éramos cidadãos de um país soberano naquela época): É difícil para nós, latinos, conformarmo-nos com a pouca atenção que vocês dão ao gosto. Porque é através do gosto que se exprimem as formas mais elevadas de vida: a arte, a sociabilidade, o amor, a admiração, o respeito. Os padrões de educação que vocês adotam, se preparam instrumentos eficientes, limitam demais os horizontes ao homem. Refiro-me ao homem comum e não à gente de pedigree. É preciso que vocês percebam que a capacidade do americano para improvisar e agir com independência fora da rotina nos prende tanto a atenção quanto a eficiência com que ele funciona dentro dessa rotina. Nós vemos o verso e o reverso da grandeza da América. Quando vejo hoje jovens super felizes e orgulhosos porque estão migrando para os países ricos, onde se sentem mais valorizados, lembro essa força que tínhamos e que Celso Furtado nos lega como seu mais importante tesouro. Honra e glória aos heróis da Pátria.

19 de novembro de 2004

O GATILHO DO TEXTO

Quem acampou na chuva, quem tem apenas um fósforo e está só, no ermo, quem tenta tirar faísca de madeira verde, quem não consegue fazer uma pequena chama, que dirá uma labareda, sabe o deslumbramento que é um raio depois de horas de nuvens carregadas. Como a natureza pode fazer corisco apenas com água suspensa? Se houve alguém que um dia tentou chegar na primeira chispa, deve ter desistido muitas vezes, depois de uma vida vendo o fogo quando não esperava e longe do incêndio quando mais queria. Ele sentou-se numa pedra numa tarde em que se prenunciava a tempestade e notou o susto de uma veia saltada de néon no azulão escuro do céu. Só um milagre poderia ensinar alguma coisa sobre esse mistério. Assim também acontece no texto.

ESQUELETO - Acumular histórias, informações, falas, não faz de ninguém um escritor. O que faz de nós um escritor é o gatilho do texto, a faísca que bota fogo na montanha de coisas que juntamos, o grude que garante a massa, quando tudo finalmente faz sentido. Comparo o resultado dessa faísca que gera vida com um esqueleto imantado. O bruto está no meio da sala de anatomia e os meninos bocejam. De repente ele dança o twist e pára. Um dos alunos vê e se aproxima. Os outros continuam na sesta da indiferença. Então o garoto chega perto e é sugado pelos ossos do sujeito exposto. O aluno é a informação, o detalhe, o dado, a declaração. O esqueleto imantado é a narrativa. Ele atrai a inocência com prazer e a faz parte de si. Os outros continuam indiferentes quando então descobrem que algo acontece na figura que toma conta do recinto, e correm o risco então de serem também sugados pelo imã. O encantamento provocado por um texto vem dessa junção de criaturas dispersas, que acabam formando algo único. Vi esses dias uma reportagem na TV sobre pescadores do nordeste. O personagem entrevistado, velho pescador de Fortaleza, falava em vento misturado, do nordeste e sul ao mesmo tempo, e era debochado constatemente pelo repórter (eles nunca falham). Foi a fagulha que faltava para a história que eu guardava num canto de mim, do vigia do mar. Descobri naquele instante que a mudança contínua era o universo de quem estava sempre dependendo das águas para viver, e quem não participava daquele mundo não conseguia entender esse redemoinho. Fiquei meses com a narrativa em potencial. Mas foi aquele clarão que juntou as peças dispersas.

GERAÇÃO - Gim Tones anuncia sua volta à ativa, com um texto de arrepiar sobre a mudança brusca em sua vida. Criado por Fabio Murakawa, Gim estava há sete meses escondido num armário escuro. Voltou para nos deslumbrar como um dos grandes talentos de uma geração que já começa a arrebentar os portões. É bom ficar atento aos escritores na faixa dos 30 anos que ainda não foram descobertos pela mídia (essa eterna preguiçosa). Por exemplo: emerge na internet as histórias de daniduc, escritor que chega com uma linguagem madura, pronta e altamente hilária e personalíssima. Daniel Duclós, o emérito daniduc, decidiu mergulhar nesse ofício que o criou desde o início da vida. Às seis da manhã, todos os dias do verão em Vitória, daniduc alimentava-se de sol nascente. Ele traz essa luz consigo e nos ilumina com força. Suas histórias pegam firme. Na mesma faixa de idade, nasce o texto de um repórter que pegou a manha da narrativa: Fabio Mayer, aqui de Floripa. Fabio é o maior ouvinte do planeta. Você fala e ele escuta. Pensei que não existissem mais seres como esse. Mas existem. Ele descobriu como se faz o fogo num dia de sol de primavera. E levantou vôo. Preparem-se.

BARCA - O talento dorme dentro de nós como Deus na barca. Lá fora, a tempestade. Entramos em pânico, vamos afundar. Despertamos então aquele que nem toma conhecimento do nosso susto. Ele se levanta, se equilibra na precária superfície e faz um gesto. As nuvens se dissipam e ressurge o dia. Ele então pergunta por nossa fé. Onde estava a fé quando a barra pesou? Essa pequena e deslumbrante explicação de Alan Kardec para um trecho do Evangelho serve para nos revelar o segredo. Acredite que vai conseguir. Carregue-se. De repente, o céu se ilumina com um clarão. É tua alma que implodiu diante do sagrado. Você atingiu a forja dos deuses.

18 de novembro de 2004

LEITURA DE ELEVADOR

Agora que o calor começa a aumentar, os livros não são mais escondidos debaixo de grossos casacos. As roupas são leves, portanto o material fica bem guardado num daqueles compartimentos que existem no elevador. Mais precisamente onde se guarda o telefone de emergência. A ascensorista então tira um exemplar e mostra para o passageiro cúmplice, que lhe pergunta sobre a atual leitura. Ela mostra uma das suas jóias todas manuseadas, de folhas amarelas. É certo que ela adquire seus objetos de desejo em sebos, em revistarias com baús de ossos, onde se pode garimpar preciosidades. Ela lê escondido entre um andar e outro, jamais no térreo, lugar de rigorosa fiscalização.

ADVERTÊNCIA - Nunca vi seu algoz, nem sei quem é que a proíbe de entregar-se à leitura em pleno expediente. Mas deve ser gente pesada, com poder de demiti-la. Até hoje, pelo que sei, não foi flagrada. Possivelmente só uma vez, quando foi advertida de que ler livros é algo perigoso para uma ascensorista, pois desvia sua atenção do serviço, muito mais importante. Mas vamos imaginar as amarras a que é submetida uma pessoa sentada, em posição de sentido, sempre atenta a todos os passageiros e andares, pronta para retribuir um obrigado, a avisar se sobe ou desce, pois os sinais luminosos e os barulhos típicos não fazem a cabeça dos cidadãos de uma cultura ágrafa, que só entendem comandos verbais. Se o sinal verde ou vermelho aparecer e um grande plim estourar nos seus ouvidos, eles ficam na mesma. Mas se ouvirem a palavra certa, então tudo fica compreensível. Ela então pacientemente avisa a direção do seu veículo, enfrentando toda espécie de mal-estar, pois há impaciência demais num prédio de 11 andares e que é servido por apenas dois elevadores. Ela dribla todos esses obstáculos e consegue desenvolver uma tática de leitura impressionante. Lê rapidamente um parágrafo ou metade dele enquanto faz uma viagem de ida e volta, sem jamais descurar do seu ofício, que pela sua monotonia clássica, pelo espaço confinado e sem janelas, foi feito para enlouquecer quem fica nele por dias e semanas e meses e anos, ganhando um salário miserável no país do subemprego. Ela poderia ser funcionária de uma biblioteca, se bibliotecas houvessem. Poderia cuidar de sua paixão, os livros, oito horas por dia e ainda teria um acervo disponível para ler o dia todo e talvez à noite.

ROMANTISMO - A ascensorista que lê compulsivamente tem uma preferência: histórias românticas. Vislumbro algumas capas que exibem bailes do século 19, com galantes cavalheiros enlaçando gentis senhoritas. Mas não é essa apenas sua leitura. Ela ousa num trama mais explícito de espionagem, erotismo e suspense, e não teme grossura nenhuma de livro algum, pois a tudo devora sem piedade. Quando abriu a portinhola do telefone, vi que tinha uns quatro volumes apertados dentro. Lembrei o clássico filme Faherenheit 451, de François Truffaut, em que os livros eram impiedosamente queimados pelos bombeiros, investidos num trabalho pelo avesso, pois em vez de apagar, punham fogo. Quando o herói do filme deu-se conta que fazia parte de uma sistemática obra de demolição cultural, para que as pessoas ficassem à mercê da manipulação via televisão, ele então começou a estocar livros nos armários, embaixo da cama, no forro, nos vãos existentes das luminárias. Quando foi descoberto, fugiu para um lugar secreto, onde velhos leitores ditavam livros de memória para aprendizes. Era a forma de guardar um livro na cabeça, pois dava-se como certa a destruição total de todas a bibliotecas. Num pesadelo de fiscalização total via sistema integrado audiovisual, ele foge em direção à liberdade, para o território em que foi confinado, longe do terror anti-livro.

FINAL FELIZ - A ascensorista que lê escondido enquanto trabalha é real e não posso dizer seu nome porque não sei nem perguntei, e também porque preciso preservar sua identidade. Ela poderá ser demitida se for descoberta. E assim perderá seu único emprego que conseguiu neste deserto em que se transformou o país onde o fundamentalismo, o obscurantismo e o fanatismo avançam rapidamente, em rede, por todos os cantos.O mais grave do insucesso da falsa democracia em que vivemos é que ela demole todas as esperanças da população numa vida democrática. Em massa, as pessoas voltam-se para as certezas graníticas, já que não querem apostar na diversidade, na dúvida, no encantamento de estar vivo, emocionar-se com uma história escrita pelo talento e impressa num produto que pode correr de mão em mão e acabar fechado num pequeno espaço de um elevador. A ascensorista gosta de ler. Isso dribla a repressão, ela se sente triunfante com seu mergulho diário na literatura que adora. Eu sigo seu paciente trabalho de ocultamento e torço por ela. Se um dia alguma tropa invadir o recinto para dar o flagrante e levá-la presa, ameaçando queimar seus livros, saberei que a hora chegou. O livro que vou decorar precisa ser curto, pois sofro de limitação de memória. Talvez Lorca e seu Llanto para Ignácio Sanchez Mejia (vete Ignácio, duerme, vuela, reposa/ también se muere el mar). Talvez aqueles sonetos do poeta inglês que a certa altura diz: a um dia de verão não posso comparar-te/ pois sempre e a toda hora és muito mais amável. Gostaria de saber qual livro a ascensorista iria decorar. Possivelmente uma história de final feliz, que a leve para longe num cavalo branco.

17 de novembro de 2004

O VIGIA DO MAR


Nei Duclós


A realidade do pescador é a brusca mudança, o rochedo que aflora, o sumidouro, o roçar de um monstro, a mistura do vento, o peixe maior do que os braços. Ele vive diante da oportunidade perdida, da história afundada no tempo, na curva da onda batizada de Iemanjá, na tentação sonora em forma de sereia. O pescador perde a forma para adaptar-se às imposições mutantes da paisagem. Sua percepção sofre com esse penoso exercício e por isso não é convincente para quem vive fora do seu mundo.

Mas ele sabe o quanto pode se enganar, principalmente quando fica de olho na água para vislumbrar a presa. Sua salvação é contar com o apoio do mais preparado dos seus pares, aquele que vive no alto do morro, só e desperto. É o vigia do mar. Ele vê cardume no escuro e dá o alarme quando todos estão dormindo. Visitei um velho vigia um dia desses, no Muquém.

CHÁCARA - O homem cultiva orquídeas e me contou várias histórias do tempo em que detectava tainha para os pescadores das praias de Ingleses, Moçambique, Santinho. Tinha esperança que eu levasse alguma de suas raridades, mas a ilha é prudente na circulação da moeda e todos vivem no aperto, aguardando a chegada de turistas. Ele nos mostrou sua coleção, que vai florir no verão e que chega até o pé do morro. Sua chácara começa bem rente à rua, num velho engenho onde vive. Lá impera o grande forno e o fogão de pedra, alto. Sua esposa varre o chão com vassoura de folhas catadas no quintal e faz café de chaleira amassada, com gosto e aroma fortes.

Os olhinhos apertados do velho me fuzilavam enquanto desfiava suas histórias. Fala rápido demais e não dá bola se o interlocutor não tem a mínima idéia de várias palavras e expressões que usa para descrever seu ofício. Garante que vê cardume de tainha em noite sem lua e não é o barulho ou a forma diferente da superfície do mar que dá a pista. É algo muito mais profundo, que só o vigia sabe, e que não conta para ninguém, pois esse é o segredo mais bem guardado desses mestres tratados com reverência pelos outros pescadores. Uma colônia de pesca depende da habilidade do seu vigia e se ele for bom é possível colher toneladas num só arrastão. A palavra mais usada pelo velho é peixe. Ele diz peixe para tudo, usando-a como costura de causos sem fim, quando costumava surpreender os incrédulos que viviam dizendo que ele já estava ultrapassado, não enxergava mais nada. Mas o vigia não enxerga, ele simplesmente sabe.

MESTRE - O velho ri ao lembrar que um desses incrédulos estava falando asneira enquanto o peixe ameaçava roçar a perna dele. O cardume se alvoroçava perto do rochedo e a assombração da sua presença era notada pelo vigia bem na beira. É a cor do mar que muda? pergunto, e ele ri. O mar fica marrom, vermelho, borbulhante, dizem os leigos. O vigia, entretanto, vê o cardume de tainha quando o mar está calmo e tudo parece normal. Por isso há respeito na voz dos que se referem ao mestre. Fomos mais tarde procurar outros vigias e abordamos um grupo sentado em frente a um barraco que guardava barcos.

Pergunto mas ninguém me responde. Invoco então o nome próprio da pessoa procurada e digo a senha: pronuncio o nome do mestre, que me deu a dica. Todos levantam o olhar e as caras mudam. Imediatamente apontam com todos os dedos o vigia deles, o que está atualmente na ativa, e que fica de olho no mar ao lado de outro companheiro . São dois de plantão. O mestre era solitário. Pegava uma garrafa pequena de água e ia para o seu posto.

O sr. era um bom pescador? pergunto novamente. Nunca pesquei, diz ele, mas sempre comi peixe. Sou da lavoura, planto para comer. Ou pelo menos plantava. Hoje está tudo proibido, não se pode nem colher um pé de mandioca. Esses dias um menino foi vender mandioca num carrinho de mão e um fiscal do Ibama disse que era proibido. Antigamente a gente plantava feijão, comia e guardava. Mas não durava três meses. Antes de estragar, a gente fervia e dava para os porcos. Hoje você compra um quilo de feijão no armazém e o grão pode durar anos. Está tudo envenenado. Precisamos pagar pelo alimento e ainda comemos veneno.

RISO - Em cima da porta que dá para o orquidário, há uma tainha aberta ao meio, secando ao sol. Ele recebe presentes dos pescadores ainda agradecidos. Às vezes chega um repórter e fotografa suas orquídeas. Ou um estudioso alemão que nunca viu coisa igual e sai feliz com as novas espécies. Ele é famoso, mas continua simples, jamais humilde. O velho vigia é o especialista em sua arte, o olho enfeitiçado que enxerga assombração. Faça perguntas e veja como ele ri. Um mestre não aceita perguntas, ele sabe o que falar. Por isso fala sem parar e eu escuto por horas.

Saio então em direção ao mar. As gaivotas ficam de sentinela. O mar está para peixe? Quem sabe é o vigia e seus aprendizes. É possível aprender o ofício? O velho ri. Essas pessoas fazem cada pergunta... Quer mais um café? Vai levar uma orquídea?




RETORNO - (maio de 2011)1. Esta crônica de 2004 foi publicada dois anos depois deste post no livro "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas Pelo Vento".2. Imagem desta edição: Dona Mimosa, esposa do vigia Modesto, lendo a crônica no Refúgio. Foto de Ida Duclós.

16 de novembro de 2004

UM IMPROVISO COMPETENTE

O romancista, contista, crítico literário e jornalista Tailor Diniz me envia o texto que leu para nós no sábado, dia 13, no debate sobre literatura que mantivemos na Feira do Livro de Porto Alegre. O tema é o meu romance Universo Baldio. Ele mesmo apelidou sua intervenção de improviso competente. Mas é muito mais do que isso. É um mergulho num trabalho que custou toda uma vida e que é tratado com respeito, sinceridade e talento.

UNIVERSO BALDIO, uma análise de Tailor Diniz

Em seu Universo Baldio, Nei Duclós apresenta um viés dos tempos difíceis pós-64 que nos era desconhecido, pelo menos nos seus detalhes, nos seus escaninhos. Até então, sabíamos da existência de brasileiros exilados que, perseguidos e impedidos de exercerem seus direitos aqui, foram viver fora do país. É vasta a literatura sobre essa tragédia humana, de cidadãos obrigados a deixar a pátria para preservar o direito à vida. Mas pouco se sabia, até Universo baldio, que também havia, no Brasil da repressão política, uma juventude esclarecida, conhecedora dos seus direitos e dos perigos representados pelo exercício desses direitos, para quem não havia a alternativa de transpor as fronteiras do país para fugir da violência e da repressão política. E é sobre isso, sobre esse viés até então pouco conhecido de nós, que nos fala Nei Duclós em Universo baldio: de jovens sem alternativas, financeiras especialmente, que necessitaram, como recurso de sobrevivência, se esconder em territórios excluídos dentro da própria pátria.

Para retratar esse mundo, Duclós cria seu universo. Baldio, saliente-se, daquilo que se chama hoje, no jargão das grandes empresas e da economia de mercado, de um plano de metas futuras, ou, no vocabulário da literatura de auto-ajuda, de uma lista de resoluções a serem cumpridas dentro de um certo período de tempo. O universo desenhado por Duclós em seu livro é um descampado, sim, mas dos princípios que orientam as linhas de montagem e insistem em transformar o homem em máquina. O universo de Duclós, tão bem construído, tanto na linguagem quanto na arte de descrever ambientes e emoções, não é destituído de sonhos e de esperanças. Pois sabe Duclós, como sabia Beckett, como sabem os grandes escritores de todas as gerações, que o ser humano, por mais hostil que seja o ambiente que o cerca, por mais vazia e sem sentido que seja sua existência, é um ser que espera, e se espera, é porque sonha, e se sonha, é porque tem esperanças.

É especialmente para nos dar esse recado que Duclós recria em texto a sua república de Itaguaçu, aquela que, num tempo em que a ponte Hercílio Luz era a única ligação entre o continente e a ilha de Santa Catarina, se antecipou à Jurerê Internacional e aos empresários gaúchos da construção civil que ainda não haviam cruzado o Mampituba para fincar âncoras nas bucólicas praias do norte de Florianópolis. É para nos declarar criaturas nutridas de sonhos e esperanças, num momento no qual a ordem midiática é desconstruir, que Nei reconstrói a casa-cor-de-rosa e seus habitantes - o Peneira, o apaixonado por São Paulo e batalhador de fumo; o Alípio, que recebia visitas do pai malandro de Viamão e que conseguia ser mais duro que o filho; o americano deslumbrado com o Brasil, que dizia nunca esquecer peixinhos pela perna praia de Salvador, o do Cooper, o Jacaré, o que não entendia de onde os outros tiravam tanto assunto; a Karin, para quem a prostituição não era um grilo; o Todd, aquele que gostava de viver perigosamente; o Jair, que usava boné e lia Cortazar; o irmão de Alípio, um mochileiro de cara ovalada e cabeça grande, que foi embora com o americano, que de passagem por Nova Iorque mandou três ácidos que nunca chegaram; a Irma, a que chegou de Porto Alegre para batalhar emprego, o Luís, aquele que, depois de uma prisão e um pau em frente à prefeitura de Porto Alegre, abandonara a guerra que o general Médici ganhava no resto do país; e os visitantes de ocasião, que iam filar o pouco rango da casa, quando havia, além daquelas outras criaturas que gravitavam no entorno, compondo o clima pretendido: o pessoal do teatro, do artesanato e o cara legal que tinha um conjunto e ensaiava nos fundos da casa.

Apesar do clima de aparente desesperança e despreocupação com o dia seguinte, nota-se no fundo de cada personagem uma latente esperança, de sonhos insistindo em não morrer. Mesmo quando os sonhos parecem totalmente desfeitos, quando a desolação, representada magistralmente pelo autor pela metáfora do mar, quando Alípio se questiona por que se sentir infeliz num horizonte daqueles, onde o mar, tantas vezes sonhado, vem a representar a face cruel de um destino do qual ele esperava livrar-se para sempre; ou quando Luís vem a Porto Alegre e procura um amigo, na faculdade de filosofia, para tentar lhe vender um guarda-roupa e descolar uma grana, enquanto o tal amigo só queria falar sobre Lênin; mesmo assim, por entre as frestas que se abrem entre idas e vindas dos personagens, entre uma mendicância e outra por um prato de comida no restaurante Love Story, deixam-se denunciar os sonhos de cada um, aqueles sonhos premonitórios de que, apesar de tudo, como diz Ferreira Gullar em seu Dentro da Noite Veloz, em algum lugar, a vida bate. "Alípio sonhava com milhões. Luís queria ser Caetano Veloso. Peneira queria levar todo mundo para São Paulo." Tudo isso, acrescente-se, com uma visão bem-humorada e referências a ícones da época, como Hendrix, Cotázar, Goddard, Pasolini, Janis Joplin e Glauber.

Na segunda parte, Duclós excursiona por um universo mais intimista, mas não desprovido de bom-humor e autocrítica, no qual, numa espécie de autobiografia que se disfarça na pele do personagem Luís, dialoga consigo mesmo a procura de nortes e perspectivas que lhe abram caminhos para a salvação. Cercado de metáforas, especialmente dos fantasmas que vivem dentro de si e se materializam quando o metrô que o conduz sai de baixo da terra; num ambiente composto por estações de trens, de ônibus, pela agitação das ruas de uma grande cidade, habitat dos sem-salvação, dos sem-teto, dos sem-identidade, dos sem-carteira de trabalho, Luís debate-se em busca da primeira palavra e da salvação. Seus fantasmas o levam ao pampa, a antítese, ou o avesso, do universo anterior, mas tão desolado quanto, pois, a despeito de ter nascido ali, era um ambiente que Luís "não conhecia e no pouco que conhecia costumava-se perder." Este segundo espaço geográfico, no entanto, e a reconstrução do passado que ele enseja, servem de elo para um futuro até então nebuloso e escorregadio, cheio de incertezas, de lutas vãs e de tragédias políticas. Reencontrada a identidade, o futuro agora podendo ser vislumbrado sem a garoa e o gás carbônico das grandes metrópoles, Luís volta à praia onde se iniciara o primeiro tempo do jogo. Revigorado, acende o fogo da churrasqueira da sua nova casa e fica aguardando as visitas. Pois os amigos dos dias difíceis, aqueles que sumiam "como um sinal do que ainda estava por acontecer", esses amigos ainda haveriam de passar por ali, "perguntando seu nome e refazendo a teia que um dia os uniu."

15 de novembro de 2004

AS PESSOAS SÃO A CULTURA


Na longa entrevista que Paulo Markun, eu e Marco Celso Viola demos para a TVE do Rio Grande do Sul, e que foi ao ar ontem às 18 hs., falei de cara que a cultura são as pessoas e que os livros são apenas as vitrinas da criação de algumas dessas pessoas. É uma concepção diferente de encarar todo o evento pela sua parte, ao aspecto comercial apenas. O encontro entre autores/leitores é o vetor principal dessa idéia, que esteve muito bem representada no grande acontecimento cultural de Porto Alegre que acaba hoje. Pois a organização da Feira deu vez e voz a todos que se encontraram nos inúmeros debates programados, entre eles, o do lançamento do meu romance Universo Baldio.

CONVÍVIO - Na praça da alimentação, conheço pessoalmente, enfim, Tailor Diniz, o cara que rompeu o bloqueio da críticas e fez a primeira resenha exclusiva sobre um livro meu em vinte anos. Discreto, elegante, tranqüilo, brilhante, Tailor encanta todos que o conhecem. Não bastasse seu enorme talento, que produziu várias obras, entre elas o romance Um terrorista no pampa, lançado na Feira, Tailor encarna a civilidade perdida no Brasil, aquela que agrega pessoas ao redor e que, sem nenhuma pose, propõe o mútuo reconhecimento.Leitor atento do trabalho alheio, no debate Tailor nos brindou com um magnífico travelling de Universo Baldio, resgatando personagens e falas, numa síntese aprofundada da obra. O que mais pode desejar um escritor? perguntei logo depois da sua intervenção. Ele me prometeu enviar o que ele chama de improviso competente e que eu digo ser a mais completa crítica já feita sobre minha literatura, o que será reproduzido aqui no DF. Conheci também na mesma da praça da alimentação, essa figura maravilhosa que é Julio Conti, dramaturgo importantíssimo, que fez grande sucesso em todo o Brasil e no Exterior com suas peças, entre elas a já clássica Bailei na curva. Conti é a inteligência produzida por essa cidade cultural que é Porto Alegre e sua conversa tem o dom magnético de nos levar para vários cenários. Receptivo a toda verve que atravesse seu caminho, demos boas gargalhadas falando de teatro, livros, idéias, num momento de inesquecível convívio. No debate, Julio nos deu a honra sua presença e, de quebra, levou um exemplar do meu romance para ser autografado.

RESGATE - Revi Marco Celso depois de três décadas e meia. Chegou no hotel completamente algariado, segundo sua própria descrição (a palavra, eu desconhecia). Entusiasmado com nosso reencontro e com a perspectiva de colocar na rua seu grande livro de poemas, Marco Celso fez o que sempre se espera dele: traçou novos planos, propôs projetos e já cobrou resultados. Sua liderança nata o leva para todos os tipos de realizações e é um prejuízo enorme para o Brasil que toda sua força não seja canalizada para grandes projetos. Tanta gente medíocre tocando coisas importantes e Marco Celso fica de lado. Mas essa fase está acabando. Outra pessoa de quem estava afastado por 15 anos é Cláudio Levitan, o talento insuperável de todas as artes e que está pronto para lançar novo CD, depois do seu já clássico A Longa Milonga (que foi tema de um post aqui no DF). Levitan não mudou nada, parece aquele cara de sempre, não perdeu a forma, nem o sorriso, nem a contundência. Notei em Porto Alegre (ou recordei) a força da política na vida das pessoas. Elas realmente se envolvem com a luta ideológica e política, não é como em muitos lugares, em que viramos observadores das atividades alheias. Cheguei a testemunhar, na sexta-feira, dia 12, uma passeata de funcionários públicos, que aos berros atravessaram a Rua da Praia, seguidos pela Brigada Militar. Parecia, juro, 1968. Como o centro de Portinho continua o mesmo, foi realmente uma viagem no tempo.

PRUDÊNCIA - Estavam todos lá. Oliveira Silveira, o poeta pioneiro da negritude naquelas plagas que o resto do Brasil gosta de confundir com uma porção da Germânia, compareceu com seu testemunho e com uma obra mimeografado de 1972, o que deixou um dos responsáveis por esse projeto, Marco Celso, louco para colocar a mão. Mas Oliveira Silveira, pessoa prudente, achou melhor continuar guardando o documento, já que eu e Celso somos incapazes de manter as provas do nosso pioneirismo cultural. O poeta Luiz de Miranda veio nos ver e participou do debate, ele que quase foi patrono da Feira este ano (perdeu a votação para o grande professor e escritor Donaldo Schüler, para quem tive a honra de autografar um livro). Caramez, poeta e produtor, chega com seu novo livro de poemas, com apresentação de Luis Fischer e orelha escrita por mim, e com ele aportam também novas propostas, idéias, projetos. Bebeto Alves me trouxe naquele dia os exemplares da terceira edição da revista Fronteira, que criamos juntos e que já é um sucesso. Bebeto está em grande atividade e é o responsável por mais uma Feira do Livro em Uruguaiana, que será realizada no fim deste mês. Nazaré de Almeida, poeta que esteve conosco na divulgação de um trabalho emergente em plena ditadura, a escritora Tania Faillace e várias outras pessoas foram até lá levar suas presenças, depoimentos e retornos. Foi para mim um momento histórico, esta feira em que conheci novas obras e autores, dos quais voltarei a falar aqui no DF.

RETORNO - Graças ao editor Michael Kegler, está no ar a primeira resenha internacional sobre minha literatura. Um texto em alemão sobre Universo Baldio (e sobre outras duas obras da W11) foi publicada na revista virtual Nova Cultura. Reproduzo o texto aqui: Letzteren beschreibt der Dichter und Historiker Nei Duclós in seinem ersten Roman Universo Baldio. Es ist ein Roman, dessen Entstehung Jahrzehnte benötigte, und der sich nicht nur darum in zwei Teile gliedert: die Zeit der verzweifelt / fröhlichen, bekifften Kommune, in die sich die Protagonisten nach den ernüchternden Erfahrungen mit staatlicher aber auch gesellschaftlicher Repression geflüchtet haben, und den jüngeren Teil in der «jetztzeit», in der der Protagonist (dessen biographische Parallelen zum Autor unübersehbar sind), sich auf die Suche macht nach den Wurzeln des brasilianischen Dilemmas, das sein persönliches ist, das seiner Familie, das seiner Geschichte und das eines Landes, in dem Gewalt und Haudegentum Grundtugenden zu sein scheinen. Universo Baldio (deutsch in etwa: Vergebliches Universum) ist ein sehr poetisches Buch, das vor allem im zweiten Teil Züge einer beunruhigenden Halluzination annimmt, oder, wie Urariano Mota (selbst Autor des unbedingt lesenswerten und von der Thematik nicht unähnlichen Romans Os Corações Futuristas) in seiner Rezension schreibt, ein acid-trip mit sehr realem Hintergrund und Protagonisten, deren Suche und Verzweiflung echt ist.

14 de novembro de 2004

OS SETE PILARES DA POESIA


Com sua primeira obra literária em 35 anos de trabalho poético, Marco Celso Huffell Viola reúne as estrelas de uma vida inteira (Esta resenha foi publicada no sábado, 13, no caderno de Cultura do Diário Catarinense, editado por Dorva Rezende. No mesmo dia, em Porto Alegre, Marco Celso, eu e Tailor Diniz debatemos sobre literatura na Feira do Livro de Porto Alegre. Antes do debate, nós dois e Paulo Markun participamos de programa da TVE do Rio Grande do Sul. O impacto do evento ainda será tema de nova edição do DF).
Nei Duclós

VENTRE - Marco Celso diz a que veio quando anuncia um assassinato: "Vou matar este poema com uma faca de trinchar,/ dividi-lo ao meio como um figo/ expor seu ventre hediondo ao público." Diz o que faz quando define o fruto que lhe sai das mãos: "Ele é um furo no escuro, um buraco cinza." Ou quando faz sua advertência de profeta irado: "Ele ficou incompleto/ estou amassando-o e dissecando-o para que nenhum leitor o devore com facilidade." Mas, além de se entregar à própria contundência, mostra sua doçura ao falar da origem dos poetas: "Eles são de outro mundo, de outros mundos/ eles caem aqui como estrelas cadentes." Quem são eles? "Conversam com seres que ninguém vê/ e ainda olham para a lua, para a lua!" Esses dois momentos estão na parte intitulada Poemas e poetas que dormiam na estante, um dos sete compartimentos em que ele dividiu Poemas para ler em voz alta (Office Editora, 136 págs., R$ 18), obra de estréia tardia. Junto com os outros, compõe uma sabedoria única, cevada no mais profundo segredo, pois Marco Celso é da estirpe dos poetas que se retiram porque não suportam a vala comum em que sempre transformaram a poesia.

GERAÇÃO - Seu trabalho nasceu no final dos anos 60, quando ainda menino, antes dos 20 anos, tornou-se um deserdado dos movimentos políticos estudantis e abriu caminho próprio, expondo poemas na praça e publicando um livro mimeografado que tinha como título uma profecia: Tombam os primeiros homens nos trigais. Tive o privilégio de participar com Celso desse movimento, precursor em todos os sentidos, da geração mimeógrafo, detectado só nos anos 70 pela universidade, assim mesmo confinado ao centro do país e não à Porto Alegre que explodiu em 1968 e provou o sal do exílio precoce já em 1969, época da exposição na praça. Mas não é a esse passado que Marco Celso se reporta (apesar de dar seu recado sobre a exclusão na orelha do livro que custeou do próprio bolso). O livro não é importante, avisa, o importante é a sua razão de ser. Sobre isso é que nos debruçamos. No primeiro pilar, Quase canções, o leitor conhece os sinais mais expostos desse terremoto poético, escutando coisas como: "Já fui frade, rabino, santo, imã/ um pecador e tanto e tive tato/ com todos os sentidos/ babei um tanto, comi rato e fugi da peste." No que se transformou essa criatura? "Sou artista, burlesco, saltimbanco/ saltinvento,/ saltimento, pinto todo/ o muro branco." Grafiteiro de uma revolução, o poeta celebra o pão ("a saga que perseguimos/ onde somos/ os únicos heróis") e o amor, que "é tão completo que até o mal dele necessita para ser amado/ é desta matéria incombustível que arde em nós, que somos compostos/ e não há fogo, água, não há mágoa que o detenha". De amor é feito o poeta: "Hoje é um bom dia para morrer de amor por ti e nada mais".

PERDA - Depois desse impacto inicial, que ocupa metade do livro e apresenta o poeta em toda a sua lúcida demência, um Intervalo sugere o dimensionamento emocionado das perdas, especialmente daqueles que se foram por terem voz e que foram calados. Os ossos do amigo morto servem para se referir à "tua mulher que nunca te esqueceu e que ainda te chama baixinho". A música da sua poesia tem ligamentos profundos, tornando-se inútil separá-la em versos, porque nos surpreende pela composição soberba, pela grandeza sinfônica com que fala da morte e do esquecimento, essas coisas duras demais para a poesia de hoje, que mais parece jogo de armar do que o instrumento cortante de que se serve Marco Celso. Mas o poeta não foge da herança poética e dedica uma das partes a um exercício lúdico: Atirando sonetos italianos na parede, onde fala em faces roubadas que não nos pertencem e na do tempo e seu colar de ossos, do amor desesperado que é confundido com amizade ou do amor perfeito que reina acima de tudo o que é e considerado essencial. Os Hai-Kais também merecem sua atenção de poeta múltiplo, onde é possível tecer com a linha do horizonte, construir a casa na asa do pássaro e saber que um único mantra entoa tudo o que existe. No capítulo seguinte, já citado, ele se dedica a interagir com alguns poetas, como Lorca, Pessoa, Bandeira, Drummond. Desde muito cedo, Marco Celso gostava de implicar com os mestres, numa afirmação de identidade que tinha tudo de adolescente e que nesta obra revela a maturidade do poeta que assume a vanguarda sem se entregar a vanguardismos.

RITMO - Em Armações, Celso novamente nos deslumbra com o ritmo que consegue captar na arte popular (no rap, por exemplo), nas quadrinhas e nos temas como a beleza, que aqui são virados de cabeça para baixo. O sétimo pilar é Para ler em silêncio: nele, a profunda percepção do mito encarnado por palavras e letras é um fecho de sabedoria cifrada, que ele traz à luz como um predestinado. Marco Celso tem esse perfil: o poeta que todos apostaram que já tinho ido embora, mas quando surge nos diz que sempre esteve conosco e traz a boa nova da poesia sem máscara, a que tem o dom do encantamento e a fúria da tempestade.

RETORNO - Agradeço à organização da Feira do Livro, que na pessoa de Jussara Carvalho me recebeu com muita competência e carinho em Porto Alegre. E dou os parabéns ao patrono do evento, professor e escritor Donaldo Schüler, pelo sucesso do aniversário dos 50 anos desse acontecimento cultural. E agradeço à minha editora, W11, e seu diretor Wagner Carelli, que me proporcionaram essa viagem de resgate, supergratificante, que será devidamente reportada em todos os detalhes. Especialmente a alegria de reencontrar amigos eternos, que lá foram me dar um abraço.

11 de novembro de 2004

RECOLHO OS AMIGOS PELO TEMPO

Universo Baldio é um romance que procura resgatar pessoas escondidas na memória e linguagens atiradas sem destino. O livro servirá de apresentação oficial, na Feira do Livro de Porto Alegre, neste sábado às 17h30, para incluir pessoas e literaturas variadas, que precisam vir à luz com mais força, para as sucessivas gerações não esquecerem que existem escritores que encaram o ofício com o espírito da missão a ser cumprida. Nós, criaturas humanas, somos a cultura. E nossos livros são nossas sínteses, as vitrinas de almas invocadas, que não possuem a vocação do esconderijo, mas da apresentação e do abraço.

PORTINHO - Lembro de Caio Fernando Abreu cheio de dedos ao me propor algumas pequenas mudanças no meu livro Outubro. Lembro Caio levando Outubro para Ligia Averbruck, aquela a quem jamais poderei agradecer o suficiente, para que me publicassem, eu, um dos poetas da praça. Lembro Juarez Fonseca feliz me contando que Mario Quintana tinha escrito o prefácio do meu segundo livro, No Meio da Rua, que foi editado pela L&PM, pela mão de Ivan Pinheiro Machado, amigo comum do inesquecível Gilberto Gick, que foi-se prematuramente. Lembro Cláudio Levitan e sua Eneida Serrano, violão e fotos e conversas sem fim na nossa casa em Ipanema, lugar que tornou-se uma confluência de tantos escritores que lá iam para conversar e conviver, uma coisa que perdemos depois que a ditadura jogou sal em nossas vidas. Lembro Levitan se inspirando nas cadeiras de palha na minha casa para fazer aquelas ilustrações clássicas de Outubro. Lembro Raul Elwanger me mostrando a música que fez do meu poema Apesar de tudo, que foi um dos hits da exposição da praça. Lembro Marco Celso Viola com seus coturnos de milico, em plena era militar, aparecendo no Centro Acadêmico para fazer comigo uma amizade eterna. Lá no Centro Acadêmico, lembro de Mariza Scopel com seus contos radicais e lembro Roque Callage, ainda menino nos trazendo poemas primorosos. E agora vejo Clovis Heberle, que viu tanto de mim e da vida da nossa geração em Universo Baldio, me dizendo o quanto gostou do livro e quanto de afetividade me será inundada nesta visita a Porto Alegre que começa amanhã, ele que me receberá junto com sua esposa, minha cunhada Laís, que sempre vai aos meus lançamentos. E lembro Oliveira Silveira com seus poemas poderosos, recitando conosco, junto com Nazaré de Almeida, naqueles recitais que sempre tinha público, porque nada havia na época, éramos muito poucos naqueles tempos sombrio, mas que foram iluminadas pelo talento múltiplo que explodiu na capital riograndense, a cidade da nossa juventude. E lembro Muts Weyrauch folheando meus poemas para em cada verso descobrir uma canção nova.

SAMPA - E agora lembro meus amigos de Sampa, o Toth com sua genialidade travessa, Marcelo Min com seu olhar que a tudo inclui e a tudo denuncia e a tudo compõe com seu inumerável talento. E vejo Antonio Gaudério fazendo o açougueiro de Heliópolis subir na laje para fazer uma foto sobre negócios na favela, que ele participou porque gosta do poeta e porque ele também é um artista sem igual. E lembro Luiz Moraes com sua convicção que formamos uma dupla nesse jornalismo que aprendemos a fazer juntos. E Daniel Del Fiore, com sua tranqüilidade maravilhosa e sua lucidez, e Odair Souza com sua pertinácia, ele que é um jornalista que desperta cada vez mais para esta profissão tão cheia de altos e baixos. E lembro Wagner Carelli publicando dois livros meus, me resgatando do exílio, me jogando na praça novamente com dois trabalhos editados por ele de maneira primorosa. E Luciana Felix, muito menina, querendo aprender e hoje detonando neste ofício sagrado que é escrever. E vejo minha mulher, Ida, minha primeira leitora e esposa de toda a vida, e Miguel com seu Consciência e seu blog que traz textos fortíssimos, clássicos e originais. E Daniel, que está lutando para ter uma vida de escritor, com todo o talento que Deus lhe deu e ao lado da esposa Carla. E minha filha Juliana, grávida já de quase sete meses, de Marcos, que nasceu e se criou na cidade que escolheu para viver, Búzios. E meus irmãos, que optaram por esta ilha onde me encontro e minha irmã, lá em Campo Grande, emocionada como sempre. E a todos recolho pelo tempo, com a o braço imenso da literatura, que é nossa marca sobre a terra. E lembro Eduardo San Martin, novaiorquino perene, que aos 16 anos chorou ao compartilhar nossas primeiras conversas, ele que hoje é um escritor consagrado. E lembro meus amigos de Uruguaiana, Miguel Ramos,. Anderson Petroceli, Rubens M. Junior e o grande poeta Ubirajara Raffo Constant. E lá está Bebeto Alves, que me espera este fim do mês. E lembro todos os outros que não cito porque é enorme demais esta lista. Agora, para a praça de Portinho. Lá nasce a poesia de uma geração que não se calou e hoje colhe os frutos da sua coragem.

POESIA, AGORA E SEMPRE


Mais um poema sobre o mar, que coloco aqui no DF, para me concentrar antes do evento no sábado, às 17h30, na sala multisuso da Feira do Livro de Porto Alegre, quando vou conversar sobre literatura e autografar meu romance Universo Baldio. Poesia na cabeça e no coração.

É BOM O MAR

Nei Duclós

É bom o mar
não ter dono
Não ser potro
nem mordomo
Poder engolir
Netuno
Espumar sal
das esferas

Ninguém pasta
no seu dorso
Nenhum nó
ata sua vela
Gávea que traz
no bojo
Bóia que a flor
navega

Como repasto
de pedra
Como fermento
de estrela
São peixes
fora do espelho
São aves
em assembléia

O bom do mar
é que dançam
numa volúpia
serena
os versos feitos
por anjos
que estudam
com muito esmero

o mar, esse Deus
travesso
que se bobear
pega praia

10 de novembro de 2004

ORIGEM DA GERAÇÃO MIMEÓGRAFO



O último movimento poético que se tem notícia é a chamada Geração Mimeógrafo, dos anos 70, anunciada em livro da pesquisadora Heloisa Buarque de Holanda no livro 26 poetas Hoje. O problema é o seguinte: livro mimeografado já existia no Brasil no final dos anos 60. Foi o Marco Celso Huffel Viola (foto) quem fez o livro Tombam os primeiros homens nos trigais, que tinha poemas meus e contos da Mariza Scopel. Esse livro foi levado por nós para São Paulo e o Rio, onde ficamos num apartamento de artistas na rua Farme de Amoedo, em Ipanema. Lá implantamos a idéia do livro mimeografado. Só agora Marco Celso viu isso de forma clara, numa carta que tem um trecho reproduzido a seguir:


VIAGEM - "Nei, brabo eu fiquei foi comigo mesmo por ter ignorado este tempo todo a verdadeira importância do nosso trabalho naquela época. Sabe aquela viagem no Rio da Janeiro que nós fizemos? Foi depois daquilo que começou tudo isto no Brasil. Fomos nós cara! Fomos nós que mostramos que era possível enfrentar a coisa toda daquele jeito que nós estávamos fazendo! Lembra que havia um medo danado e uma surpresa grande onde a gente chegava? Me dei conta agora! Estivemos em São Paulo e Rio, a Nazaré de Almeida fez o mesmo percurso por Brasília, e sei lá mais onde,vendendo poesia. Nós começamos tudo, todos eles vieram depois de nós. Não existe geração espontânea! E o documento está lá, na entrevista de junho de 1969 na Folha da Tarde de Porto Alegre. Além das muitas testemunhas dos nosso recitais e do livro Tombam. Nós começamos tudo, mas sem querer nunca reivindicamos nada."

O mais impressionante dessa revelação é que todo esse tempo eu achava que eles eram os caras, eles eram os grandes artistas da capital cultural do país e nós apenas dois gatos pingados vindos do chamado Sul, que na maior inocência mostramos como driblar a censura da ditadura e o cerco e a má vontade das editoras. Mas foi exatamente o contrário: nós levamos a solução e por décadas ficamos em silêncio, sem publicar, nada. Anos atrás, descobri o telefone do Marco Celso na Internet e liguei para ele. Foi a duro custo que consegui que ele começasse a me responder e a me enviar seus poemas. Hoje, quando lança seu primeiro grande livro, Poemas para ler em voz alta (que terá resenha minha de página inteira no Diário Catarinense no próximo sábado) vejo o crime cometido contra esse grande poeta, que ficou no ostracismo depois de inventar um movimento que hoje é reconhecido totalmente. Jamais fomos citados em nada. Culpa nossa? Não sei não. Mas o importante é que estamos de volta, com nossos livros e o pé novamente na estrada. Vamos inventar outra?

EXPLOSÃO - E quanto tempo, amigo, ficamos em silêncio, vendo a festa alheia como se nada tivéssemos com isso? Lembro de Cacaso, um dos poetas da geração mimeógrafo, grande figura e pessoa maravilhosa, indo lá na Folha de São Paulo me visitar e falando de toda aquela poesia. Lembro que fui procurado por todos no tempo em que eu tinha influência na grande imprensa e fiquei anos e anos escrevendo sobre o trabalho dos outros e depois que finalmente consegui publicar meu No Mar, Veremos, vi como foi impossível furar o cerco, o bloqueio que tinha se levantado ao nosso redor. Até hoje esse livro não ganhou uma resenha exclusiva na grande imprensa.

Vejo agora Universo Baldio sendo ignorado, com raras e honrosas exceções, e os grandes jornais e revistas, aqueles em que trabalhei por muito tempo, jamais me citarem, a não ser em algumas notas. Quero ser citado? Não quero ser enterrado vivo! Queremos dizer que continuamos vivos. E você, Marco Celso, o mais radical entre nós, criador de uma poderosa poesia que agora vem à tona, o quanto você roeu esse osso brasileiro duro, sendo colocado de lado em todas as antologias, sem jamais ser lembrado, como se não existisses, tu que descolaste a gráfica, o papel, a matriz de silk-screen para fazer aquela capa louca, só de letras (all type! gritam os editores de arte) e que me trouxe o livro que tinha, já na primeira página, meu poema Outubro, que fala em trabalho duro, sugar de pedras, rasgar os caules, colher ar puro. E que trazia aqueles poemas loucos teus e os contos radicais da Mariza (outra escritrora que sumiu).

Tu me perguntaste, Celso, como poderá me agradecer e eu já te respondi: te resgatar é também me ressuscitar, nós os poetas ocultos, que estamos agora novamente na beira do grande lago da literatura brasileira, de novo sem reivindicar nada. Como disse Torquato Neto, sou o que sou, vidente, e vivo completamente todas as horas do fim. O fim que é um começo novo, Marco Celso, e mesmo que novamente não nos escutem, estaremos dizendo o que nos foi legado, essa forja dos deuses de onde saem palavras de uma obra única, nossas poesias irmãs porque foram criadas juntas, nossa ousadia que de tão grande até mesmo nós duvidamos de tudo isso.

Ninguém acredita? Tanto faz. Nós acreditamos. Antes de nós houve algo? Não sei. Fizemos porque decidimos fazer, do nosso jeito. E resultado foi uma explosão. Só agora descobrimos a origem daquele ruído.


RETORNO - (março de 2011): Este post foi escrito há sete anos. Hoje, Marco Celso Huffel Viola está no topo da agitação cultural em Porto Alegre, com o Portopoesia, junto a dezenas de poetas. É a continuidade daquele trabalho que por décadas foi dado como perdido.

9 de novembro de 2004

MOVIMENTO DE MÚLTIPLA INCLUSÃO

Nosso evento marcado para o próximo sábado, dia 13, às 17h30, na sala multiuso da Feira do Livro de Porto Alegre, é um exercício de múltipla inclusão. Primeiro, inclui o romance Universo Baldio, que tão pouca atenção despertou da grande imprensa. Segunda, coloca em cena o trabalho literário e de crítica de Tailor Diniz, que tem magníficas obras publicadas e algumas na gaveta. E terceiro, por trazer à tona Marco Celso Huffel Viola, que com seu Poemas para ler em voz alta joga para cima o talento de um poeta ainda oculto e que tem uma obra única, que merece ser conhecida e celebrada. Incluir é o verbo exato nesta quadra da vida cultural do Brasil soberano.

TV SENADO - Dorva Rezende, editor de Variedades e Cultura do Diário Catarinense, me telefona para comentar minha entrevista (vinte longos minutos sem interrupção) no programa Leituras, da TV Senado. Pergunto sobre seu trabalho de mestrado e ele está bastante animado. Por enquanto guardo segredo para não atrapalhar sua intensa atividade intelectual, que renderá belos frutos. Na entrevista, gostei da maneira como Maurício Melo Júnior orientou o programa, me deixando à vontade para falar não só sobre o romance, mas sobre literatura em geral e sobre o movimento atual das editoras. A conversa foi gravada em abril, na Bienal do Livro de São Paulo e consegui abordar minha preocupação com a permanência das linguagens produzidas no Brasil e a forma como a literatura consegue realizar essa ampla inclusão de personagens que estariam soltos e sem espaço. Cada vivência é única e nosso testemunho é fundamental para que nada se perca, para que não só a minha geração, mas a meninada, saiba o que passamos realmente, longe dos holofotes da História ou mesmo dos livros de autores consagrados. É gratificante ver como as pessoas se sensibilizam com esse resgate e como identificam no livro a gama de pessoas com quem conviveram. Todos possuem amigos que cabem nos perfis expostos, que trafegam por quatro cidades ? Sampa, Floripa, Portinho e Uruguaiana ? cruzando o tempo e trabalhando a própria humanidade. O romance é uma chance diferente da poesia de colocar tudo isso em pauta. A poesia é bem mais transcendente e implica num conhecimento prévio das situações em que os poemas foram criados. Marco Celso e eu produzimos poesias irmãs, que foram criadas juntas, mas se diferenciam pelas identidades próprias. As duas possuem esse rasgo fundo do mito do poeta que anuncia em praça pública seu desencanto e sua luta. O reencontro (há décadas não vejo Celso pessoalmente) será um momento importante para nós e, espero, para as pessoas que vão participar do evento (conto com todos!).

PALAVRAS - Tenho recebido palavras maravilhosas de incentivo pelo trabalho desenvolvido aqui no Diário da Fonte. Jorge Freitas, do Rio de Janeiro, Regina Agrella e Luciana Felix (que estréia seu blog ), de São Paulo, Virson Holderbaum e Marlon Assef (que foram encarregados de fazer um churrasco aqui em casa no último sábado, com excelentes resultados), de Floripa, entre tantos outros, tornam esse ofício muito mais prazeroso e gratificante. Ultimamente, uma série de envolvimentos e contratempos me impedem de postar todos os dias, mas aos poucos o Diário da Fonte voltará ao normal. O importante é essa sintonia com o que há de melhor entre nós. Escrever faz parte da transscendência. Precisamos encxergar muito além do horizonte (sem dele esquecer nada) para continuar indo em frente no país que fecha o cerco sobre nós. Mas como diria aquele líder chinês (acho que o terrível Lin Piao), nos momentos decisivos é que se conhecem as pessoas. Cada momento é decisivo e não podemos nos deixar abater pela quantidade de problemas. O que me deixa feliz é saber que o poeta Caramez lançou seu livro (prefaciado por mim), que Juarez Fonseca e Clovis Heberle querem se encontrar comigo em Portinho, que lá em Porto reencontrarei o grande poeta Oliveira Silveira, que Bebeto Alves, da secretaria de Cultura de Uruguaiana, me convidou para a Feira do Livro da cidade agora nos dias 26 a 28 de novembro. Tudo isso faz parte da nossa militância a favor da literatura e da amizade. Viva o talento brasileiro para a vida gregária, solidária e esperançosa!

TIETA - Cacá Diegues, o cineasta do Brasil profundo, nos deslumbra em Tieta do Agreste, que foi ao ar esta madrugada na Globo (o horário nobre foi reservado para os horrores do sub-cinema americano, claro). Sônia Braga está magnífica no papel da cafetina que volta à sua terra botando banca de viúva de industrial, mas a performance maior fica a cargo de Marilia Pêra, que interpreta a irmã que ficou, Perpétua. Todos somos iludidos, junto com Tieta, que a viuvez de Perpétua é puro carolismo de mulher mal resolvida, coisa que Marília faz com perfeição. Mas chega um momento em que Tieta estoca Perpétua sobre a vida conjugal dela com o falecido major. Nesses poucos minutos, a atriz se transforma. Entre dentes, ela fala da sua felicidade como mulher ao lado do marido que se foi, deixando-nos grudados na cadeira e colocando Braga contra a parede. Para Marília, bastam poucos minutos. Em Pixote, uma pequena seqüência foi suficiente para que ela ganhasse um monte de prêmios e quase levasse o Oscar. Mas quem brilha mesmo é Cacá, que já nos deu obras-primas como Chuvas de Verão. Os presépios vivos, colocados em cena como se fossem uma projeção de slides, é deslumbrante. O conflito entre o pré-capitalismo, encarnado por Tieta e os mandões do lugar, e o picareta que pretende instalar uma fábrica poluente (interpretado, como sempre, magistralmente por Daniel Filho, esse grande ator de escassas aparições na tela) traça o perfil do Brasil que muda aos trancos. A maravilhosa paisagem do litoral baiano, que a certa altura torna-se cenário de um drama, é um grande personagem de Cacá, que segura quase sozinho uma linhagem da cultura brasileira que foi erradicada, mas sobrevive ainda porque temos esse tipo de criador, abraçado à nação única, o insuportável país que amamos.

7 de novembro de 2004

PAZ NO DESTERRO


O artigo mensal que publico no caderno Donna, no Diário Catarinense, desta vez aborda o cruzamento de conflitos e esperanças na capital catarinense, visto aqui como a representação de um momento importante da vida nacional, quando o Brasil soberano busca saídas para viver em paz nas diferenças. Sábado, a entrevista que dei durante a Bienal do Livro em São Paulo foi ao ar na TV Senado e domingo foi repetida às 20h30 (oito e meia da noite). No pé da edição de hoje, seis vezes a mídia impressa de domingo.

Nei Duclós

Desterrados em sua própria terra (na expressão de Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), os brasileiros procuram se refugiar num sonho feliz de cidade (o achado poético de Caetano Veloso na música Sampa). Entre o historiador e o poeta, a paz que não chega é substituída pelo pesadelo, enquanto a hostilidade sobra das estatísticas e vira lugar comum. Há várias categorias de violência, como a doméstica, a do trânsito, a da corrupção, a dos assaltos. Mas no fundo é uma só, que nasce no coração seco da cidadania em pânico. Intensifica-se a impaciência diante dos desmandos, que se multiplicam nos detalhes. Como os fóruns disponíveis não suportam a carga de insatisfação, o que vemos é a negociação diária de todos os conflitos, fonte do stress que contamina todo o tecido social. Quem tem razão costuma perdê-la quando aplica no Outro a injustiça que diz sofrer. Quem não tem, conhece os jargões da correção ética e política e usa o discurso a seu favor. O resultado são os dentes cerrados, agravados pelo desemprego, a falta de perspectivas e a ascensão lotérica, panacéia inútil para todos os confrontos.

Florianópolis torna-se o ponto nodal desse cruzamento entre o imaginário que busca a paz na desigualdade, e a realidade que pressiona para arrombar as comportas. A complexidade da situação é representada pela multiplicidade geográfica. Existe aqui ilha e continente, centro e subúrbios, litoral e interior, migração e nativismo, fases cíclicas de prosperidade e estabilização de situações de crise. A paisagem, aliada ao sonho de felicidade, é cercada pela vontade política de preservação e as necessidades de expansão, algumas legítimas, outras não. Quem vem de fora, quer embarcar na qualidade anunciada e exposta no equilíbrio visível de uma urbanização amigável. Como o adventício pouco sabe das verdades fundas que atravessam os moradores como certezas avassaladoras, sente o embate da sua percepção precária diante do pensamento local, que se sente seguro por ter se destacado entre tantas experiências, a maioria mal sucedidas, de capitais que perderam o rumo ao sofrerem os processos inevitáveis de mudanças.

O perigo maior é a auto-suficiência nos dois lados. O migrante traz seus orgulhos interiores e procura aqui o melhor que traz na bagagem. O morador está firme em sua posição de alvo da admiração alheia. Relativizar os dois perfis é uma obra de engenharia social que Florianópolis engendra, nesta fase de decisões fundamentais que envolve toda a população, obrigada a viver na terra que foi fundada na exclusão e que tornou-se uma nação não só pela ação do tempo, mas pelas lideranças que souberem enxergar as oportunidades e conseguiram criar opções para uma vida dentro de fronteiras estáveis. Esta capital é um destaque desse processo e uma vitória aqui fatalmente vai funcionar como um catalizador importante para o que poderá acontecer em outras cidades.

Equilíbrio nas diferenças, fim de toda e qualquer hostilidade, paciência, amor ao próximo fazem parte da mais importante missão que qualquer cidade brasileira deverá assumir: a de acabar com as suspeitas em relação aos outros. Trazer para o cotidiano o benefício da dúvida produtiva, a que gera soluções, e sensibilizar os governantes para a importância da paz social que os instrumentos públicos e a concórdia poderão trazer, é o que todos os habitantes esperam. Acabar com a sensação de estar deslocado no país escolhido para viver (por nascimento ou opção) é algo que ainda está por ser construído. Aferrar-se a situações tradicionais que sofrem mutação radical, ou tentar impor de fora o que só pode gerar mais conflito, são equívocos que jamais poderão medrar entre nós.

Hoje, pela terceira vez morando em Florianópolis, vislumbro as paisagens que embalaram meus sonhos. Viajo pela ilha confortado pela paz que procuro encontrar depois de longo tempo confinado em espaços urbanos conflagrados. A violência nos expulsa de todos os lugares e esta capital rema contra a corrente ao propor, naturalmente, algo precioso demais para ser desperdiçado. Apurar os ouvidos, entender os hábitos, colocar-se com transparência, apaziguar os ânimos exaltados por tantos cruzamentos de conflitos, compartilhar o bem comum do Brasil soberano, eis as tarefas a que nos dedicamos com alegria, nesta quadra da vida nacional que precisa vibrar no rumo certo: o da paz como único consenso, alimentada pelas diferenças e a gigantesca complexidade que nos aguarda, cada vez que colocamos o pé na rua, ou mesmo dentro das nossas casas. Que o nosso refúgio não sejam as paredes altas, mas a confiança nos outros. E que a nossa grandeza se manifeste, neste trabalho direcionado para a implantação do equilíbrio, remédio contra o caos que poderá nos ameaçar.

MÍDIA - 1.Não foi o povo que elegeu Fernando Collor, nem o movimento dos caras pintadas que o tirou do poder. Foi o Roberto Marinho que fez as duas coisas, segundo sua viúva, em declaração para a sempre reveladora Mônica Bergamo, na sua coluna na Folha.

2. José Maria Wisnik, uma das figuras carimbadas da dita vanguarda cultural paulista, comenta que os primeiros poemas de João Cabral de Melo Netto eram uterinos. Com perdão da palavra, Cabral uterino é um bom cacete. Outra bomba da matéria sobre ele, no Mais! deste domingo, é o impacto que teria sofrido em Buenos Aires, ao conviver com uma população letrada. O Brasil não é iletrado. No Brasil, os letrados são excluídos. E são excluídos para que pontifiquem os darlings da cultura oficial, que ao descolarem-se da nacionalidade (a que interessa, a do Brasil soberano) prestam tributo à entrega total do país. Para Wisnick e outros eleitos, aceitar o fato de um Brasil letrado é perder o lugar no trono que ocupam com tanta pompa.

3. Slavoj Zizek, também no Mais! diz que a reeleição de Bush confirma que vivemos numa nova era, em que os Estados Unidos agem isoladamente para dominar o mundo. Isso é mais velho do que andar para frente. Lênin em Imperialismo, fase superior do capitalismo, analisou melhor do que ninguém esse fenômeno, fonte de tantas tragédias globais. Lênin falava das potências européias, mas sua análise cabe direitinho na América de hoje. A eleição de Bush apenas comprova que os letrados oficiais, aqueles que pontificam graças à exclusão das pessoas letradas, não servem como oposição ao império. No fundo, apenas reforçam a bandalheira e justificam a paranóia dos fundamentalistas. A solução é escancarar as portas da cultura e da mídia e acabar com a exclusão: fazer com que os letrados de todos os cantos tenham voz e a oposição não fique confinada a meia dúzia de cabeças muito bem remuneradas (exploradores da consciência internacional anti-exploração) e que continuarão vivendo disso, da briga contra Bush (que gargalha).

4. Elio Gaspari, o inventor da patuléia, fica chocado ao comentar o testemunho de um conhecido seu que viu Jair Meneghelli, atual chefão do Sesi, bochechar vinho num restaurante de Brasília. Só o Barão de Rotschild poderia se dar a esse luxo (aprovar o vinho antes de bebê-lo). O dinheiro do Barão era legítimo, claro, vinha da pirataria internacional. O de Jair é espúrio, vem da tal patuléia (origem do próprio Jair). Eu mesmo fui submetido a esse ritual de restaurante. Acho uma frescura, mas seria uma indelicadeza ao garçom recusar. O que encanta é Elio Gaspari orgulhar-se de sua posição pseudo aristocrática, uma pose que ele se atribui ao fazer parte da chamada inteligentsia (palavra em desuso). Gaspari é um exemplar da direita que se acha esclarecida. Ele e mais alguns ocupam o espaço que deveria ser da verdadeira oposição, que está excluída da mídia. A direita inventa tudo: situação e oposição, PSDB e PT.

5. Saiu do Planalto um dos mais talentosos, corajosos, gentis e brilhantes jornalistas do país. Ricardo Kotscho honra a profissão e sua presença no Planalto estava ligada à imagem que o PT vendeu, e traiu, de partido da esperança e da mudança. Sua saída foi por motivos pessoais, diz a versão oficial. Vejo de maneira diferente. Ele saiu porque sua ética não cabia mais no governo a quem serviu, governo que caiu na vala comum da nacionalidade vendida.

6. Por que o Mais!, como contraponto, não publica um artigo sobre o Brasil nessa segunda fase de Bush? Não temos articulistas preparados? Emudecemos, para que analistas estrangeiros fiquem falando só deles, como se fôssemos o lixo do mundo? Voz ao Brasil soberano. Longa vida a Ricardo Kotscho, orgulho do jornalismo pátrio.

RETORNO - Recebi o livro Poemas para ler em voz alta, de Marco Celso Viola (editora Office). Exijam seu exemplar. No próximo sábado, Celso e eu, mais Tailor Diniz, estaremos na Feira do Livro em Portinho para debater às 17h30 um pouco de literatura. Especialmente essa literatura que fica oculta e que um dia vem à tona, porque vertente de montanha jamais trai sua vocação de rio, e nenhum rio que desce esquece que um dia será mar.

6 de novembro de 2004

AGENDA CHEIA


O longo exílio acabou. Neste novembro, vou bater um pouco o bumbo. Anuncio nesta edição o que vou aprontar por esses dias. Conto, como sempre, com a atenção e a torcida dos amigos. Para os eventos programados, a presença de cada um será mais do que uma honra, uma alegria.

FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE - O anúncio oficial está assim:

Dia 13 de novembro de 2004, sábado
17h30min
Universo baldio (Francis/W11 Editores)
Mesa - Literatura
Local: Sala Multiuso - Memorial do Rio Grande do Sul
Participantes: Nei Duclós, Tailor Diniz, Marco Celso Huffel Viola

Convidei Tailor Diniz, romancista e jornalista de primeiro time, por ser um dos resenhistas que rompeu o cerco e na revista Aplauso publicou primorosa resenha sobre meu romance de estréia Universo Baldio. Aproveitei para fazer uma celebração e convidei meu poeta favorito, Marco Celso Viola, aquele cara que me levou para a praça em 1969, onde nestes dias está sendo realizada mais uma Feira do Livro, já tradicional em Porto. Lá expusemos os poemas da praça. Vamos comemorar 35 anos dessa loucura, feita em plena ditadura e que foi o primeiro contato com o público, que parava para ler nossos poemas escritos em pincel atômico (lembram-se?) em cartolinas. Dessa exposição partimos no mesmo ano para o livro mimeografado Tombam os primeiros homens nos trigais (verso de Celso), que trazia, além dos nossos versos, contos de Mariza Scopel.. Somos portanto anteriores à chamada geração mimeógrafo, que só foi detectada pela universidade nos anos 70. Por que não fazemos parte dessa geração? Perguntem aos professores. No evento, uma pessoa escolhida por Celso irá declamar alguns poemas nossos. Será um debate, um encontro, um resgate. No mesmo evento, Marco Celso enfim lançará seu livro Poemas para ler em voz alta (edição do Autor). Será também o fim do exílio do grande poeta oculto, o que ficou à parte de todas as igrejinhas e vidinhas literárias. Um Rimbaud brasileiro, o cara que nasceu poeta e nada o desviará desse caminho.

TV SENADO - Está anunciado: O programa Leituras desta semana, da TV Senado, produzido e apresentado pelo jornalista Maurício Melo Júnior, traz o escritor Nei Duclós, que estréia como romancista com o livro Universo baldio. Dividida em duas partes, a obra destaca, através de um resgate histórico, a década de 70, o clima de tensão vivido na época da ditadura. No ar: Sábado, 06/11, às 9h30 e 20h;Domingo, 07/11, às 20h30.
Maurício fez essa entrevista na Bienal do Livro de Sampa, em abril deste ano. Ele passou em frente à estande da W11 e eu o abordei. Dei-lhe os parabéns por ser o responsável pelo único programa inteiramente dedicado aos livros na TV brasileira. Mauricio é uma pessoa maravilhosa, receptiva e democrática, e já deu uma nota sobre meu trabalho no programa. Agora vai a entrevista completa, que deve ter uns vinte minutos.

DIÁRIO CATARINENSE - No Caderno Donna, do Diário Catarinense, publico meu artigo mensal de página inteira, que logo em seguida à publicação reproduzo aqui no Diário da Fonte, como sempre faço. Será neste domingo, dia 7 de novembro. O Diário tem sido um maravilhoso veículo, que me abriu as portas e me trata com o maior respeito e carinho. Fico feliz e agradecido por essa recepção.

4 de novembro de 2004

GLOBO ELEGE BUSH


A Rede Globo mostrou como se faz uma campanha política por meio de uma cobertura que tem cara de jornalismo, tem corpo de jornalismo, tem rabo de jornalismo, mas não é jornalismo, é marketing. A campanha de Bush foi apresentada numa seqüência impressionante de manifestações populares, com o repórter global aparecendo em todos os aeroportos onde o candidato pousava carregando o tripé da câmara, numa representação convincente de que está trabalhando (trabaiá é fazê baruio e carregá peso). Já o pobre do Kerry aparecia apenas em dois momentos, enregelado, diante de uma pequena platéia. Kerry perdeu a eleição ali. The winner is?Gloôôôbô!

CERCO - Há um desafio para a cultura mundial. A de disseminar a leitura e a reflexão (fruto do silêncio) para contrapor-se à bandidagem no imaginário das nações. A hispanidad, como sempre, ficou do lado do mais forte e atirou-se nos braços do cara que transformou o mundo num terror só ao mentir sobre as ligações entre o 11/9 e o Iraque, entre outras contrafações largamente apontadas pela literatura anti-Bush. O Mais! de domingo, na Folha, publica hilário texto de Norman Mailer que diz, entre outras coisas, que Bush tem o sorriso de comedor de excrementos. Isso se chama jornalismo: saber acertar na mosca quando se trata de contrapor-se aos ditames da direita. Aqui, estamos mudos. Internet são palavras ao vento. Vale o que está escrito, ou seja, impresso. Ou o que está na cabeça de todos via TV. Descobri que a verdadeira TV fechada é a chamada TV aberta. Como não tenho mais, por enquanto, TV a cabo, descobri que as redes disponíveis cercam o telespectador num círculo de miséria e de horror. Uma saída é a blogosfera, que ontem estava lotada. Tentei postar este texto logo depois dos resultados que davam a vitória ao Ogro e não consegui. O blog por enquanto é território livre e está sendo tremendamente utilizado pela imprensa americana. Aqui blog ainda é encarado como brincadeira de criança, apesar dos excelentes espaços mantidos por vários jornalistas. O que está faltando nos blogs brasileiros é erradicar o hábito de coluna social. No fim, quem venceu a parada na nossa imprensa foi o Ibrahim Sued, o cara da exclusão, que distribuía bola branca e bola preta para as pessoas. In e out, ou o sobe e desce da Veja, repetem a fórmula. Os posts milimétricos, para, digamos, facilitar a leitura (leitura é reflexão, é um trabalho árduo, não precisa ser facilitada) estão por fora. Textos completos, por favor.

PRECONCEITOS - Ninguém imagina o eleitorado como um conjunto de cabeças pensantes. Imaginam uma massa de manobra do marketing. Agora querem explicar a derrota da Marta Suplicy como se fosse culpa dos preconceitos. Besteira da grossa. Marta traiu o eleitorado ao nada fazer pela cidade, ao deixá-la o caos que é há décadas, a cuidar apenas de sua imagem de aristocrata dos jardins, achando que isso lhe dava autoridade, pois acha que o povo respeita os ricos. O povo respeita seriedade, sobriedade na terceira e em qualquer idade, realizações a favor da população. Um analista da Folha chegou a sugerir que o fato de ter feito pouco pela saúde é até um elogio, pois significaria que fez muito em outras áreas. Que outras áreas? Sem saúde não há vida. Pela educação? Encheu os bolsos das empreiteiras com o tal de CEU (projeto mal chupado do Darcy Ribeiro e do Brizola, que na época em que lançaram os Cieps foram acusados de demagogos pelos caras que hoje estão no poder)? Outro analista, este dentro do PT, diz que a culpa foi do Eduardo Suplicy, que se fez de coitadinho. O fato é que o povo cansou dessa família Suplicy, com o tal de Supla, que finge ser punk, seguido pelo songa monga do Eduardo, tudo coroado pela quase ex-prefeita. Deu para bola. O povo repudiou tudo isso. Vamos ver se Serra vai ficar enrolado nos seus preconceitos e sua falta de visão e fazer caca na prefeitura paulistana. Serra precisa se convencer que ganhou não porque seja o rei da cocada preta, mas porque o povo apostou nele depois de se desencantar com Lula e Marta. Ele tem a oportunidade de ouro de fazer pelo país o que ninguém fez. Mas Serra é de confiança? A maioria achou que é. Eu votei em trânsito. O maior desastre, para mim, foi o Paulinho no PDT. Paulinho nada tem a ver com o PDT. Quando o PDT vai tomar jeito?

MATINÊS - Batíamos os pés nas matinês para exigir que o filme começasse. Quando a luz acendia no meio da sessão, exclamávamos: ah, roubaram! Pois a cena que estava passando sumia e aparecia outra. Significava que havia roubo de muitos metros de filme. Fazíamos o gesto com as mãos, calculando o quanto de filme tinha sido surrupiado. Hoje rezamos para que haja algum filme na TV, qualquer um, que não nos expulse da sala. Acabou o deslumbramento diante das imagens. Para a minha geração do cinemascope, em que a majestade dos filmes (dirigidos por grandes diretores, como William Wyler e David Lean) nos deixava grudados nas cadeiras, é uma pena descobrir que as coisas podem andar para trás. O que nos espera nestes quatro anos de mais Bush? Fatalmente mais mentalidade colonizada. A Folha exagerou com a palavra Império, reproduzindo fotos tiradas de baixo para cima dos dois candidatos, com a bandeira listrada e estrelada ao fundo. Mais quatro anos significam também mais uma temporada de literatura anti-Bush. Mike Moore e companhia não foram suficientes para derrotar o cara. Insistirão na tecla ou vão mudar de estratégia?

RETORNO - Está anunciado: O programa Leituras desta semana, da TV Senado, produzido e apresentado pelo jornalista Maurício Melo Júnior, traz o escritor Nei Duclós, que estréia como romancista com o livro Universo baldio. Dividida em duas partes, a obra destaca, através de um resgate histórico, a década de 70, o clima de tensão vivido na época da ditadura. No ar: Sábado, 06/11, às 9h30 e 20h;Domingo, 07/11, às 20h30.