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30 de junho de 2006
A FORMAÇÃO É A NOSSA NATUREZA
Confundimos tudo. Achamos que as coisas eram naturais e não eram. Tudo foi fruto da nossa formação. Atropelar quem vai na frente, por exemplo, sempre soubemos que não podia, hoje é comum. Pensávamos: eu não atropelo quem está na minha frente porque isso fere a ética, contraria a minha natureza humana. Não é verdade. Não subíamos pelas pernas alheias, não os expulsávamos com nossos saltos duros, não o empurrávamos com nossos cotovelos, não chutávamos quem se interpusesse no caminho porque aprendemos, desde o jardim da infância, a fazer fila. Podem rir. Mas a fila mostrou ao nosso corpo que tínhamos um espaço nosso, que não poderíamos derrubar quem estava na frente. Depois de fazer fila, entrávamos na sala de aula. O que tínhamos lá? Carteiras em fila. Havia alguém na nossa frente, outro atrás, mais um no lado esquerdo e ainda no lado direito. Não estávamos aglomerados como manadas, estávamos em formação como pássaros migrantes.
Que coisa mais reacionária de se dizer! Não acho. Reacionário é colocar toda essa formação no lixo, como aconteceu no Brasil, e ter que conviver com gerações confortavelmente instaladas no banco ao lado, cuspindo chicletes na tua cara, abrindo as pernas até você se levantar, chutando teus calcanhares na hora de entrar ou sair da condução. Isso sim é de extrema direita. Progresso é saber se sentar, ter noção que não podemos optar, em massa, pelo conforto ilimitado, quando espichamos nossos corpos até o limite da irresponsabilidade e ainda rimos quando alguém tropeça devido à falta de educação geral.
A formação se transformou na nossa natureza. É natural que as pessoas se levantem quando alguém em situação precária está em pé (idoso, deficiente físico, mulher com criança no colo). Mas é natural porque aprendemos na marra. Não podemos refocilar no prato, comer sem vestir a camisa ou se pentear, pegar qualquer alimento com as mãos, secar a garrafa de refrigerante sem repartir com o próximo. Tudo isso fica natural se existirem pais, mestres, adultos. O problema é que o Brasil, com raras exceções, abriu a mão da vida adulta. Deu para trás, como se diz, e confundiu esse recuo com mudança de costumes.
Os costumes não mudaram, desandaram. Há milhões de justificativas para eliminar a sobriedade do ensino e do estudo, para permitir que haja comportamento lúdico na hora da lição. Pode-se invocar qualquer autor, desde Foucault (que falava sobre crueldade e autoritarismo, mas a ausência de regras foi estendido a todo o tecido social, como se pudéssemos simplesmente ignorar as mais elementares regras de convivência). Não é preciso adotar um regime ditatorial e autoritário para viver decentemente. Podemos ser livres sem baixar as calças até aparecer o início do rego, como acontece atualmente, ou os cabelinhos do púbis. Podemos ser livres sem dar sorrisinho em direção aos pobres, aos velhos, aos feios.
A humanidade hoje é prisioneira dos mandamentos da estética. Só vejo pessoas normais, aos montes, por toda a parte, cercadas por gigantescos cartazes de gente sarada, eterna, fantástica. Muitos que serviram de modelo para essa ilusão coletiva voltaram ao seu leito e hoje amargam o fato de terem passado da idade para continuarem modelos, ou do peso para continuarem atletas. Há frustração geral, e temos de suportar a algaravia dos que ainda pensam em se aproximar dos mitos que nos empurram olhar abaixo.
Não se trata de eliminar o conflito, mas trabalhar o conflito a favor da humanidade. No magnífico filme Moça com brinco de pérola (2003), de Peter Webber, com Scarlett Johansson (imagem de hoje) vemos como o mestre holandês Vermeer, sufocado por uma vida medíocre, conseguiu enxergar o que ninguém via na rotina doméstica da sua casa. Ele nos deixou quadros maravilhosos porque enxergava além da conta e não se entregava ao horror social, à pressão familiar, à ameaça de falência. Os mestres nos ensinam e o cinema nos devolve à possibilidade de sermos melhores.
Vermeer foi livre, dentro dos seus limites. É assim que funciona. A vanguarda só pode existir se há um modelo a ser transgredido. Se eliminarmos esse modelo, a função da vanguarda desaparece. Pior: se desmoraliza. Li esses dias uma resenha, escrita da maneira mais tradicional possível (com frases inteiras, palavras conhecidas, sintaxe, gramática etc.) incensando um autor de vanguarda, que a tudo transgredia. Queria ver a resenha usando os mesmos expedientes do autor.
Por que se explica de maneira tradicional o que é fora de esquadro? Porque tudo na vida é conflito e não podemos eliminar os conflitos mais primários, como ser obrigado a sentar direito e a respeitar o próximo. Você não pode viajar, você está duro, os credores batem na porta? Tente ver o máximo possível, descubra a variedade de cores que há numa nuvem aparentemente branca. Encontre a saída para sua jaula, mas não elimine o próximo para provar que és um revoltado.
29 de junho de 2006
ASSOMBRO
Nei Duclós (*)
O cadáver parecia um grande peixe boiando a poucos centímetros da superfície, de bruços, os braços estendidos, com os cabelos enredados em algas. A roupa azul sacudia ao sabor das pequenas ondas, rastros da passagem recente de um barco que tinha atordoado rapidamente o rio. Era possível ainda ouvir o barco sendo engolido pela mata, que faz, mais adiante, um arco sobre a água e cria um túnel para quem se aventura por ali. Já adivinhava o estupor de quem chegasse pela primeira vez naquelas paragens, mas não conseguia compor, na janela que forçava abrir na mente, qualquer tipo de gente capaz de jogar uma pessoa para se afogar (ou ser despachado de tiro) enquanto segue viagem.
O rio fica atrás das árvores que limitam o lago onde me encontrava. O corpo interrompera a frase elaborada antes de me recolher à caverna onde fiz meu acampamento. As grandes pedras lisas que circundavam aquele endereço escuro onde tinha me metido nos últimos meses, fugido de uma série de brigas, estavam já opacas nesse momento do entardecer. Não exibiam mais o brilho do meio-dia, único momento em que tudo parecia mais claro, permitido pela grande copa das árvores que tomavam conta do horizonte em todos os pontos cardeais. Foi o medo que me levou pela mão até onde estava a pessoa debruçada sobre a própria morte. Aos poucos, tudo estaria escuro, e eu seria acompanhado pela presença de alguém que talvez tivesse também tentado fugir, mas foi alcançado antes de encontrar refúgio.
Pisei na beira d´água com medo de escorregar para o fundo, coisa que costumava acontecer antes de me apropriar definitivamente desse terreno oculto. Quem passa pelo rio não sabe que existe um estuário recoberto, em parte, por aguapés e outras plantas sobre as quais nunca sei o nome. Afloram alguns círculos de água, assim mesmo cheios de pequenas folhas e flores, que a toda hora são ciscadas por peixes desconhecidos. Na beira, entre a pedrona e o primeiro tufo de plantas sobre a água, há esse vão onde conto as cores do arco-íris do sol que se vai quando as nuvens roxas não aparecem, gigantescas, para me assustar. Foi nesse tipo de tardinha que a pessoa morta boiou entre o chão e a superfície, com as bochechas infladas, os cabelos como Medusa, retorcidos e em pé.
Seus grandes olhos esbugalhados ainda não tinham sido comidos pelos peixes. Vai ver, as criaturas do rio naquele espaço escondido eram todos vegetarianos e dispensavam o vidro dos olhos de quem partiu. Parei de sofismar porque precisava trazer o bruto para o seco, já que poderia até estar vivo, ou então eu não o deixaria embaixo d´água para atrair piranhas ou jacarés. Se bem que ao colocar o bicho na grande pedra, quando ocupou vasta massa de território, é que eu vi o quanto aquilo tudo atrairia onças. Nunca tinha visto nada predador por aquelas bandas. Mas meus medos eram anteriores às evidências de que me encontrava num pedaço de mato sem nenhuma relação com o que conhecemos como selva. Poderia até ser arte da minha imaginação, não fosse a dor que eu sentia nas articulações, fruto da umidade da caverna e do lago, a pouca visão, os cabelos escassos e brancos, os braços caídos e as pernas sempre se recusando a qualquer esforço.
O lugar existia pela dor que sentia e também pelo isolamento, o que me preservava de qualquer contestação. Não havia ninguém para estranhar que no rio não houvesse piranhas, que as feras não me rondassem. Não havia nem barulho de moto-serra, apenas os plics dos pingos de chuva, alguns pássaros de plumagem comum e canto insosso, e uma rede enigmática de cigarras, que se manifestavam em horas impróprias do dia, especialmente quando decidia tirar minha sesta para digerir os caranguejos vivos caçados por minha mão trôpega e que abundavam por toda a parte.
Depois de puxar o sujeito pelos sovacos e o arrastar pedra acima (o chão de pedra era sempre um conforto, pois me poupava do barro que pudesse haver numa margem mais tradicional) fui descansar na caverna. Não me importava mais nada. O medo tinha sido substituído pelo cansaço, a curiosidade pelo pesadelo. Sempre sonhava a mesma coisa: estava num restaurante, numa espécie de shopping, que dava para uma área externa, um estacionamento, quando chegava a toda velocidade um carro com algumas pessoas em pânico e aos berros. Estão matando todo mundo aqui perto, gritavam, e não adianta fugir. Eles matam por qualquer coisa, qualquer um. Eu tentava pular em cima da mesa e sumir do mapa. Pegava um carro cheio de gente, mas parava na primeira curva: a multidão de assassinos estava fazendo o serviço e nós éramos os próximos. Não perguntava o motivo do massacre. Isso eu já sabia. O que eu queria saber era outra coisa: quem estava comigo? Quem era eu naquele sonho horrendo?
Dormi pesadamente depois de fechar a caverna com minha parede de taquaras que tinha colhido na beira do mato. Havia lua e a luz entrava em flechas que se depositavam no meu dorso. Estava virado para o fundo da caverna e podia me imaginar sendo bombardeado pela lua, como talvez o corpo, ao ser jogado no rio, sendo atingido por balas de uma automática. Não tinha ouvido estampidos, então o cara já devia estar morto no fundo do bote antes de ser dispensado pela força bruta.
Encolhi as pernas e pus as mãos na cabeça até dormir e acordar, no sono, do pesadelo que me perseguia. Lá nesse acordar sombrio em plena madrugada, em que não estava realmente desperto, via a cara de um gorila que se transformava numa máscara de ferro. Só depois da máscara brilhar conseguia dormir profundamente por algumas horas. O sol que me acordou no dia seguinte tinha a mornidão das primaveras imperfeitas que nos assombra na adolescência, quando tudo dá errado.
Abri a caverna jogando a porta de taquaras no chão e fui andando até achar o corpo. O que vi não foi nada bom. Eu me vi chegando perto de mim para me apalpar. Me vi abrindo à força minhas pálpebras, já que meus olhos tinham sido cobertos pela cortina das membranas. Vi como fiquei assustado vendo que eu estava definitivamente morto, vítima de uma perseguição, uma briga pessoal, um mal entendido. E que tinham me atirado ali para ninguém nunca me achar.
Não apostavam que eu mesmo me acharia, naquele lago sem sentido, em plena mata fechada de meus temores, pronto para esperar que algum barco decente viesse me resgatar e me levar de volta para o lugar onde vivi, como um cidadão comum cheio de sonhos, que um dia ouve fortes batidas na porta e os berros de alguém avisando que a multidão se aproxima, armada de porrete.
RETORNO - 1. (*) Conto publicado dia 29/06/06 no espaço Literário, do Comunique-se.2. Imagem de hoje: foto de Helcio Toth. 3. Castaneda reconhece que nasceu em São Paulo, que seu sobrenome é Aranha e que ganhou o Castaneda graças ao avô materno, que era da Sicilia: "There is not much to tell about myself. My home was in Sao Paulo, Brazil, but I went to school in Buenos Aires, Argentina,before I came to this country. My full name is Carlos Aranha. Following the Latin tradition one always adds to one's name the mother's last name, so when I came to the United States I became Carlos A. Castaneda. Then I dropped the A. The name belonged to my grandfather who was from Sicily. I don't know how it was originally, but he himself altered it to Castaneda to suit his fancy."
28 de junho de 2006
O IMPÉRIO DA CARACTERÍSTICA
O futebol sempre foi assim: disputado, travado, duro, com brilhos esparsos. A diferença é que ele era mais narrado do que visto. As lendas se formaram no tipo de narrativa usado para descrevê-lo. Aquelas jogadas das quais não se dispõe de fotos, momentos vividos em circunstâncias especiais, biografias descritas como heróicas. Para alimentar o mito, sobrevivem cenas filmadas de grandes lances, de craques insubstituíveis, pintados de ouro.
Mas basta ver uma cena da copa de 70 para verificar o quanto os jogos eram lentos, como havia espaço para o movimento dos jogadores. Na memória não é diferente: selecionamos apenas os raros rompantes de gênio, os gols que fizeram a glória de nossa juventude. Por isso, diante da tela fria, que nada mais é do que outra representação da Copa, bocejamos com tanta falta de aventura, de grandeza épica. Lamentamos a falta de talento, o craque fora de forma, os erros sucessivos e quando alguém como Ronaldo sai na hora certa para aliviar a torcida com um gol providencial, dando um nó no goleiro, há reclamações. Mas ele joga tão mal! Só Parreira não enxerga!
MIOLO - Nós, talvez, é que estamos ermos de uma narrativa à altura da importância do evento. Estamos nas mãos dos sabe-tudo, dos oportunistas, dos que viram a biruta conforme o vento e encastelados em suas poltronas pedem para os jogares terem juízo e, o que é pior, se vinguem, como se vingança ganhasse jogo. Esses narradores empobrecem o que está sendo disputado de maneira heróica e colocam tudo nos enquadramentos já testados, já que os fatos obedecem ao que chamam de característica. Podem notar: essa é a característica do jogo sul americano, essa não é a característica do fulano, ele saiu de suas características,e, claro, a jogada só poderia ser essa porque assim é a característica de quem está no miolo do drama.
RALO - O clima era idêntico na época de Nelson Rodrigues, que remava contra a corrente da opinião generalizada de que o Brasil não era nada perto das outras chamadas potências do futebol. Não basta hoje sermos pentacampeões do mundo, estarmos nas finais há três copas e nos dirigimos para mais uma final, se tudo der certo. O importante é o que temos formado na cabeça: de que não jogamos tudo o que sabemos jogar e por mais que a gente vença, sempre haverá uma Itália, uma Argentina, uma Alemanha, para nos fazer sombra. É o contrário: somos os maiorais porque temos raça, estratégia e humildade e jogamos como todo mundo, só que nos destacamos em alguns lances que nos colocam na cara do gol. Temos também sorte. A Copa é como as Olimpíadas: em um segundo, anos de esforço podem ir para o ralo; por meio milímetro, podemos ganhar a partida ou sermos eliminados. E sem essa de característica: o futebol é um desafio à percepção e adora desmentir os sabichões.
JUÍZES - Dizem que pegamos os piores times da Copa (antes, eram temidos), que os árbitros estão a nosso favor (e a favor da Itália, que ganhou um penalty de graça, por supuesto) e que nem somos sombra da Argentina (lembram da goleada em Servia e Montenegro? a festa acabou quando sofreram na mão do México). O Brasil ganha Copas do Mundo porque aprende as lições. Com 1950, descobrimos que tínhamos condições de levantar a taça, bastava não se deixar embalar pela euforia, não contar com o ovo dentro da galinha. Com 1954, descobrimos que era preciso tenacidade para chegar até o fim. Foi graças a 1954 que na final de 58 o Didi pegou aquela bola no fundo da rede do Brasil e foi caminhando até o meio do campo dizendo que iríamos ganhar. Com 1982, vimos o que pode fazer o favoritismo e a certeza de que somos os melhores em qualquer tempo. Com 1998, o Brasil aprendeu que ficar demasiadamente em cima de um craque pode levar tudo à ruína (e foi graças à convulsão de Ronaldo que Felipão insistiu em dispensar Romário em 2002; ele precisava ganhar sem um craque salvador).
SAMBA - Essas lições formam o acervo do futebol pentacampeão do mundo. Não é a firula, o samba, o totózinho, o calcanhar. É o rompante, o chute certeiro, a posse de bola, o contra-ataque, a experiência, o sangue, o suor, a lágrima. Esse acervo compõe o peso da camisa canarinho. Com ela nos apresentamos para o mundo. Não somos nós que sambamos, nós é que fazemos o mundo sambar. Pode dar erro, pode haver derrota, mas isso será mais uma lição. Aprendemos que não adianta nos vingar de 1950, aquela final faz parte da nossa herança, como se houvesse um pacto eterno entre Brasil e Uruguai, que no jogo fatídico teriam misturado o sangue num corte que jamais cicatriza. Não poderemos jamais nos vingar da França, aquela final é deles, ponto.
POEMA - Não faz mal que amanheça devagar, nos diz Geir Campos, num dos mais belos poemas da língua (Alba). As flores não têm pressa, nem os frutos. Sabem que a vagareza dos minutos, adoça mais o outono por chegar. Por isso não faz mal que devagar o dia vença a noite nos seus redutos de leste. O que nos cabe é ter os olhos enxutos e a intenção de madrugar.
RETORNO - A imagem de hoje é mais uma foto de Marcelo Min, publicada no seu obrigatório Fotogarrafa.
27 de junho de 2006
A SOMBRA DO PRESIDENTE MAO
Não tem perigo de mudar: todo cinema é manipulado pela ideologia. Dos filmes comentados ontem, a maioria obedece ao padrão CIA/ Pentágono: o seqüestro do avião que trabalha a paranóia americana sempre bem fundamentada, o discurso do líder africano declarado culpado pelo roteiro e a direção de Sidney Pollack (com Sean Penn dando aulas de americanismo da era Bush), o Homem do Tempo incensando o cara que pode fracassar em tudo menos na capacidade de fazer dinheiro (com Nicholas Cage sorrindo como um idiota no final). O cinema americano não escapa das garras do império e é seu principal instrumento, pois se dedica a possuir as mentes de todos os povos dominados (inclusive o interno). Na periferia, surge o cinema chinês, brilhante, que jamais faz um filme do lado de lá do balcão, ou seja, sob o ponto de vista da revolução cultural do presidente Mao. O velho guia é achincalhado pelos seus compatriotas, cineastas e escritores, como Dai Sijie, autor do livro e diretor de Balzac e a pequena costureira chinesa, que é uma homenagem aos clássicos da cultura ocidental e uma pá de cal ao grande movimento de massas que colocou a arrogância bem fornida na lavoura.
CERTEZAS - Os intelectuais se vingam do grande perigo que correram, o de serem afastados de seus brinquedos para sentir o gosto do barro e das fezes do mundo jogado fora. Longe de nós ter que fazer força física, obedecer a camponeses analfabetos, ser acusado de reacionário e idolatrar líderes da revolução proletária. Refugiar-se em Balzac, Dostoiewski e outros autores foi o caminho encontrado pelos personagens do filme de Dai Sijie, que fez grande sucesso ao lançar seu romance e ser entrevistado na televisão por Bernard Pivot (ah, um programa cultural em horário nobre, quem nos dera; pode fazer maravilhas). A situação é brutal: confinados nas montanhas, nas mãos da barbárie ideológica, dois rapazes e uma moça fortalecem laços de amizade e amor ao redor de grandes obras, enquanto fazem o chefe local de palhaço misturando Mozart com Mao e o Lago dos Cisnes com Lênin. São hilárias as cenas em que a ignorância se expõe para o mundo culto, nós, a platéia bem acomodada na cadeira. Passar por uma situação dessas é a morte em vida, mas ficamos pensando se há outra maneira de erradicar as certezas que mandam os escravos preguiçosos trabalhar na nossa cultura cada vez mais escravocrata.
POLÊMICA - Hoje, as polêmicas se revestem de petardos desaforados. As facilidades da internet, que colocam interlocutores em contato sem que haja nenhum vislumbre físico, faz com que se possa dizer as maiores barbaridades, na certeza da impunidade. Atacar escudado numa tela de micro é a forma mais explícita de covardia do nosso tempo. A polêmica precisa entrar em território mais civilizado, ou seja, a partir dos sentidos que geram a percepção do interlocutor. Você só pode polemizar se escutar o outro. Dizer atropelando pensamentos e palavras não é um bom expediente. Mas a mesmice do pensamento é incentivada pela indústria cultural, que jamais traz à tona filmes ou livros que se contraponham ao marketing imperial que domina o mundo. Lembro o impacto dos poemas e citações de Mao (que o word corrige sempre automaticamente para Mão) Tse Tung nos anos 60. Estávamos longe da realidade reportada pelo cinema revisionista chinês dos anos 90 para cá. O heroísmo chinês nos emocionava e a limpidez das teses e propostas nos seduziam. Depois, vimos que a nossa realidade impunha outras percepções. Mas fico invocado com a uniformidade do ataque ao que um dia foi visto como mudança radical de posturas e políticas.
SUFOCO - Precisamos respirar no compacto ambiente sufocado da cultura global. Precisamos de luz e pensar por nossa própria conta. Não podemos ficar à mercê desses rios de lava ideológica que percorrem o mundo, como se fossem uma enchente irreversível, que nos afoga, a nós, que amávamos tanto a revolução.
26 de junho de 2006
QUATRO PERSONAS EM CENA ABERTA
Uma indústria cinematográfica sólida, num país imperial que domina o mercado no mundo todo, e que tem longa tradição em teatro, não se destaca apenas pelos atores incontestáveis, como Al Pacino ou Merryl Streep. Há um time que se impõe pela continuidade de suas performances e aos poucos vai se firmando com artistas de primeiro time, num caminho mais árduo do que as estrelas maiores. Alguns, como Sean Penn, já possuem esse carisma de grandes atores e aquela persona farta de si mesma, de rosto exausto e energia plena, numa composição de sentimentos opostos que fizeram a glória de mitos como Bogart.
Outros, como Ed Harris, precisam cair do quarto andar em As Horas para nos lembrar o quanto pode um coadjuvante, guindado ao primeiro plano, e de olhar iluminado, em O Terceiro Milagre, contido e cínico em O Show de Truman. Harris trafega numa progressiva contundência que elimina as fronteiras entre periferia e centro do drama.
E, na medida certa para os projetos que abraça, Jodie Foster sempre acerta em cheio na sua carreira pontuada por personalidades em situações limite, empurradas para a coragem, em filmes nem sempre de primeira linha, mas com uma atuação invejável. Não só por ser convincente, mas principalmente porque consegue, com seu corpo mínimo, sua boca apertada, seus olhos aparentemente frios, atingir uma grandeza rara na arte que nos fisga pelo olhar e que planta poderosas raízes na mente.
Foster está assustadora (pelo rosto, pela postura, pela gélida presença) nas cenas iniciais de Plano de Vôo, um filme que escorrega a partir da metade para o fim, pois se transforma no lugar comum dos seqüestros e da ação mirabolante. Mas aquela estação de metrô em Berlim, quando encontra o fantasma do marido, e a parte em que carrega a filha embaixo do casaco e a coloca no avião, e sua ira quando descobre a armadilha onde está metida, fazem dela a atriz que gostamos sempre de ver, pois compartilhamos de sua aura, jogamos pesado junto com ela, e sabemos o quanto somos frágeis e enormes na nossa pequenez, que ela representa tão bem. Jodie nos seduz porque jamais sobra e porque, ao escolher seu território mínimo, ali implode para nos surpreender, a nós, que não damos nada na hora em que aparece, e que entregamos tudo no momento em que se despede. Cada vez mais madura, assumindo sempre sua idade, ela nunca esconde o que realmente é ou deva ser na narrativa.
Há ainda Nicholas Cage, excessivo, que, no início de carreira, tinha um pé no dramalhão (Asas da liberdade) ou na fanfarra da nascente pós-modernidade (Arizona nunca mais). Mas, também aos poucos, Nic Cage virou essa figura obrigatória dos filmes assistíveis, compondo personagens complexos como em The Weather Man, e virando assim um James Stewart na diversidade e na simpatia. Nicholas Cage tem o poder de atrair para sua persona todos os elementos de um filme. É um tipo de ator que não cansamos de ver, mesmo que soe antipático ou ameace, a certa altura, errar totalmente. Mas ele acerta, não por ser um predestinado, como Sean Penn, mas porque se esforça, e quando consegue, elimina as pistas desse esforço. Não lembramos o quanto sofreu para nos convencer. Ele nos ensina que sempre é possível se superar quando há determinação.
Sean Penn é o oposto. Sean está lá porque não há outro caminho para o diretor ou para ele mesmo. É convidado porque assim está escrito e encarna, com essa obrigatoriedade, o moderno herói americano, o pai da filha assassinada (Sobre meninos e lobos), o agente secreto a serviço da ONU (A intérprete), o condenado de 21 Gramas. Ele é um John Wayne sem convicção, que nos engana o tempo todo. Parece aquela pessoa conhecida que jamais assume que está no lugar onde se encontra, sugerindo sempre que está partindo ou mora em outro lugar inacessível. Mas por um instante, depois de fazer uma confissão de costas para a câmara, ele se vira e nos encara. É aí que Sean Penn se revela: um ator de verdade, que já dirigiu bons filmes e que consegue atingir o lugar um dia ocupado por Jack Nicholson. Sean é Jack antes da loucura.
RETORNO - Minha resenha sobre Carlos Henrique Schroeder e Ferreira Gullar, "O sol oculto", está publicada com destaque na revista Cronopios.
24 de junho de 2006
SEM CHANCES PARA A MUDANÇA
A Copa do Mundo tem levado ao extremo os vícios de linguagem aplicados ao futebol. Quantas de vezes nós ouvimos a expressão sem chances para o goleiro? Quem decide isso? O goleiro sempre tem alguma chance, e mesmo se não tivesse, não seria o caso de inventar outra, de mudar a frase, criar alguma coisa diferente? A mesmice ataca em massa, em tropa formada, como se fosse um exército de Napoleão. Depois da fase Ronaldo está gordo (ah, os tanquinhos cerebrais), que explodiu a paciência por duas semanas, agora veio a fase do problema para o Parreira. É que Juninho Pernambucano jogou bem, fez gol, então isso é...um problema para Parreira. Todos repetem até a náusea, apesar de o treinador dizer que isso não é problema, é solução. Mas não adianta. A cabeça autista da mídia insiste no mesmo bordão, como se a cobertura de futebol fosse sempre a mesma piada, como acontece com os humorísticos da televisão.
MR. SPYDER - O Diário da Fonte deu um furo internacional: a notícia de que Carlos César Aranha Castaneda é sobrinho de Oswaldo Aranha. As pesquisas da redação avançam e agora o candidato a pai de Castaneda não é mais Luis Aranha, mas José Antônio de Souza Aranha, o Zuza, que tinha uns 18 anos quando Castaneda nasceu (os pais de Oswaldo,Euclydes Egydio de Souza Aranha e Luiza Jacques de Freitas Valle, tiveram 13 filhos, nove homens e quatro mulheres). A reportagem avança, enquanto o mundo inteiro emudece, sem chances para o blog. As únicas reações foram a do jornalista Marlon Assef, que acreditou e ficou chocado com a notícia, e Eduardo San Martin, que não se convenceu, o que é um direito do querido amigo e escritor. Quer mais evidências e elas virão, aos poucos, enquanto ninguém se mexe. Só o que falta mesmo é alguém dar o mesmo furo em algum outro lugar, digamos, com mais audiência e omitir que fomos pioneiros na revelação. Há o perigo de ser contestado frontalmente, mas a verdade vencerá. Que é sobrinho de Oswaldo Aranha, é. Estamos nos escalando para o Prêmio Exxon de reportagem. Ué, não é Exxon?
EITO - Festejado escritor e humorista acha que Ronaldo Fenômeno tem obrigação de jogar bem, porque é pago regiamente para isso. O craque, que é neguinho,na visão dessa elitezinha de papel, precisa ser infalível, senão vem o chicote. Patrão não gosta de escravo fujão, cheio de má vontade, preguiçoso. Vai trabalhar, vagabundo. Tem aquela música de Ary Barroso, que conheci como cortina musical de um filme brasileiro: trabalha trabalha, negro, o negro não gosta de trabalhar, ou coisa assim. O Arnaldo Jabor, com aquele penteado de palhaço Bozo, tentou fazer uma autocrítica depois que Ronaldo marcou dois gols contra o Japão. Reconheceu que tinha falado besteira sobre o grande craque. Tarde piaste, como dizem no Rio Grande. Devias ter evitado o linchamento nos dois jogos iniciais. Depois que Ronaldo provou que é necessário para a seleção, aí calem a boca. Continuem enchendo o saco com o problema do Parreira, a falta de chances para o goleiro e outros insights babacas. Um narrador chegou à conclusão que cada torcida acha a sua seleção a melhor do mundo quando está dominando o jogo e dando toques na bola. Disse isso num tom triunfalista, de descoberta de pólvora e produção de pensamento. Dá vontade de atirar no aparelho de TV.
GANA - Mas vamos nos concentrar. Os jogadores de Gana vão dar trabalho. Talvez não conheçam o seu lugar. Imaginem se Gana ganhar (toc, toc, toc). O que vai ter de feitor com rebenque na mão, querendo lanhar as costas dos escravos...
RETORNO - Imagem de hoje: Av. Ipiranga/Futebolândia, de Marcelo Min, o Olhar Absoluto.
23 de junho de 2006
SINISTRUS JOE E AS SURPRESAS DE PARREIRA
Não gosto de estatísticas, elas me assustam. Dizem que são criados uns 70 mil blogs por dia ou por mês, ou algo assim. Que existem não sei quantos milhões de sites, que a miséria aumenta apesar de os 50 países mais pobres terem melhorado de vida e que as pesquisas apontam a vitória do primeiro turno, bem, vocês sabem de quem. Os números nos cercam e mordem os calcanhares. Como acompanhar a proliferação dos conteúdos disponíveis na grande rede? Muito difícil. Mas tudo que assusta não passa de um tigre de papel, para usar a velha metáfora de Mao sobre o imperialismo. Nas redes do monopólio de TV, a internet é tratada como coadjuvante ou vilã (jamais acesso os endereços que eles falam com uma batata na boca, o tal dábliu dábliu dábliu). Na grande imprensa impressa, os blogs diretamente ligados às redações pecam ou por falta de atualizaçãp adequada ou por estarem limitados pelos hábitos cevados em 42 anos de ditadura. Blog é queimar navios e não olhar para trás, para não virar estátua de sal. Além disso, um espaço na internet só se consolida ao longo dos anos. É complicado firmar o hábito de visita e leitura com tantas opções. O importante é você ser mídia, ou seja, tudo o que você sente, sonha, pensa, cria precisa estar no blog. Isso dá credibilidade e fisga o leitor. O bom do blog, para quem é jornalista, é que o lead pode tranqüilamente ficar no pé do texto. É o que acontece na edição de hoje, que tem jogo do Japão só mais embaixo.
PATETAS - O maior perigo dos blogs é o pensamento único. Todos vivem na mesma situação e pensam da mesma forma. Ser original no meio de tanta manifestação é mosca branca. Por isso decidi visitar novamente Sinistrus Joe, que tem acompanhado a Copa do Mundo num bar perto de onde mora. É mais uma birosca, que fica a meio caminho das dunas que escondem seu casebre ao lado de um grande menir de pedra, numa praia escondida aqui na Ilha. Quando ele me vê se aproximando, finge que se afasta. Sinistrus adora ser esnobe.
- E aí, Joe, a Seleção deslanchou no jogo contra o Japão?
- Estou preocupado com a geração dos patetas, respondeu ele.
- Quem são os patetas, os torcedores?
- Não, a nova geração. Ando às vezes de ônibus e não agüento a meninada falando como se tivesse perdido a noção da língua do país.
- Isso é gíria, coisa antiga.
- Não é não. Gíria é uma concessão da língua culta. O que eles falam é pior do que um patuá, são as ruínas do que um dia foi linguagem. É como se a língua nacional tivesse entrado em processo de implosão interna.
Achei estranha aquela maneira pomposa de Joe se manifestar. Parecia consultor de empresa.
- Estás lendo auto-ajuda de negócios, cara?
Ele me olhou de viés, quase rosnando. Odeia que o chamem de cara, ou se dirijam a ele dizendo "meu caro".
- A geração dos patetas engata uma longa narrativa costurando as frases com a expressão e aí. Falam assim: fulano foi para lá e aííí voltou para cá e aííí eu cheguei e perguntei e aííí nós fomos até o lugar aquele e aííí..
FENÔMENO - Ele continuaria por horas no seu exemplo, mas eu o interrompi:
- E a seleção, Joe, gostou?
- A imprensa e os torcedores são todos profetas do passado. O futebol não cabe numa cabeça que tenha dois olhos para ver e nenhum para enxergar. Sempre me surpreendo com o Parreira. Cansei de duvidar dele. Até parece um sonho que eu tive.
- Que sonho, Joe?
- Eu estava dentro do ônibus e de repente todos os bancos foram amassados e só eu sobrevivi. Não era eu que tinha morrido, era o mundo que tinha acabado. Saí para a rua e os edifícios eram engolidos, só eu passeava nas ruas. Os carros explodiram e sumiram no ar, só eu andava por aí. Parreira a mesma coisa.
- Não entendi.
- Claro, eu ainda não expliquei...
Desta vez ele rosnou mesmo.
- Se eu puder chegar ao fim da minha metáfora, agradeço. Parreira detonou todo o entorno do Ronaldo, manteve só o Fenômeno. Fez o contrário do que todo mundo dizia. Insistiam em tirar o Ronaldo, como se fosse o remédio para todos os males. Pois Parreira manteve o craque e substituiu os outros. E aííí o Ronaldo fez dois gols e poderia ter feito mais.
Concordei. Sempre gosto de ouvir Sinistrus Joe, o cara da minha geração que ficou na ilha, foi escritor, jornalista, artesão, fotógrafo e hoje vive num puxado de madeira tosca grudado numa pedra. Tem cabelo raspado, veste-se de preto e dorme nos saguões das galerias e edifícios de luxo. Todos os conhecem e o toleram. Mas só eu peço que emita suas opiniões.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: um rosto brasileiro, por Marcelo Min, o Olhar Absoluto. 2. Ainda sobre blogs: o blog Outubro, conforme dizem os arquivos, foi criado a 30 de setembro de 2002 e o Diário da Fonte, dentro do blog, a 8 de setembro de 2003.
21 de junho de 2006
CLOSER: O AMOR NO AQUÁRIO
O conteúdo de um aquário está exposto (aberto) e ao mesmo tempo fechado no seu próprio mundo. É a metáfora perfeita usada pelo filme Closer, de Mike Nichols (2004). Relacionamento amoroso é uma antiga especialidade do diretor, como podemos ver desde Carnal Knowledge (1971). Se no seu filme antigo (e tão terrivelmente moderno na época), o tédio e o vazio eram os motores da trama da troca de casais, neste é o desespero gerado pela situação limite: tudo está próximo demais, transparente, e ao mesmo tempo fechado, inacessível - fazendo jus assim ao título em inglês, que tem esse duplo sentido (closer é o que está perto e é aquele que fecha). É por isso que o aquário, que tem exatamente essas características, é a metáfora maior do filme: tema do romance de Dan (Jude Law ), local de encontro entre Anna (Julia Roberts) e Larry (Clive Owen), o amor no aquário expõe a stripper Alice ( Natalie Portman), monitorada o tempo todo no clube onde trabalha. Não se pode tocá-la. A única ponte é o olhar e a fala, o roteiro de Patrick Marber, baseado em sua peça teatral.
CARGA - Os diálogos assim formam uma criatura à parte, que usam os protagonistas para manter o ritmo da agonia de vidas que se aproximam e se afastam, se expondo o tempo todo. A saída para o impasse, pensam eles, é arrancar a verdade dos que amam ou pensam amar. Saber de tudo é uma espécie de compensação pela impossibilidade da convivência verdadeira. Mas eles cercam a verdade sem importância, como saber se foram traídos ou não, enquanto esquecem o principal: qual o verdadeiro nome da pessoa que é amada, por exemplo. O nome conta, pois significa a identidade perdida, a casca abandonada junto com o sofrimento. Saber o nome verdadeiro significa carregar o ethos perdido, mas qual relacionamento hoje resistiria a essa carga. O ideal é escolher uma nova denominação, para que haja uma chance. O nome adotado é escolhido a esmo, no local onde se revela o amor, mas ele traz um estigma: o passado, que assombra o mundo prisioneiro no eterno presente.
VIDRO - O sinal está fechado para que as pessoas cumpram seus rituais viciados e burocrátioas, de indivíduos anulados no ritmo da massa. Romper o sinal, cruzar a rua sem rede de segurança, é confiar que alguém virá em seu socorro, ao seu encontro. Só assim, arriscando, é possível cruzar a parede do aquário e tocar na pessoa amada. É o que faz Jane/Alice: segue em frente, mesmo que haja impedimento para a busca de um novo amor. Ela sabe que não poderá encontrar nada se obedecer ao que está disposto num mundo oco, fundado na mentira. Ela, que usa a representação até o fundo, pois se expõe no clube para sobreviver, atravessa a avenida no momento em que os carros se soltam e as pessoas estão paralisadas, para encontrar a sua verdade, usando o verdadeiro nome. Ela quebra o vidro do aquário com seu passo decidido, que implica risco de vida.
CLASSES - O conflito do filme não releva as diferenças de classe social. O jornalista frustrado que tenta ser escritor vê na fotógrafa bem sucedida a porta de entrada de um mundo fora da escassez e dos limites da pouca remuneração. A fotógrafa pergunta para Alice se seu trabalho de garçonete é temporário, ou seja, se é alguém de uma classe social superior que está fazendo apenas um bico ou passando por uma experiência. No fundo, ela concorre com Alice numa disputa de poder baseada no privilégio. Enquanto seu trabalho é desmascarado por Alice na vernissage, ela cede à tentação de voltar para Dan: eis o momento em que a riqueza se curva diante dos menos favorecidos para tirar deles seu último bastião, a alma capaz de amar.
RETORNO - Alice ( Natalie Portman) em Closer: quebrar o vidro que expõe e afasta.
20 de junho de 2006
O SOBRINHO DE OSWALDO ARANHA
Tudo indica que Carlos Castaneda, o autor best-seller de livros sobre a saga do xamã indígena Juan Mattus, é brasileiro, nasceu em Juqueri (atual Franco da Rocha), interior de São Paulo, em 1935, e é filho não reconhecido de um dos irmãos de Oswaldo Aranha. O nome completo é Carlos César Aranha Castaneda. Sua mãe era conhecida da poderosa família e é possível que trabalhasse numa das suas fazendas ou tinha propriedade na vizinhança. As raízes dos Aranha estão em São Paulo, mas uma parte dela emigrou para o Rio Grande do Sul (Oswaldo Aranha nasceu no Alegrete em 1894). Uma pesquisa que Ida Duclós fez há mais de cinco anos levava para essa conclusão, mas faltavam mais evidências. Agora há indícios fortes, em sites dos seguidores do escritor, desta nova versão, que contraria frontalmente a revista Time, que se confundiu completamente numa célebre matéria de capa. O autor da matéria achou que um homônimo de Cajamarca, Peru, nascido em 1925, era o próprio. O autor seguiu a risca o conselho do mestre, de apagar sua vida pessoal, como ele explica na entrevista a revista Uno Mismo, Chile and Argentina, Fevereiro de 1997, feita Daniel Trujillo Rivas.
VIAGENS - E daí? E daí que essa noticia bomba coloca Carlos Castaneda como o enigmático sobrinho levado pelo tio poderoso para fora do país, primeiro para Buenos Aires e depois para os Estados Unidos, quando Oswaldo Aranha foi embaixador lá. Pode-se especular que a família não podia falar sobre o assunto, pela posição que ocupava na política. As pistas levam a Luis Aranha, revolucionário dos anos 20 e um dos articuladores da revolução de 1930. Todas as lembranças de Castaneda sobre o avô materno que o criou (já que a mãe morreu muito cedo), inclusive a famosa cena do falcão albino "rápido como a luz" são desse interior paulista e nada tem a ver com o mundo hispânico. Como nos Estados Unidos tudo abaixo do Rio Grande é México ou suas imitações, tanto faz ser da América Portuguesa ou Espanhola. Aliás, ainda hoje acham que somos hispânicos. Isso muda completamente a leitura que podemos fazer de todas as reminiscências do escritor, que revolucionou a antropologia ao abraçar totalmente o mundo que começou a estudar a partir de 1960, quando tinha 25 anos (e não 35, como disse a Time, idade incomum para um jovem pós-graduando, como notou Miguel Duclós, que descobriu as provas, só agora disponíveis, nas suas navegações na internet).
ESTIGMA - Numa cena de reencontro do pai, Castaneda diz para suas meias-irmãs que gostaria de ter sido criado naquela família. Essa dor do abandono paterno pode estar na fonte da necessidade de apagar a história pessoal. Pois quem foi negado ao nascer leva esse estigma por toda vida. Sem raízes, escondido pela família poderosa, quase clandestino no país onde foi estudar, Castaneda assim mesmo confidenciava para um colega de quarto na universidade que seu tio seria presidente do Brasil e tinha sido capa da Time. Oswaldo Aranha era o nome mais cotado para enfrentar Jânio Quadros em 1960, mas as articulações levaram para o Marechal Lott, com os resultados desastrosos já conhecidos. Se Oswaldo Aranha tivesse sido candidato, certamente seria eleito e não teríamos embarcada nessa tragédia política da qual ainda não conseguimos nos libertar. Todas essas revelações sobre Carlos Castaneda explica porque ele estava aberto para entender e decidiu se entregar a uma cultura desconhecida, já que não tinha sido incluído no mundo oficial. Era triplamente excluído: brasileiro confundido com hispânico, filho ilegítimo de família rica e depois antropólogo não reconhecido pela academia.
CLOSER - Depois desta notícia-bomba, vamos fazer uma breve referência a Closer, o filme de Mike Nichols de 2004 e que indiretamente me diz respeito, pois Martha Medeiros, num texto hiper-difundido na internet, incluiu um verso meu ("Nenhuma pessoa é lugar de repouso", do meu poema Salvação) e o usou como se eu concordasse com o rodízio de casais reportado no filme. Nada mais longe da realidade. Meu verso aponta para o movimento interno, pessoal, de busca incessante do alimento para o amor, e não é um passaporte para a disponibilidade total e mesquinha de hoje. Foi um verso escrito nos anos 60 e fazia parte da luta por uma vida mais sincera e real, sem a monotonia das famílias que viviam na falsidade e na clausura social. Era um chamado à libertação, na procura de algo mais verdadeiro e jamais um estímulo à vontade geral de se desvencilhar dos relacionamentos, como sugere o texto de Martha Medeiros. Fiquei assim com fama de poeta que nega o relacionamento duradouro. Vamos parar com isso. Ou como dizia Vicente Matheus: me incluam fora disso!
RETORNO - O post acima foi levemente reescrito para colocar algumas coisas no lugar. Trata-se de uma segunda edição, melhorada, desta notícia sobre a identidade de Castaneda. A primeira edição foi feita no calor da hora e modificada no final do dia.
18 de junho de 2006
O ÚLTIMO DUELO
Alguns goleiros fingem que são livres e vão chutar faltas. Outros não se conformam em ser testemunha a maior parte do tempo
NEI DUCLÓS (*)
O goleiro é um animal enjaulado. Preso pela regra e pela ameaça da derrota, ele usa o pulo para diminuir o sofrimento, jamais para inaugurar a fuga. Por mais que se movimente, sempre volta ao mesmo jugo. Tem apenas uma arma de defesa, o reflexo. O resto, como o golpe de vista, é loteria.
A vida vale pelos gols que toma e não pelos que salva. Sua humilhação suprema é levar um chute certeiro pelo meio dos braços ou das pernas. O frango, aquele lance em que a bola chocha cisca o chão de maneira arisca e é caçada em vão, é a sua punição extrema. Um frango existe quando a bola dribla o goleiro e cobre a área de vergonha. Nem a ilusão de que exista de fato o morrinho artilheiro é capaz de redimir alguém de um frango. Mas há um tipo de jogo que faz justiça a esses condenados. Ele acontece cara a cara, ao anoitecer.
Alguns goleiros fingem que são livres e vão chutar faltas. Outros não se conformam em ser testemunha a maior parte do tempo. Mas assim é o goleiro: um bicho que se rebela e que, sendo o único a poder jogar com as mãos nos limites da área, tem, por vingança, o chute mais potente, que atravessa o campo. Seu objetivo é acertar o seu semelhante, que, no outro lado do jogo, compartilha a mesma maldição. Por isso o jogo da infância, o gol a gol, é único no seu confronto entre duas pessoas que jamais participam de verdade de um time, que é feito de zagueiros, volantes, atacantes, pontas, jamais de criaturas que têm licença para voar. O gol a gol é uma espécie de retaliação para quem nasce goleiro e pode, quando o jogo principal vira pó, fazer gols, um atrás do outro, sem que nada nem ninguém interfira.
O gol a gol é um duelo ao entardecer, quando todos estão exaustos e só sobra fôlego para quem é goleiro. Esse é o momento do desempate, do desenlace do dia inteiro dedicado ao futebol, ou seja, à arte improvável de combinar retas com curvas e encaixar esferas em retângulos. O que não foi conseguido a tarde toda pode ser definitivo agora, quando o sol praticamente se foi e o Cruzeiro do Sul nos cobre com sua madeira de luzes poderosas.
O líder, que está sempre no centro dos acontecimentos, define as regras. Tira o par ou ímpar e começam as apostas. Os goleiros então tomam posição, um frente ao outro, e transformam seus corpos em dorsos de tigres. Os joelhos levemente para frente, as costas curvadas, os braços como cordas tensas, as mãos enormes, os pés prontos para o tiro, o coração um segundo antes do salto e o olhar como a flecha que define uma batalha.
Eles já perderam tudo: a oportunidade de serem atacantes, a meninice que se esvai naquela tarde, a felicidade de continuar vivo no mundo de conflitos dóceis e de paz incomparável. Portanto, se esfacelam nas pedras para ganhar aquela partida. Esse é o momento que possuem para apagar um frango, subir na escala da tribo, poder contar vantagem mais tarde, diferenciar-se da situação de mero coadjuvante, contrariar o que foi comum o tempo todo, e já não há mais tempo, pois se acaba o dia e a infância.
No subúrbio da pequena cidade, não existe luz sobrando, apesar do excesso de estrelas. O breu então toma conta do estádio baldio (conjunto de terra atirada a esmo) e só se sobressai a bola, lua branca pequena e selvagem. Quando a partida segue, com todos os envolvidos, é a hora de marcar pesado, tirar a limpo aquela rasteira, atacar por baixo e por cima. Quando é apenas um gol a gol, é o momento da gargalhada. Pois é tragédia apenas entre os dois contendores, e comédia para o resto. Ninguém leva a sério um goleiro fazendo gol. Por isso essa modalidade não existe em parte alguma, nem em olimpíada e, desconfio, nem mais naqueles ermos perdidos, que foram arrastados para o abismo do nada.
Deveria seguir adiante aquele gol a gol perdido no último tiro. Deveria haver uma nova chance. Porque a noite é imensa, interminável e quando amanhecer já seremos adultos, esses seres sem graça que ficam na frente da televisão olhando com desprezo os goleiros e seus frangos, os goleiros e seus pulos, os goleiros e sua grande vocação para a eternidade.
RETORNO - (*) Esta crônica, publicada hoje, domingo, no caderno Donna do Diario Catarinense, é de minha autoria. Por um lamentável equívoco, o crédito foi atribuído a outro escritor. Felizmente, a versão on-line do jornal já está com o crédito certo. E nesta segunda-feira, será publicada uma errata. Fim do imbroglio.
17 de junho de 2006
O SOL OCULTO
A denúncia à mistificação das artes, o reconhecimento do impasse e a aposta de um recomeço da cultura brasileira (Resenha publicada neste sábado no caderno Cultura, do Diário Catarinense)
Nei Duclós
Ficção é o álibi perfeito para contar a verdade. Isenta o autor de crime de calúnia e ainda enriquece a biografia artística. É o que Carlos Henrique Schroeder faz no seu oitavo romance, Ensaio do vazio (Coleção Rocinante, Editora 7Letras, 114 pgs.). Seu narrador-personagem é a soma dos detritos de uma comunidade, o Brasil, uma criatura compactada no pesadelo a que estamos acostumados, mas apresentado de forma tão convincente e, horror supremo, humana, que não desgrudamos o olho da narrativa. Lemos compulsivamente essa espessa e breve trajetória, não para saber aonde quer chegar (o desfecho está por toda parte), mas pela sintonia com o país em nossa volta e a sedução da leitura promovida pelo talento.
Como interatividade é uma ilusão na terra dos monólogos, Schroeder abusa da sua invenção e a leva para as situações mais graves, os lances mais perversos, as palavras mais cruéis, os sonhos mais rudes. Impune diante da criação que toma a forma de um monstro, e que, devido ao silêncio dos leitores, jamais poderá ser contestada, ele se compraz com o que descreve. Talvez, no avesso desse desplante, aposte na carga desdramática do excesso - ou seja, pedindo que o leitor releve tanta impostura, já que é impossível uma vida chegar a tamanha degradação e continuar alegremente exibindo sua lucidez. Mas entre a intenção virtual e o texto real, o escritor compõe uma performance irada, à moda dos artistas contemporâneos, que, ao invés da obra, apostam no processo e ficam satisfeitos quando não são flagrados em seus desatinos.
O romance é, assim, colocado como um trabalho de vanguarda numa bienal de sucesso, nesse tipo de evento comparado a um shopping center de mercadorias descartáveis por Ferreira Gullar em Sobre Arte (Coleção Sabor Literário da José Olympio, republicado junto com o ensaio Sobre poesia - uma luz no chão, 170 pgs.). Numa conexão explícita, o personagem de Schroeder, pelo menos nas intenções (viver do mercado, em conúbio com os neomarchands) e nas convicções, é idêntico ao de Ferreira Gullar. "Minha obra mais famosa, premiada em três salões nacionais e vendida a um empresário mato-grossense, chama-se Espelho. É um papel branco colado num pequeno tablado de madeira. Pura asneira. Mas me rendeu várias reportagens em revistas especializadas", diz Ricardo, a criatura de Ensaio do vazio. "A busca da novidade pela novidade tornou-se um valor da arte em função do mercado. Mas como a obra de arte não tem a utilidade funcional da geladeira e do liqüidificador, essa busca da novidade, nela, levou à sua desintegração formal e ao que hoje se chama de arte conceitual - a não-arte", diz Gullar.
A conexão nutre-se dessa identificação reveladora. Daí para frente, Schroeder implanta no seu artista uma seqüência de crimes trazidos da formação - os planos comerciais da família, o mau exemplo do pai, o sufoco da cidade do interior. Eles afloram na capital como o gozo múltiplo de uma civilização torta e decaída, espécie de véspera do castigo sem a busca bíblica dos justos. É tanta manipulação que o próprio personagem se rebela contra o autor, esse lance mistificador que sempre rende bons frutos, já que serve para confirmar a distância entre criador e criatura. Não fosse assim, o escritor teria que sair da publicação do romance direto para a masmorra. O gesto de independência gera uma chance para o personagem, que procura recomeçar com a esposa a vida conjugal negada ao longo do romance. É uma situação que pertence à juventude de Ricardo, mas que, por decisão da narrativa, funciona como seu reinício na idade madura.
Talvez Schroeder jure ser sua imaginação, mas Ricardo pode ser encarado como o alter ego que jamais deixamos vir à tona, a não ser vestido de personagem. A justaposição entre o escritor e sua criatura é por demais evidente: de onde ele tiraria, a não ser da própria humanidade (a única que está acessível a qualquer um de nós), a verdadeira deformação que negamos? Isso não virá do olhar mesquinho sobre o outro, mas do que somos capazes de pensar ou fazer quando não há paz na vida adulta. A ficção se transforma, assim, num barco singrando o mar de detritos reais. É ultrajante que a literatura exista, pois é uma forma de escaparmos do que realmente somos (quando embrulhamos a carne suja com papel colorido). Mas, ao mesmo tempo, é esse passo que nos transporta para uma revitalização.
Não fosse essa aposta no recomeço, seria um novo beco sem saída, pois tanto Schroeder quanto Gullar são escritores de vanguarda, e isso poderia colocá-los na vala comum do que condenam. A diferença é que eles não pagam tributo ao rótulo, antes se curvam diante da fonte que alimenta o andar. A vida perdida do romance agarra-se ao pesadelo do real (em Matrix, a mais completa metáfora contemporânea da manipulação) e aos mestres (Kafka, Orwell) para abrir um claro na mata fechada do vazio. E o tempo perdido do poema revisita a luz e o chão maranhense, quando o poeta faz as pazes com sua contundência e sua força. É a luta por uma poesia que "nos ajudasse a nos assumirmos por nós mesmos".
Os dois escritores dão um sopro na modorra do cenário cultural brasileiro. Não porque exijam o lugar de destaque ou façam a pose exigida para a ocasião. Mas porque a resenha, território da liberdade, encontra nessa sintonia a fresta por onde passa o raio possível de um sol ainda oculto.
RETORNO - A magnífica foto de Ferreira Gullar é do fotógrafo Ronaldo Bernardi, do Diário Catarinense. Na foto mais abaixo, o escritor Carlos Henrique Schroeder.
16 de junho de 2006
APRENDA COM OS OUTROS
E ponha-se em movimento, para decidir, depois de um golpe de vista, o lance que poderá levá-lo ao sucesso (Resenha publicada originalmente na revista Empreendedor).
Há dois tipos de estratégia, segundo o livro do professor americano William Duggan, O Estalo De Napoleão - O Segredo Da Estratégia (Francis, 317 pgs.) e suas diferenças decidem a vitória ou a derrota tanto no nível profissional quanto pessoal. Uma é baseada na imobilidade e a outra no movimento. A primeira é tributária do planejamento minucioso, os alvos fixos e distantes e a certeza de que tudo vai funcionar conforme foi previsto. A segunda é baseada na experiência do sucesso dos outros, no deslocamento físico para dentro do campo de batalha e na presença de espírito, capaz de descobrir, num relance, o momento e o lugar certo de agir. A primeira depende de um mapa e independe do conhecimento do terreno, já que a luta é travada a distância. A segunda depende da vistoria in loco e da combinação entre o que já provou que funciona e a solução que surge, num insight, na hora decisiva. Nem se discute para qual lado torce o professor da Universidade de Columbia.
Ele é um adepto ferrenho de Carl Von Clausewitz, o prussiano autor do clássico Da Guerra, que estudou por décadas o estilo de Napoleão de lutar. E inimigo mortal de Antoine de Jomini, o suíço elegante que convenceu, por seu livro Sumário da arte da guerra, os exércitos a optarem pelo bombardeio maciço na Primeira Guerra Mundial, quando numa só batalha, a de Verdun, houve mais de 500 mil mortos. Os generais que ficaram encastelados em casamatas longe do alvo e saíam para passear depois de pretensamente atingirem seus objetivos (alguns iam até de bengala, diz Bill Duggan)iam colher a vitória certa, rigidamente desenhada em seus porões seguros. Foi, claro, um massacre. Hitler e o exército alemão simplesmente retomaram Clausewitz e em 1939 tomaram a Europa em uma semana, graças à guerra de movimento.
Duggan seleciona dez cases em que enxerga o coup d´oeil, ou golpe de vista, ou insight napoleônico. O mais impressionante é o de Bill Patton, o general americano que estudara todas as grandes batalhas da História (assim como Napoleão) e colocou-se em marcha para descobrir como agir no meio do fogo. O segredo era saber qual o ponto ideal do confronto e não colocar ali todas as forças. Era preciso deslocar dois terços das tropas para envolver pelos lados e por trás, o inimigo. Quando este decidisse s e defender desse ataque pelos flancos, aí sim era a hora de confrontar o adversário no ponto focal, que poderia ser uma ponte, uma estrada, um terreno enlameado. Era o que Patton chamava de segurar o nariz do inimigo e chutar por trás ao mesmo tempo.
O erro de Napoleão foi ter escolhido uma estratégia Jomini para atacar a Rússia. Fixou seu alvo, Moscou, e contou para todo mundo. Levou 600 mil homens. Tomou a capital, mas ela estava em chamas. Teria que ter feito como antes, destruir primeiro o exército inimigo para só depois tomar suas cidades. Por isso voltou com apenas 10 mil homens, o que foi sua ruína. Duggan avisa que uma estratégia não garante vitória, apenas pode aumentar suas chances.
Um case revelador é o do banco de pés descalços de Bangladesh, de Mohammed Yunus, que formou-se em economia nos Estados Unidos e quando voltou participou das estratégias Jomini de ajudas dos bancos internacionais. Viu que não dava certo, pois a massa de dinheiro vinha com objetivo previamente definidos. Decidia-se que os fazendeiros deveriam abrir poços para irrigação, mas isso só aumentava o latifúndio. Ou então que o país deveria plantar café. Yunus foi a campo e descobriu que com um pequeno empréstimo poderia tirar multidões de empreendedores das mãos dos agiotas. Mas para isso ele percorreu as aldeias para descobrir seu próprio insight.
Foi um sucesso e copiado em todo mundo, inclusive no Brasil, com resultados diversos, pois mesmo a estratégia de Yunus, sem seus fundamentos, pode virar um perfeito modo Jomini de agir. Os outros cases são: São Paulo, o fariseu que ao perseguir os nazarenos descobriu, na estrada de Damasco, que tinha mais a ver com quem perseguia do que com os que o sustentavam; Joanna D´Arc, que empolgou as tropas francesas sitiadas; Picasso, que misturou as descobertas e experiências de Matisse com volumes, formas e cores, com as máscaras africanas; Ella Baker, que atuando nos bastidores transformou em sucesso o movimento pelos direitos civis dos negros americanos; Alice Paul, a sufragista esquecida que dobrou o presidente americano a favor do voto da mulher; Sundiata Keita, o filho de um pequeno Rei que tornou-se o Rei Leão da antiga Mali; e Yukichi Fukuzawa, que disseminou pelos livros a cultura do ocidente, o que transformou o Japão a partir de 1860.
William Duggan dá cursos de estratégia há vinte anos e publicou outro livro sobre o mesmo assunto, mais adaptado para os negócios. Mas quem disse que empreendedor só gosta de ler livros de negócios? É melhor palmilhar este terreno de batalhas e vitórias, de textos saborosos e que encerram lições valiosas para quem enfrenta, diariamente, a dura batalha pela vida.
RETORNO - Imagem de hoje: o banqueiro popular Yunnus e uma cliente. Uma experiência oposta ao do Brasil.
14 de junho de 2006
TEMOS O CORPO ERRADO, RONALDO
Já decidiram: Ronaldo está gordo, parece um panzer em campo e deve ficar no banco para reaprender a jogar, como disse um blogueiro famoso. Todos caíram matando em cima do craque, aquele cara que nos deu uma Copa, a de 2002, quando fez dois gols na final contra a arrogância do arqueiro alemão, que estava pronto para provar a superioridade pré-determinada. A verdade é que sempre tivemos o corpo errado. Fomos muito magros quando espichamos na adolescência sem fim e somos os eternos gordos para o mundo que entronizou a estética fashion atleticamente correta. No futebol, o corpo errado dos craques é a regra, a começar por Garrincha, que pela lógica imperante jamais deveria ter jogado. Vejam Maradona, socado e retaco. Ou o franzino Pelé em 1958, que foi convocado para a seleção aos 16 anos, porque tínhamos crônica esportiva como Nelson Rodrigues e dirigentes como Paulo Machado de Carvalho. Onde já se viu colocar uma pluma diante dos tanques? Pois a pluma voou, deu chapéu e acabou levantando a taça.
PROFESSOR - O que dizer de Ronaldinho Gaúcho, complamente fora de esquadro? Deveria ter os dentes no lugar para que a bola seguisse a trilha da correção absoluta? A verdade é que a diversidade humana precisa ser tolerada para que o talento aflore e a verdade se imponha. Se um barrigudo ágrafo levantar a lebre de que nosso craque está gordo, e se nossa estréia não foi a dos nossos sonhos, o que tem a ver a biografia de Ronaldo com nossas ansiedades? Já deveríamos ter aprendido que uma Copa do Mundo é a conquista mais árdua, não porque nela se manifeste o esplendor da glória dos deuses esportivos, mas por ser um trabalho de humana escassez, costurada pelo avesso, aos poucos, combinando espírito de equipe com fagulhas de gênio, dedicação e desprendimento, estratégia e lances de acaso. Um técnico como Parreira, que aposta na prudência, que impõe o toque lateral de bola no meio do campo, que constrói títulos com sua personalidade quase apagada, que é chamado de professor não por acaso, jamais poderia ser o técnico de uma seleção que empresta o nome do Brasil para milhões de apátridas.
ESTEPE - Pois é isso que somos: uns não-brasileiros. Vejo faixas enormes em todo o país: os catarinenses, os paulistas, os mineiros apóiam a seleção do Brasil. Não são os brasileiros que apóiam a própria seleção, mas sim esses cidadãos federalizados que gostam de se sentir canarinhos na hora da vitória. O Brasil é nosso escravo, o usamos para sermos campeões. Qualquer coisa, vestimos camisas italianas, alemãs, sérvias, já que somos de lá, do lado de lá do mar, oriundi, estrangeiros eternos, duplos cidadãos. Temos sempre uma seleção estepe. Se o Brasil, esse país fora de nós, se estrepar, bem, temos um nome francês, italiano, alemão para compensar. Bem que poderemos chegar à final caso esse gordo continuar plantado na área, caso esse panzer insistir em usurpar a posição que pertence aos outros. Acho Robinho o máximo, sei como todo mundo que ele encheu de gás o time brasileiro, confesso que gostaria de ver Juninho Pernambucano batendo todas aquelas faltas ou Ricardinho costurando o meio de campo. Mas isso não me dá motivos para execrar Ronaldo, o garoto que começou no São Cristóvão, explodiu ainda menino no Cruzeiro e foi cedo para glória européia.
AGORA - Teu tempo é agora, Ronaldo. Temos o corpo errado, cracaço. Somos da mesma nação de apátridas, da mesma nação que cospe nos seus heróis. Bastará você fazer um gol, mais um de tua gloriosa carreira, a mesma que um dia sucumbiu sob o olho gordo geral, quando apostaram em tua queda absoluta, para que ressuscite a confiança em ti, pelo menos por parte desses que hoje te achincalham. Estavas desacreditado antes de 2002, não fosse esse dialético turrão chamado Felipe Scolari te colocar no podium e dizer é tua, garoto, é tua, cara. Agora bastou a estréia chocha do nosso time para que haja pânico geral. Com o brasileiro, há quem possa: basta um time se articular, como aconteceu com a Croácia, basta uma surpresa vir rasgando, como a Austrália, e eis que nos vemos diante de nossa pobre humanidade. Não somos deuses nos minutos decisivos das Copas do mundo. O que nos faz campeões não é o carnaval, a firula, a alegria, o talento. O que nos faz vitoriosos é essa teimosia que insiste no título, essa determinação de seguir um chamado, a vocação para o vôo e a vitória. Todos contribuem para que sejamos penta e possivelmente hexacampeões. Não nós os que nos sacudimos diante das câmeras, mas nós os que enfrentamos todos os dias a pobreza, a insegurança, a dor de ver partir tantos brasileiros mortos nas estradas, nas casas, nas cidades e nos campos.
ESQUINAS - Somos nós, Ronaldo, os caras que estão sempre com o corpo errado, que jamais agradam os estetas infames, nós somos os caras que fazemos dessa nação algo maior do que o desespero. Não importa que caias na tentação de tantas besteiras expostas na mídia, tuas fraquezas e vaidades. Somos como tu, craque, humanos até o osso, mas com a chance de fazer acontecer algo que ficará para além de nossas vidas. Talvez seja a alma que cultivamos de maneira tão árdua em nosso corpo precário. E como somos escassos, e irmãos, sei que dependo de tua força muscular, de teus pulmões e de teu corpo com a gana do touro e a graça do toureiro (vejam quando Ronaldo bate na bola antes do gol fatal, como Kaká fez no jogo contra a Croácia). O secretário geral da ONU diz que tem inveja da Fifa. Não deveria ter. Deveria era prestar atenção nas pessoas que fazem a Copa, diante dos olhos do mundo, num arranque de auto-superação. A ONU, que nos deu Sergio Vieira de Mello (que tanta falta faz hoje em Timor Leste), deveria era apostar no corpo errado da humanidade, esse que é massacrado nas esquinas e depende muito mais do que negociações em volta da mesa.
BANDEIRAS - Dependemos todos nós de pessoas que um dia são carregadas em nossos ombros. Eles são nosso porta-estandarte. É com eles que fazemos tremular bandeiras de paz. É junto com eles, na vitória ou na derrota, que somos cidadãos de um país de verdade, de uma nação séria, de uma grandeza eterna, exatamente por ser mortal, e esquelética ou rotunda. Somos a alma imortal soprada em vasos de barro. É verdade que estamos gordos? Não importa o que aparentamos ser. Isso não prova o que podemos fazer. O que vale é o que somos de verdade, e a verdade é que somos o pânico de quem duvidou de nós.
13 de junho de 2006
A HISTÓRIA NÃO É VISÍVEL A OLHO NU
A pretensão maior da mídia é achar que faz História. Ou que a História será sempre vista como ela, a mídia, a descreve. O vício de achar que a História pode ser vista a olho nu leva os jornalistas a falarem em momento histórico a três por quatro. A História é uma ciência humana que tem instrumentos poderosos na obra dos mestres, de Heródoto a Marx, e é criada pelo pensamento produzido a partir de informações do passado, dos vestígios. Não depende de uma câmara apontada para o muro de Berlim sendo demolido e alguém dizendo isto é História. Nem o choro convulso de Zagallo diante de Pedro Bial, no JN (vão matar o Zagallo, parem com isso!), falando sobre suas Copas é História. Tampouco os lances da vitória ou da derrota do Brasil. O cruzeiro cultural de Um filme Falado, de Manoel de Oliveira também não é História, é cinema. Ver é cinema, resgatar é História. História é um texto como o "18 Brumário de Luis Bonaparte", de Karl Marx. Ou "Caminhos e Fronteiras", de Sergio Buarque de Holanda. O resto é intervalo entre dois anúncios.
AULA - Manoel de Oliveira surpreende por ser amador na sua radicalidade anti-hollywoodiana e revelador por nos mostrar o mundo que a indústria de cinema esconde. As cidades que filma, como Lisboa, Marselha, Istambul, Atenas, são integralmente visíveis, ao contrário das representações inventadas nas megaproduções. Sua trama é didática: a visita aos vestígios históricos ao longo do Mediterrâneo e do Mar Vermelho, poderia ser encarada como um aula de História, mas é exatamente o contrário. A professora que tem tudo gravado na memória e que procura ver nos monumentos (que visita pela primeira vez) o que repassa aos seus alunos na Universidade, explica a História para sua filha de dez anos. Ela vê o que acha que já sabe. A visão linear e ingênua, de conceitos bem definidos, como civilização e barbárie, ou mito, realidade e lenda, é reforçada pelos outros visitantes, que as acompanham no tour feito de navio. O desfecho é utópico: pessoas de diferentes línguas confraternizam em torno de uma mesa de restaurante projetando uma época de ouro de paz na diferença. Mas a trama é apunhalada pelo que se opõe às certezas culturais e confirma a decadência como final óbvio para mais uma fase da civilização. Tudo tem aquela objetividade sincera dos portugueses, pessoas práticas que definiram um chão sólido para seus sonhos. A História não está nas pirâmides, mas na contradição entre intenção ( o jantar elegante) e o fato (a explosão).
MENTIRAS - Uma cerveja que se notabiliza pelo gosto horrível, e em alguns lugares, pelo monopólio do mercado, está com uma campanha no ar contra seleção argentina. É um crime que merece punição. Toda essa gargalhada poderá se voltar contra o Brasil. É preciso respeitar os adversários, as outras culturas e povos. É preciso tentar enxergar a diversidade de cada nação e não tentar enquadrá-las em nossas pré-determinações. Se Maradona não era de confiança ao dopar Branco em 1990, como confessou rindo num programa de rádio, não quer dizer que devamos cevar o ódio aos argentinos. Rir da camisa azul e branco é um acinte. Parafraseando o craque Ronaldo: assim como deve ser mentira que os argentinos são uns bobalhões em campo, como mostra a publicidade em questão, deve ser também mentira que a referida cerveja tem gosto de mijo pôdre. Uma cerveja que dispensa intermediação dos rins. Já é o mijo engarrafado. Por supuesto.
RETORNO - 2. Imagem de hoje: protagonistas de "Um Filme Falado", de Manoel de Oliveira, olham para a câmara, ou melhor, para os escaravelhos egípcios. Eles vêem o mito nas pequenas esculturas (que estão exatamente no lugar do nosso olhar) ou apenas nos encaram? 2. Fim da candidatura Simon: conseguiram. Vamos ver como seguirá a campanha.
11 de junho de 2006
E SE OS DESGARRADOS REAGIREM?
Como estava seco para ver filmes feitos neste século, não impus limites para o Festival de Cinema Contemporâneo do Diário da Fonte. A sede jamais satisfeita procura não encarar cada sessão como perda de tempo, mesmo que a obra não esteja à altura das expectativas. Como é o caso de Les égarés (2003), de André Téchiné, com Emmanuelle Béart (Odile), Gaspard Ulliel (Yvan), Grégoire Leprince-Ringuet (Philippe) e Clémence Meyer (Cathy). O dicionário Le Petit Robert informa que égaré é aquele que perdeu seu caminho e também sua saúde mental. Uma viúva e filhos (um casal de adolescentes), vítimas da invasão alemã na segunda guerra, saem da estrada e ocupam uma casa, onde convivem com um refugiado de reformatório. É mais um filme sobre o massacre das populações desarmadas. Vimos recentemente como São Paulo reagiu à matança generalizada: todos se recolheram às suas casas e deixaram o caminho livre para os criminosos. Na atual conjuntura, não haveria outra coisa a fazer. Mas, tem gente que imagina outra coisa: e se os desgarrados, os inermes, as vítimas mudassem de postura e se transformassem em exércitos? O que seriam dos assassinos, dos invasores, dos ditadores, dos bandidos? Qual seria a estratégia para implantar uma nova postura em toda a população, sem restrição de sexo, idade, situação social?
ETERNOS - O exemplo do Vietnã, lembram os que se dedicam a esse assunto, em que todos se engajaram na luta contra a invasão sucessiva de exércitos das potências, é o mais próximo exemplo. Mas estamos em outra situação. Hoje as populações são misturadas, há de tudo num bairro, numa cidade, numa nação. Não se trataria de unir guetos organizados étnicos ou sociais, mas fazer de cada família, cada indivíduo, cada rua, um foco de resistência e contra-ataque. Seria o fim da meia dúzia de bandidos que dominam uma favela e agora bairros inteiros de classe média. Como isso poderia ser feito sem armas, sem identificação entre vizinhos? Como fazer com que cada um se convencesse que morrerá se não reagir, e que também poderá morrer se reagir, mas se a última opção for a escolhida, haverá uma chance, pelo menos para quem sobreviver. Pois há exaustão de gente sendo jogada de um lado para outro como se fosse gado. Na hora em que o fugitivo voltar-se contra o perseguidor, seja em que situação for, haverá uma reversão do quadro atual. Para isso, deve se estar pronto para morrer, dizem as fontes envolvidas com o problema. Quem está? Ninguém. Todos nós somos eternos. Por isso morremos como moscas, em cada esquina do mundo aniquilado. Não sei se concordo com tuda essa análise.
BARBÁRIE - No Iraque, dirão, o povo está contra o invasor e morre a toda hora, em massa, sob a mira das armas dos que foram lá, digamos, implantar a democracia. Não é um bom exemplo. A massa sempre está ou na mão de quem vem para agredir, ou de quem está dentro da comunidade e decide ser o valentão ou o coberto de razão. Uma nova postura deveria ser romper com esse circulo vicioso e aniquilar todo tipo de tirania de grupos organizados. Para isso, a população inteira estaria disposta a lutar, em cada palmo do território conflagrado. O planeta pegou fogo, há exploração demais e estamos numa situação sem volta. A revolta contra a miséria foi usada para manter a situação. Os falsos líderes tomaram conta de parte do butim e querem se perpetuar como dinastias. Como poderão ser derrotados, se até o sistema de eleição está enquadrado nos mesmos de sempre, que são eleitos sempre da mesma forma? Ou seja, há vários tipos de matanças, massacres e invasões e as populações são impotentes diante de tanta malandragem e barbárie. Será que os fatos da História acontecem em vão? Nada aprendemos nunca? É o que muita gente se pergunta.
AÇÃO - O que identificaria um exército de todos? Quais seriam os sintomas de sua sintonia? Como agiriam? Como evitar mais injustiça na nova mobilização? Num mundo em que os vizinhos se odeiam e se roubam mutuamente, em que contingentes inteiros estão comprometidos com o voto de cabresto, como definir uma nova ação? Esse seria o desafio dos novos guerreiros, os que deixariam de lado seus afazeres diários para comandar, pelo menos dentro de si, uma reação em massa contra os espertalhões que nos exploram. Sem socialismo, sem anarquismo, capitalismo ou que sei eu mais. Mas com pontos em comum: honestidade, necessidade de proteção e sobrevivência, busca de uma vida digna. Ghandi pregou algo semelhante, mas com a não-violência. Parece que chegou a hora de outro tipo de reação. Resistir e ficar? Bater de volta? Somente proteger-se? Pensar em situações limite antes que a coisa exploda? Confiar nas instituições ? (o que seria mais plausível, não fosse a desconfiança generalizada, foco de mais desequilíbrio). Ou simplesmente deixar para lá e ver mais filmes? É o que tenho feito. Deus nos proteja.
TEMA - Vi massacres em O Jardineiro Fiel, Hotel Ruanda, O Pianista, Os últimos dias de Hitler, Os desgarrados, In my counbtry. Esse parece ser o tema do cinema deste início de século. Já batizei de cinema de extermínio. Assunto espinhento, não? Estarei vendo filmes demais? Onde estão as comédias românticas? Estão em Woody Allen: Melinda & Melinda, outra boa produção que nosso Festival programou para ontem e que foi recebido com restrições pela seleta platéia. Eu gostei. Serviu para desviar a atenção desse tipo de especulação que pode virar pesadelo.
COPA - Ok, uma concessão à TV aberta. Gostei da Argentina, que pinta como possível campeã, ocupando o segundo lugar da nossa preferência, atrás apenas do Brasil. A Argentina parece ter a síntese dos vencedores da Copa: segurança, equilíbrio e alguns grandes craques. Não se deixou abalar pelo bom time da Costa do Marfim. Segurou a ansiedade e se impôs. Vejo os africanos sempre com muita sede ao pote. Quiseram queimar etapas para despontar como grandes conquistadores. Ainda há muito chão pela frente. Talvez a Africa produza um campeão antes do que imagino, mas parece que esta Copa tem a Argentina como uma boa possibilidade. Já falei mal do futebol argentino aqui. Mas não há como negar o talento, a tradição e a garra. Esta seleção, com um técnico tricampeão do mundo na categoria sub-20, poderá fazer a alegria dos nossos vizinhos. Se não conquistarmos o hexa (se por uma tragédia não chegarmos à final e vencermos), deveremos aplaudir los hermanos. A Argentina está merecendo, depois de 20 anos de jejum.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: fuga em "Les égarés". 2. Parabéns para a escritora Vera Ione, que foi designada Membro Correspondente para o Brasil do Instituto Literario Y Cultural Hispanico, durante o II Encuentro Literario Internacional del Mercosul. 3. Pergunta para Miguel Ramos: não encontro os filmes do Rio Grande do Sul aqui nas locadoras - onde e como conseguir? Quero ver Cerro do Jarau, Concerto Campestre e muitos outros.
10 de junho de 2006
AS CIDADES LIMPAS DE WOODY ALLEN
Woody Allen decidiu ser um clássico especialmente a partir de Manhattan, a porção novaiorquina em preto e branco que resgatou a magia perdida do cinema. O cenário limpo de suas cidades inexistentes (como acontecia nos filmes tradicionais) ambienta sua obra, que é pura reverência. Não bastou clonar Bergman, foi preciso ir atrás de Hitchcock de Pacto Sinistro, como prova Match Point (2005), o thriller que nos traz a Londres vista pela elite (sem miseráveis à vista), numa trama inspirada em Crime e Castigo de Dostoieweski. Esses cruzamentos já foram apontados pela crítica, confirmando o que percebi ao ver o filme ontem sem ainda ter lido nada sobre ele. Para contribuir um pouco com a abordagem do cinema de Allen, lembro ainda o diretor George Sidney de "The Eddy Duchin Story" (1956), com Tyrone Power e Kim Novak. Nada a ver com o drama, já que Sidney pertence a um tempo em que havia compaixão, o que não acontece atualmente. Mas com a limpeza do cenário, as cidades na qual moramos na imaginação e que me convenceu por muito tempo de que elas eram assim mesmo, até conhecer Rio e São Paulo e descobrir que o mundo era diferente do que o cinema mostrava.
CHARME - Ou melhor: minha percepção não batia com a versão cinematográfica das grandes cidades. Mesmo o cinema brasileiro das chanchadas trazia essa limpeza urbana que sustentavam os sonhos românticos. É bom viver nas cidades brasileiros do cinema dos anos 40 e 50, assim como sonhávamos morar naquela Nova York sem barulho, rica e cheia de charme dos musicais e das comédias românticas. Woody Allen é talvez o único cineasta que hoje não presta homenagem ao caos urbano. A cena da nova casa do casal Chris (Jonathan Rhys Meyers) e Chloe (Emily Mortimer), é reveladora: não pode existir aquela parede envidraçada que dá para o Tamisa e os prédios históricos de Londres (se existe, jamais pode ser uma residência). É a representação da felicidade ameaçada pelo lado escuro do alpinista social. Chris e Nola (Scarlett Johansson) estão degraus abaixo na escada social e eles encarnam a vilania que confronta as ditas pessoas de bem (a família de milionários especuladores do sistema financeiro globalizado). O aspecto tradicional do filme é reforçado pelas cenas nas grandes galerias, onde uma arte dita moderna serve de ilustração para um sistema de classes que deveria ser bem resolvido. O equilíbrio da vida social e familiar é apenas uma casca, a paixão de Allen pelos clássicos. Ele apenas quer resgatar esse mundo para colocar nele as relações sinistras entre cidadãos civilizados. Sua trama gira em torno de uma aparente sucessão de conquistas para um desfecho de tiros e sangue.
ESTILO - Allen não tem pressa e vai levando o espectador pelo olhar complacente desse mundo ilusório, em que os bairros pobres não exibem uma única pixação e os policiais ainda possuem aquela discrição dos romances policiais antigos, mais para Conan Doyle e Agatha Cristie do que para Dashiell Hammet. A resolução de um crime não vem pelo raciocínio, mas pelo sonho. No momento em que o bom senso é erradicado da vida normal, só o delírio, ou a assombração,pode nos devolver à especulação filosófica. O diálogo com os fantasmas é esse absurdo que traz um pouco de lucidez a uma história que não funciona mais na vida real e só na vigília é capaz de se resolver. O resultado é um impasse: a justiça não é feita, a razão fica a serviço do assassino e a sorte, que imaginávamos ter mudado de lado, continua a favor do Mal. A luz dos cenários limpos contrastam com o veludo sombrio de momentos que parecem tirados de riscos de xilogravura, do design adotado em algumas escadarias das graphic novels. Allen usa os recursos e instrumentos que dispõe (sua opção pela ópera como fundo musical foi decidida pela falta de dinheiro de mandar compor algo especial para o filme). É um estilo feito de colagens do que existe de permanente na arte.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: Scarlett Johansson com Jonathan Rhys Meyers, numa Londres limpa, de táxis pretos e ambientes clássicos. 2. O Ágrafo Sem Noção (Asno)perguntou se nosso craque estava gordo. Não existe pior ofensa do que comentar a aparência alheia. O desplante com que a idiotia foi pronunciada é o mesmo do desmentido via fax. Pelo menos o craque soube dar uma resposta à altura. 3. Vai votar em urna eletrônica? Veja o que diz Pedro Antonio Dourado de Rezende na sua denúncia. Pedro é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília, Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira.
8 de junho de 2006
PRÓXIMOS DEMAIS DE RUANDA
O uso de grupos agressivos para objetivos políticos, como aconteceu na invasão do Congresso anteontem, tem um precedente histórico de brutalidade: os ataques dos nazistas. Há pouco tempo (parece que nem aconteceu, o assunto sumiu da mídia) mais de 200 mortos foi o resultado de dois massacres em São Paulo: um por parte do crime organizado e outro de autoria de encapuzados a serviço da vingança. Diariamente, o que chamam de briga entre grupos do tráfico deixa um saldo tenebroso de vítimas, enquanto os esquadrões da morte continuam, assim como continua a ditadura. O subproduto desse tipo de ação é a total falta de controle, como aconteceu em Ruanda em 1994, quando um milhão de pessoas foram assassinadas sob a omissão da ONU e das superpotências. A história está contada de forma brilhante no filme Hotel Rwanda (2004), de Terry George, com Don Cheadle e Sophie Okonedo (nos papéis de Paul e Tatiana Rusesabagina), ambos indicados ao Oscar.
CORAGEM - No making off, o roteirista Keir Pearson (também indicado ao Oscar) conta como se dedicou um ano para escrever a história nas horas de folga do trabalho, nos fins de semana e nas férias. Quando vemos o filme pronto, qualquer filme,m dizemos: achei isso e aquilo, mas não atentamos para a grande dificuldade, a escassez que é conseguir concretizar um projeto que envolve milhares de pessoas. Tabajara Ruas, que está com seu segundo longa-metragem praticamente pronto, me dá detalhes do esforço coletivo (que ele chama de estiva) que é colocar uma história na tela. Muitos críticos jamais foram a um set de filmagem, não sabem como funciona a arte que eles comentam com tanta sem cerimônia. Posso dizer que sou um deles, pois meu contato com a sétima arte na fonte resume-se a algumas incursões em curta-metragem, isso na Idade da Pedra, há uns mil anos. Outro mau hábito é achar que os americanos e europeus fazem filme na maior facilidade, já que possuem sólida indústria. Ver Hotel Rwanda nos diz o contrário. É um trabalho árduo, que exige determinação, coragem e respeito pelos outros povos.
ÓDIO - Numa das cenas mais trágicas, o gerente do hotel pede para esposa se atirar do terraço quando as milícias chegarem com seus facões. O que assusta no filme é o descontrole da massa armada, que decide colocar em prática o ódio açulado pelos interesses políticos de grupos internos poderosos,e pela mídia. Uma estação de rádio que inocula o ódio é o destaque do filme. Por meio do incentivo à violência o locutor invoca argumentos históricos para que o hutus aniquilem os tsutis. No filme, ficamos sabendo que essa divisão da população (que não existe nem na pele, o biotipo, nada) foi inventada pelos belgas, que assim dividiram para poder reinar no seu império colonial, que foi retratado por Joseph Conrad em Coração das trevas. Hoje vemos no Brasil a divisão entre playboys e manos, entre policiais e presidiários, entre petistas e tucanos, entre os que são daqui e os que não são daqui. Há ódio no ar e o Brasil está próximo demais de uma explosão. Besteira, dirão, somos pacíficos. Quem dera. O volume crescente da matança aponta o pior caminho. Um dos sintomas é o bom mocismo de quem deveria tomar providências. Na hora do pega, os bons moços estarão muito bem protegidos, como aconteceu em Ruanda, quando os brancos se retiraram , abrindo as portas para o horror.
PAZ ? Outro filme, In my country (2005), de John Boorman, com Samuel Jackson e Juliette Binoche, descreve o trabalho da comissão que percorreu a África do Sul depois da vitória de Mandela. O objetivo era fazer com que os criminosos confessassem para conseguir anistia. O método foi criticado, pois deixaria impunes os torturadores e assassinos. Mas o filme aposta no perdão, única forma de a nação continuar viva. Os detalhes sobre as crueldades praticadas pontuam a história, numa seqüência que nos lembra a quantidade de casos parecidos que temos no Brasil, desde quando esta ditadura aqui se implantou em 1964. A dolorosa experiência do continente africano nos últimos anos nos revela o quanto corremos perigo aqui nesta terra sem lei, em que a ganância abusa da paz e cava um fosso que precisamos evitar com todas as nossas forças. Paz, paz, paz.
ROTEIRO - Imagem de hoje: Sophie (no centro) e Don (à direita) no filme Hotel Rwanda.
6 de junho de 2006
EXPLODIU O BABACÔMETRO
Depois de duas semanas de mergulho no cinema contemporâneo, o Diário da Fonte emerge e olha em torno. Estamos em plena festa, celebrando o Brasil que não existe mais. Se a seleção realmente vencer mais esta copa, não haverá "volta" para casa, pois todos moram no estrangeiro. Se houver, será virtual: eles chegam, desfilam em carro aberto, visitam os parentes e as autoridades e aí sim voltam para casa, que fica do outro lado do mar. Só Ricardinho, Mineiro e Rogério Ceni, o Brasil no banco, são da casa. Se não vencer, e isso é uma possibilidade, o fato de morarem quase todos fora do país será um alívio, para jogadores e população.
O espírito nacional não pode se sustentar apenas com o marketing e ser alimentado pelas reportagens que explodem o babacômetro, aquele aparelho de medir babaquice que não dá vencimento para tanto com-certezismo, bolhas no pé, sambinha no ônibus, treze letras. Sem falar no festival de tetas, braços ao alto, tamborins de araque e os gritinhos de iúhús da torcida bem arranjada. A única coisa que se salva, apesar do ufanismo das transmissões, do autismo narrativo, da cara de pau do monopólio, da avalanche de bastidores, é a formação dos atletas, a porção Brasil que ainda define sua arte. E que faz a diferença em campo, mas nem sempre.
PASSE - Apenas essa arte deveria ser celebrada, mas ela é apenas explorada pela multidão de sanguessugas, que alegremente entregam o país para a máquina de fazer dinheiro de todas as nações do mundo. O garoto domina a bola: O Turquistão já compra o passe dele, com família e tudo, por cinco gerações. Fez um gol decisivo no torneio da escola? O Bahreim quer. Tem 30 anos de profissão e ainda joga na Terceira Divisão do Brasileirão? A Eslobóvia Meridional manda um jatinho buscar. Fez bonito no campeonato? Já é do Milan. Deu um chapéu em meio time? O Barcelona tem o maior banco da história do futebol para abrigar todos os craques. E por aí vai. Não somos mais celeiros de craques, somos currais, somos aquele cenário de Matrix em que milhões de seres são conectados num sistema gigantesco de ilusão me opressão. Vivemos, para abusar do lugar comum gerado pela série de filmes, o pesadelo do real. E o babacômetro é apenas um utensílio sem uso, já que liberou geral. Não esqueça de gritar húúú e colocar a mão na cabeça quando a bola passa raspando. Todos fazem isso, por que não você?
SORRISINHOS - Ficou insuportável o tom insinuante dos repórteres, sempre com a mesma ladainha, que levam a mente do espectador para o suspense, a emoção ou a surpresa, com fechos gratificantes de sorrisinhos cúmplices. São gigolôs do futebol, essa arte inventada pelo povo, a partir das regras inglesas do jogo. Ficam dependurados na fala dos jogadores, como se jogador fosse obrigado a dizer coisas, a trabalhar para a mídia. A linguagem do craque é outra, insuperável. Ao jornalista cabe criar um texto à altura da excelência desse ofício. Mas o que vemos são comentários toscos, joguinhos mentais de dominó, quebra-cabeças de almanaque, como se o futebol obedecesse ao design da mediocridade intelectual.
LEI - A mídia acompanha o que está na superfície, já que abomina qualquer análise mais aprofundada. Dançou solenemente na final de 98, perde a esportiva quando o Brasil está perdendo, mas são os primeiros a cheirar sovaco quando a vitória suada chega com tudo. Há oportunismo nesse falso jornalismo que se divide entre os monopolistas e os subalternos. Há bons jornalistas, mas são raros. A culpa não é deles, é da lei: seja babaca, porque o povo é babaca. É o que deve estar escrito em algum lugar, já que todos obedecem.
RETORNO - 1. A foto é de Helcio Toth - O jogo de luz e sombras. 2. No site http://bolarolando.blogspot.com, alguns jornalistas saem da mesmice na abordagem do futebol. 3. E já que voltamos à tona, vamos ao que pega: "O senador Pedro Simon (PMDB-RS) classificou hoje, durante entrevista à rádio Guaíba, de Porto Alegre, de escândalo a renúncia do magistrado da Justiça Federal de Brasília que estava indicado para ser relator do recurso em que setores do PMDB pedem a manutenção da convenção nacional, marcada para 11 de junho. Segundo o parlamentar, o magistrado é o mesmo que em decisão anterior deu parecer favorável a recurso da ala pró-candidatura própria. Para o senador, o que chama a atenção é a alegação do juiz, de que não suportou as pressões. O senador disse estar preocupado, mas espera que a juíza convocada para examinar o recuso tome decisão corajosa. Simon reiterou que se a convenção for confirmada para o dia 11, pretende submeter o seu nome ao PMDB, apesar da força da ala governista que não quer candidatura própria. (Fonte: Rádio Guaíba)" .
4 de junho de 2006
DICKENS E NASSAR NO CINEMA: TRANSGRESSÃO E PERMANÊNCIA
"Todos cansaram da transgressão", diz Roman Polanski no making off de seu Oliver Twist. "É hora de voltar aos clássicos". Mas os clássicos assim são chamados não porque estejam imóveis e inatacáveis no tempo, mas porque conseguem obter a permanência ao encarar de frente a transgressão. O órfão de Charles Dickens filmado por Polanski é não apenas o resgate da infância sofrida do cineasta (que teve o país e a família destruída pelo nazismo), ou um tributo ao escritor inesquecível do século 19, mas uma evidência da atualidade da trama. Como Dickens conseguiu esse milagre? Encarando a infância de frente e apostando no humano em cada personagem, como por exemplo, a possibilidade do Mal na inocência, e vice-versa. Com esses recursos, além de destacar coisas como o perdão concedido pela vítima ao seu algoz, Dickens conseguiu equilibrar tradição (a narrativa clássica) e ruptura (as crianças envolvidas no sistema doentio dos adultos e tendo que entrar forçosamente na luta pela sobrevivência).
Do mesmo modo, a parábola do filho pródigo, revista por Raduan Nassar em Lavoura Arcaica, deixa-se confrontar pela desconstrução familiar, o choque de gerações, a explosão da sexualidade minando o comportamento reprimido. Luiz Fernando Carvalho acompanha essa dialética que gera permanência: a narrativa literária parte do indivíduo para definir a comunidade, e a composição visual faz o close claro-escuro duelar com a paisagem iluminada e perfeita. As cenas externas são a sintonia mais explícita entre esses dois filmes que não se tocam: a viagem de Oliver em direção a Londres em Polanski, e a fazenda dos irmãos atormentados em Carvalho, nos revelam o retorno ao clássico sobrecarregado de transgressão, o que pode garantir a permanência das duas obras nesta época de culturas descartáveis.
MARX - Mas como é inútil deixar Marx de lado em qualquer análise que se faça, deve-se jogar um spot sobre as causas das duas situações. Os órfãos que são treinados para o roubo fazem parte da exclusão social do capitalismo nascente e Dickens fala essencialmente de luta de classes: o judiciário e a polícia a serviço do muro imposto entre pobres e ricos; a pena máxima para o crime contra a propriedade; o uso da exclusão social para os interesses do Império (como na cena em que Oliver destrincha corda para fazer estopa que será usada pela marinha mercante). Em Lavoura Arcaica, toda prisão que provoca desespero e desejo de vingança e fuga vem das amarras econômicas. É preciso trabalhar antes do sol nascer até ele se pôr para que haja comida na mesa; todos os braços da família são fundamentais para que haja sobrevivência. Sair, como faz o filho pródigo, significa não apenas cravar um punhal de ingratidão à família que o gerou e o formou, mas um baque nos rendimentos familiares, que ficam assim desprovidos de braços para o sustento.
LIMITE - A literatura, e seu aliado, o cinema, é o caminho mais contundente para denunciar, descrever, criar vida a partir dessas situações limite. Roman Polanski, aos 72 anos e com filhos para criar ( um com sete e outro com 13), deixa de lado a transgressão pura e simples (como em "Repulsa ao sexo") e volta-se para o lado dark de Dickens, colocando cruamente crueldade e assassinato na tela. E Luiz Fernando Carvalho mantém-se fiel ao seu estilo rigoroso e denso, que adotou na televisão e não abre mão nos seus filmes. Não são cineastas que vieram ao mundo a passeio. Trabalham contra a corrupção cinematográfica que tomou conta da indústria. Deveriam ser escancarados na televisão aberta, em horário nobre. Seria um impacto cultural tremendo, com frutos valiosos em pouco tempo, pois suas sementes poderiam germinar rapidamente em terreno fértil, pois a população está seca por cultura e arte, apesar do achincalhe e do deboche dos impostores que dominam a telinha (e fazem toda força para destruir qualquer réstia de inteligência no cinema).
RETORNO - Imagem maior: Ben Kingsley (Fagin) e Barney Clark (Oliver Twist); a menor: Juliana Carneiro da Cunha em Lavoura Arcaica.
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