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28 de fevereiro de 2011
UM DUELO DE AMOR ENTRE DUAS GUITARRAS
Outro texto de 1978, desta vez inserido na seção Toca Discos, que era repartido entre alguns jornalistas, como Dirceu Soares, na época titular da crítica musical da Ilustrada. Foi graças à generosidade de Dirceu Soares que entrei de banda no cardápio, pois ele me confessou que era avesso ao rock e sugeriu que eu cobrisse essa área. Mas não fiquei apenas nas guitarras e na música internacional e isso aos poucos a pesquisa vai mostrar. É bastante coisa.
Folha de S. Paulo, Ilustrada 7.06. 1978 – Seção Toca Discos
NEI DUCLÓS
Na avalanche de música repetitiva que alimenta a programação "sofistiqué" das emissoras FM, poucos lançamentos se destacam entre a mediocridade geral. O Brasil, coitado, apesar de ser, atualmente, um dos lugares mais criativos do mundo, para onde convergem os olhos gulosos dos músicos saturados do massacre comercial que assola os ouvidos de todos os povos, continua importando, numa quantidade difícil de suportar, as coisas mais hediondas nascidas da fome do lucro e da repressão cultural. Felizmente, surgem de vez em quando lançamentos como "Post Memorium ", um álbum em homenagem ao grande mestre do blues, Freddie King, acompanhado por um dos mais competentes guitarristas da música pop, Eric Clapton.
Discípulo de Muddy Waters e Lightnin' Hopkins, Freddie King só foi "apresentado oficialmente" às platéias de rock a partir de 1972, quando seu toque mágico na guitarra começou a influenciar pra valer a música pop. Dele diz Eric Clapton, numa pequena declaração de amor transcrita no contracapa do disco: "Ele me falou tudo o que eu precisava saber... quando fazer ou não um breque.. quando mostrar ou não a sua mão e o mais Importante de tudo... como fazer amor com uma guitarra". Com solos inesquecíveis e uma grande euforia que transparece em lodo o L.P. a beleza da musica feita por Freddie e Clapton nos toma de assalto principalmente na embaladíssima Sugar Sweet. Mas não há momentos pobres ou equivocados neste lançamento e todas as faixas merecem ser escutadas a esta altura, dois anos depois da morte de King e quase com devoção: Pack it Up Shake Your Bootle, Tain't Nobody's Business If I Do, Woman Blues e Farther Up the Road. Lançamento: Phonogram.
O segredo, talvez, dos verdadeiros criadores, ê a fidelidade - ou melhor, a paixão por manifestações musicais enraizadas no povo, como o blue e o jazz. Sem envernizar a criação, sem torná-la superficial, sem pretender um impacto prazeroso, gente como Freddie King ou Frank Zappa conseguem redimir a tristeza social desta época com amor, ironia, alegria e competência. Frank Zappa, por exemplo, resolveu transformar num álbum duplo - "Zappa in New York" — agora lançado pela Warner Eletric Atlantic, seus três shows feitos em 1976, em Nova York, assistidos por quase 30 miI pessoas.
Como John Mayall, Zappa sabe formar grandes bandas, como a deste LP, onde se sobressai a equipe de sopro formada pelo trumpetista Randy Becker, o sax tenor Mike Brecker e o clarinetista Ronnie Cuber, que arrasam a platéia — duelando com as guitarras de Zappa e de Ray White — principalmente na longa e estimulante "'The Purple Lagoon" (16 minutos e 20 segundos de maravilhas). A faixa mais quente, entretanto. é "Big Leg Mamma", terceira do lado A, uma das mais tocadas nos concertos novaiorquinos de Zappa. A única ressalva que se pode fazer a esse super-álbum duplo é a narração"sofisticada" de Don Pardo, que toma inutilmente preciosos minutos que bem poderiam ser preenchidos pela banda.
Entramos agora no terreno da monotonia e do veneno musical, desse que machuca os ouvidos, desculpem, surdos - e nos provoca a vontade de partir para o campo onde ainda existam cabras e flautas. É uma tristeza, por exemplo, o que aconteceu com os Bee Gees, um conjunto razoável que chegou a nos dar alguma coisa audível nesses vinte anos de insistência. O álbum duplo "Saturday Night Fever", trilha sonora do filme do mesmo nome traduzido por "Os embalos de sábado á noite" - é chato, pesado, burro. E multicolorido. Travestidos de "Beatles da Era Discotheque", os Bee Gees enterram-se fragorosamente como criadores, aparecendo ao lado de outras mediocridades do gênero, como os grupos Tavares, The Tramps e outras incompetências. Não comprem, eles Já estão ricos. Lançamento: Phonogram.
O enterro mais flagrante, entretanto, é o do músico argentino Astor Plazzola, que já nos venderam como vanguarda. Num lançamento da RCE Fermata. Piazzola tem a coragem de cometer um disco intitulado "Mundial 78", com musicas de nomes sugestivos como Mundial 78, Marcacion, Penal, Gambeta (drible), Golazo, Corner e Campeon. Ouvir para crer: Piazzola toca sempre as mesmas coisas, repetindo suas idéias que Já foram boas e agora descambam fragorosamente pela linha de fundo. Prefiro Garufa.
RETORNO - Neste post, Clapton e King em Up the Road pelo you tube.
O PASTICHE DO REI: O OSCAR COMO UM ATENTADO
Privilegiar com os principais prêmios na noite do Oscar o filme O Discurso do Rei é entronizar a mediocridade de uma narrativa que coloca a fonoaudiologia como decisiva para a participação britânica na II Guerra. Dizem que a rainha Elizabeth ficou ”tocada” ao ver seu paizinho gago lutando contra as próprias limitações para conseguir falar diante da nação que entrava no conflito mundial. Talvez a rainha tenha perdido a noção do perigo, pois não se trata de uma tentativa de humanizar a realeza, mas a de desconstruir o papel da Grã-Bretanha na matança de 1939 a 1945.
Feito pelos próprios britânicos, a produção no entanto faz parte da indústria global do espetáculo, terra cultural arrasada onde os sem grandeza dão as cartas sobre figuras históricas principalmente, para que tudo vire tabula rasa e assim eles possam pontificar. Não por acaso Holywood adorou o serviço sujo do filme. É que o espetáculo tem como protagonista ele mesmo e mais vale um discurso na mão do que uma política vencedora na diplomacia e na ação militar. Guerra é complicado demais para repassar o recado de uma necessária superficialidade histórica para o consumo, então vale a formatação de uma fala dita com competência, em que os hiatos da gagueira são usados a favor do emissor. Sim, política é linguagem, mas não uma aula de dicção ou uma sessão psiquiátrica tradicional em que a vítima (o rei, interpretado por Colin Firth, na foto acima) conta dos seus medos aos cinco anos de idade para um professor empírico fazer o papel de um Freud de chapelão.
Como todos sabem, Hollywood inventou a tese de que John Wayne ganhou todas as batalhas, o que aconteceu mais tarde com Sylvester Stallone, que venceu no Vietnã a flechadas e gritos de boca torta. Tirar os comunistas da jogada foi fácil: bastou enterrar a grande batalha de tanques de Kursk, que quebrou Hitler ao meio, para que vencesse a teoria de os americanos entrarem em Paris para comer as franceses e assim vencer sozinhos a carnificina. Mas o que fazer com Londres e seu heroísmo?
O filme é a resposta. O pior Churchill do cinema, o careteiro harrypottista Timothy Spall, é o retrato desta comédia de costumes, em que o rei George VI enfrenta apenas sua gagueira e os traumas da infância e não uma guerra. O pacote anti-britânico é completo. A história diz com todos os frames que o irmão Eduardo casou com uma vagabunda e traidora, a duplamente divorciada Wallis Simpson, que transava com um corretor de imóveis e recebia flores diárias do embaixador alemão, o que reforça as teorias da época. Coloca o mesmo Eduardo,que foi rei por breve tempo antes de abdicar, como um idiota dominado pela mulher. E faz de Albert, o rei durante a guerra, um babaca chorão e trêmulo, nas mãos de um fonoaudiólogo australiano e sem diploma (interpretado pelo excelente Geoffrey Rush, que faz um plebeu rude, capaz de arrancar a voz que o rei precisa, por meio de truques e estocadas). O filme sugere também, indiretamente, que Albert foi conivente com a conspirata que forçou seu irmão a abdicar.
A idéia é “desconstruir” a grandeza da participação britânica, que enfrentou com heroísmo a ameaça de Hitler. Os americanos, depois que os franceses se recusaram a participar da palhaçada do Iraque, cuidaram de acabar com a França em todos os sentidos. Mas há tempos fazem isso. No cinema tradicional, Paris é terra de putas, uma espécie de Cuba pré-Castro civilizada, onde as americanas vão dar e os americanos vão transar com as mulheres fáceis de seus desafetos. Agora um diretor medíocre como Tom Hooper, formatado em seriados de TV, vem trazer a varinha de condão do bruxismo best-seller para fazer de um reinado o carrossel apropriado à nossa era, em que ninguém pode aspirar ao épico ou à grandeza, pois isso faria muito mal aos que dominam o mundo e transformam todas as nações em macaquinhos amestrados.
O filme é fascista, pois coloca o rei britânico fascinado pela facilidade da discurseira de Hitler. E define a coroa britânica como uma firma de saltimbancos, com uma família que se transformou na pior espécie de pessoa, a de atores que precisam desempenhar no palco o papel de manipuladores de massas imbecis. Muito bom para o aplauso fácil e o prêmio dado com más intenções. Enquanto isso, os Irmãos Cohen com seu magnífico "Bravura Indômita" e o filme "A Rede Social" amargaram um exílio medonho na noite do Oscar.
Besteira reclamar disso, dirão, pois o Oscar é assim mesmo. Dá licença de achar ruim? No ano passado, quando premiaram Jeff Bridges e Sandra Bullock, vibrei. Sempre espero que o Oscar acerte. Não que se comporte conforme expectativas pessoais, mas que nos convença de que é sério. Não é? Ah, bom.
BRAVURA INDÔMITA: VOLTEI AO VELHO OESTE
Vi Bravura Indômita, dos Irmãos Cohen. Sou Jeff Bridges a reboque naquela caça à recompensa, deixando um rastro de vítimas pelo caminho. Temos a mesma idade, o velho Jeff e eu. A juventude nos sacode, quando dormimos no sofá, para um encargo inadiável. Aceitamos, porque é preciso se mexer. Mas, como sabemos tudo, desprezamos qualquer coisa, pessoas, alvos, armas, viajantes ou bichos. E não paramos de contar histórias que até parecem mentira. Vamos para o miolo do território hostil, onde selvagens negociam cadáveres com dentistas ambulantes vestindo pele de urso.
Ficamos de tocaia na choupana abandonada esperando chegar a quadrilha. Vemos então Matt Damon se adiantando para estragar a festa. Custei a reconhecer Matt e só me certifiquei quando vi os créditos no final. É um ourives, o guri, o melhor ator da sua geração. Toda vez que participa de um filme, deveria ganhar um Oscar pelo correio. A garota, Hailee Steinfeld (que também merece um Oscar), está ao meu lado. Atiro então em todos os malfeitores, mas acerto também Matt, no papel do ranger do Texas. Ele me despreza por isso e para me compensar tomo todas as garrafas do estoque e fico tão bêbado que destruo os mantimentos atirando-os para o alto tentando acertar com um só tiro. Mas erro todos. É porque as balas que o chinês me vende são falsas. Não porque, como diz o ranger, o sol está sobre meu único olho.
O motivo da nossa caça é o assassino do pai da garota, Josh Brolin, que assusta com sua mancha roxa na cara e que escapa pelos dedos em muitos estados, onde cometeu uma série de crimes, inclusive no Texas - lá apagou um senador. Mas a garota quer pegá-lo para vingar a morte do pai, não para que os caçadores recebam a recompensa onde o senador foi morto. Por isso há brigas ao longo de o caminho e acabamos nos separando mais de uma vez. Isso nos fragilizaria, mas a história arrumou as coisas: fez com que nossas brigas ficassem a nosso favor.
Quando o bandido apareceu com toda sua troupe, a garota estava sozinha tentando tirar um balde de água do rio. Queria pegá-lo e chegou a acertar um tiro. Mas foi capturada. O resto vocês sabem. Como John Wayne na filmagem original, baseada no mesmo livro, coloquei as rédeas nos dentes e enfrentei a bandidagem num duelo de cavalaria. Eles foram caindo um a um e o resto não conto.
Gosto de ser essa cara, caindo aos pedaços, envelhecido aos 62 anos. Ainda tem pontaria e pode falar o que bem entende. É livre, a não ser quando fica excessivamente duro. Aí corre perigo. É capaz de aceitar uma parada por cem dólares e sair trotando em território navajo com um olho só, em busca de um assassino. Para isso é capaz de matar quantos se atravessarem pelo caminho. Pensando bem, não gostaria de estar na pele dele. A não ser como alvo do agradecimento da garota que depois virou uma quarentona, solteirona, dura na queda. Que fala sobre como o tempo passa. Sabemos disso. Vivíamos naquelas pradarias e desertos até que fomos expulsos de lá. Hoje só tem filme de bundinha armado de metralhadora. Fica difícil ver alguma coisa recente com barulhos de cavalo, saloon e pistola fazendo estrago na tela e na nossa percepção. Não importa. Chega uma hora em que alguém sente falta de verdade e nos leva para lá, de volta.
É quando levantamos do sofá, acendemos cigarro de fumo de corda, pegamos munição e comida e montamos em direção ao perigo. Pode achar bobagem, esse troço recorrente de fazer justiça, vingar-se ou simplesmente atender uma adolescente que perdeu seu maior tesouro, o pai que segura uma família numerosa. Não há como escapar desse destino. É mais importante do que apenas ficar vivo. Porque precisamos de uma história para morar, um chão construído de memória e talento. É lá que decidimos a parada.
Bom e velho oeste. Vocês já sabem onde me encontrar.
27 de fevereiro de 2011
LUZES DE HENDRIX NO MEIO DA NOITE
No segundo texto resgatado da Ilustrada dos anos 70 da Folha de São Paulo, quando eu era redator e um dos jornalistas que cobriam os lançamentos de música, abordo um álbum duplo de Hendrix que contém sua obra-prima, Peace in Mississippi, que coloco junto neste post. Trinta e três anos depois, aqui está o trabalho, na íntegra. Na época, eu tinha 29 anos. Tempo, tempo, tempo...
Folha de S. Paulo – Ilustrada . 29.06.1978
NEI DUCLÓS
De todos os artistas que surgiram na época mais criativa da música pop — fim dos anos 60 — Jimi Hendrix é sem dúvida o mais amplo, o que levou mais longe as propostas do caos. Símbolo de uma fase onde a sensibilidade e a percepção avançaram depressa demais para uma sociedade ainda fechada e voltada para a destruição e a morte — Hendrix conseguiu provar que é possível reagir com grandeza à crise e à repressão. Pois enquanto a Juventude era afogada com sangue e era arrastada para o cinismo "normal" da sociedade, ele — e todos os artistas que contribuíram para a revolução — ajudou a desatar, pelo menos enquanto era ouvido, o nó terrível que nos condena à morte. A música largou os freios e desandou, como se uma poderosa bomba tivesse atingido a lógica mesquinha e Jogado para cima todas as emoções previstas, as idéias preconcebidas, a frustração cotidiana.
Infelizmente, por ser Identificado demais com um movimento social que teve também seus erros e suas regressões, multa gente deixou de prestar atenção à contribuição radical de Jimi Hendrlx para a evolução da música popular. Pois a má vontade contra a proposta Juvenil da paz e do amor serviu para classificar a música pop de barulho, e colocar ídolos como Jimi Hendrix na vala comum dos oportunistas que aproveitavam a "ligação fácil" dos Jovens para provocar sensações passageiras.
Mas, se essas pessoas resolverem escutar o álbum duplo "Crash Landing. Midnight Lightning". com músicas de Hendrix relançadas pela Warner na sua oportuna e multo bem produzida coleção "Momentos Históricos", alguma luz poderá surgir no meio da noite. Nesse álbum, além da maestria de Jimi na guitarra, pode-se notar que ele foi também um excelente compositor e vocalista que, a partir das raízes negras da música americana tirou o rock dos estreitos limites Impostos pela tradição do mercado, que só permitia faixas pequenas, solos previsíveis e ídolos comportados. Jimi rompeu com tudo, tirando não apenas sons de sua guitarra, mas criando climas, reproduzindo sensações reais e propondo novos vôos de percepção. Tudo num aparente clima de Improvisação, onde a continuidade ou o choque das notas pareciam nascer no momento em que eram tocadas. Ele, entretanto, estava preparado para a batalha, pois soube assimilar um riquíssimo passado musical, não só do blues mas também dos primeiros momentos do rock, como demonstra sua original Interpretação de Blue Suede Shoes, de Carl Perklns, e um dos grandes sucessos de Elvls Presley, que está Incluído neste álbum duplo.
A originalidade de Hendrix velo dessa poderosa síntese e da noção que ele tinha da sua época e das suas potencialidades: ele soube unir tudo numa linguagem pessoal e Intransferível que Já na época em que surgiu, ficou sendo uma espécie de marca registrada de uma revolução. E Incrível que Hendrix consegue ser, além de suave, tranqüilo, lírico ou Irônico, também solene como em Peace In Mississipi, onde o contraponto entre a base e o solo — ambos tirados da mesma guitarra — dá um tom épico à sua interpretação, como se fôssemos envolvidos por alguma marcha, por uma sensação só experimentada em clássicos como Wagner ou Beethoven.
Além das faixas Já citadas, o álbum contém Message to Love — onde Hendrix brinca com a escala musical num rock progressivo de Infinitas variações — Crash Landin g, Come Down Hard On Me, Wlth The Power, Stone Free Again, Capitain Coconut, Trash Man. Midnight Lightning, Hear My Train, Gipsy Boy. Machlne Gun — uma das faixas mais expressivas da suave violência de Hendrix — Once I Had a Woman e Beggings. Jimi é acompanhado, entre outros, pelo guitarrista Jeff Mironov. pelo baixista Bob Babblt e pelo baterista Alan Schwartzberg.
Para nossa felicidade, Hendrlx comparece também em outro álbum duplo da coleção "Momentos Históricos", ocupando todo o primeiro lado de "Woodstock Two", onde conversa com a platéia e Interpreta Jam Back at the House, Izabella, e Get My Heart Back Together. Com esse relançamento, quase dez anos depois de Woodstock, é oportuno também reavaliar a época do "sonho", onde tornou-se possível, por alguns dias, uma multidão reunir-se para viver em paz, para escutar música e para Influenciar o comportamento dos Jovens de todo o mundo. Pois é comum dizer que tudo resultou em nada, que a "alienação" contribuiu para o esfacelamento das propostas básicas e que tudo não passou de uma brincadeira multo bem aproveitada pelo sistema.
Não se pode negar, entretanto, que a partir de 1969, principalmente, época de Woodstock, houve uma evolução no comportamento social no ocidente — não estou falando em governos. Se o mercado aproveitou a onda para nos dar, por exemplo, a discotheque e o emperramento da percepção a favor do ritmo alienante, não se deve buscar as raízes do mal em Woodstock, ou em Hendrlx ou nos meninos que acreditavam na paz impossível. É importante olhar com boa vontade para um movimento de boa vontade e acreditar que alguma semente foi lançada no seco terreno das Idéias e dos sentidos e que ela está frutlficando. Naturalmente, a verdadeira inspiração daqueles momentos voltou a ser "underground", por baixo do pano e, não tenham dúvida, renascerá. Pois será multo mais fácil — agora ou nos próximos anos — ressugir alguma coisa depois do duro golpe que os anos sessenta conseguiram Impor ao mundo das gravatas e das pastas 007.
Além de Hendrlx. "Woodstock Twvo" apresenta Joan Baez cantando Sweet Sir Galaad; Crosby Stllls. Nash E Young com 4-20 e Marrakesh Express; Melanie com My Beautlful People e Birthay of lhe Sun; Mountaln com Blood of the Sun e Theme foran Imaglnary Western: Canned Heat com Woodstock Boogle e Audlence Durlng Sunday Rainstorm com Let The Sunshlne In.
RETORNO - Agradeço a Miguel Duclós por resgatar mais este texto.
26 de fevereiro de 2011
UM BALANÇO DA LONGA ESTRADA DO ROCK
Começo hoje a resgatar alguns textos que publiquei em 1977 e 1978 na Folha de S. Paulo, na Ilustrada. Aproveito (graças a Miguel Duclós, que me repassou uma cópia da sua pesquisa) que o jornal colocou à disposição seu acervo de 90 anos. Na matéria a seguir, uma arqueologia pessoal: o que eu pensava sobre rock, música, juventude etc. Uma curiosidade: talvez seja meu único elogio a Scorsese, cineasta que execro. Mas nada como o registro de tudo o que escrevemos e sentimos. Assim poderemos ter uma visão completa do que somos ao longo do tempo.
NEI DUCLÓS
Folha de S. Paulo, Ilustrada, 13 de julho de 1978
A longa estrada do rock teria chegado ao fim? Uma análise apressada do filme "The Last Waltz" ( "O último concerto de rock", de Martin Scorsese, que vai estrear no Rio e em São Paulo na próxima segunda-feira) concluiria que sim. Mas para quem gosta de rock nenhum necrológio da má vontade poderá enterrar um processo musical riquíssimo, que abriu multas frentes e por Isso mesmo garantiu sua sobrevivência, em termos de criação, por um longo tempo. O que acontece em "The Last Waltz" — um concerto do grupo "The Band", que reúne grandes astros, como convidados é apenas uma despedida simbólica, uma geração do rock, que se retira do palco e abre passagem para artistas mais jovens.
"Foi um gesto de grande dignidade", comentou Erasmo Carlos, presente na pré-estrêia do filme no cine Rian, no Rio, na segunda-feira.
Curiosamente, a presença de Erasmo, um pioneiro do rock no Brasil, complementa esse espírito simbólico que transparece em todo o filme. Pois, na tela, estão representados todos os grandes momentos do rock, através de estrelas superconsagradas que, juntas, participaram do concerto de seis horas realizado em novembro do ano passado no Winterland Arena, de San Francisco, na Califórnia.
Estavam presentes Eric Clapton, um dos melhores guitarristas do mundo e que, numa ampliação, representaria o virtuosismo que o rock alcançou, contrariando os críticos que viam nesse gênero apenas barulho e falta de imaginação; Bob Dylan, o maior poeta do rock, que também por ampliação representaria a profundidade dessa geração que sintetizou o espirito do seu tempo, que explodia nas ruas e forçava a barra para romper com o ranço passadista e propor uma nova visão de mundo; Ringo Star, que deu uma canja rápida na música "1 Shall Be Released", acompanhando Bob Dylan, na bateria, representando com sua presença a grande virada do rock através dos Beatles; Muddy Waters, estrela maravilhosa do Blues elétrico, representando as raízes do rock, cantando seu "Ma nlsh Boy" para delírio das duas platéias — a do filme e a do cinema; além de Dr. John e Ronnle Hawks, veteranos rockeiros de palco, o excelente Neil Young, o balofo Neil Diamond. Paul Butterfleld, Joni Mitchel, o decadente Van Morrison e também a cantora Emmylou Harris e o conjunto The Staples. Os dois últimos gravaram em estúdio cenas que foram aproveitadas para o filme.
Devido â pouco competência de alguns artistas que se apresentaram no concerto e à própria "The Band", que ê mais um grupo de acompanhamento. sem multo carisma, às vezes o filme fica um pouco arrastado. Mas a experiência de Scorsese. responsável pelo musical "New York. New York" e pela edição do filme "Woodstock", torna "The Last Waltz" um dos melhores filmes de rock já feitos. O diretor levou em consideração a posição do The Band no mundo rock: uma banda que, em 16 anos de turnês, acompanhou "as maiores influências musicais de toda uma geração".
E por isso que os cortes do show para as cenas de entrevistas com os cinco componentes do grupo — Levon Helm (bateria e vocal solo), Rick Danko (baixo e vocal), Garth Hudson (órgão, sintetlzador, sax), Richard Manuel (plano e vocal) e Robble Robertson (guitarra solo e vocal) — enriquece o espetáculo com revelações ótimas sobre os bastidores do rock.
Quem mais fala sobre esse mundo escondido das grandes platéias é o guitarrista Robble Robertson, também produtor do filme e do álbum triplo, trilha sonora do filme, lançado pela WEA, e que já está sendo vendido nas lojas. São dele as palavras de explicação sobre esse último trabalho do The Band — que depois do concerto se dissolveu, com cada participante seguindo seus próprios caminhos musicais: "A estrada foi nossa escola. Ela nos ensinou tudo o que sabemos. Estivemos oito anos pelos subúrbios e oito anos pelas cidades. Não posso dizer que tenho estado na estrada por 20 anos. Sou jovem demais para carregar isso nas costas. E pode parecer uma superstição, mas a estrada nos levou grandes nomes, como Ottis Redding, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Elvis Presley. E impossível viver dessa maneira".
De todos os entrevistados, entretanto, é o tecladista Rlchard Manuel o mais significativo nas suas declarações, não sô pelo que ele diz, mas pelo que revela através de expressões, de gestos, que dizem muito mais do que as histórias que conta.
Falando sobre os roubos do grupo nos supermercados na época de miséria, analisando, ao seu modo, a época "pslcodélica", ou contando a experiência da banda nos shows de madrugada pelas "bocas" do Interior, Rlchard Manuel é um documento vivo dessa transformação no comportamento, que foi radical não só para uma geração, mas para todo mundo.
— As pessoas achavam, complementa Robertson, que os requebros de Elvis, por exemplo, tinham surgido do nada. Mas as escolas dos grupos de rock foram exatamente essas sessões noturnas, que apresentavam artistas locais com esse tipo de comportamento no palco. Foi ai que surgiram as encenações comuns das bandas, que revelaram esse comportamento para o resto do mundo.
O filme — e também o disco — vale por essas informações fundamentais, desconhecidas do grande público, pela contenção da narrativa, pelo virtuosismo das câmaras e, pelo menos, pelas aparições de Bob Dylan — uns 15 minutos de charme e beleza musical — e de Muddy Waters. Infelizmente com um acompanhamento bastante Inferior, em "Manish Boy", em relação à gravação original, no seu disco "Hard Agaln", onde toca e canta junto com Johnny Winter e James Cotton.
Não se pode. entretanto, dizer que este ê o fim de uma geração nas suas aparições públicas. Depois de amanhã, por exemplo, o próprio Bob Dylan fará um show em Londres junto com Eric Clapton. Essa estrada, na verdade, não termina nunca, pois o rock, que soube se enriquecer assimilando o jazz, a música erudita e a música oriental, entre outros gêneros — e também ajudando a transformar a música no resto do mundo nos salvou de uma fatalidade da civilização: envelhecer com amargura, "criar Juízo" e odiar a Juventude. Na sua música "Forever Young", a melhor do filme, Bob Dylan praticamente nos abençoa, pedindo que "todos os nossos desejos se realizem" e repetindo um refrão belíssimo, onde nos mobiliza para um sentimento maior: o da "eterna Juventude", que é, no final das contas, o espírito de toda a música redentora.
CISNE NEGRO: O EGO E SUA SOMBRA
É cult apostar no Mal. Dá prestígio. Como se o Bem fosse hegemônico. No filme Cisne Negro (2010), de Darren Aronofsky, uma bailarina virgem, que vive com a mãe e dorme com seus ursinhos de pelúcia apesar de ter 28 anos, é a representação do Bem babaca, bem ao gosto da indústria da transgressão, que vive de expedientes cretinos como vampiros e Cia. Ela é empurrada para o Mal para se salvar de suas limitações profissionais e pessoais. Só assumindo seu lado escuro poderá interpretar as gêmeas de O Lago dos Cisnes, uma angelical e outra sinistra. O empurrão dado é para romper seu ego e privilegiar a sombra, o que pode ser fatal.
Natalie Portman, excelente atriz que neste filme “atua” demais, não é bailarina profissional. Aprendeu o métier em poucos meses e as limitações aparecem. É travada demais, não se solta, exatamente porque não é do ramo, apesar de ser uma profissional competente que até convence em alguns momentos. Mas o filme coloca esse defeito como parte do personagem, que não se solta por ser boazinha. O diretor, que escreveu o roteiro, fica assim lampeiro de que enganou todo mundo e ainda comete um crime: transforma Winona Ryder, outra atriz de primeira, numa bruxa velha asquerosa, como se fosse possível. Fica fake, assim como os passos ensaiados de Natalie.
A história anda em círculos, se repetindo a cada cena, porque a idéia é pobre e obedece a mais um truque do diretor, o de alimentar a falsa cultura das massas, que para ele bate no teto com a música do Lago dos Cisnes e está pronta para se emocionar com o drama da bailarina que enfrenta a concorrência na grande estréia do balé. O algoz, o diretor do espetáculo, interpretado por Vincent Cassel, é obvio demais: faz pose de artista brilhante e tirano, assediador de suas atrizes. Os papéis estão todos engessados. A mãe de Natalie, interpretada por Barbara Hershey, é o protótipo da castradora que joga na cara da filha o fato de ter abandonado a carreira por ela.
Com esse feixe de lugares comuns, como querer fazer um grande filme? O diretor conta com a atriz principal, veteraníssima que irrompeu nas telas com Léon (O Profissional), aos 13 anos de idade. Mas se comporta como o diretor do balé que criou, empurrando sua atriz para o suicídio. Talvez Darren tenha se espelhado em Bob Fosse em All That Jazz, mas Fosse é incomparável, sobra em todos os sentidos. Cassel faz uma reles caricatura, obedecendo à dramaturgia rasa do script.
Não que o filme não mereça ser visto. Tem momentos, mas acompanhar a chorona em direção à degringolagem pessoal confundida como libertação é de doer. Poderíamos ser poupados dessa certeza de que não passamos de um bando de idiotas que esperam ver nos filmes apenas aquilo que alcançamos em nossas pobres percepções culturais. Se os diretores soubessem como são ridículos em menosprezar o público, não fariam coisas assim. Apostariam mais alto, pediriam socorro aos clássicos e não tentariam nos enganar com truques baratos. Eles tem tanto dinheiro à disposição, talento a rodo nos elencos, por que fazer um dramalhão de uma mulher se arranhando as costas e fugindo do seu destino inevitável de ser má, muito má?
Dá licença. Isso não se faz. O grande ego dos autores de cinema poderia deixar a sua sombra em paz. Busquem a perfeição, mas não o que a indústria do espetáculo acha que é a perfeição. É outra coisa, misteriosa, que só os grandes talentos, reunidos numa produção, poderão revelar.
RETORNO - 1.Imagem desta edição: Natalie Portman, um cisne branco em noite sem lua. 2. Audrey Hepburn, maravilhosa atriz, é o parâmetro que deve ser sempre revisitado. Aqui, em Funny Face (1957), de Stanley Donen, onde contracena com Fred Astaire ao som de Gershwin (sai da frente!).
23 de fevereiro de 2011
PASTELÃO X ESCATOLOGIA: CONFLITOS OPOSTOS NA COMÉDIA
Parece ser a mesma coisa, mas não é. E a diferença não é apenas a época em que cada gênero de comédia foi hegemônico: o pastelão na primeira metade do século 20 e a escatologia a partir dos anos 80. Um é oposto do outro. Vamos ver porquê.
O pastelão é o deboche dos pobres em relação ao desperdício e à opulência dos ricos, e, portanto, uma forma de fazer justiça. Acontecia em banquetes, festas, eventos, ágapes: a guerra das tortas e bolos era o resultado de um conflito entre algum penetra e os convidados, entre um outsider e os membros oficiais do acontecimento. Era luta de classes: o desempregado acabava desencadeando sem querer a guerra, por vingança, mal entendido ou algum outro equivoco. A briga se generalizava e contaminava todos os bem postos, que caíam assim na gandaia.
Era também uma forma de romper com o formalismo da cerimônia e de denunciar a superficialidade das relações humanas. Aproximava os contendores e os despia de suas fantasias sociais. Todos se igualavam com a cara branca de cobertura açucarada. O resultado era o fim do artificialismo e o encontro dos sentimentos verdadeiros, o amor que resultava num casamento muito esperado, uma amizade que não se pautava pelo dinheiro ou simplesmente uma afirmação da alegria diante da opressão social.
A fórmula é eterna porque funciona (há ligações fortes com a realidade)e se tornou clássica. É um gênero de cinema e é também um recurso muito comum na narrativa cinematográfica de todos os feitios (até mesmo da comédia escatológica, que tenta se confundir com o velho pastelão). Mas era pautada por princípios sociais que se desvaneceram com as duas guerras mundiais. A barbárie tomou conta e a excessiva concentração de riqueza, oposta à época de escassez do pastelão, determinou uma mudança profunda. Surgiu a comédia escatológica, cheia de nojeira, com as funções fisiológicas e as partes pudendas em destaque, com anti-heróis que procuram fazer rir com todo tipo de porcaria. O início foi naquela série do American Pie, em que universitários ricos se locupletavam na porcariada fisiológica.
É outro tipo de transgressão. Simplesmente é um deboche do excesso contra a escassez. Nada mais ridículo do que ser pobre, nerd, virgem, defeituoso. Então as cenas com porcarias servem para quem tem debochar de quem não tem. Há inúmeros exemplos. Os filmes “Esqueceram de mim” é típica.O menino abandonado numa viagem de férias é a inocência da riqueza, que se defende contra a vilania de dois ladrões pobres. A arma é a nojeira: melecas de todos os tipos e calibres caem sobre os infelizes como a dizer que uma fortaleza de milionários, ou de classe média alta, tudo pode contra o assalto dos despossuídos sem lei nem ética.
A escatologia, portanto, é o avesso do pastelão,pois promove a injustiça e nela se baseia. Não é por nada que o pastelão só nos deu gênios, de Chaplin a Stan Laurel e Oliver Hardy, enquanto a escatologia nos deu os execráveis Ben Stiller e Adam Sandler . É uma questão de lógica. Daqui a pouco ninguém mais vai agüentar vômito, peido, arroto em cena. E voltaremos a alguma forma de guerra de bolos, quando ríamos da riqueza injusta e adorávamos os caras que enfrentavam esses poderes com talento.
RETORNO - Imagem desta edição: Laurel e Hardy em ação.
22 de fevereiro de 2011
ARITMÉTICA
Nei Duclós (*)
A Rússia já tinha a Sibéria, para que o Alasca? Ruim de finanças, o czarismo acabou vendendo essa espécie de Amazônia gelada, a terra grande, como diziam os nativos, por US$ 7,2 milhões em 1867, equivalentes a US$ 1,6 bilhão hoje. Foi um excelente negócio. Hoje, a Amazônia brasileira deve valer o R$ 1,6 trilhão da nossa dívida externa. Ou pelo menos uma área do tamanho da reserva Raposa do Sol.
Pagaremos um dia a dívida com o patrimônio territorial, dizia Darcy Ribeiro. Estamos chegando perto. O governo passado dobrou a divida externa, que antes estava por volta de R$ 800 bi. A solução foi maquiar a operação. Colocaram na roda as reservas, que abateriam o total. Deu tão certo que chegamos a “emprestar” para o FMI.
Quando criticamos a política econômica, pedimos desculpas por sermos leigos no assunto. Não deveríamos. É pura aritmética, que se aprendia antigamente no primeiro ano do Primário. É como livro caixa de armazém de secos e molhados. Quanto entra e quanto sai. Óbvio que sai aos borbotões, principalmente se pagamos juros estratosféricos para quem coloca papel pintado estrangeiro por aqui.
Essa é uma mágica incompreensível. Por que se faz tanta questão dos tais investimentos especulativos, se eles sempre tiram mais do que põem? Movimentam a economia? Mas não seria razoável movimentar a economia com o que repassamos para os especuladores? Como é óbvio demais, coloca-se um sorrisinho de superioridade nos especialistas, alguns pigarros dando sinais para calarmos a boca, e a espiral continua roendo a nação.
Todo esse rombo não é levado em conta nos cálculos da inflação, pelo menos não entram nos debates como deveria. O destaque é a influência nefasta do salário mínimo na carestia. Se aumentarem meio centavo de uns 40 milhões de salários, a hiperinflação nos comerá pela perna. Isso é levado tão a sério que ficamos mudos diante das certezas ditas em tom definitivo.
“Sei que vocês não aprenderam nada até agora”, disse uma vez o Professor Dau, que lecionava matemática no terceiro científico do Colégio Rosário de Porto Alegre. “Portanto, vamos começar do início: 1 + 1 = 2”. Precisamos voltar aos fundamentos. Ou perderemos muito mais do que um trilhão de hectares de selva.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 22 de fevereiro de 2011, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: tirei daqui.
19 de fevereiro de 2011
A VIDA É UMA PALAVRA
Nei Duclós (*)
No campo de futebol do Colégio Santana, o professor nos colocou nas escadarias para observar e descrever a paisagem. Na época, os alunos, muito espertos, achavam aquilo uma besteira, já que a poesia, a narrativa celebrativa da natureza, era o lugar comum da literatura acessível. Não tínhamos contato com os modernistas ainda. Só fui descobrir que existia Mario e Oswald de Andrade aos 19 anos, quando entrei no curso de Jornalismo da Ufrgs e fui apresentado,pelos professores, ao que tinha sido feito não apenas no século 20 no Brasil, mas a preciosidades como poemas de Fernando Pessoa e Garcia Lorca.
O mundo pode explodir à sua volta ou desmanchar-se em encantamentos, mas se não existe um mestre para apontar o caminho tudo nos passa lotado. Foi isso o que realmente aprendi no tempo longo em que passei comparecendo aos bancos escolares. Além de ter feito aquela trajetória completa de pré-primário, primário, ginásio e científico, ainda entrei em três faculdades até me acertar com História, que completei na Universidade de São Paulo. Tateei o conhecimento até chegar a algumas conclusões, que não são definitivas, mas ajudam neste difícil convívio com as palavras.
A verdade é que, lendo os parnasianos ou recitando Castro Alves e sem tomar conhecimento das revoluções culturais, eu sentia que faltava algo na literatura brasileira. Ter ido para Porto Alegre salvou a humanidade de um movimento literário que seria liderada pelo poeta iniciante da fronteira. Lembro que no início da minha vida universitária meus versos tinham a pomposidade do século 19, um excesso que aprendi a desbastar radicalmente nos anos posteriores. Foi um processo rápido. Em contato com a Praxis e o Concretismo e na conversa com meus pares, enxuguei até o osso o que se derramava pelo espaço em branco. Até ver, finalmente, que tudo não passa de vogais (a alma da linguagem) e consoantes (suas ferramentas mais resistentes).
Mas o que tenho de mais valioso levei da escola à beira do rio Uruguaiana. O gosto pelo estudo, o hábito de se concentrar para aprender, prestar atenção em aula, fazer os deveres de casa são coisas que me acompanham até hoje. Sou um cdf juramentado e nem a dispersão natural da época da juventude levou embora esse patrimônio arduamente conquistado em muitos anos de estudo.
Em frente à paisagem que se oferecia numa manhã bonita de céu azul e tempo firme, desses que não acontecem com tanta freqüência hoje, fui encarregado, junto com os outros colegas, de dizer alguma coisa sobre o rio, as nuvens, os pássaros, as casas, o país vizinho que víamos, absortos, de caneta na mão. Naquele momento, fiquei avesso às brincadeiras de jogar papel uns nos outros. Descobri ali a chance de fazer literatura apoiada pelos adultos. Eles queriam quem eu escrevesse! Não estava só naquele sonho louco de colocar palavras no papel. Existia um professor atento às letras que tomavam forma diante do dia luminoso.
Grande lição, inesquecível. Dívida impagável que temos com os que vieram antes e que parecem ter a sabedoria adquirida no nascimento.
RETORNO - (*) Crônica publicada na edição 327 do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Horsepower, obra de Ricky Bols.
17 de fevereiro de 2011
SÍNDROME DO DESLOCAMENTO
Nei Duclós (*)
O gesto diz tudo na projeção ininterrupta promovida pela sociedade do espetáculo. Uma das tendências atuais, cada vez mais intensa e hegemônica, é a síndrome do deslocamento. É a técnica, ou a arte, de convencer o entorno de que não estamos exatamente naquele lugar em que nos encontramos. É uma questão de lógica, pois fazemos parte de uma aristocracia que ocupa espaços inacessíveis ao gentio, às pessoas comuns, aos adventícios e a todos os grupos que precisam ser marginalizados para ocuparmos o papel de protagonistas.
Vou dar um exemplo: celular no ouvido em frente a interlocutores usado de maneira compulsiva. É a maneira de ostentar que jamais estamos disponíveis para a fala direta, que é entrecortada pelas interrupções de gente do outro lado da linha, muito mais importante e digna de atenção. A pessoa jamais está acessível para quem fica na sua frente. Ela está acima da situação, conectado com algo maior, como os deuses do Olimpo, ou algo parecido. É também a imposição do ego e das coisas pessoais sobre a convivência com o coletivo.
Há muitas formas de “provar” que fazemos parte de um grupo selecionado e que não navegamos na maré alta da mesmice e das pessoas comuns. “Já falo contigo”, por exemplo, é uma frase muito usada quando estamos acompanhados por alguém invejável. É uma forma de dar um chega para lá em quem se aproxima, de deslocá-lo para a periferia para podermos continuar no centro do evento. É também uma forma de deixar em suspenso o outro que quis dizer alguma coisa. Damos uma pausa nele, como se faz no teclado do micro. Congela o próximo para que ele não ameace nossa presença, que não aceita concorrência.
Nos textos, a síndrome do deslocamento é muito perceptível. “Isso veremos mais adiante”: mais do que um recurso acadêmico, é a maneira de dizer que a atenção do leitor é inteiramente manipulada pelo autor, que assim fica amarrado ao fluxo analógico proposto. A advertência não faz mais sentido com o hipertexto e o universo digital. Tudo ao mesmo tempo agora: não adianta anunciar um artigo para amanhã porque não cola mais. Põe no ar e não incomode. Diga logo com todas as letras o que tem a dizer porque estamos ocupados demais para ficar esperando.
Esses hábitos obsoletos persistem mesmo que as inovações abram caminhos diversos. Já vi gente escrever que os computadores estavam “trabalhando a todo vapor”. Ou que dois marmanjos entraram numa “saia justa”, que é uma coisa do tempo do vestido apertado nos joelhos, onde qualquer contratempo poderia jogar a beldade no chão. Hoje, com as calças, os vestidos largos e as saias rodadas, é difícil que a justeza de uma peça de roupa possa ser parâmetro para uma situação delicada. A não ser nos encontros verdadeiros, em que o casal resolve aderir a estilos antigos para reavivar aquela velha emoção.
Recapitulando: a síndrome do deslocamento trabalha com a postura olímpica e marginaliza pelo gesto estudado e a fala sucinta. Alô, governador? Um momento...Ok, vou interromper a crônica. Depois falo contigo.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana, edição 328.2. Imagem desta edição: Looking Glass 1979, obra de Ricky Bols.
16 de fevereiro de 2011
ESTILO
Nei Duclós (*)
Estilo é quando você acerta o texto de modo tão definitivo que todos duvidam da autoria. Isso lembra alguém, dizem, uma sumidade de onde foi tirado o tesouro. É evidente, comentam, que isso nunca te pertenceu, deve fazer parte de um capital simbólico mais consolidado e não medrar em território sem dono, no caso, você e seu talento perdido. Vários textos de qualidade correm pela rede e são atribuídos a celebridades, impedindo assim que se revelem novos autores. Estes, continuam no limbo, por mais que insistam e até mesmo quando o equívoco é denunciado pelo escritor beneficiado.
O problema é que a citação virou indústria. Há milhares de antologias e cursos fundados em insights consagrados, religiosos, corporativos ou políticos. É preciso concentrar riqueza em alguns e não dispersar o patrimônio em gente anônima. Não dá lucro citar alguém que não faz parte da nobreza. Se você escreveu bem, naturalmente o que está dito gruda no paradigma e o crédito justo voa. Assim, meia dúzia de nomes se destacam, enquanto amargam no anonimato todos aqueles que tentam vir a furo. Li recentemente a autocrítica de um editor que matou no ovo um romancista, que acabou desistindo e hoje se recolheu a um emprego medíocre. Ele poderia ter sido alguém, como diz Marlon Brando na cena clássica do filme “Sindicato dos Ladrões”, de Elia Kazan.
Não fosse Gustave Flaubert, teríamos seu pupilo Guy de Maupassant? Ambos geniais, foram lembrados num recente artigo de Claudia Lage do jornal Rascunho. Diz Flaubert para Maupassant: "O escritor não deve se impor ao texto, como um patrão aos seus empregados. É um trabalho de abnegação, sensibilidade e escuta. Mais vale ao autor a singularidade do que o estilo. Deve-se seguir o fluxo das palavras e das frases dos personagens. Em todas as coisas existe algo de inexplorado. É isto o que devemos procurar. Cada conto é uma criação específica. É como se cada palavra nunca tivesse sido usada antes. Faz parte de sua ilusão e sua beleza. A meta do escritor não é contar uma história, comover ou divertir,mas revelar o sentido oculto e profundo dos fatos. Na arte, não se busca o que é perfeito, mas o que é exato. O essencial em cada ação, o principal de cada fato”.
Flaubert é rei e nós, escribas de todos os calibres, seus abnegados súditos.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada dia 15/02/2011 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Gustave Flaubert.
15 de fevereiro de 2011
A IMPIEDADE EM ELI WALLACH
Mau era o Jack Palance em Shane ou o Lee Van Cleef nos faroestes da Itália ou da América. Cínico era o Peter Ustinov em Nero. Histriônico era o Anthony Quinn em Viva Zapata. Mas Eli Wallach, nascido em 1915 e ainda na ativa, é tudo isso somado. Sua impiedade transcende a mera maldade. Ele não faz parte da humanidade: se coloca à parte, para gozar, bem instalado em seu exoplaneta, os sofrimentos desses seres frágeis e bizarros, os humanos. Basta vê-lo no papel do General em Lord Jim, como manobra com Peter O´Toole, tentando-o até a insanidade com sua lógica mais do que perversa. Ou como se diverte fazendo o bandidão Calvera em Magnificent Seven, quando tortura aldeões mexicanos e mata pistoleiros gringos. Ou como rouba o filme fazendo o papel do ladrão Tuco em O Bom, o Mau e o Feio, de Sergio Leone, atirando de dentro da banheira cheia de espuma ou traindo Clint Eastwood em todas as sequências.
Ele não é deste mundo e se realiza colocando toda essa impiedade contra si mesmo, como acontece na cena antológica de O Poderoso Chefão III em que se atira numa montanha de doces envenenados. Eli Wallach é o personagem permanente que gera sentimentos além da raiva. Contra ele, apenas a perplexidade diante de sua ousadia, de contrariar o comportamento considerado normal de mocinhos ou vilões. Ele é um território hostil além do limite. Sua gargalhada é uma epifania do Mal vitorioso, da vocação para a suprema vingança contra o equilíbrio das emoções. Por isso surge do deserto como uma praga egípcia. Provoca remorso sem remissão pois prova que não há saída para o horror de estar vivo.
Seu olho clínico fareja a inocência que se esconde em sociedades aparentemente perfeitas. É uma curiosidade de águia diante da alegria de destruir a presa antes de devorá-la. Ele se impõe na tela como uma calamidade pública onde não há mais espaço para a omissão. Ele fascina porque inventou esse imã que atrai as piores moscas da narrativa, lá onde apodrecem as vítimas de sua incúria e de sua tirania. Quando surge, aos 95 anos, em Ghost Writer de Polanski, é mais do que uma assombração. Sua aparição assusta pois o considerávamos morto, coisa do passado. Mas ele chega para derrubar a versão consagrada de um crime a aponta para as feridas do assassinato cometido no ermo. Temos medo não apenas desse velho que insiste em nos assombrar, mas pela dureza do mito, sua presença permanente e a prova de que não nos livraremos dele nunca.
Enquanto os careteiros profissionais descambam em suas carreiras cretinas, Eli Wallach cada vez mais ocupa o lugar de honra das grandes personalidades do cinema. Em papéis coadjuvantes em toda sua biografia,soube invadir o miolo do drama em personagens marcados para morrer ou serem desprezados.Não podemos esquecê-lo nem fazer pouco do que nos traz à tona: nossa precariedade infinita, mascarada por essa ilusão de que somos especiais.Somos bichos predadores e queremos sangue, diz Eli Wallach que, assim, pelo avesso, nos devolve o que temos de mais legítimo, a consciência de nossa alma que enxerga com a lucidez dos que sabem que vão morrer.
Eli Wallach. A impiedade que não permite que o mundo se afogue na falsa imagem feita para o auto-consumo. Se somos aquela parede velha de uma birosca do México, e sofremos a invasão de malfeitores armados com todos os calibres, é Eli Wallach que rebenta o tijolo e sai dele coberto de pó, com a cara transtornada de loucura, de revólver em punho, ao som do assobio inesquecível de Enio Morricone. É quando viramos os protagonistas de nossa imaginação, que estava prestes a afundar num charco de mediocridade.
12 de fevereiro de 2011
TROPA DE ELITE 2: NINGUÉM ESCAPA
Nei Duclós
Achei fria a reação da crítica em relação a Tropa de Elite 2, como seu assombroso sucesso popular fosse uma espécie de vírus a ser prevenido pela vacina da indiferença bem pensante de quem assiste tudo de camarote. Precisei esperar o filmaço de José Padilha chegar aqui no ermo onde moro para enfim saber o que aconteceu com o capitão Nascimento, essa criação magistral de Wagner Moura, o grande ator brasileiro da atualidade e que está sendo dispersado pelo massacre publicitário quando deveria estar brilhando numa carreira internacional. Mas Tropa de Elite 2 merece a fama que tem.
Prefiro vê-lo como a soma de dois gêneros, o thriller político e o filme policial noir, sem querer enquadrar sua narrativa didática e profunda, apesar de ter gente que achou ser uma história rasa, de uma superficialidade proposital para agradar a massa. Ao contrário. A trama é fruto de uma síntese bem elaborada de uma realidade política tratada com elementos de ficção. Nascimento comanda uma operação de repressão da revolta no presídio Bangu 1, que resulta em morte de grandes traficantes. O povo aplaude, mas os direitos humanos caem em cima e ele é então afastado do Bope e, como fica famoso, vai parar na secretaria estadual de segurança do Rio. Lá, descobre que o governo do estado, a própria secretaria onde trabalha e os políticos são os comandantes da corrupção e dos massacres.
Por que é policial noir? Porque todos os elementos estão lá. O protagonista solitário, líder no seu ofício, afastado de suas funções, acaba enxergando melhor o sistema a qual pertence. Conta então sua história com o distanciamento do anti-herói que tudo vê com clareza e transmite suas impressões com frases certeiras. É separado de uma mulher que casa com seu principal adversário. Tem problemas de relacionamento com o filho. Perde na luta seu melhor amigo e parte para a vingança. Termina incorporando toda a lucidez amarga de alguém que nada pede em troca e coloca o dedo na ferida. A narrativa em flash back é outro elemento noir magnificamente incorporado no filme.
Por que é um thriller político? Porque mostra como a corrupção policial eliminou os traficantes para faturar não apenas com as drogas mas com todos os negócios da favela. Porque mostra a dependência dos políticos em véspera de eleição em relação aos chefes da máfia que dominam as comunidades. Porque mostra as ligações da mídia com a corrupção, como o deputado que tem programa sobre violência policial e ganha parte do butim arrecadado. Porque mostra o cerco aos trabalhos e cidadãos honestos, desde o idoso que precisa de gás na favela até a jovem repórter que tenta denunciar os crimes. E porque trata da guerra, onipresente, em sequências antológicas de tiroteios e mortes.
Temos assim o mesmo insight de o Poderoso Chefão III, quando o mafioso descobre que a máfia maior era o próprio poder político e financeiro institucionalizado e que ele e sua organização não passavam de um apêndice, de um coadjuvante do processo todo. Nascimento enxerga claramente que fazia parte de um sistema que precisa matar para manter-se no poder e faturar alto. Enquanto ele e outros policiais vocacionados arriscam a vida e a família, os manda-chuvas manipulam os eventos sem a mínima preocupação com quem morre.
O povo entendeu o recado e lotou as salas de cinema e comprou e alugou os DVDs. Não porque torça pela polícia matadora, mas porque admira a coragem de quem fala o que vê e sente, porque está farto de tanta corrupção e violência e porque precisa entender onde está metido até o pescoço. O povo agradece a José Padilha pela sua obra brilhante.
Tropa de Elite 2: pega um, pega geral. Ninguém escapa.
RETORNO - Imagem desta edição: Wagner Moura, o ator exato.
10 de fevereiro de 2011
ALÉM DA VIDA: OS OUTROS SENTIDOS DO CINEMA
Não importa ver, mas sentir. Para isso existem os outros sentidos, como o tato, que serve para o médium interpretado por Matt Damon conseguir conexão com os espíritos; o paladar, como na cena em que o casal troca impressões sobre molhos fazendo rodízio de olhos vendados; a audição, em que se escuta os diálogos que estão sendo ditos além da vida; e o olfato, da morte depois do tsunami, ou das flores no encontro final. A visão se desdobra com a luz que a pessoa enxerga ao cruzar o umbral e os vultos que lhe aparecem quando está flutuando fora do corpo.
A visão do chamado mundo real, longe dos outros sentidos (pelo menos do uso livre da comercialização), é colocada como a prisão do cinema. Talvez por isso o visual do novo filme HereAfter (2010) de Clint Eastwood seja tão comum e recorrente. É o que o eterno presente do consumo tem a oferecer: a notícia, o evento, a cobertura, a indústria audiovisual, a sociedade do espetáculo, o turismo, as ruas, os prédios, os automóveis. A repórter de TV (Cécile De France), ao ser colhida pelo tsunami, abre a percepção para o que há além do espelho ao qual está acostumada. Não se trata mais de vídeo, mas de vida e ela não está mais disponível para a obviedade e a mesmice.
Para romper o silêncio contra tantas revelações, a repórter resolve escrever um livro sobre o cerco aos relatos e experiências da vida além da morte. A palavra reinstaura verdades omitidas pelo ilusionismo ao redor: esse enfoque é ilustrado pela presença constante de Charles Dickens, paixão literária do médium, que através do célebre autor acaba encontrando o que sempre procurou, uma companheira para que seu dom deixe de ser uma maldição. Porque o verdadeiro sofrimento é a solidão: do homem que não suporta seus poderes de contatar os mortos, do gêmeo que perde o irmão, da mãe viciada sem a guarda do filho, da ex-famosa que se vê atirada na vala comum do desemprego.
O selo da morte, a solidão maior, é rompido no momento extremo, quando a mente se liberta do corpo agonizante e penetra numa fantasmagoria de visões e sinais. O que de real há nesse mundo oculto e o que de ilusório há no mundo hegemônico que nos rodeia são os elementos que compõem a história, escrita pelo brilhante Peter Morgan (o mesmo de Frost/Nixon, A Rainha e O Último Rei da Escócia). Trata-se da disseminação de um poder que está travado em todos, já que a jornalista também vê os mortos quando é colhida pelas águas do tsunami e o garoto interage com o irmão que se foi ao capturar o boné perdido no metrô e se salvando assim de um acidente.
Os indivíduos entregues à própria sorte enfrentam a demissão num sistema econômico excludente e gerador de miséria . Os sinais dessa exclusão podem ser lidos na publicidade, quando os posters da profissional agora desempregada são substituídos por outra modelo. Os sinais exteriores de miséria espiritual estão por toda parte, enquanto as pessoas tateiam suas sensações cercados pela pressão contra o espiritualismo, ou pela diluição proporcionada pelo charlatanismo. Clint/Morgan trabalham o tema com cuidado, para não incorrer na vala comum dos preconceitos. Cercam as vivências por meio de performances sólidas dos atores encarnando protagonistas intensos e com um script que, se não aprofunda o tema, pelo menos não o desmerece.
“ Além da vida” é, como todos (desculpem a insistência), sobre cinema: quando olhar não é suficiente, é preciso apelar para os outros sentidos, tão fora da ordem quanto as experiências com a morte. O sabor de uma culinária aprendida com um mestre ou o toque revelador de outros mundos levam vidas imersas na mediocridade visual e sensorial para o choro, o desespero e finalmente o amor. Num mundo padronizado, que aprisionou o olhar, as pessoas escapam pelo que ainda está oculto, a legítima experiência sensorial da vida fora da vida. É a metáfora do que devemos perseguir: algo que transcenda o mundano e assim faça surgir um caminho mais próximo da nossa riqueza cultural, sufocada pelo comércio e a indiferença.
Pois não há consolo neste universo duro: o garoto que perde o contato da mãe não encontra conforto espiritual nem no espiritismo nem no catolicismo; o médium que tenta recompor a vida sem exercer seu dom acaba sempre sendo envolvido pelo interesse das pessoas em querer saber o que se passa com elas; o irmão do médium que quer enriquecer com a consultas é o retrato do descompasso permanente entre o status e a necessidade de ascensão social; e a jornalista bem sucedida acaba se enredando na exclusão quando tenta ser sincera. Para resgatar o que perdemos, e que se situa além dos cinco sentidos, é preciso recuperá-los, mas transformados pela decisão pessoal e a coragem.
O melhor é que tudo isso não é contado com bons sentimentos, mas com a competência de Clint, hoje um dos cineastas mais importantes do mundo. Ok, é um projeto comercial que aborda um tema que está fazendo sucesso. Mas não é só isso. Na região confusa da morte em vida, nasce a possibilidade de reencontrar o que foi para sempre perdido. Nosso olhar liberto de tanta tralha, talvez. Nossos sentidos recuperados e prontos para interagir mais com as coisas que deixamos de lado. Não mais a máxima zen do aqui e agora, mas o aqui e depois (HereAfter), pois só assim nos libertamos da presentificação imposta e poderemos palmilhar outras paragens com nossa transcendência.
Grande Clint. Sempre um bom filme para nos fazer companhia.
RETORNO - Imagem desta edição: Cécile e Matt em cena de "Além da Vida". A conexão pela palavra e o toque leva à libertação e ao amor.
8 de fevereiro de 2011
CLIMA
Nei Duclós (*)
Dia de verão nasce limpo e entorta conforme vai avançando o noticiário. Uma cidade gigantesca está em guerra, multidões são arrastadas pelas águas, palhaços tomam posse. O céu que era azul torna-se opaco, com claridades estranhas nas bordas de manchas escuras que expulsam os algodões feitos sob medida. Se algum cometa se aventurar por estas paragens será devorado pelo clima que coalhou lá pelas três da tarde e avança penosamente para a noite, carregando carvão usado junto com nossas esperanças.
Moscas adivinham que embalei no trabalho por isso pousam interminavelmente em lugares inacessíveis do corpo, difíceis de alcançar pela expansão imposta pela idade. Conheço gente que só para colocar o protetor solar leva duas horas. Outro confessa que precisa perder 30 quilos para ficar gordo. Amigo me confidencia que não gosta da palavra sedentário. Parece habitante do deserto às voltas com tempestades de areia e longas vestes suadas. São armadilhas do verbo que conspiram contra.
O expediente da temporada que deveria ser prazeroso vira pedra no sapato. Há uma fila de carros que termina no fundo do mar. Nem dez pontes resolveriam o nó de tanto trânsito. O vento nordeste se encarrega de arrancar o guarda-sol firmemente fincado no chão e levá-lo aos trambolhões até onde uma família numerosa ataca sua terceira refeição à beira-mar. Atletas de início de ano passam consultando relógios. Homens com água pelo peito discutem debêntures. Marmanjos jogam petizes no oceano pelo prazer de exercer a tirania.
Mas não devemos nos entregar ao pessimismo. Quem sabe na manhã seguinte haverá possibilidade de enxergar o a carruagem de Helios evoluindo firmemente para uma tarde sem mácula, daquelas que ficaram na memória. Do tempo em que os extraterrestres ainda não dominavam o clima, nem permitiam que se jogassem metais pesados no ar por meio de fumaças criminosas, num exercício de manipulação das estações. Talvez sintam saudades de seus planetas de origem, em que cirros chegam ao cúmulo do enxofre, e querem reproduzir aqui as paisagens perdidas da infância estelar.
Não temos culpa de habitar um lugar raro, azul de dar dó e que aos poucos se transforma num lugar hostil até na rede da varanda. É quando insetos bizarros atacam em busca de algo que já não possuímos mais.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: chemtrails, fumaça artificial provocada por produtos químicos, em Venâncio Aires (RS). 2. (*)Crônica publicada nesta terça-feira, dia 8 de fevereiro de 2011, no caderno Variedades do Diário Catarinense.
NÁUFRAGO
Nei Duclós
Foi preciso criar uma intermediação
de bambu em piso, parede e teto
que me indispôs com a herança
que carregava do porto de onde vim
Fora da relação imposta em hábito
viciei o corpo em sobrevivências
inventadas sobre a areia tomada
por caranguejo, cobra e pássaro
Forno de barro para peixe
mesa de toco para cortar côco
lenha de várias procedências
Quando voltei trabalhei a perda
não apenas do que foi feito lá
mas do que se foi para sempre
RETORNO - Imagem desta edição: Tom Hanks, o ator-imã, no filme inesquecível em que ficou perdido numa ilha.
6 de fevereiro de 2011
PEQUENOS NEGÓCIOS, GRANDES PECADOS
Volto ao assunto comércio e atendimento. Já fiz vários posts sobre isso. É que está piorando. Por isso é preciso dizer, não só como desabafo, mas como esperança de que fique melhor.
Não tente impor sua vontade ao cliente, sob hipótese nenhuma. Nenhuma justificativa se sustenta. Você não sabe mais, não tem gosto melhor, não conhece suas preferências, não vai convencê-lo. A não ser momentaneamente, na hora da compra e você será odiado para sempre quando ele chegar em casa e colocar o produto de lado.
Não entulhe os corredores de caixas, produtos, funcionários, o que for. Não aperte o espaço entre as prateleiras porque isso não é ganhar espaço, é roubar espaço do cliente. Não sufoque o cliente com montanhas de latas ou garrafas pet. E principalmente não deixe os corredores de compras à mercê dos fornecedores ou repositores de estoque, porque eles vão tomar conta.
Não maquie o estabelecimento com cheiros fortes de produtos de limpeza, que não cola. Limpe decentemente com o básico, várias vezes ao dia, sem incomodar quem está escolhendo. Não permita que funcionários que estejam na limpeza varram os pés dos compradores. Além de ser uma grosseria, deixa explícito que o comércio quer varrer o cliente para fora.
Não permita que o caixa ou o empacotador faça comentários sobre as compras. Não pega bem falar de preferências ou elogiar determinadas escolhas, que isso será visto como inveja e olho gordo, o que normalmente é. Comentar significa concorrer e o comércio não concorre com quem está comprando, só com quem está vendendo.
Não permita que a fila do caixa engrosse com pessoas desesperadas pelo atendimento, com as compras na mão. Disponha de várias caixas e faça rodízio. Mantenha duas em funcionamento e quando houver fila coloque alguém para abrir uma nova saída. Isso encanta o cliente, que assim não espera inutilmente. Você não é o Carrefour, o Extra ou o Pão de Açúcar para deixar famílias inteiras com os carrinhos lotados no fim-de-semana amargando uma espera.
Jamais tente vencer o debate com o cliente que faz um reparo. Agradeça quando ele se manifesta. Prometa que vai resolver, crie soluções na hora, preste atenção no que ele diz. Se o preço não está à vista, por exemplo, você não pode dizer que está, porque se estivesse ele não reclamaria. O preço está misturado com outros num painel padronizado, por isso sumiu da vista do freguês. Fique atento.
Jamais feche no horário do almoço, que é o tempo que as pessoas tem para comprar. Também permaneça aberto depois das seis da tarde. Não clone o horário do cliente, poste-se como alternativa. Quando ele sair do trabalho encontrará o seu sorriso e as portas abertas. Horário de almoço é para quem compra, não para quem vende.
Não se encha de razões nem desconfie do cliente. Mantenha sua segurança, mas não se coloque como juiz da humanidade. Quem rouba é ladrão, não cliente. Este leva o dinheiro para seu caixa, o ladrão tira. Essa é a diferença. E não tente catequizá-lo com cartazes ou música de religiões. Reza é na igreja, não num mercado.
Abra margem para o crédito pessoal, a velha e boa caderneta. Faça assim: teste o cliente definindo um teto pequeno no início e vá aumentando aos poucos conforme a regularidade dos pagamentos. Selecione rigorosamente e aceite a demanda só em última instância. Renegocie quando necessário. Isso cria vínculos, fidelidade e encantamento.
RETORNO - Imagem desta edição: "O Amigo da Onça, imortal criação de Péricles de Andrade Maranhão, em 1943. Após a morte de Péricles, em 1962, o personagem continuou sendo publicado pelo Carlos Estevão até 1972, com qualidade praticamente igual à do seu criador, o que gera confusão sobre quem o criou" (obrigado, Marcos, pela correção e o esclarecimento). O Amigo da Onça representa aqui o atendimento a ser evitado: invasivo, falso e traiçoeiro.
4 de fevereiro de 2011
PONTE DOS AÇORIANOS
Nei Duclós
Ponte porto de pedra
o navio do passado te assombra
És curvada de amor antigo
na água do tempo, que afoga
sombras e luas cobertas de limo
Ponte dos casais e dos meninos
caminho do ocaso que faz círculos
no rio que por ti passa e não existe
RETORNO - Poema do livro No Mar, Veremos (Editora Globo, 2001)
GETÚLIO DISCURSA PARA A NAÇÃO EM ARMAS
O Estadão fez um bom serviço hoje para compensar as calúnias contra Vargas. Reproduziu o discurso do grande estadista quando assumiu o Governo Provisório em 1930, em plena Revolução vitoriosa. Texto da mais alta importância, trata-se de um programa atualíssimo que, tanto no diagnóstico quanto nas providências, foi confirmado enquanto Vargas esteve no comando da nação. “A Nação, em armas, acorria de todos os pontos do território pátrio.”
Há muito o que destacar: Getulio traça o caráter nacional do movimento, que envolveu grandes e pequenos, os civis e os militares, e todos os quadrantes do país; elogia a solução política das Forças Armadas que derrubaram Washington Luís e entregaram o poder à revolução vitoriosa; denuncia a máscara da legalidade usada para se cometerem crimes; diz o que deverá ser feito na educação, saúde, economia etc. Este é sem dúvida o mais importante discurso da República. Vamos a ele, na íntegra.
“O movimento revolucionário, iniciado, vitoriosamente, a 3 de outubro, no Sul, Centro e Norte do País, e triunfante a 24, nesta Capital, foi a afirmação mais positiva que, até hoje, tivemos da nossa existência como nacionalidade. Em toda a nossa história política, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas.
No fundo e na forma, a Revolução escapou, por isso mesmo, ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado. Todas as categorias sociais, de alto a baixo, sem diferença de idade ou de sexo, comungaram em um idêntico pensamento fraterno e dominador: - a construção de uma Pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberta à colaboração de todos os seus filhos.
O Rio Grande do Sul, ao transpor as suas fronteiras, rumo a Itararé, já trazia consigo mais da metade do nosso glorioso Exército. Por toda parte, como, mais tarde, na Capital da República, a alma popular confraternizava com os representantes das classes armadas, em admirável unidade de sentimentos e aspirações.
Realizamos, pois, um movimento eminentemente nacional.
Essa, a nossa maior satisfação, a nossa maior glória e a base invulnerável sobre que assenta a confiança de que estamos possuídos para a efetivação dos superiores objetivos da Revolução brasileira.
Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava, virtualmente, triunfante em todo o País. A Nação, em armas, acorria de todos os pontos do território pátrio. No prazo de duas ou três semanas, as legiões do Norte, do Centro e do Sul bateriam às portas da Capital da República.
Não seria difícil prever o desfecho dessa marcha inevitável. À aproximação das forças libertadoras, o povo do Rio de Janeiro, de cujos sentimentos revolucionários ninguém poderia duvidar, se levantaria em massa, para bater, no seu último reduto, a prepotência inativa e vacilante.
Mas, era bem possível que o Governo, já em agonia, apegado às posições e teimando em manter uma autoridade inexistente de fato, tentasse sacrificar, nas chamas da luta fratricida, seus escassos e derradeiros amigos.
Compreendestes, senhores da Junta Governativa, a delicadeza da situação e, com os vossos valorosos auxiliares, desfechastes, patrioticamente, sobre o simulacro daquela autoridade claudicante o golpe de graça.
Os resultados benéficos dessa atitude constituem legítima credencial dos vossos sentimentos cívicos: integrastes definitivamente o restante das classes armadas na causa da Revolução; poupastes à Pátria sacrifícios maiores de vidas e recursos materiais, e resguardastes esta maravilhosa Capital de danos incalculáveis.
Justo é proclamar, entretanto, senhores da Junta Governativa, que não foram somente esses os motivos que assim vos levaram a proceder. Preponderava sobre eles o impulso superior do vosso pensamento, já irmanado ao da Revolução. Era vossa também a convicção de que só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da Pátria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça - abater a hipocrisia, a farsa e o embuste. E, finalmente, era vossa também a convicção de que urgia substituir o regime de ficção democrática, em que vivíamos, por outro, de realidade e confiança.
Passado, agora, o momento das legítimas expansões pela vitória alcançada, precisamos refletir maduramente sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar.
Para não defraudarmos a expectativa alentadora do povo brasileiro; para que este continue a nos dar seu apoio e colaboração, devemos estar à altura da missão que nos foi por ele confiada.
Ela é de iniludível responsabilidade.
Tenhamos a coragem de levá-la a seu termo definitivo, sem violências desnecessárias, mas sem contemplações de qualquer espécie.
O trabalho de reconstrução, que nos espera,não admite medidas contemporizadoras. Implica o reajustamento social e econômico de todos os rumos até aqui seguidos. Não tenhamos medo à verdade. Precisamos, por atos e não por palavras, cimentar a confiança da opinião pública no regime que se inicia. Comecemos por desmontar a máquina do filhotismo parasitário, com toda a sua descendência espúria. Para o exercício das funções públicas, não deve mais prevalecer o critério puramente político. Confiemo-las aos homens capazes e de reconhecida idoneidade moral. A vocação burocrática e a caça ao emprego público, em um país de imensas possibilidades - verdadeiro campo aberto a todas as iniciativas do trabalho - não se justificam. Esse, com o caciquismo eleitoral, são males que têm de ser combatidos tenazmente.
No terreno financeiro e econômico há toda uma ordem de providências essenciais a executar, desde a restauração do crédito público ao fortalecimento das fontes produtoras, abandonadas às suas dificuldades e asfixiadas sob o peso de tributações de exclusiva finalidade fiscal.
Resumindo as idéias centrais do nosso programa de reconstrução nacional, podemos destacar, como mais oportunas e de imediata utilidade: concessão de anistia; saneamento moral e físico, extirpando ou inutilizando os agentes de corrupção, por todos os meios adequados a uma campanha sistemática de defesa social e educação sanitária; difusão intensiva do ensino público, principalmente técnico-profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estímulo e colaboração direta com os Estados. Para ambas as finalidades, justificar-se-ia a criação de um Ministério de Instrução e Saúde Pública, sem aumento de despesas; instituição de um Conselho Consultivo, composto de individualidades eminentes, sinceramente integradas na corrente das idéias novas; nomeação de comissões de sindicâncias, para apurarem a responsabilidade dos governos depostos e de seus agentes, relativamente ao emprego dos dinheiros públicos; remodelação do Exército e da Armada, de acordo com as necessidades da defesa nacional; reforma do sistema eleitoral, tendo em vista, precipuamente, a garantia do voto; reorganização do aparelho judiciário, no sentido de tornar uma realidade a independência moral e material da magistratura, que terá competência para conhecer do processo eleitoral em todas as suas fases; feita a reforma eleitoral, consultar a Nação sobre a escolha de seus representantes, com poderes amplos de constituintes, a fim de procederem à revisão do Estatuto Federal, melhor amparando as liberdades públicas e individuais e garantindo a autonomia dos Estados contra as violações do Governo central; consolidação das normas administrativas, com o intuito de simplificar a confusa e complicada legislação vigorante, bem como de refundir os quadros do funcionalismo, que deverá ser reduzido ao indispensável, suprimindo-se os adidos e excedentes; manter uma administração de rigorosa economia, cortando todas as despesas improdutivas e suntuárias - único meio eficiente de restaurar as nossas finanças e conseguir saldos orçamentários reais; reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho, atualmente, rígido e inoperante, para adaptá-lo às necessidades do problema agrícola brasileiro; intensificar a produção pela policultura e adotar uma política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento das nossas sobras exportáveis; rever o sistema tributário, de modo a amparar a produção nacional, abandonando o protecionismo dispensado às indústrias artificiais, que não utilizam matéria-prima do País e mais contribuem para encarecer a vida e fomentar o contrabando; instituir o Ministério do Trabalho, destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural; promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a transferência direta de lotes de terras de cultura ao trabalhador agrícola, preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em terra própria, o edifício de sua prosperidade; organizar um plano geral, ferroviário e rodoviário, para todo o País, a fim de ser executado gradualmente, segundo as necessidades públicas e não ao sabor de interesses de ocasião.
Como vedes, temos vasto campo de ação, cujo perímetro pode, ainda, alargar-se em mais de um sentido, se nos for permitido desenvolver o máximo de nossas atividades.
Mas, para que tal aconteça, para que tudo isso se realize, torna-se indispensável, antes de mais nada, trabalhar com fé, ânimo decidido e dedicação.
Quanto aos motivos que atiraram o povo brasileiro à Revolução, supérfluo seria analisá-los, depois de, tão exata e brilhantemente, tê-lo feito, em nome da Junta Governativa, o Sr. General Tasso Fragoso, homem de pensamento e de ação e que, a par de sua cultura e superioridade moral, pode invocar o honroso título de discípulo do grande Benjamin Constant.
Através da palavra do ilustre militar, apreende-se a mesma impressão panorâmica dos acontecimentos, que vos desenhei, já, a largos traços: a Revolução foi a marcha incoercível e complexa da nacionalidade, a torrente impetuosa da vontade popular, quebrando todas as resistências, arrastando todos os obstáculos, à procura de um rumo novo, na encruzilhada dos erros do passado.
Senhores da Junta Governativa: Assumo, provisoriamente, o Governo da República, como delegado da Revolução, em nome do Exército, da Marinha e do povo brasileiro, e agradeço os inesquecíveis serviços que prestastes à Nação, com a vossa nobre e corajosa atitude, correspondendo, assim, aos altos destinos da Pátria."
Fonte: BONFIM, João Bosco Bezerra. Palavra de Presidente - Discursos de Posse de Deodoro a Lula. Brasília: LGE Editora, 2004
2 de fevereiro de 2011
INDIGNAÇÃO É LINGUAGEM
A explosão da indignação popular no Egito e na Tunísia não pertence às oposições partidárias, às ONGs, ao fundamentalismo e nem às mídias sociais ou à internet. Isso não significa que esteja desvinculada do real. Só que essa relação é mais profunda do que aparenta e projeta o futuro das revoltas. O que existe são linguagens individuais sintonizadas num poder coletivo de pressão contra os governos. Porque tudo é linguagem e nada existe fora dela. Se você reproduz a fala do poder, de qualquer lado, do governo ou não, você está aparelhado. Se você desmascara, descostura, denuncia e gera outras soluções de linguagem fora desse circuito você tem chance de ser livre.
O indivíduo se insurge quando gera uma fala de insurgência. Não algo quem remeta a metas, a grandes objetivos, ao paraíso terrestre, à utopia ou à mudança. A indignação, como se apresenta atualmente, é a quebra do jugo imposto pela linguagem. Uma ditadura é um conjunto de leis, normas, hábitos, tradições e planos. Se manifesta pela força, mas hegemonicamente pela linguagem, muito menos do que pela ação física. As pessoas estão confinadas a uma situação e não conseguem romper o círculo que ela forma ao redor de todos.
Vemos isso na situação brasileira. Temos uma ditadura, um sistema político engessado, que valoriza o voto do grotão para derrotar a opinião pública concentrada nas grandes aglomerações urbanas. Os quadros políticos não mudam e anexam novos contingentes para repartir o butim, o dinheiro público. Para o eleitor, é oferecido duas opções: ou você vota no Sarney ou então no Sarney. Como você anula o voto ou vota a favor ou contra o Sarney, dá Sarney na ficha. Não tem erro. Tem alguém batendo em você nesta ditadura? Não. Mas o circulo se fecha cada vez mais. Não há saída. É porque a linguagem toma conta de tudo.
As revoltas antigas tinham a percepção de que é aí que mora o perigo e onde o conflito se resolve. Não é por nada que os comunistas inventaram o agitprop, sigla de Agitação e Propaganda, para convencer as massas de suas teses. As ditaduras impõem suas realidades por meia da publicidade massiva, como acontecia no tempo de Hitler e como acontece hoje no Brasil. Carros em estradas vazias comprados a prestações a perder de vista é um exemplo. A campanha Brasil para Tolos é outro. Ou aquela antiga do Brasil grande. E se há uma erupção da revolta, tome mais linguagem: caras pintadas, plano cruzado, ficha limpa, tudo cai no rema-rema da palavra e da imagem.
No Egito,o governo cortou os laços com a internet, mas parece que o Google encontrou uma janela para continuar havendo comunicação. O celular, o twitter, o facebook são importantes para a revolução das ruas, mas não é a essência dela. O núcleo do drama é a indivíduo rompendo com o circulo de poder imposto pela linguagem ditatorial. Esse laço se rompe por meio de uma decisão pessoal ou pelo exemplo alheio, na busca de pontes com os contemporâneos. Como vivemos numa sociedade de massas, conectada, o fogo se espalha de um dia para outro. Os jovens migrantes de Paris, quando incendiaram por meses os carros, também se comunicavam assim. Mas a insurgência não estava nos bits e bytes, mas nessa relação conflituosa entre a linguagem imposta e a linguagem que quer se libertar.
Fico sabendo de movimentos de indignação nacional que estão se agrupando. Se fizerem como no final da década de 70, quando a revolta gerou o PT, irá tudo por água abaixo de novo. A insurreição precisa ser radical e profunda: dentro de nós e junto com todos os que procuram rasgar as vestes que nos impuseram. Vale tudo: piada, sarcasmo, poesia, artigo, blog ou recontrablog. Pois somos o que dizemos. O que fazemos fora da linguagem perceptível não existe, não conta para a revolução.
O perigo é, feito o movimento, um grupo aguerrido ditatorial tomar as rédeas da indignação e impor outra ditadura. Por isso a briga precisa ser feia: dentro do coração bruto da palavra e seus desdobramentos. É onde se corporifica o mundo em que vivemos.
RETORNO - Imagem desta edição: primeira greve geral no Brasil, em 1917.
BATE O BUMBO: ESTRÉIA NO CANGABLOG
Começo hoje a colaborar no Cangablog, mídia de grande repercussão do jornalista Sergio Rubim, gaúcho de Quaraí e ilhéu por vocação, morador do Campeche. Fui convidado por ele dias atrás quando enfim nos encontramos pessoalmente. Uma hora e meia de papo aqui nos Ingleses e viramos amigos da infância. O primeiro texto é Sabedoria de Gaveta.
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