A favor ou contra, o pensamento de Marx assombra o debate político há quase dois séculos. Miguel Lobato Duclós (1978-2015) pega o touro a unha, nos limites da Filosofia e do trabalho acadêmico, sem fazer concessões às facilidades das aparelhagens múltiplas que assolam o marxismo, seus fanáticos e seus detratores. Boa oportunidade para entender melhor o que pega neste autor pra lá de polêmico.
“A MATURAÇÃO DO PENSAMENTO DE MARX”
POR MIGUEL DUCLÓS
Trabalho originalmente apresentado para a cadeira de Filosofia
Geral – FFLCH-USP .
http://www.consciencia.org/marx.shtml
" Este trabalho
trata de um período histórico-filosófico grande. Abordo aqui desde algumas
leituras marcantes para o Jovem Marx até o primeiro capítulo da obra prima
deste, O Capital, livro que é fruto uma vida inteira de estudos e coroação de
sua maturidade como pensador e teórico. Porém, nosso artigo não tem a pretensão
de tratar todos os conceitos fundamentais que foram determinantes para a
maturidade do pensamento marxiano, mas sim se limitar a três conceitos específicos incluídos em três obras
de Marx. Na primeira, Os manuscritos Econômico – Filosóficos, de 1844, será
destacado o conceito de alienação, bem
como o estilo ainda Feuerbachiano do autor. Na segunda, A ideologia Alemã e nas Teses sobre Feuerbach, será destacado a
ruptura de Marx com sua consciência filosófica anterior, e sua formulação,
junto com Engels, da teoria que seria uma das
designações do seu pensamento: o materialismo histórico. No centro de
tal teoria está o conceito de Ideologia, que será relacionado com a explanação
sobre o fetichismo da mercadoria no primeiro capítulo de O Capital.
Feuerbach
havia demonstrado, em A Essência do Cristianismo, a tese escandalosa para a
sociedade da época, que a essência da religião é a essência do ânimo humano, e
que a teologia pode ser explicada pela antropologia. Explica o autor que as
representações e segredos atribuídos a um Ser sobre-humano não eram mais do que
representações humanas naturais, e que aquilo que no imaginário pairava no Céu,
pode ser encontrado sem maiores dificuldades no solo da Terra. Dessa forma, o
homem transporia para o Céu o ideal de justiça, bondade e virtude que não
conseguia realizar na Terra. Colocaria num grau universal e absoluto atributos
e qualidades de si mesmo. Todos os Deuses não seriam então, mais do que
criações humanas. Feuerbach reconhece o sistema de Hegel como uma teologia
especulativa, e critica a Idéia absoluta, que seria baseada na revelação e
encarnação cristãs, ultrapassando assim o racional e se tornando teologia.
Coloca em seu lugar a noção de Ser genérico do homem. A teologia, religião
institucionalizada, é fonte de dogmas a abstrações metafísicas que perdem a
ligação com o real e palpável. Cada religião pretende ser a detentora da
verdade, e isso é motivo de fanatismo e
intolerância com outras formas de pensamento. A verdade acessível apenas a
alguns (revelada pela fé), sem critérios objetivos, torna fácil a manipulação
de pequenos grupos sobre os demais, por se tratar de algo que não pode ser
demonstrado com base em elementos sensíveis.
Feuerbach
inicia A essência do Cristianismo dizendo que o homem difere do animal por ter
uma consciência no sentido estrito, ou seja, sua consciência “tem por objeto o
seu gênero, a sua essencialidade” 1. Essa consciência do homem enquanto espécie,
que é próprio deste por fazer parte de sua ciência, o difere do animal. Do
outro lado está a “consciência de si”. Afirma Feuerbach sobre ela:
“A consciência
de Deus é a consciência de si do homem, o conhecimento de Deus é o conhecimento
de si homem. Pelo seu Deus conheces o homem e, vice-versa, pelo homem conheces
o seu Deus; é a mesma coisa.” 2
Essa idéia de que a natureza dos deuses difere na mesma
proporção da natureza dos povos não é nova. Feuerbach realmente desenvolve
algumas frases dos pensadores pré-socráticos, como sua frase de que o “ser é, o
não ser não é”, tomada emprestada de Parmênides e aplicada em um contexto mais
profunda. Xenófanes de Colofão, mestre de Parmênides, ficou famoso por ser um
dos primeiros filósofos a defender a unidade da divindade, o monoteísmo. Também
afirmava, como Feuerbach, que a natureza dos Deuses variava com a natureza de
quem os adorava. Vejamos os seguintes fragmento de Xenófanes:
“Mas se mãos
tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar
obras como os homens,
os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos
bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles
próprios têm”. E mais adiante:
“os egípcios
dizem que os deuses tem nariz chato e são negros, os trácios, que eles tem
olhos verdes e cabelos ruivos.”3
Por esses
trechos, vê-se que, mesmo antes da ascendência do Deus cristão, já havia uma
crítica à antropomorfização dos Deuses. Para Feuerbach, uma essência finita não
pode ter a mais remota idéia de uma essência infinita. Também Hegel afirma, em
Introdução à História da Filosofia, que
o homem não pode conceber o que é o Infinito porque só pode empregar para isso
categorias finitas. A religião cristã pretende a essência do homem infinita,
mas para Feuerbach o homem só pode ter consciência de tal essência se ela for
razão, vontade e pensar. A consciência
de si do homem vem pela consciência do objeto. Feuerbach inicia assim sua busca
de superação do subjetivo. O que nas antigas religiões era considerado
objetivo, hoje é apenas reflexo de idéias que só podem ser sentidas por
abstrações, pertencendo portanto ao interior do homem. Feuerbach constata que a
teologia se transformou em antropologia há muito tempo.
Sua crítica às religiões pretende ser
universal, buscando o que há de comum a todas as religiões. Chega à conclusão
de que o mundo transcendente e a caracterização humana dos personagens divinos
é comum nas religiões. Porém, essa generalização é no mínimo complicada. Muitos
povos não podiam separar o sujeito do objeto, ou seja, o indivíduo nada mais
era do que parte integrada do ambiente, e não podia ser entendido fora do seu
quadro social. A religião muitas vezes não reconhece em sua idéia de divindade características
humanas. Pois, afinal, o homem é apenas uma parte do todo, e nesse caso Deus é identificado com a
totalidade da Natureza. Isso ocorre no panteísmo e em algumas religiões
indígenas e orientais. A natureza é entendida como um complexo sistema de
ambientes que existe independente da percepção humana. O egoísmo e a vaidade
são os responsáveis por representar a
divindade como algo humano, e a raça humana como herdeira da Terra. De fato,
não é preciso ir muito longe para concluir que a idéia do planeta existir para
servir ao homem constitui equívoco grave. O que Feuerbach fala é válido
sobretudo para a religião judaico-cristã. No Velho Testamento está escrito que
Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e no Novo Testamento é um homem que
se faz Deus. Para Feuerbach isto é uma inverção da relação sujeito-predicado. O
homem cria um sujeito infinito e atribui a ele a criação de si.
A teoria
feuerbachiana causou profunda influência na filosofia do século XIX. Os
primeiros a se entusiasmarem com ela foram os jovens hegelianos, dentre eles
Marx, que trataremos adiante. Mas a noção materialista de humanismo ateu iria
alcançar um reflexo maior no século em que foi proclamada a morte de Deus. Quem
mais alto bradou sua morte foi Nietzsche, inicialmente em A Gaia Ciência, e
posteriormente em sua obra-prima, Assim Falava Zaratustra. Nietzsche engendra
uma crítica severa à moral cristã, que para ele é ascética e mortificadora da
vida – a moral dos escravos, que limita a Vontade de Potência. No lugar da
metafísica, Nietzsche propõe um apego aos valores da Terra, lugar onde o
além-homem – aquele que cria seus próprios valores – direcionaria sua vida e
sua paixão. No trecho adiante está uma passagem em que fica claro a relação
entre o apego de Nietzsche à filosofia terrena e o materialismo de Feuerbach
que prega o mundo sensível:
“Em outras eras,
blasfemar contra Deus era o maior dos absurdos; porém Deus morreu, e morreram
com ele tais blasfêmias. Agora, o que causa mais espanto é blasfemar da Terra,
e ter em mira as entranhas do impenetrável e não a razão da Terra.” 4 A título
de curiosidade, vejamos o que Nietzsche fala em O Crepúsculo dos Ídolos: “O
homem seria tão somente um equívoco de Deus? Ou então seria Deus apenas um
equívoco do homem?”5 . Como se vê, o cerne do pensamento nietzscheano encontra
procedência em Feuerbach. Outros paralelos podem ser traçados, como o da
crítica ao plano transcendente, herança religiosa e platônica:
“Este mundo, o
eternamente imperfeito, pareceu-me um dia a imagem de uma contradição
eterna, e uma alegria inebriante para o
seu imperfeito criador (…) Ai, meus irmãos! Este Deus que eu criei era obra
humana e humano delírio, como os demais deuses.
Era homem, apenas um
fragmento de homem e de mim. Esse fantasma surgia das minhas próprias cinzas e
da minha própria chama, e realmente nunca veio do outro mundo” 6
Como se vê,
filósofos das mais diversas áreas de atuação se aproveitaram das veredas
abertas pela crítica de Feuerbach à religião e à teologia. Mas tal alcance não o livrou de críticas,
como por exemplo a dos religiosos, que sugeriram um outro título para o seu
livro: “A essência do Anti-Cristianismo” e a do pensador anarquista Max
Stirner, que fazia parte da esquerda hegeliana. Stirner -criador de um
individualismo radical que fundamenta a liberdade- ataca Feuerbach dizendo que
este substituíra meramente a palavra Deus pela palavra homem. Dessa forma,
Feuerbach rezaria pelo homem. Segundo Stirner, ele não teria deixado de ser
hegeliano, porque apenas transpôs o ideal teológico e divino por uma noção
abstrata de humanidade.
Mas Feuerbach teve influência ativa nos hegelianos de
esquerda. Engels escreveria, mais tarde, que
todos os neo-hegelianos foram
feuerbachianos. Dentre eles estava Marx, que de inicio adotou alguns conceitos
e terminologia de Feuerbach. No primeiro manuscrito de 1844, Marx trata da
questão da alienação. Tal termo fazia parte do vocabulário de Feuerbach, para
quem a religião era uma alienação, pois, colocando sua essência e sua
humanidade num Ser fora de si próprio, no mundo invertido da divindade, o homem
vira um ser que não se pertence. Esse é o aspecto religioso da alienação que
Feuerbach usa. O homem adora os ídolos que projeta. O próprio Marx afirma que,
quanto mais se atribui a Deus, menos sobra para o homem .7
O termo alienação foi usado também por Hegel, fazendo parte
da dialética, pois o homem aparecia em cada etapa da dialética como distinto do
que era antes. Althusser observa que
Marx aplicou a teoria da alienação de Feuerbach à política e a economia. 8 Para Althusser, Marx “esposou” a terminologia
e a problemática de Feuerbach durante as suas obras de juventude.9 Por isso, o impacto das obras de 1845, no
momento em que rompe com Feuerbach seria muito grande.
Para Marx, a
alienação religiosa seria gerada pela alienação econômica. Tal estado é, para
Marx, resultado da realização de o trabalho aparecer como a desrealização do
trabalhador. O objeto produzido pelo trabalhador aparece como estranho e
independente a ele. As mercadorias existem para suprir necessidades. O sistema
capitalista transforma o trabalhador e o trabalho em mercadorias, ao privar o
trabalhador dos objetos que produz. Quanto mais ele produz, menos pode possuir.
Essas apropriação do objeto pelos possuidores da propriedade, se realiza como
alienação do trabalhador. Este, ao pôr sua vida na produção de objetos que não
lhe pertencem, perde a posse desta.
Como afirma
Marx, “a alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o
trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe
independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em
oposição com ele”.10
Marx critica a
economia política de então esconder a verdadeira relação entre o empregado e o
empregador. O Estado submete os trabalhadores a seus próprios interesses. O trabalhador ganha um salário que não
consegue comprar os produtos que ele próprio produziu. Ele produz coisas para
os ricos, mas pouco sobra para ele. Esta é a contradição básica do sistema
capitalista na época de Marx. O empregado aparece então apenas como instrumento
para o bem estar dos possuidores.
Marx, dialeticamente, oferece um quadro de inversões para as
atividades dos trabalhadores: quanto mais produz, menos possui, quanto mais
civilizado é o produto feito por ele, tanto mais bárbaro ele se mostra. Nas
fábricas as limitações a que o empregado é submetido, como os movimentos
repetitivos, as jornadas de trabalho sobre-humanas, o baixo salário, a
repressão e outras, apenas evidenciam seu
caráter apenas funcional. Ele não transforma mais a natureza para fazer
coisas que estão relacionadas a ele, ou que vão beneficiá-lo diretamente. Sua
atividade apenas vai garantir que não morra de fome, pois o salário mínimo é a
soma das condições mínimas de subsistência (alimentação e moradia).
A alienação
para Marx ocorre não na relação do trabalhador com o produto de seus trabalhos,
mas também na própria atividade produtiva. Ou seja, o trabalho não pertence à
natureza do trabalhador, mas sim é condição para que esse sobreviva
minimamente, sendo obrigado a se adequar à condições de trabalho acima
descritas. Por esse fato, ele apenas se esgota, e não se realiza na plenitude
de suas capacidades mentais e físicas. Como afirma Marx, o trabalho “não
constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer
outras necessidades”. 11 Estas outras necessidades geralmente se reduzem à
prioridades mínimas, como alimentação, moradia. O meio para satisfazê-las é o
dinheiro, um valor que não existe naturalmente, mas é abstraído e
convencionado. O trabalhador vendeu seu tempo, seu sentimento, sua força, suas
aspirações pelo dinheiro, e na posse de algum, pode trocá-lo por qualquer tipo
de mercadoria, inclusive pelas que ajudou a produzir. Este trabalho alienado é
um processo de mortificação, em que
homem exerce uma atividade cansativa que não condiz com sua aspiração de
indivíduo opinante, de cidadão livre, ou mesmo de animal, que tem emoções,
orgulho, instinto, prioridades físicas. Marx afirma que o trabalhador só
consegue ser livre nas funções animais, como beber, procriar, comer, mas nas
atividades humanas se vê reduzido a animal. Mas estas funções animais primárias
estão implicadas com o sistema social a ponto de perderem seu sentido original.
O homem, ao
modificar sua animalidade e sua humanidade, subordinado-a a um sistema social
de valores e limitações, modifica-se, perde sua essência. E as esperanças humanas
são então projetadas em um além, num Ser Divino, perfeito, de valores eternos.
Esta alienação religiosa, subordinada à alienação econômico-política, leva o
homem à incapacidade de reconhecer sua
humanidade em si mesmo, porque seu Deus é definido por tudo aquilo que ele
mesmo não possui, ou que perdeu.
Marx, depois
de reconhecer dois aspectos do trabalho alienado – a relação do trabalhador com
o produto de seu trabalho, e a relação do trabalhado ao ato de produção, a auto-alienação – fala de uma terceira
determinação do trabalho alienado, que parte das outras duas. Marx, usando de
um vocabulário feurbachiano sobre Ser genérico, afirma que os dois primeiros
tipos de alienação alienam o homem enquanto espécie. A atividade produtiva se
transformou em social. Os meios de sobrevivência do homem estão condicionados
pelas leis de mercado e do trabalho. Dessa forma, a vida genérica do homem
serve de meio para a vida individual, pois a atividade produtiva é o único modo
de continuar existindo fisicamente. Marx
então faz uma comparação entre o homem e o animal, que lembra muito a
Introdução da Essência do Cristianismo. Ele afirma o animal é a sua própria
atividade, não se distingue dela.12
Enquanto o homem possui uma “atividade vital consciente”, pois submete
sua atividade vital à vontade e à consciência. Feuerbach, como já observamos,
afirmava que a diferença principal entre o homem e o animal é que o homem tem
consciência no sentido estrito, que tem como objeto o seu gênero, a sua
espécie.13
Marx continua
sua argumentação observando que, se o animal também produz, o homem reproduz
toda a natureza, enquanto o animal apenas se reproduz a si. É interessante
notar que Marx, embora esteja tratando de uma questão já exposta por outros
autores, consegue aprofundar as questões, usando um vocabulário ainda
hegeliano, ainda feuerbachiano. Isso acontece, porque naquele momento, Marx transformava sua consciência
filosófica em economia política. Os Manuscritos tem esse duplo caráter, o
filosófico e o econômico. Segundo Althusser, os encontros anteriores de Marx
com a economia política tratavam apenas de algumas questões e efeitos
relacionados com a política econômica. 14 Marx encara, nos Manuscritos, a
Economia Política de verdade, formulando teorias que tratam dela como um todo,
procurando seus fundamentos. No início dos Manuscritos, Marx afirma que a
Economia Política de então parte do fato da propriedade privada sem o explicar.
A propriedade privada era pressuposto, por isso os economistas não a haviam problematizado como deviam. Nos Manuscritos, são levantados diversos
conceitos e problemas que aparecerão mais tarde em O Capital. Marx analisa a
economia política burguesa a partir de um conceito chave, o de trabalho
alienado.
O homem, ao
reproduzir-se fisicamente na natureza através da transformação da mesma pelo trabalho, reflete a si próprio no
mundo objetivo. Sua individualidade é refletida pela obra que ele mesmo criou.
Como já dissemos, a atividade produtiva é social, ou seja, pertence à vida
genérica do homem, que ao representar-se, representa também a humanidade. O
trabalho alienado tira do homem o fruto de sua produção, tirando assim, ao
mesmo tempo, a sua vida genérica. Para Marx, o homem só era capaz de realizar
suas forças intelectuais e físicas interagindo com o ambiente. O homem depende
da natureza para crescer e conseguir sustento. Sua consciência não pode ser
fechada, subjetiva, mas sim ser moldada pela realidade natural e social. O
trabalho alienado transforma o homem estranho a si mesmo e ao ambiente onde
vive. Segundo a concepção etimológica, alienatus é aquele que não se pertence,
aquele que pertence a outro. O homem, alienado-se no seu trabalho, na sua vida
genérica, aliena-se também dos outros homens. Marx continua dizendo que o ser
estranho a quem pertence o trabalho alienado tem de ser algo real, objetivo.
Dessa forma, não é nem à natureza nem aos deuses que ele pertence, mas sim ao
próprio homem. O produto do trabalho pertence a alguém distinto do trabalhador,
ou seja o capitalista. O trabalho é sofrimento para alguns, enquanto suas
condições o afastam de si e da natureza, mas é fruto de gozo para aquele que
desfruta dos produtos.
Portanto, a
propriedade privada é fruto do trabalho alienado. A propriedade privada, para
Marx, é conseqüência e causa do trabalho alienado, da mesma forma que o salário
também é conseqüência deste. Marx chegou ao conceito de trabalho alienado a
partir da economia política, que “tudo atribui 15 à propriedade privada” e nada ao trabalho. Ela apenas formulou as
leis do trabalho alienado, e não denunciou o seu caráter hostil à natureza
humana, escravizador, que transforma o homem em um instrumento da riqueza de
outros. Marx, depois de explicitar as implicações do trabalho alienado, parte
para a explicação da propriedade privada.
Essa
importância que Marx dá às condições materiais da transformação humana, esta
aplicação da economia à filosofia levariam Marx a romper com o idealismo da
esquerda hegeliana. A famosa afirmação de Marx, no Manifesto Comunista, de que
a história de toda sociedade até hoje tem sido a história da luta de classes,
está ligado à maturidade de seu pensamento que encontra marco definitivo no ano
de 1845, com a publicação de A Ideologia Alemã, em co-autoria com seu amigo,
Engels. Neste livro estão lançados a base do materialismo histórico e do
materialismo dialético, que ficaram sendo conhecidos como uma designação da
teoria marxista, apesar de Marx não usar exatamente estas expressões, mas sim
“concepção materialista da história”. Nas teses sobre Feuerbach, Marx dirige
àquele que havia sido seu inspirador, como já vimos, críticas duras. O centro
dessa crítica é fundamentado pela economia, pela atividade humana produtiva,
pela política. O motor da história não pode ser, de modo algum, as idéias ou as
teorias, mas sim a atividade humana objetiva – o trabalho.
Os filósofos sempre separaram o mundo intelectivo do mundo
cotidiano, prosaico. De fato, há essa diferença entre o ócio e o negócio. O
cultivo do espírito, necessário para as atividades intelectuais, não se realiza
com o trabalho obrigatório. Os filósofos, muitas vezes propuseram uma linha de
ação prática, como Bacon e Descartes, mas a filosofia, na contemporaneidade,
perdeu muito espaço para a ciência, às vezes ocupando até um papel adjunto, de
fundamentação da ciência. Isto se deve sobretudo à aplicação prática da
ciência. A ciência é o saber racional do mundo, mas suas descobertas tem valor
prático sobretudo por direcionar melhor a transformação da natureza em produtos
utilizáveis pelo homem.
Marx critica
os filósofos por desprezarem a praxis e se preocuparem apenas com a teoria. A
praxis estava sendo entendida até então
como uma atividade suja e mundana, e não estava sendo respeitado seu caráter
revolucionário. Marx ataca Feuerbach por limitar sua crítica da
auto-alienação ao terreno religioso,
divino. O fundamento terreno que projeta
nas nuvens um reino autônomo deve ser explicado pela decadência e contradições
presentes no próprio processo evolutivo terreno. Por isso, a realidade terrena
deve ser revolucionada. O fato de que as relações sociais são todas práticas e
sensíveis leva à revelação que o indivíduo abstrato, sozinho, é apenas
social. A XI tese adquire importância
como crítica à filosofia, especialmente ao Idealismo alemão, que representavam
o mundo invertido, do invisível colocado acima do sensível, da idéia colocada
acima da matéria.
Marx critica,
em Sobre a Questão Judaica, esta inversão. Vejamos este famoso trecho:
“O fundamento
da crítica religiosa é o seguinte: o homem faz a religião, a religião não faz o
homem (…). O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. (…) Portanto, a
luta contra a religião é indiretamente a luta contra aquele mundo cujo aroma
espiritual é a religião. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o
sentimento de um mundo perverso, e a alma das circunstâncias desalmadas. É o
ópio do povo”. 16
Nas teses
sobre Feuerbach, Marx afirma que o sentimento religioso é um produto social
relacionado a uma forma determinada de sociedade. Para ele, a fonte da
deficiência religiosa deveria ser buscada na deficiência do próprio Estado.
Esta deficiência deveria ser suprimida com a tomada de consciência do homem
como um ser espécie, num coletivismo que mudava o homem individual, abstrato.
Daí advém a divisão da sociedade em classes sociais. Marx lembra que o homem
não é apenas um produto das condições materiais, pois a interação com a
natureza possui um aspecto criativo e subjetivo. As circunstâncias são feitas
pelos homens, e o próprio educador deve ser educado. Mas sua crítica ao
idealismo é cortante, como se vê no Prefácio à Economia Política, onde Marx
diz: “O processo de vida material condiciona o processo de vida social,
política e individual em geral. Não é a consciência dos homens que lhes
determina o ser, mas pelo contrário, é o seu ser social que lhes determina a
consciência.”17 E em A ideologia Alemã
afirma que não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina
a consciência. 18
O termo
ideologia foi criado por Destutt de Tracy, que fazia parte de um grupo chama de
ideólogos franceses. Nesse grupo constam também nomes como Cabanis, Volney,
Garat, Daunou. A ideologia é a ciência que tem por objeto de estudo as idéias,
suas origens, formação e relação com os
signos. Posteriormente, em um sentido mais amplo passou a significar um sistema
de idéias que refletem uma visão de mundo e orientam uma ação política. Marx, como
fez com o conceito de alienação, toma o termo num sentido próprio, dando-lhe
conotação pejorativa.
Marx inicia A
ideologia Alemã ironizando os pensadores recentes hegelianos por acharem que
uma revolução no plano do pensamento foi mais importante que a Revolução
Francesa. A Alemanha estava atrasada em relação aos outros países da Europa,
como a França e a Inglaterra. A Inglaterra era
o pais mais industrializado, e foi em sua vivência na França que Marx se
tornou verdadeiramente um comunista. A Alemanha sofreu um processo de unificação
tardio com Bismarck, e nela ainda estavam presentes certos elementos feudais.
Para Marx, a filosofia alemã estava ainda nitidamente ligada ao sistema
hegeliano, de forma que toda a crítica que se empreendeu ao hegelianismo não a
tornava independente e superadora de Hegel. Esta crítica é dirigida
especialmente a Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner. Apesar das frases destes
pensadores que supostamente abalaram o mundo, Marx denuncia seu caráter
conservador. Para Marx, a chave estava na conexão entre a filosofia alemã e a
realidade alemã.
A mudança do
modo de produção artesanal, feudal, para o modo de produção capitalista
acarretou uma série de exigências dos novos grupos comerciais, como por exemplo
a livre competição econômica. Os valores entendidos como representações da
realidade ignoravam a base de toda ideologia, a existência no plano material,
sendo entendidos como válidos para toda a humanidade, quando na verdade eram
pertencentes apenas a uma classe determinada, geralmente a dominante.
O grau de avanço de um país, portanto, é
determinado pelas relações de trabalho e pelas formas de produção. Marx aplica
então esta concepção à história, afirmando que cada nova fase da divisão de
trabalho acarreta uma mudança nas relações entre os indivíduos. Assim, inicia
uma teoria da história, onde o homem ativo – aquele que produz as condições
materiais de existência- teria evoluído em diferentes estágios, desde os tempos
de caçador-coletor. Apresenta três formas de propriedade: a tribal, a comunal e
a estamental. A quarta forma de propriedade estaria ainda acontecendo: a
propriedade burguesa. Como observa no Manifesto Comunista, a burguesia
revolucionou totalmente a economia e as formas de produção, gerando um novo
tipo de mercadoria industrial. A burguesia teria acabado com antigas tradições
da cultura popular, de formas de relacionamento. Marx inclusive chega a afirmar
que a burguesia transformou as relações familiares em relações monetárias.
Com a Revolução Industrial e a produção em escala, os países
mais adiantados conseguiram acumular uma riqueza jamais vista. O homem, ao
satisfazer suas primeiras necessidades, chega inevitavelmente a novas
necessidades. Para satisfazer suas novas necessidades, precisava transformar os
meios de produção, que estariam constantemente se revolucionando.
A questão se houve ou não um corte no pensamento do Marx
maduro para o jovem Marx é respondida pelo próprio com sua afirmação de que
ajustara suas contas com o a consciência filosófica de outrora. Iniciar a
Ideologia alemão com a crítica aos
jovens hegelianos, grupo ao qual fez parte, marca seu avanço em direção a uma
visão própria. Como mostramos, seu vocabulário, e sua própria consciência de si
anteriores eram feuerbachianos ou inspirados em outras filosofia. Foi cm sua
análise do sistema capitalista e seu apego à Economia Política que Marx traçou
profundamente seu marco na história. O socialismo, ao qual só aderiu
tardiamente, adquiriu com ele status científico. É na relação de O Capital com
as outras obras que podemos identificar este rompimento de pensamento. Resta
perguntar se foi um corte político ou epistemológico. Louis Althusser foi
criticado por estabelecer “fases” para Marx, desde sua juventude como romântico
em Bonn até o intelectual máximo da esquerda. Althusser afirma, em Análise
Crítica da Teoria Marxista, que houve uma “cesura epistemológica” situada na
Ideologia alemã. Nesta obra estão novos conceitos em profusão, que ainda seriam
desenvolvidos e que mostram sem nenhuma duvida que Marx passou a fazer uma nova
teoria da história, e uma teoria da ciência. Porém, como em toda transição,
sempre encontramos elementos antigos ainda não totalmente superados nas novas
realizações. Marx não chegou ao estilo claro e ao mesmo tempo erudito de O capital do nada, mas evoluindo de si mesmo,
e arregimentando cada vez mais a filosofia, a ciência, a economia para
transformá-las.
O Primeiro
capítulo de O Capital é destinado à análise da mercadoria. A mercadoria é um
objeto que satisfaz as necessidades dos homens, e distingue-se por qualidade e
quantidade. Uma mercadoria pode ter valor de troca e valor de uso. O valor de
uso é real, imediato, determinado pela utilidade. As mercadorias com esse valor
diferenciam-se pela qualidade. O valor de troca pode apenas ser diferenciado
pela quantidade, pois produtos iguais tem o mesmo valor. Dessa forma x
mercadorias a eqüivalem a y mercadorias b. A quantidade de trabalho empregados
nestas mercadorias estabelecem o valor
de troca entre elas. Mas a relação entre as mercadorias, entre os produtos, não
existe por si só. É a convenção social quem determina o valor de uma mercadoria
em relação a outra. Pois foi relacionando-se socialmente que o homem logrou
produzi-la. No capitalismo, esta base social da mercadoria aparece como
encoberta. A igualdade do esforço humano de produção (trabalho) fica disfarçada sob a igualdade dos produtos como
valores. A mercadoria tem características sociais, na medida em que os homens
trabalham uns para os outros. O homem que consegue se manter sozinho foi
superado desde a aparição da primeira sociedade, a tribal. Na primeira forma de
interação social, a família, já está implícito a dependência dos membros de um
grupo entre si. Um ferreiro que só mexe com ferro necessita de pão. E o padeiro
que só mexe com pão necessita de ferro. Esta característica da produção foi
levado ao máximo no sistema capitalista, onde o trabalho é especializado e há
padrões universais para o intercâmbio de trabalhos e de mercadoria, como o
valor do ouro e do dinheiro.
O mistério da mercadoria consiste no
encobrimento das características sociais dos produtos do trabalho humano, que
aparecem como características materiais e pertencentes ao próprio objeto. Em
última análise, o valor de uma coisa é atribuído pelo sujeito. Uma muleta não
teria muito valor para atleta saudável, mas seria indispensável para um manco.
Um produto nada mais é do que a natureza transformada. Uma muleta é madeira
transformada, medida, trabalhada. Mas não deixa de ser mera madeira, se olhada
objetivamente. No entanto, esta mesma madeira é transformada em mercadoria. O
homem, um ser físico estabelece uma relação com a madeira, outra coisa física.
Mas o valor da madeira enquanto mercadoria nada tem de físico. Ou como afirma
Marx, “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a
forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas.”19 A isto Marx chama de fetichismo da
mercadoria. As coisas, tomadas num ponto objetivo, tem apenas existência material.
É no plano físico onde acontecem as coisas, o trabalho, a transformação. No
entanto, é o homem que, abstraindo e convencionado com outros homens através da
linguagem, transforma o objeto em uma mercadoria de valor pessoal, subjetivo. E
com a troca de mercadoria, estabelece-se um outro tipo de valor.
Os trabalhos
pessoais e privados pertencem ao todo do trabalho social, e é a relação social
entre os indivíduos que cria a relação entre os trabalhos. Os homens,
inconscientemente, igualam os diferentes tipos de trabalho e produtos numa
qualidade comum do trabalho humano. Dessa forma, o valor de uma mercadoria é um
signo social, que precisa ser decodificado por padrões comportamentais comuns
para se efetivarem como valorosos em um sentido específico.
O interessante é
notar a relação do conceito de mercadoria com a diferença clássica da filosofia
entre a coisa-em-si e a coisa-para-si. Esta distinção problematizada por Kant
na forma de aporia, levada ao máximo no Idealismo e colocada sob outra
perspectiva pelo Absoluto hegeliano, é um problema filosófico diretamente
ligado aos autores que mais influenciaram Marx. Este, por sua vez, aplica-o aos
valores do mercado e da economia, sem largar mão de sua posição materialista.
Marx, afinal, não nega que as coisas adquirem um valor apenas na perspectiva do
sujeito, mas submete esta perspectiva à relações definidas entre os membros do
corpo social. Não é o indivíduo sozinho que, em sua percepção estabelece
relações determinantes para o modo de se ver a realidade, mas sim as relações
sociais entendidas com base em coisas materiais, existentes além da existência
individual."
Miguel Lobato Duclós (1978-2015)
NOTAS
1.FEUERBACH, Ludwig, A essência do Cristianismo, página 9.
Editora Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de Serrão, Adriana Veríssimo.
Lisboa, Portugal. Voltar
2.Idem, página 22. Voltar
3. XENÓFANES de Colofão,
Tapeçarias, V, 110 e Tapeçarias, VII, 22, in Pré-Socráticos, página 70.
Coleção Os Pensadores. Tradução de
Padro, Anna L. A. de . Editora Nova
Cultural. São Paulo, 1996. Voltar
4. NIETZSCHE,
Friedrich, Assim Falava Zaratustra, página 10. Tradução de Fonseca, Eduardo
Nunes. Coleção Ciências Sociais e Filosofia. Editora Hemus. São Paulo, SP.
5. NIETZSCHE,
Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, página 10. Tradução de Pugliesi, Márcio e
Bini, Edson. Editora Hemus. São Paulo, SP, 1984. Voltar
6. NIETZSCHE,
Friedrich, Assim Falava Zaratustra, página 26. Voltar
7.MARX, Karl, Manuscritos Económico-Filosóficos., página
159. Tradução de Morão, Artur. Editora Edições 70. Lisboa, Portugal. Voltar
8. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista,
página 36. Tradução de Lindoso, Dirceu. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967.
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9. O mesmo autor sugere uma classificação para a obra de
Marx, que teria “fases”:
1840-1844 Obras da
Juventude
1845 – Obras da
cesura epistemológica – Marx rompe com Feuerbach e Hegel e funda sua própria
doutrina, o materialismo histórico.
1845- 1857 – Obras
da maturação
1857 – 1883 –
obras de maturidade Voltar
10. MARX, Karl, Manuscritos Económicos-Filosóficos, página
160. Voltar
11.Idem, página 162. Voltar
12. Idem, página 164. Voltar
13. Ver nota 1. Voltar
14. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista,
página 136. Voltar
15.MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, página
169. Voltar
16. MARX, Karl, Sobre a Questão Judaica. apud McLELLAN,
David, As Idéias de Marx, página 40. Tradução de Neto, Aldo Bocchini. Editora
Cultrix. São Paulo,1977. Voltar
17. Idem, página 50.
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18. MARX, Karl, A Ideologia Alemã, página 37. Tradução de
Bruni, José Carlos e Nogueira, Marco Aurélio. Livraria e Editora Ciências
Humanas. São Paulo, 1982. Voltar
19. MARX, Karl, O
Capital, página 81. Tradução de Sant´Anna, Reginaldo. Difel Editorial S.A. São
Paulo, 1982. Voltar
BIBLIOGRAFIA
Além da
bibliografia citada nas notas, usou-se ainda:
1. GIANNOTTI, José Arthur. Notas sobre a categoria “modo de
produção” para uso e abuso dos sociólogos in Filosofia Miúda e demais
aventuras. Editora Brasiliene, 1985.
2. JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico
de Filosofia. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1990.
3. LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da
Filosofia. Diversos tradutores. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1996.