Nei Duclós
O assassinato de Geisa Firmo Gonçalves,
refém do caso do Ônibus 174, está no núcleo do drama do documentário de José
Padilha de 2002. O crime foi o resultado do confronto entre os homens que fazem
parte do poder no Brasil (autoridades e policiais) e as mulheres, suas vítimas.
Aparentemente, o protagonista é o
criminoso Sandro, que aos oito anos abandonou-se na rua para fugir do que viu: três
marmanjos apunhalando sua mãe pelas costas. Foi-se para os grupos de menores
abandonados nas ruas, que dormiam em frente à Igreja da Candelária, onde
testemunhou o massacre de policiais contra crianças. E atingiu o limite, o
sequestro do ônibus 174, no Rio, onde deu três tiros na mulher que estava sob
seu domínio. Por coincidência, três tiros também pelas costas.
Soubemos depois que a quarta bala, essa no rosto, foi do
policial que abordou Sandro desastradamente, quando ainda ele estava dono da
situação, ou seja, com um revólver apontado para sua vítima. Foi o desfecho de
uma sucessão de crimes, todos contra as mulheres. Estas estão no vórtice da
tragédia, pois tudo gira em torno delas.
Sandro liberou os reféns homens e manteve três mulheres sob
custódia, ameaçando-as durante horas, numa lenta agonia televisionada e resgatada
por Padilha em todos os seus detalhes. Como se o sequestrador tivesse algo a
acertar com o episódio que destruiu sua família. Ele tinha passado pelas
assistentes sociais, para quem confessou sua impotência diante da vida, já que
ninguém daria emprego para um negro pobre e analfabeto. Tinha convivido com as infelizes
companheiras de infortúnio, na rua em busca de drogas e de muitos assaltos.
Fora recebido por uma mãe adotiva depois de ter fugido de um chiqueiro a que
chamam cadeia (mostrado por um carcereiro desesperadamente lúcido ). E carregou
pela vida a mancha (esse era seu apelido devido a uma marca no corpo) que o
testemunho da morte trágica da mãe impregnou em sua identidade.
Sandro precisava manter as mulheres sob sua mira para reincorporar
o momento em que viu a mãe sendo assassinada. Simulou o assassinato de uma
delas para forçar sua libertação da sinuca em que se metera. E saiu com Geisa
porta afora quando ninguém mais tolerava
aquela crise de loucura e incompetência do poder. Os atiradores de elite
praticamente foram proibidos de resolver o problema por ordens superiores, mesmo
o criminoso mostrando a cara e pedindo para ser morto. Fosse nos Estados Unidos,
onde matam com muito menos condições, seria automático. Mas parece que havia
interesse em espichar o espetáculo que estava dando audiência.
Nunca se viu um show tão deprimente.Policiais se
comunicando com sinais em plena era digital. Negociadores que não levavam a
nada. Um cerco absurdamente longo para dominar apenas um ladrão pé de chinelo.
Não se tratava de um sequestrador preparado, era um ladrãozinho que improvisou tudo
e ficou prisioneiro do que inventou. A maior vitima aqui é você, disse uma das
mulheres que estavam sob sua mira.
Tanta espera e gritaria e acessos de loucura para acabar no
pior, a morte da refém. A queda em câmara lenta de Geisa, que jogou as pernas
para o alto ao se estatelar no chão depois de receber o impacto do tiroteio,
mostra a mulher sendo arrastada para a morte por obra da brutalidade dos
marmanjos no país da covardia. Se perguntarem de novo para as celebridades
internacionais que nos visitam o que acham da mulher brasileira, a melhor
resposta é: Estão sendo assassinadas.
Uma das reféns não consegue mais falar, se comunica
escrevendo. No documentário, ela pergunta por gestos por que não atiraram
quando o sujeito tinha colocado o braço e a cabeça para fora. Porque não
deixaram. Alguma sumidade em palácio republicano decidiu que não deveriam fazer
isso. Tem crimes que precisam de especialistas da morte que atingiram o estado
da arte. A arte de matar uma mulher.
Sandro também foi morto, pois a polícia se vingou de ter sido apanhada
em sua própria incompetência. Era preciso erradicar o motivo da desmoralização.
José Padilha, tremendo cineasta, é do ramo. Pega um, pega
geral.