31 de julho de 2005

O SISTEMA FECHADO DA INFORMAÇÃO




Nei Duclós

O jornalista Carlos Chagas abordou o tema Delúbio-Valério-Mala-Genoino-Dirceu há um ano e quatros meses na Tribuna na Imprensa. Divulgava fatos, baseado em fontes. Não aconteceu nada. O escândalo explodiu quando o mesmo fato foi novamente descoberto, desta vez por meio de uma denúncia de alguém por dentro do esquema, Roberto Jefferson. O fato é o mesmo, e a versão (que também vive a reboque dos fatos) idêntica. Mas as informações divergem. Em Chagas, o rolo estava ligado às sobras de campanha e à necessidade de caixa para a arena política, algo que estava sob controle da pretensa normalidade do jogo. Na CPI dos Correios, trata-se de desvio de dinheiro público. O que define uma informação talvez não seja nem o fato nem a versão, mas como estes dois elementos se encaixam no noticiário e como são formatados numa criatura à parte, a que entendemos como informação. A informação tem vida própria e é de outra natureza. Do que se trata, então?

EGOREPÓRTER - Manipulação é um conceito simples demais para decifrarmos o enigma. A informação depende da percepção coletiva, da densidade da veiculação e da ação desencadeada a partir dos acontecimentos? Ou não passa de um sistema fechado de representações, que serve de insumo para uma indústria, a mídia, que assim tem material suficiente (abundante e barato) para se retroalimentar? A segunda hipótese me parece mais completa. Alvin Tofler já notou que o maior anunciante da mídia é ela mesma ("você não pode perder") . Nas reportagens de TV o que vemos? Os repórteres reportando-se a si mesmo. Hum...está bom mesmo, quantas vezes você não viu o repórter provando algo e fazendo esse comentário? Num programa de reportagens da Rede Record, foram gastos incontáveis minutos para mostrar o repórter descendo de rapel em direção à gruta do Morcego, onde teriam se escondido Lampião e Maria Bonita. A caverna não tinha nada nem significava nada para o que estava sendo mostrado. Os personagens históricos passaram ao largo da matéria. O que valia era o esforço despendido pelo jornalista na sua aventura de estar fazendo o próprio trabalho. Informação é isso: é o aviso permanente de que você está consumindo a própria informação, que é um produto do marketing e do jornalismo que se faz hoje.

Quando um correspondente de guerra fica de costas para o sítio onde houve um atentado e, de frente para câmaras, despeja algum texto sobre o evento, a informação é a presença do repórter no lugar onde aconteceu o fato, e não o fato em si (e nem a versão que ele está veiculando). É por isso que se dá tanta ênfase ao crédito. Depois de um palavreado (quase sempre o mesmo) surge a grande revelação: Fulano de Tal, para o Este Jornal Desta Televisão. A extrema redundância desse alimento, que fortalece o monstro que se coloca à nossa frente todos os dias, está sendo rejeitado. A população refugia-se na internet e em alguns articulistas mais iluminados para poder chegar onde quer, aos acontecimentos, que passam ao largo da informação. Nenhum fato é mais importante do que o círculo fechado do produto empacotado e pronto para a divulgação.

O fato, a morte de Jean Charles Menezes, diz respeito apenas à sua família. A perda é exclusivamente particular. Publicamente, temos a informação: o sistema de auto-defesa britânico contra o improviso suicida do migrante, fuzilado por ter tentado escapar do cerco; a passeata com bandeiras ou as flores na estação de Stockwell; o processo que poderá inocentar os algozes. Não importa apenas o fato, ou a versão que sairá vitoriosa. O que vale é a produção em série de informações por parte do sistema de comunicação, que funciona na base da pauta rotativa, a que parece ir longe, mas sempre volta ao mesmo lugar: Fulano de Tal, de Londres, Especial para Este Momento.

TIRANIA- Isso se reproduz indefinidamente por toda a cadeia da massificação da mídia. Quando vemos o cantor Daniel em todos os programas de TV falando sem parar, a informação é o sistema lucrativo que tem como fonte a produção do que dizem ser música, mas é apenas uma contrafação. Quando as televisões informam que só existe um site, o deles, para todo tipo de evento, ou quando uma rede de televisão se fecha nos seus próprios contratados e contratos (a seleção brasileira sub-20, por exemplo, só existe numa rede, nas outras não), tudo faz parte dessa serpente que come o próprio rabo e ganha a vida exibindo essa performance ao público ludibriado. Descendo (por atingir menos gente) até a mídia impressa, vemos como os responsáveis pela divulgação de fatos culturais voltam-se para si mesmo. Quem faz a divulgação e detém o poder do espaço é o que interessa, enquanto os autores ficam à parte. Mesmo quem é considerado por essa pequena tirania, acaba como coadjuvante de quem faz a cobertura ou a análise.

Parece abertura de discurso americano: "Eu estava vindo para cá quando aconteceu alguma coisa engraçada comigo". Eu, eu, eu: é disso que trata a informação, esse sistema de representações, que funciona como um veneno a serviço da destruição da vida humana no que ela tem de mais preciosa: individualidades que deveriam estar conectadas com o mundo, mas acabam sendo apenas consumidores de universos paralelos alienantes, regiamente pagos pelo sistema de opressão financeira e política que nos governa.

RETORNO - 1. Uma notícia reveladora: "Confissões de um assassino econômico (Confessions of an Economic Hit Man) mostra como os Estados Unidos utilizam a globalização para defraudar os países pobres em trilhões de dólares. John Perkins trabalhou como economista-chefe da empresa Chas. T. Main em Boston, Massachusetts, no período de 1971 a 1981. É considerado um especialista internacional no que se convencionou chamar de "macroeconomia" e apresentado como "ex-membro respeitado da comunidade de negócios na banca internacional". Em seu livro , descreve como trabalhou para que os Estados Unidos pudessem defraudar em trilhões de dólares países pobres do globo inteiro, emprestando-lhes mais dinheiro do que eles poderiam pagar para depois se apossar das suas economias." Depois riam do Brizola quando ele falava em perdas internacionais. 2. Urariano Mota no La Insignia deste domingo: "O brasileiro, o cão, a raposa, esse animal híbrido, sem espécie e sem definida raça, de nome Jean Charles de Menezes morreu por engano assim, abatido com oito tiros. Morte dura e vil, que até a um cão, que até a uma raposa, que até a um coelho, seria prova de manifesta perversão e crueldade".

30 de julho de 2005

CRIME E CASTIGO



Obra de estréia de Javier Cercas, O Motivo procura desmascarar o mestre Dostoievski em um jogo de simulação com a literatura (Resenha publicada neste sábado, dia 30/07, no caderno Cultura do Diário Catarinense)

Nei Duclós

Dostoievski está na raiz de O Motivo (Francis, 118 págs.), novela escrita na juventude (1987) pelo espanhol Javier Cercas, autor do best-seller Soldados de Salamina, lançado em 2004 em português pela mesma editora, que vendeu 500 mil exemplares na Europa e virou filme de David Trueba. Surpreende que na minuciosa análise do posfácio, acusado de panegírico pela imprensa espanhola, Francisco Rico nem cite o autor russo. Mas o livro é puro Crime e Castigo: um homem solitário premedita um crime, o assassinato de uma pessoa idosa que tem dinheiro guardado em casa, e remói seus argumentos a favor e contra esse desenlace.

Embalado pela desconstrução do romance feita pelas vanguardas do século 20, Cercas no fundo parece querer desmascarar seu mestre, pois no lugar de refletir o país onde vive com seus personagens atormentados, tudo se reduz à literatura, como se esta se bastasse e fosse um círculo de ferro onde o leitor fica encarcerado para sempre, já que o final do livro é exatamente igual ao seu início. Como em Dostoievski, o que importa não é desvendar o crime (quem matou? Está claro que foi o escritor, esse Raskholnikov de gravata, esse personagem clonado do próprio autor). O que vale são os motivos que levam ao assassinato, aqui uma representação da trama da novela que está sendo lida.

É um jogo que serve para refletir sobre os mecanismos da literatura, essa arte que leva crianças crescidas a um ofício duro, quase sempre não recompensado devidamente. O paradoxo da profissão é que ela só pode ser reconhecida se o escritor abrir mão da humanidade que sustenta uma pessoa e atirar-se ao nada que a tudo devora. É preciso coragem para voar vestido apenas de uma capa vermelha, como um super-homem da primeira infância, e acreditar que será salvo pelas circunstâncias ou por seus super-poderes (ou, na pior das hipóteses, pela ajuda providencial dos pais). É uma empreitada difícil, pois, para não parecer ridículo, o escritor opta pela crueldade (on veut bien être méchant, mais on ne veut pas être ridicule, diz a citação recorrente do livro). Nem sempre funciona. Todo livro está a um passo do fracasso, e sua permanência tem a ver mais com o destino do que com a lógica.

Javier Cercas sabe o risco que corre. Por isso cerca sua novela de todos os cuidados. Parágrafos curtos conseguem grande intensidade narrativa, como a do preparo do protagonista no jogo do xadrez, artimanha usada para penetrar nos segredos do velho que vira vítima. Como um Dostoievski que não se ilude com a própria competência da arte de narrar, Cercas reduz Álvaro, o escritor fictício, a todas as veleidades de Raskholnikov, sem seus principais motivos. No livro russo, o assassino queria ajudar a própria família e era contra a velha judia usurária que explorava suas vítimas. Na novela espanhola, o motivo era um só: escrever um romance de verdade, que ocupasse um lugar decente na história da literatura e que redimisse o autor de suas tentativas frustradas anteriores, em que tentou em vão a poesia lírica e épica. Sua opção teria sido Flaubert, mas isso é mais uma cortina de fumaça em cima de sua mais profunda inspiração.

Trata-se de um jogo de esconde-esconde que serve para ludibriar os leitores e a crítica. Javier Cercas especializou-se numa arte da guerra, que é a simulação. Talvez ele acredite verdadeiramente que possa enganar a todos o tempo todo, senão poderia ser confundido (como de fato foi) apenas como um artífice capaz de ludibriar que tentar encontrar nos seus textos a chave do cofre mais íntimo. Seu truque é levar o leitor a acreditar que Álvaro é realmente um escritor que fica gravando as conversas dos vizinhos que ele manipula, e assim tirar dos conflitos material valioso para o romance. O leitor fica encantado com esse labirinto de detalhes sórdidos que expõem o escritor, que é sempre o alvo de todas as invejas.

Ele avança no seu jogo mortal, ao fazer os personagens manipulados entender que Álvaro está ficando louco com suas obsessões. Leva assim o leitor a acreditar que tem razão ao descobrir o óbvio, de que tudo não passa de perda de tempo de um estreante solitário em busca a glória. Mas a loucura do escritor fictício é apenas uma composição de cenas bem urdidas e jamais chegam ao centro do drama, que é Javier Cercas perguntar-se para que serve escrever, se nenhum proveito é tirado disso. Tudo já foi escrito e dito, já sabemos quem somos, para que repetir o recado? Mas ele insiste. Não existem bons sentimentos, apenas maldade. Não existe amor, apenas rancor e vontade de explorar os outros. Não existe harmonia social, apenas desemprego, briga conjugal, solidão. Não existe prazer, apenas o espírito de porco à espreita, para pilhar os contemporâneos de seus tesouros.

Nesse aspecto, a literatura é um crime sem perdão. O motivo que leva Cercas a construir sua novela bandida é estrear na literatura. Mas ele guarda um trunfo: tentar reescrever Dostoievski pegando o mote de Crime e Castigo para gerar uma novela como Memórias do subsolo do autor russo: o solitário compulsivo sente-se injustiçado pela sociedade e precisa encontrar nisso os motivos para o seu isolamento. Descobre que essa doença é geral, todos estão confinados em suas vidas medíocres. Então se vinga da concorrência rejeitando-a: escrever um romance é sair à luz para denunciar o que está oculto e que parece não ter solução. É um anacronismo: no século 19, era justificável existir um personagem como Raskholnikov, mas e agora, nesta época de tanta comunicação e presença maciça de gente conectada? Álvaro, o escritor inventado, é um anacrônico que, por sua existência, irá livrar Javier Cercas da mesma maldição. O autor real desova seu protagonista (clonado nele mesmo) para não sucumbir ao que leva todos ao desaparecimento.

Foi dito que esta novela jamais viria à luz não fosse o sucesso de Soldados de Salamina. É o típico comentário da crítica farta de ler profissionalmente. Quando se lê livros demais para gerar pensamento forçado, é comum entregar-se às idéias prontas. Especialmente quando se trata de desfazer um autor consagrado. Como, ao escrever seu best-seller, Cercas tornou-se intocável, pela maestria com que levou a narrativa a confrontar a história recente do seu país e os desafios literários do nosso tempo, fica mais fácil atacá-lo pelas costas. Ou seja, desmerecer seu livro da juventude. Mas Cercas está bem escudado. Invocou Dostoievski fingindo que ia atrás de Flaubert. Faz sentido: no autor francês, "o real, para o homem, é um efeito do uso da palavra", como notaram Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl num texto sobre Roland Barthes. Uma abordagem que tem tudo a ver com O Motivo. Mas Cercas bate o bumbo num degrau mais abaixo, ao optar pelo papel do romancista apesar de tudo ter sido já desmascarado. Lá onde existe a maldição absoluta, que é a do homem e, portanto, forçosamente a do ofício, há lugar para o escritor exposto em suas vísceras, mas vocacionado para a redenção. Ninguém melhor do que o mestre russo para denunciar o que tem todo aspecto de uma fraude.

Até o posfácio parece fazer parte da ficção, talvez para fazer uma defesa prévia, ou não dar trabalho à crítica, ou desmoralizar os críticos profissionais, já que se trata de análise excelente. Em qualquer cenário, ele se sai muito bem. Javier Cercas é um escritor raro, que tem o principal motivo para fazer literatura: contar toda a verdade, mesmo que isso pareça ser apenas um sinistro parque de diversões.

28 de julho de 2005

O PASSO DA BANDEIRA




(Para Jean Charles Menezes, in memoriam)

Nei Duclós

Essa bandeira omissa amortalha tua presença
Voltas para a origem embalado em nosso ombro
Depositam teu corpo no chão pleno de sonho
Um poema inútil engrossa a fila da denúncia

És a coragem que cruza o mar de bolso vazio
És o medo de cidadãos amordaçados pelo Mal
O Hino é a despedida que cerca a indiferença
Querias o Tempo, mas teu único sal caiu no rio

Não temos como recuar, agora que és lembrança
Por que a ferocidade destruiu o teu exemplo?
Morreste num curral, derrubado de vingança

A covardia é a moeda vil dos que nos compram
Uma estação de flores foi plantada com terror
Olhamos para ti e nosso choro é apenas vento

26 de julho de 2005

LICENÇA PARA MATAR




Os noticiários de TV são úteis pelo que nos mostram sem querer. A passeata por Jean Charles Menezes em Gonzaga, interior de Minas, apresentada antes de uma matéria sobre a exportação de carne brasileira para Rússia, Hong Kong e China, mostrava uma população desnutrida, precocemente envelhecida em sua dignidade e pobreza. Seu Matosinho, pai do eletricista morto, é o retrato dessa situação: abatido não apenas pelo assassinato torpe do filho, pela perda, pela dor, mas também pela falta de proteína, que exportamos alegremente, com o apoio incondicional disso que chamam jornalismo, mas é apenas marketing. Enquanto isso, o chanceler de um governo crivado de corrupção e que, provam os documentos, segundo a deputada Denise Frossard, estava cercado por uma organização criminosa que desviava recursos públicos, vai a Londres de chapéu na mão. Ou seja, quer que o governo britânico, que deu licença para matar, depois se arrependeu e depois voltou atrás do seu arrependimento, indenize a família da vítima. Pois devia mandar os britânicos socar o dinheiro deles. Não há libra que pague o assassinato com oito tiros da nuca (segundo a mais recente versão) de um cidadão honesto que, se fugiu, foi para se defender dos algozes à paisana que o perseguiam de pistola na mão (sobre o evento tem um texto ótimo no La Insígnia, de autoria de Alberto Piris).

FUINHA - Com sua insuportável cara de fuinha, Tony Blair, esse assassino confesso, que mata diariamente no Iraque em nome da democracia que eles não têm, veio na maior cara de pau pedir desculpas, mas ao mesmo tempo justificar a ação terrorista da polícia psicótica, tão incompetente que sua falta de eficiência já faz parte da literatura há mais de um século, como provam os livros de Sherlock Holmes, que foi inventado exatamente para provar que os policiais de lá são umas bestas ambulantes. Segundo denúncia, foi a polícia britânica que, formada na repressão à Irlanda, ensinou a torturar presos em todo o mundo, inclusive no Brasil. Esses são os paladinos da democracia, que matam por vocação e que têm como herói o agente secreto de pastinha suspeita, o cara que pode assassinar enquanto come as fêmeas disponíveis no sistema da pirataria internacional. Quem está reagindo a esse evento, que é culminante na atual situação de poder da direita mundial, porque a desmascara completamente, é a imprensa livre e o povo brasileiro. As autoridades estão fazendo o seu papel, o de se expressar por meio de gentinha sem escrúpulos.

ORNITORRINCO - A canalha que empalmou o poder no mundo todo precisa ser imediatamente apeada do poder.Eles são uma ameaça à sobrevivência do gênero humano. Querem manter o império nas mesmas condições em que formataram no passado. Estão apoiados no sistema financeiro expropriador de riquezas e invasivo de territórios e na força militar escuadada no poder das armas de exterminação em massa. Desmascaram-se na sua natureza punitiva, que não reconhece a existência de outros países. No Brasil, confirmam-se as teorias de Roberto Schwarz (a sobrevivência de práticas ultrapassadas convivendo com a contrafação de mentalidades modernas, o que só serve para confirmar nosso atraso e justificar o avanço do imperialismo) e Francisco de Oliveira, que nos coloca como um monstrengo social, o ornitorrinco: "O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial propiciava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as acumulações primitivas, tais como as privatizações propiciaram: mas agora com o domínio do capital financeiro, elas são apenas transferências de patrimônio, não são, propriamente falando, acumulação. O ornitorrinco está condenado a submeter tudo à voragem da financeirização, uma espécie de buraco negro: agora será a previdência social, mas isso o privará exatamente de redistribuir a renda e criar um novo mercado que sentaria as bases para a acumulação digital-molecular. O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão". Por isso exportamos escravos para o Primeiro Mundo. Quando alguém tenta sair da vala comum, é fuzilado pela paranóia. E por isso Francisco de Oliveira se recusou a falar sobre o governo Lula. "Não tenho nada a ver com esse sujeito" disse ele, que um dia embarcou no sonho furado do PT e teve a dignidade de sair a tempo.

24 de julho de 2005

IMPROVISO PARA JEAN CHARLES MENEZES




Nei Duclós

Tua biografia escassa, Jean Charles, jaz fuzilada com cinco tiros pelas costas. Tua precariedade é tão profunda, que por instantes foste confundido com um terrorista no metrô de Londres. Nossa vista cansada embarcou nessa nota fria, antes que te reconhecessem, antes que confessassem a culpa. Não eras apenas a rotina dos assassinatos de uma metrópole tomada pelo medo. Eras um pouco mais. Descobriram que encarnaste por alguns minutos esse pânico que gera o terror e põe a culpa nas vítimas. Vinhas de um nebuloso conjunto de apartamentos vigiados pela vingança. Ias para o trabalho com teus olhos de índio, que uma testemunha definiu como asiáticos, com tuas pernas criadas no interior de Minas, que ao expressarem pressa sugeriam fuga. Vestias um casaco num dia de calor, porque aprendeste como é traiçoeiro o clima para quem confia excessivamente nele. Mas a suspeita provocada pela tua roupa era apenas a violência engatilhada na esquina. Não eras tu, eletricista sem nome na multidão em trânsito, em busca da cidadania que te negaram. Eras um "criminoso" levando embaixo do braço, oculto no casaco improvável, uma estupidez que enfim puxou o gatilho.

COVARDIA - Estavas lá por acaso, Jean Charles, porque eras indiferente à trama que aprontaram neste tempo de covardia. Nada tinhas a ver com a armadilha. Eras o único bravo num evento medonho, em que o terror está em quem persegue movido pela cega certeza, mira por falta de juízo, e mata por vocação. Vivias longe da política, mas não te deram esse direito sagrado. Trilhavas uma sobrevivência sadia, e isso te bastava. Mas escolheste o lugar onde não te queriam. Tua identidade oficializada num passaporte por anos experimentou essa sensação de viver num lugar que parecia de verdade, e não num país abandonado pela incúria, como acontece na tua nação de origem. Desde cedo, como lembra tua família, querias aprender lá fora o que aqui não te ensinavam. Cedo descobriste que, aqui, só a mentira enriquece, enquanto a verdade pede esmola nas calçadas demolidas. Por isso quando estavas pronto, quando havia determinação suficiente no teu espírito, tiveste coragem para dar um salto e lá foste viver o teu exílio desta terra sem palmeiras. Talvez na viagem lembraste os passarinhos que caçaste no mato junto com os primos e os amigos, Jean Charles. Fugiste da gaiola pela porta da frente e nada devias na cidade que é vista como um modelo de tolerância. Mas enquanto atravessavas o mar, o mundo mudava e o rosto da paz possível tomou a forma da máscara do horror sem limites.

ABUTRES - A polícia britânica, que era tão famosa por jamais usar armas, sinal de um país civilizado num mundo cercado pela barbárie, agora bate no peito e se diz arrependida. Como poderão ser perdoados, se estás morto, compatriota? Se te mataram porque eras um desterrado em terra estrangeira? Se tua avó, que tanto te amava, não dispõe mais da esperança de mostrar, orgulhosa, as fotos da tua viagem bem sucedida? Se teus parentes choram o amargo fim de uma vida que a todos encantava? Como poderão ser perdoados esses abutres de olhos fuzis, que, tomados pelo mais profundo medo, encontraram em ti o motivo para resgatar as vidas que perderam naqueles trens jogados no fogo? Eles queriam expiar a culpa de terem perdido tantos cidadãos de uma só vez. Estavam envergonhados porque isso aconteceu nas fuças deles, tão competentes que são, tão científicos nas divisões que fazem da humanidade, entre hispânicos, caucasianos e asiáticos. Como se fôssemos gado, animais em busca de comida.

BRAVURA - A verdade é que Jean Charles não precisava de vocês, seus megalômanos de merda. Nós temos uma civilização aqui, caralho, e ela se manifesta na bravura de um povo e não na incúria dos ladrões que sempre nos governaram. Não somos este país quebrado, somos um povo que não foge à luta, que enfrenta chumbo todos os dias, que verte sangue direto da carne exposta, que assim mesmo se movimenta pelo país e o resto do mundo numa diáspora inspirada na insubordinação, fundada na esperança e direcionada para a grandeza. Não somos cavalos, por isso não nos chamem com esses nomes racistas que fazem a civilização de vocês. Somos a humanidade, meus caros. Somos de uma outra natureza e de outra têmpera. Somos brasileiros cidadãos do mundo. E Jean Charles, que não conhecíamos porque isso não era da conta de ninguém, apenas da família dele, é o que temos a oferecer. Velem seu corpo brutalizado. Expatriem seu esforço e fiquem com vosso ódio. É isso o que vocês merecem. Devolvam Jean Charles e mantenham perto de vocês os inimigos que vocês mesmo criaram, graças à soberba que os governa, a ambição que os aniquila, a dor que vocês compartilham com quem nada tem a ver com isso. Nós ficamos com nossa pobreza e nossa biografia escassa. Não somos nada, nem ninguém. Somos um corpo peneirado pelas balas no subterrâneo de um país distante. Somos Jean Charles Menezes, nome próprio de uma nação que é a soma de todas as outras. E que chega à pátria que o esqueceu para ser depositado no pranto de quem o amou.

RETORNO - 1. O título desta homenagem é inspirado no poema Improviso do rapaz morto, de Mario de Andrade. 2. No La Insignia, Urariano Mota nos brinda com dois textos magníficos. Um sobre o poder das palavras e a CPI, com direito a citação do Diário da Fonte. E outro, de suas memórias, sobre um momento da sua vida em que cruzou com o atual ministro da Previdência Social, Nelson Machado.3. Este texto sobre Jen Charles Menezes abre a edição de La Insignia nesta segunda feira, dia 25 de julho de 2005.

23 de julho de 2005

NOVO TESTAMENTO


Nei Duclós

Se Deus fosse um pesadelo
a chance de acordar seria o tempo
e o gosto de dormir a nossa igreja

Ninguém poderia combatê-lo
a não ser o sonhador e sua teia
cercando a neve com incêndio

Abraçado ao luar, viria o peixe
nesse ataque feito de surpresa
e pássaros voando sobre o gelo

Mas despertar não seria Deus exposto
em carnes penduradas pelo susto
ou asas condenadas à frieza

O levante se faria em outro plano
com o avanço da manhã de seda
desabando os materiais do sonho

Deus assim mostraria um novo rosto
aberto como alguém que vem de longe
oculto para não perder o fôlego

(Do livro No Mar, Veremos, Editora Globo, 2001)

RETORNO - 1. Imagem desta edição: "Jesus and Peter walking on water". 2. A Globo amplia sua vilanização da Internet, que trata de maneira monopolista (só existe o site dela) e como mídia coadjuvante para sua programação. Agora é a vez da novela América linkar internet com pedofilia. O problema existe e deve ser combatido, mas o que não pode é a Globo ocultar a grande diversidade de funções e objetivos da rede. A Globo teme a internet, que nela assume sempre o papel de vilã. Não descansarão enquanto não fizerem baixar a censura na única janela de liberdade de expressão que dispomos. Poderão usar os crimes que se cometem na Internet (uma questão para a Justiça) para baixar a repressão contra todos os que manifestam de maneira livre.

20 de julho de 2005

A QUADRILHA DAS PALAVRAS





Uma das desvantagens de morar fora de São Paulo é não ter acesso à massa de informações que a querida cidade nos despeja diariamente, não apenas pela mídia disponível, mas principalmente pelo contato direto com as pessoas que conhecem a matéria (o Brasil). Para conseguir um grande jornal por aqui é preciso, primeiro, dispor de recursos, já que o preço é bem maior, e de tempo, pois os poucos exemplares que chegam somem das bancas. Tem a internet, dizem, mas ainda não inventaram nada melhor do que a mídia impressa para seguir os acontecimentos, já que ler no micro é um desafio para os olhos cansados. A TV, bem, a TV...O que nos chega são falas compostas de maneira ordenada, para que tenhamos a ilusão de que as coisas correm sob controle. Mas sabemos que situação disparou como gado fugido do curral e não há laço que segure. Encaro a informação manipulada que é distribuída para o país como uma quadrilha de palavras, que nos assaltam a consciência com suas artimanhas, mentiras, representações e promessas falsas.

VERSÕES - A quadrilha é composta, primeiro, pelas falas da direita, que está tirando o máximo proveito da situação que ela mesma criou em séculos de poder. Depois, pelas versões mutantes dos envolvidos, que tentam incriminar uns aos outros, chegando ao cúmulo de o presidente colocar-se como alguém fora do PT. Há também como destaque as investigações feitas por pessoas sem a isonomia necessária para avaliar os problemas. É a velha história da raposa cuidando do galinheiro. O mais grave é que as palavras ajudam a solidificar a idéia de que o povo não sabe votar, que não tem preparo para governar, que os politicamente corretos são um súcia, que a esquerda é vil e que os guerrilheiros tomaram o poder e fazem a desgraça do Brasil. Como diria o inesquecível Tarso de Castro, é tudo mentira, claro. Ver a Hebe Camargo exibindo uma enorme cueca branca com a estrela do PT tirada de uma mala é de uma ignomínia sem fim. A baixaria se traveste de guardiã dos costumes e as esperanças de democracia vão para o ralo. A massa de militantes da esquerda que confiaram em seus líderes e a população que acreditou na possibilidade de mudança estão à mercê dos abutres de sempre, que usam mídia, com culpa no cartório, como aríete contra os avanços do país continente. Mas nem tudo é horror na imprensa: temos jornalistas competentes e neles depositamos nossa confiança.

PUBLICIDADE - Na base do embrulho está a publicidade oficial ,intermediária da corrupção e especialista em manipulação das palavras. Uma publicidade desnecessária: por que o governo tem de fazer propaganda de si mesmo? Para manter-se no poder? E a nação que se lixe? E há ainda o falso moralismo, os pastores auto-imputados como paradigmas da virtude. Esta crise é uma facada mortal nos que adoram servir de exemplo para os outros, mas o tiro poderá sair pela culatra. Quem ficou na sombra, depois dos sucessivos governos desde 1985, que dilapidaram completamente o país exausto, agora aflora com suas grandezas no bolso do colete. Existe enorme grita contra essa manipulação, especialmente dos grandes articulistas, como Alberto Dines e Mauro Santayana. Mas é pouco, atinge uma parcela muito pequena da população. O sistema de comunicação é o braço direito do estamento financeiro e político, como provam as denúncias. O PT colocou-se no miolo do problema e agora paga caro por isso. O carisma da sigla foi para o ralo. Foram desmascaradas suas boas intenções, que serviram para os aproveitadores comprarem coisas em malas de dinheiro. A terceirização, esse recurso da modernidade para enxugar custos e aumentar a eficiência, foi usado como partilhamento do patrimônio publico e abriu inúmeras crateras por onde escoa o Tesouro Nacional. Ou não é isso que diz a mídia?

MORALIDADE - É difícil manter o equilíbrio numa situação perigosa, não para a democracia, que democracia não temos, mas para o tecido social. Vi como se comportam os cidadãos marginalizados e furiosos no grande saque ao comércio em São Paulo de 1982. Nunca fiquei tão apavorado. Vimos naquela época como é frágil o equilíbrio, basta uma fagulha para incendiar o seco milharal. Para quem sonha com revoluções, posso garantir: não existe situação pior. Quando li Emile Zola sobre a Comuna de Paris, em que malfeitores armados cobravam pedágio em todas as esquinas, lembrei de 1982. Também vi um dia um documentário sobre os saques populares na África: não são da esquerda nem da direita, disse uma fonte. São os vizinhos que pilham as casas próximas, são a massa que a tudo destrói. Valha-nos Deus. Como diria Stanislau Ponte Preta, "ou nos locupletemos todos ou restaure-se a moralidade". Nota: ele não falou em moralismo, essa doença infantil da consciência culpada. Mas em moralidade, esse acordo entre cidadãos para uma vida harmoniosa.

18 de julho de 2005

O SEGUNDO INVERNO


Nei Duclós

O frio sempre chega e nós, deste pedaço de terra, sabemos que nada pode contra ele. O Inverno voltou, e ainda é só o começo. (Reproduzo aqui crônica publicada neste domingo no caderno Donna, do Diário Catarinense).

O Inverno voltou e me trouxe o início de um resgate: o hábito de conviver com o frio que chega com vento, o gelo que acumula casacos nas paradas de ônibus, as mãos que se esfregam, os rostos vermelhos, as frestas escondidas, as manhãs e noites geladas. Ainda é só o começo, mas agradeço que desta vez ele tenha chegado na hora datada, pois no ano passado o frio deu as caras em maio e só saiu lá por dezembro.

INFÂNCIA - A presença em casa da minha neta Maria Clara intensifica o resgate. Ela está plena de si com seu casaquinho tricotado pela bisavó, a touca de lã cobrindo toda a cabeça e as mãos segurando agora os pezinhos (excelente exercício, que experimentei imitando-a, e que dá grande alívio à coluna). A voz já articula melodias completas, véspera da linguagem, e os gestos inquietos experimentam o derrubar de coisas, o pegar transitório, tudo acompanhado por um olhar atento. Há seriedade em bebês, um ofício que não é essa festa que imaginam. Os dentinhos que rasgam as gengivas por longas horas do dia, o arroto difícil de sair, a elaboração de mistérios como a chegada da noite (ué, não estava tudo claro até há pouco?).

Lembro da minha infância na cidade do pampa, que cruzava a família como um evento definitivo, que nos embrulhava em grandes pulôveres de lã, tricotados por minha mãe, sempre maiores do que éramos, pois crescíamos como palmeiras e não havia energia para acompanhar o ritmo. Quando a roupa enfim cabia nos braços longos e finos, o pulôver já era. Começava endomingado, para ir ao cinema, acabava na cama para arredar a friaca e terminava num canto qualquer, exausto do uso. As coisas eram feitas para durar.

Lembro de um sapato que usei por dois anos e que não acabava nunca. Acabei jogando futebol com ele e o bicho, firme. Era só dar um lustro e já servia para ir ao colégio. Acabei abandonando o par indestrutível no pátio chuvoso, pois queria ganhar sapato novo.

Maria Clara segue o ritmo dos nenês de hoje: roupa de um ano aos cinco meses, corpo que espicha e embochecha sem parar, o meio sorriso evoluindo para a gargalhada, a festa quando acorda e o silêncio de todos para fazê-la dormir. A infância é quando o tempo é a palavra coração.

CAFÉ - Implico com as idéias prontas sobre o Inverno: vinho caro, lareira, passeio na Serra. O Inverno popular é feito de outra natureza. A continuidade da abnegação diante dos rigores da vida, a necessária concentração para se aprofundar em alguma coisa, o estudo como companheiro e o sol tímido que é sempre uma celebração, salpicando no pátio a claridade maravilhosa pontuada de folhas e algumas flores que resistem. É tempo de mirar nos olhos e no rosto, nas falas e nos pensamentos, nas leituras e nos projetos. O frio sempre chega e nós, deste pedaço de terra, sabemos que nada pode contra ele. Agradecemos o calorzinho que fez em maio e junho, que chegou até a dar praia em alguns dias.

Mas agora é hora de esfregar as pernas, de pensar muito antes de lavar o cabelo, de perseguir chocolate quente e café feito na hora, de abordar caldos enfumaçados e de tirar da vista as defesas grudentas geradas pela noite. Um acolchoado pesado, um cobertor fino de lã pura, umas orelhas que jamais esquentam e lá vamos nós, ano adentro, em comunhão com esses raios que nos chegam em diagonal da estrela-dia. Onde se esconde teu coração neste Inverno que começa e não sabemos quando termina?

FUTURO - Quando as nuvens pesam e o vento Sul se manifesta, pensamos que estamos perdidos. Mas surge a manhã com sua neblina e tudo se resolve com a mesa familiar onde há amor, núcleo resistente deste país aos pedaços, quando nos unimos diante do futuro, esse sonho que não nos deixa, esse estranho que, de tanto insistir, torna-se nosso amigo.

RETORNO - Nesta reprodução, fiz mais algumas correções mínimas (um texto nunca fica pronto). Agradeço o retorno dos leitores do Diário da Fonte e do Donna, especialmente ao Tailor Diniz, que citou duas vezes esta crônica em seu blog (link ao lado).

16 de julho de 2005

LUISÃO BATE NO PEITO




Luisão bate no peito porque seu corpo é um tambor. O que anuncia o grande craque com esse gesto, que parece reforçar sua fidelidade à camisa que defende, seja o Vasco, o Corinthians, o São Paulo ou a Seleção? Ele diz com a mão várias vezes que dentro dele, no fundo daquele lugar que aponta com tanta veemência para o torcedor emocionado, que lá, onde é difícil chegar nesta vida pautada pela escassez e a secura, há um tesouro que ninguém leva, porque morre conosco. O coração, revelado nesse momento pelo jogador que corre pelo campo, ocupa então o centro do drama. O choro de Luisão depois de ter feito o terceiro gol da decisão da Libertadores, no Morumbi, é esse evento não programado, que a todos surpreende, porque é raro testemunhar a garra do talento que enfim se entrega à poesia. Os poetas são da mesma têmpera: lutam a vida toda, não para fazer chorar, mas para provar que existe algo maior que transcende nossas vidas. Quando enfim conseguem, a lágrima é o único desfecho para o que foi feito com coragem e é deixado para nós como um talismã, uma bandeira.

DANÇA - O futebol, como todas as atividades humanas neste país perdido e saqueado, foi empurrado para a falta de escrúpulos. Quando vemos alguém como Luisão bater no peito, o cara mil vezes desacreditado que nos classificou para a copa de 2002, que foi expulso do Corinthians pela indiferença de quem entregou o time para o dinheiro internacional sem raízes, entendemos o recado: ele toca o tambor não para afirmar sua individualidade, mas para anunciar a esperança na arte que resgata o sonho. Uma arte incomparável, a dança leve que redime a força bruta, o toque de calcanhar no fogaréu da área adversária, o pé providencial que define o jogo, o arranque definitivo que conquista a nação agradecida. Luisão é explícito no seu caráter, na sua grandeza, no seu esforço, na sua competência. Por isso a mediocridade, que fareja tudo o que pode desmoralizá-la, tenta destruir o que nos lava a alma. Mas, quando menos esperamos, Luisão está de volta. Ele já não ultrapassou os limites da idade para se entregar a essa guerra? Ele não tinha se machucado miseravelmente? Ele não brigou com toda a cartolagem? Não importa os motivos que temos para esquecê-lo, ele nos lembra. E seu carisma ocupa o miolo do furacão. No início, ele chega e fica no banco. Um treinador arrogante o persegue. Uma mídia viciada não presta atenção. De repente, ele entra no segundo tempo. E algo se incendeia no país do futebol. A bola o procura, como a sede procura a fonte. É quando uma curva caprichosa cobre o goleiro na diagonal e cai no colo de quem sempre esteve ali e ninguém via.

PANDEMÔNIO - A festa monopolizada pela Globo fez o país esperar para ver a final da Libertadores. Era preciso aguardar o fim da execrável novela América (nenhuma relação decente, garanhões com batata quente na boca, fêmeas de todas as idades no cio, esse é o imaginário da autora, que ela impõe como sendo do povo). A polícia não liberou o telão na Paulista, não permitiu que se fechasse a avenida. A massa de jovens excluídos e destruídos moral e fisicamente pela barbárie da política econômica, pela corrupção geral e pelos desmandos da ditadura civil, invade postos de gasolina e lanchonetes e deixa um rastro de destruição. A massa não pode ver o jogo em plena rua, foi marginalizada pela prepotência. A avenida Paulista é um improviso para as comemorações populares. Não serve, devido à quantidade de instrumentos privados e públicos que ficam às mercê da violência. Mas como é a única dentro da parte mais importante da cidade com a largura suficiente para comportar a multidão, ela é a escolhida. Só a incompetência política deixaria de lado os motivos para agradar os torcedores. Finca-se pé numa pretensa correção, enquanto as malas de dinheiro voam céleres para salvar os ratos do navio que afunda.

RESSONÂNCIA - Quando Luisão bate no peito, ele está dizendo: dentro de nós, nação querida, mora um coração, uma alma, uma vontade, uma determinação. Dentro de nós bate calado um coração, e é por isso que eu faço esse gesto para todos enxergarem. O país que parece morto então acorda. E grita compassadamente o seu nome. Há brasileiros que nasceram para despertar o que dorme no fundo da arca. Eles levantam a população apenas com um drible ou um gol. Todos sabem que é muito mais do que isso. É o Brasil que busca em si mesmo o que foi jogado fora aos pontapés. Por isso o chute de Luisão não é um petardo. É apenas o desenlace do projeto que ele trouxe do berço. Mas colocar a bola na teia mortal da rede não basta. É preciso a ressonância da sua mão no peito que não se entrega.

RETORNO - 1. Vi neste sábado na Record, bem na hora da Zorra Total (esse humorismo de rádio reduzido a pó por 40 anos de ditadura) Dead Man Walking, filme de Tim Robbins sobre o perdão. Com sua mulher, Susan Sarandon (perfeita, como sempre) e Sean Pean (o sujeito antipático mais talentoso de Hollywood), Tim não dá mole para o assassino, o coloca como culpado, mas não poupa a pena de morte. Sua denúncia é sobre a vingança e o ódio. O antídoto é o amor e o perdão, bases do catolicismo minoritário na América imperdoável. Matar é condenável em qualquer circunstância. Perdoar não significa soltar o assassino, apenas não matá-lo. O título brasileiro do filme é Os últimos passos de um homem, o que acho fraco. Eu traduziria para O Andar do Homem Morto. 2. Minha crônica O segundo inverno, com ilustração de Samuel Casal, está no caderno Donna, do Diário Catarinense, deste domingo.

15 de julho de 2005

SAM PECKIMPAH, A AMÉRICA SEM ESCRÚPULOS




Sam Peckimpah revelou o imaginário da América: a violência sem limites, necessária para um país que se transformou num império e que hoje, na maior cara de pau, tem certeza que é dono do mundo. Antes de Sam, não havia sangue no faroeste. Nem havia tiro, apenas alguns estampidos que sempre ricocheteavam nas pedras, fazendo um barulho agudo que imitávamos em nossas brincadeiras na infância. Não existem heróis morais em seus filmes, apenas pistoleiros sanguinários, que fundam uma outra ética: a dos guerreiros que lutam o tempo todo para aniquilar o que estiver na frente. A solidariedade masculina que surge dessa opção é o machismo carismático do poder das armas e da investida suicida. Para deixar explícito o seu recado, Sam filma a mortandade em câmara lenta. O sangue sai das feridas abertas para inundar a tela. A humanidade, na sua ótica, é um projeto perdido. No início de seu filme maior, Wild Bunch, crianças atiram escorpiões no formigueiro, numa representação do ódio de berço, o que faz a diferença num território sem lei, a nação que anexa territórios pela violência.

MALFEITORES - Sam Peckimpach é um cineasta que aproveitou até o limite a tecnologia cinematográfica desenvolvida em décadas de indústria subsidiada pelo governo. Quando a ética era necessária, tínhamos heróis solitários como Gary Cooper em High Noon, ou mesmo anti-heróis que caem em si como John Wayne em The Searchers. Com Sam, tanto faz William Holden ou Robert Ryan: ambos são malfeitores, um a serviço do bando selvagem, outro a serviço da ferrovia. Não importa a natureza dos protagonistas. O objetivo é desmascarar o inimigo, os mexicanos bandidos, usurpadores de uma terra que pertence ao destino manifesto do imperialismo armado. Os guerreiros privatizados fazem parte dessa cidadania perversa que se impõe pela força e faz uma guerra total ao poder que se interpõe ao massacre, seja ele legal ou não. Esse cinema, que gerou clones bastardos como o Quentin Tarantino dos Reservoir Dogs e o Scorcese de Taxi Driver, é fruto também da crueza inventada pelo cinema de arte, que confrontou a babaquice dos filmes bem comportados e acabou destruindo os limites éticos da sétima arte. Sergio Leone, com Era uma vez a América, é seu co-irmão de sangue. Todos aproveitam a euforia americana de prepotência para brincar de vilania. Os bandidos de capa até os pés de Leone são resultado de Antonio das Mortes de Glauber. A cara facinorosa de Corisco inspira Sam nos momentos decisivos da morte sem quartel. De tudo isso resultam Mel Gibson e suas máquinas mortíferas, desvinculados da ética denuncista dos cineastas radicais, incluindo aí Nickolas Ray e Arthur Penn. Estes, mostraram como se faz um diagnóstico do horror. Sam não tem escrúpulos e celebra a força bruta como estética vitoriosa.

TORTURA - Mas o próprio diretor pune a própria escolha ao destruir todo o cenário num banho de sangue no final de Wild Bunch. Os anti-heróis sem limites destroem-se na coragem que escolheram. O rescaldo de seus filmes ainda pode ser encarado como uma ética, mas o que fica são as imagens poderosas e a glória de morrer em cena para o delírio das fantasias demolidoras dos espectadores. A falta de compromisso fez do faroeste italiano um sucesso de bilheteria. No fundo, tudo foi cevado naqueles filmecos em preto e branco que esses cineastas citados viram quando criança. As brincadeiras infantis davam a receita: como era possível matar sem ser punido, morrer para reviver na aventura seguinte, então para quê a lei e a ordem, se tudo se resumia a um tiroteio sem fim? Só que os adultos infantilizados forneceram a desculpa para que o império fabricasse sua fábrica de massacres. Ou então o cinema é resultado dessa política: há sintonia implícita entre o Vietnã visto na TV e os filmes de Sam, há sintonia explícita entre Rambo e a versão da vitória no sudeste asiático. Tudo podia desde o momento em que os filmes americanos transformaram a participação da América na segunda guerra como o álibi perfeito para invadir o mundo. Tudo ficou permitido e Sam é o pioneiro desse cinema que despejou a carne retalhada dos escravos no olhar horrorizado (e fascinado) dos espectadores em todo o mundo, dominado pelo sistema de distribuição da ditadura imperial. Podemos gostar do cinema inventado por Sam, mas estaremos caindo na armadilha. Que importa, se seus epígonos acabaram fazendo coisa muito pior, e sem a consciência do Mal que o torturava?

14 de julho de 2005

O DESTINO É COMO AS DUNAS




O destino é como as dunas: define a paisagem humana, mas pode mudar de lugar. Composto de areia e vento, ele migra e nessa viagem, às vezes, aproveita a chance de desaparecer. O tenente inglês T. E. Lawrence tinha o destino marcado: era filho bastardo de um nobre e por isso não estava em condições de subir na pirâmide social (não existe ascensão quando a marca da nobreza define a posição na vida; foi por isso que a elite da Inglaterra recebeu friamente a celebridade milionária Charles Chaplin, que sempre seria o filho pobre de artista de variedades). Era também um intelectual franzino, não tinha como se impor na carreira militar, ainda mais em época de guerra. Mas ele guardava um trunfo: era inglês, portanto fazia parte desse tipo de gente que saía para torrar ao sol do meio-dia, junto com os cachorros loucos, como definiu Noel Coward em inesquecível canção que virou hino patriótico. David Lean, o mestre que foi formado na equipe do compositor, dramaturgo, poeta e cineasta Coward, interessou-se por esse perfil do tenentinho marginal que enfrentou o destino. O resultado é Lawrence da Arábia, o melhor e maior filme de todos os tempos, a obra magistral até hoje não foi superada por nada nem ninguém.

ÁKABA, POR TERRA - A narrativa do filme, composto de imagens inesquecíveis, destaca a luta do protagonista contra a mutante paisagem do destino. Ela é estruturada como se fosse a versão oficial de autoridades, mas isso é só um gancho para o espectador entrar no mundo complexo do anti-herói. A primeira aparição do personagem é a sua prova de que pode resistir à dor de um fósforo aceso sobre o dedo. Significa que está disposto a contrariar a própria natureza para chegar onde quer. Sua postura diante do general (Jack Hawkins, magnífico como o gorilão sem escrúpulos) é descosturada, anárquica, dispersa. Significa que não tem o perfil de um oficial do exército britânico. Sua viagem para o coração do deserto é feita entre dunas que se movem com o vento. Representa a procura de um lugar naquela paisagem misteriosa. Tudo é pontuado por sua reflexão obsessiva que deságua na decisão de atacar os turcos de Ákaba por terra, o ponto alto de uma trajetória que se coloca como uma opção guerreira, uma visão estratégica inovadora, impulsionada por uma coragem suicida. Há a argumentação para conquistar o apoio das tribos do deserto (lideradas por Anthony Queen, no seu mais contundente papel no cinema), onde mistura versões e fatos para destruir a neutralidade dos potenciais aliados. Significa que o tenente tem condições de desviar o curso dos acontecimentos. Sua vitória em Ákaba, sua travessia de volta pelo Sinai até o bar dos graduados no Cairo (a cena mais impressionante do filme, em que convence os ingleses de que realmente tomou a cidade à beira bar que estava na mão do inimigo): significa que ele toma a vanguarda da guerra, virando a maré a seu favor. E finalmente a queda, quando descobre que está sendo manipulado.

LOUCURA - Seu último esforço, ao tomar Medina, acaba em fuga e tragédia: o herói não consegue dobrar o destino, já que este é formado de todas as dunas e não de uma só.A cena mais explícita é quando ele é obrigado a fazer justiça numa briga entre tribos e vê que a sua vítima é o mesma pessoa que salvou do deserto, quando quis provar que nada estava escrito e que as pessoas podem decidir o que vai acontecer. Seu pânico diante do homem de joelhos é o início da loucura. O tenente Lawrence não consegue dobrar o rumo de sua vida, pois não passa de um imperialista em terras miseráveis e toda a sua luta é encampada pela falta de escrúpulos de políticos e generais. Em pleno descenso, ele fustiga o destino ao se expor numa cidade tomada pelos turcos. Ali cai nas garras de um oficial (José Ferrer, terrível, monumental) que buscava carne fresca para seu prazer. O fim de Lawrence, na versão oficial (que é contestada) é que ele morreu num acidente de moto no interior da Inglaterra. Li A revolta do deserto, livro posterior à sua grande obra, Os sete pilares da sabedoria, um dos livros prediletos de Winston Churchill. É quando Lawrence muda de nome para entrar novamente nas forças armadas. Foi seu último esforço para recompor seu destino.Lá sofre horrores. Estava louco. Estava só diante da própria vida, feita de lágrima e pó. Ficam seus textos e este filme, que levou David Lean, e o ator Peter O'Toole (o definititivo Lawrence) para a imortalidade.

RETORNO - 1. Ademir Assunção, escritor e jornalista, defende o movimento Literatura Urgente ao atacar uma reportagem da Veja. Numa ditadura, Ademir, todas as políticas públicas acabam sendo dominadas pela tigrada. Isso só vai mudar se mudarmos o destino. 2. Julio Monteiro Martins lança o número 20 da sua Sagarana, a melhor revista cultural da Internet. Julio nasceu brasileiro e hoje é também um escritor italiano. Mudou seu destino. Ele anuncia: "Un'intervista inedita con la scrittrice statunitense Joyce Carol Oates, oltre a saggi inediti di Juan José Millás, di Rosa Montero, a racconti di Pier Vittorio Tondelli, Nadine Gordimer e un inedito di Fausto Wolff, poesie di Adélia Prado e di Sylvia Plath tradotte specialmente per la nostra rivista e una Mostra virtuale delle opere dell'artista argentino-canadese Juan Mildenberger. "

13 de julho de 2005

ALGUMAS FORMAS DE SOLIDÃO




O marketing pessoal é uma forma aguda de solidão. É quando substituímos o Outro, o interlocutor, por nós mesmos. Falamos, ou o que é pior, escrevemos, para nosso deleite, para nos convencer que somos tudo aquilo mesmo. Claro que ninguém daria ouvidos a semelhante asneira, então nos postamos diante de nós com os ouvidos atentos e os olhos abertos, prontos para receber a carga de mensagens absolutamente verdadeiras que vem dos fatos sem contestação. Assim mesmo, desconfiamos que o truque não dará certo. Então pintamos o elefante de amarelo canário, escolhemos o mais brilhante couchê 150 gramas, fazemos um travelling em close-up na nossa fuça e colocamos ao fundo uma peça magistral de Villa Lobos (ou algum sucesso do hip-hop, tanto faz). Ficamos então na medida certa para o consumo.

A amizade verdadeira, ou sua divindade, o amor, passa ao largo do marketing pessoal. São sentimentos alheios à perfeição e por isso se alimentam dos erros, exatamente pelo poder que possui o próximo: errar é a única coisa suportavelmente humana quando admiramos ou amamos alguém.

Outra forma de solidão é ser escritor no Brasil. As feiras literárias atraem mais gente pelo carisma das celebridades do que pelo interesse nos conteúdos. Poderão contra-argumentar: isso é "normal". Acho tudo anormal. O não-livro toma espaço das estantes e de todos os corredores, onde sobram palhaços e engolidores de fogo. Outra figura carimbada nas rodas literárias é o arrivista que vai conquistando espaço na medida em se inscreve nos vários fóruns disponíveis, da universidade aos cargos públicos. Escrever é secundário e muitas vezes perigoso. O importante é parecer ser e ter costa quente.

Costumo dizer que ser poeta e ao mesmo tempo editor de cultura é redundância. Como sou contra os vícios de linguagem, prefiro o jornalismo de negócios, onde não há esse tipo de ilusão. Quando estava na Ilustrada, na Folha de S. Paulo, alguém me falou que seria triste passar a vida toda entrevistando as mesmas pessoas. Ou pessoas com o mesmo tipo de ocupação. Mas isso existe em qualquer nicho do jornalismo. O ideal é assumir a natureza da profissão, que é não se restringir a tipos de conteúdos, mas à excelência do ofício.

Conheci pessoalmente Rodrigo Schwarz, que neste dia 12 lançou aqui em Floripa, na Livraria Catarinense, seu romance de estréia, A Ilha dos Cães. Fez uma belíssima dedicatória, exagerada, que me encheu de alegria. Rolou conversa e vinho, ideal para encontros entre pessoas, o que ameniza a solidão dos escritores, criaturas dedicadas a inventar coisas em salas minúsculas, sótãos, escritórios atulhados de papéis. Gosto de lançamento em livraria, o lugar certo para difundir a existência de um livro. Já lancei também em bar, mas não acho apropriado. Pode até ir mais gente, mas aglomeração artificial diz pouco sobre a natureza do evento.

Quatro escritores agradeceram a inclusão na minha lista dos mais importantes: Rodrigo, Urariano, Tailor e Japiassu. A seleção que fiz inclui Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. É a revolução de 30 da literatura brasileira.

11 de julho de 2005

LISTA DO 15 MELHORES EM LITERATURA



Saiu uma lista dos 15 livros mais importantes dos últimos 15 anos na literatura brasileira. Os jurados foram críticos, professores universitários e outros. É um exemplo de exclusão no país da exclusão. Minha lista seria diferente. Optei pelo critério de não ter nenhum dos agraciados da lista publicada hoje, para tornar mais explícita a marginalização a que os autores da minha escolha sofreram. O critério é o mesmo do ranking oficial: são romances, contos e crônicas (todos lançamentos desde 1990; as reedições não foram levadas em consideração). Incluí, no final da lista, dois livros inéditos (já deveriam estar publicados, portanto, merecem o destaque). Lá vai:

Os corações futuristas, de Urariano Mota
Concerto para paixão e desatino, de Moacir Japiassu
Os varões assinalados, de Tabajara Ruas
Nur na escuridão, de Salim Miguel
A ultima noite do botequim, de Renato Pompeu
Estranhos estrangeiros, de Caio Fernando Abreu
Pequenos fantasmas, de Humberto Werneck
Lobos, de Rubem Mauro Machado
A margem imóvel do rio, de Luiz Antonio de Assis Brasil
Fantasma, de José Castello
O Caso da Chácara Chão, de Domingos Pellegrini
A ilha dos cães, de Rodrigo Schwarz
Conto e ponto, de Cícero Galeno Lopes
A vampira do lago, de Tailor Diniz
Memórias póstumas de Gim Tones, de Fabio Murakawa

LISTA OFICIAL - A lista publicada é a seguinte:

1) Dois irmãos - Milton Hatoum
2) Nove noites - Bernardo Carvalho
3) O vôo da madrugada - Sérgio Sant'Anna
4) Eles eram muitos cavalos - Luiz Ruffato
5) Quase memória: quase-romance - Carlos Heitor Cony
6) Cidade de Deus - Paulo Lins
7) Budapeste - Chico Buarque
8) Menina a caminho - Raduan Nassar
9) Barco a seco - Rubens Figueiredo
10) A céu aberto - João Gilberto Noll
11) Pico na veia - Dalton Trevisan
12) Aqueles cães malditos de Arquelau - Isaías Pessotti
13) A noite escura e mais eu - Lygia Fagundes Telles
14) A cabeça - Luiz Vilela
15) O monstro - Sérgio Sant'Anna

RETORNO - Aprender com Jésus Gómez: leia seu texto A linguagem da barbárie no La Insignia.

9 de julho de 2005

INVENTÁRIO DO BRASIL PROFUNDO




A matéria bruta de uma nação que voltou as costas contra si mesma na recente obra poética de três autores do Sul do país (Resenha publicada neste sábado no caderno de Cultura, do Diário Catarinense).

(Leia abaixo em Retorno: Links importantes).

Nei Duclós

O mapa do Brasil profundo inclui Livramento e Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, e Bela Vista do Paraíso, no Paraná. Nestas cidades, três crianças que cresceram sob a sombra da ditadura tornaram-se escritores bem-sucedidos, com significativa obra publicada e, na maioria das vezes, premiada. No momento em que eles colocam na praça seus mais recentes lançamentos, o conteúdo poderia sugerir festa e celebração, pois se trata de poesia brasileira bem resolvida, pertencente a uma linhagem sólida da cultura do país. Mas a formação fala mais fundo e impõe-se a trágica sobriedade do que é escrito com absoluta transparência. Os livros do paranaense Miguel Sanches Neto (autor de Venho de um país obscuro) e dos dois gaúchos, o fronteirista Paulo Bentancur (Bodas de osso) e o caxiense Fabrício Carpinejar (Como no céu e Livro de visitas), todos da Bertrand Brasil, foram esculpidos com a matéria bruta da nação que voltou as costas para si mesma.

Mesmo sendo tão explícita essa sintonia entre a situação do país e a poesia, os três autores jamais deixam de lado as lições aprendidas nas últimas décadas, especialmente a de Drummond, em que a penetração surda no reino das palavras é decisiva num ofício tentado pelos temas da vida escassa. Eles encarnam esse duro aprendizado diferenciando-se do poema confinado numa prisão de ausências. Existem leis que proíbem o poema ser de vanguarda, ou ideológico, ou confessional, pois tudo isso pertenceria ao passado. O que é moda, hoje, é o verso desvinculado de qualquer realidade, para assim assumir seu único papel ainda tolerado, o de redesenhar o perfil de cada palavra, virá-la pelo avesso e combiná-la de todas as formas.

Mas esse é um destino que, paradoxalmente, pertence ao território negado (o da política), pois uma literatura que reivindica uma existência autóctone, sem nenhuma relação com a vida social e é considerada a única possível, pertence a um país que entregou sua soberania. Qualquer movimento contra essa medida provisória corre o risco de ser ignorada. O silêncio, que monta guarda em torno da poesia que não participa dessa casca flexível de aparências, é a mesma sentinela que define os papéis sociais no Brasil, onde não há distribuição de renda porque "não dá tempo", como notou esses dias um passageiro de ônibus.

Longe da falsa contradição entre poesia e prosa (tão insistentemente lembrada quando se trata de poesia não enquadrada nas firulas teóricas sobre o verso), os três poetas trabalham fora dos projetos prontos para a poesia, que, em tese, deveria pular qualquer muro, a começar pelo mais importante, o do sentido (a compreensão compartilhada). Aqui ocorre o contrário. Não há pudor em se falar com todas as letras, como em Miguel Sanches Neto: "Venho de um país obscuro/ de uma infância só muros,/ meu pai foi leve lembrança,/ que me marcou pela ausência,/ e enquanto caminhava pelas ruas do tempo mais triste da ditadura/ ia perdendo meu país como quem deixa uma moeda cair".

O poeta perdeu o país como quem perde o pai. Foi formado num território de miséria, autoritarismo, marginalidade (a nação sem moeda). O dinheiro que falta na família sobra no bordel (a festa dos recursos confiscados da população) e de lá pinga na mesa onde o poeta cresce: a mãe costurava para as putas, a avó lavava roupa para fora, o padrasto vendia para os pobres e todos eram analfabetos. Ao herdar uma cultura ágrafa, feita de restos, o poeta recolhe o que é jogado no lixo. Nas suas palavras, a escola era "um lugar de castigo, onde só o silêncio era exigido". Prisioneiro dessas decisões postas como definitivas, ele confronta sua herança: o nome que veio de uma ancestralidade aos pedaços, jornais velhos com notícias datadas, a casa que se perdeu para sempre e jamais foi substituída. Gerado pelo Brasil da ditadura (pois esse é o nome do país obscuro), o poeta curva-se diante da sua herança e nela enxerga uma réstia de luz na varanda, um hotel em ruínas, uma avó que serve café depois de sair por alguns momentos do retrato da sala.

Ele desistiu de achar, mas não da procura. As relações humanas nesse mundo sombrio (o casamento, a fraternidade, a descendência, a filiação) estão contaminadas de impossibilidades. Nada pode a memória na sua luta contra a morte. Mas, descobre o poeta, nada poderá a morte quando a memória for plena. Por isso ele insiste, sem fazer barulho. Seu objetivo é transformar-se em raiz, longe do inferno das superficialidades, e entregar-se sem resistência ao esquartejamento de si. Para definir sua missão, que aparentemente não existe, ele procura desvestir o que a ditadura fez com outro passado, o de Aleijadinho. Numa série de poemas finais, revela o que um criador, num país obscuro, é capaz de fazer, mesmo que sua arte seja soterrada pela mesmice burocrática e pela pompa das aparências. Ele vê nas esculturas de Aleijadinho o mesmo material da própria maldição.

O país que assombra Miguel Sanches Neto é o mesmo deserto de Paulo Bentancur, onde o poema é o último reduto de uma fuga. Quando a nação se rende e se esvai, e no lugar dela é colocada uma representação criminosa, reiterada pela imagem vendida no mercado, a palavra que um dia fundou a nacionalidade perde o sentido. Fica à deriva e é dada como morta. Possui apenas a memória de algo que não lhe pertence, mas que ele resgata como tesouro pessoal. O poeta encarna essa perdição numa encruzilhada: a esperança de água sob "um céu que jamais ilude", os olhos desprotegidos diante da tempestade, o dia na prateleira. Nesse sufoco, não há lugar para nada: "Isto não é um poema, não é mesmo uma confissão, não é sequer o olhar turvo de um espírito sem a luz de quem, ao lê-lo, poderá ver mais que um poema. Ou menos".

Dividido em três partes, o livro de Paulo Bentancur aborda primeiro a infância, depois o próprio ofício, e em seguida a permanência (ou a falta dela) no casamento límpido entre o desaparecimento e a transparência. A aparente submissão ao que a vida impõe é uma insurreição que o poema joga como lava na borda de um monturo. A poesia, então, é o reflexo da mão sobre o papel, do gesto sobre a palavra, da vida sobre que precisa ser dito. Paulo enxerga as minúcias de um país sem limites, e entende pelo detalhe o que nos confunde pelo conjunto. É complicado definir uma identidade num lugar que aposta na dispersão e onde a realidade econômica e política jogou uma sombra pesada sobre o significado das palavras.

Nessa arena, o poeta ou sucum-be à armadura dos significados ou pula no abismo.

Fabrício Carpinejar escolhe um momento posterior à queda. Ele cuida que o espólio do sótão seja a arqueologia que reinventa os cômodos ainda vivos. Sua poesia não busca a praça usada pela convivência em conflito, mas a cruza de uma só vez para lamentar a travessia sem sentido. A biografia dessas ruínas veste como um terno em dia de missa, mas suja os sapatos polidos para participar da briga no quintal barrento da igreja. A infância que desponta é uma crueldade, e a vida conjugal é um cruzamento de merendas jogadas como arsenais de uma batalha perdida. A precisão com que demole cada momento da vida vista pela normalidade (essa evolução temporal de biologias datadas) serve de modelo para um brinquedo cruel: o de desarmar o relógio precioso da família para expor-lhe as vísceras e assim denunciar a inexistência de mecanismos.

É arriscado esse jogo porque as palavras parecem dançar ao sabor de cada verso, como se nada tivessem com o poeta, que sopra na rua ainda vazia, mas potencialmente sedutora para a alma criança dos leitores. É apenas um jogo, dirão as autoridades, e se ocuparão de outras coisas, deixando que as sobras da família, os loucos, os agregados, as velhas tias, as crianças esfoladas se reúnam para seguir a pista do som que vem de fora do círculo onde todos foram encarcerados.

Há então uma anticelebração, já que o poeta é o primeiro a apontar, em si mesmo, a inapetência para explicar a sedução da melodia. Ele atrai para si a gargalhada geral para que não ouçam seu verdadeiro intento: o de jogar todo mundo nas águas do rio, para que nela afoguem os detritos das suas linguagens. É quando o leitor se revolta contra as regras impostas do jogo. Não era o circo que estava passando? Não eram as celebridades que acenavam? Não era a fama que exibia sua fortuna? Ao nosso redor, escombros de coisas não nomeadas nos rondam com seu ranger de dentes. Fomos enganados e o poeta fecha a porta na nossa cara, como quem faz uma visita. Boa-noite, diz ele, e o sol sobe no horizonte como um cachorro pula do chão para a janela, quando busca comida no lugar onde havia apenas papel sujo (a pilha de significados acumulada pelo uso).

Sorte de quem está na rua, que vê em plena liberdade as folhas soltas que tinham nascido para serem grampeadas. É o momento, então, de cada passante ser reconduzido ao primeiro ato de criação, o de dar nome ao que é de novo revelado. O país ganha a chance de um reencontro, mas isso depende de outras lutas. Às vezes, o destino da nação, que tanto pode ser a língua, como a infância, ou a família, descobre o quanto deve à poesia.

RETORNO - 1. Por falar em Brasil profundo, nada como um texto sobre a falta de liberdade de expressão na situação atual: Urariano Mota explica o que ocorre na imprensa em Pernambuco numa descrição que é um assombro de clareza e coragem e que cabe direitinho em qualquer grotão (central ou periférico) da ditadura civil. 2. Rodrigo Schwarz lança nesta terça-feira, dia 12, às 19 horas, na Livraria Catarinense, no Beiramar Shopping, em Florianópolis, seu romance de estréia A Ilha dos Cães (Bertrand Brasil). Estarei lá, para conhecer pessoalmente o autor e ganhar seu autógrafo. 3. Jésus Gómez abre o La Insignia de hoje, segunda-feira, dia 11, com meu texto Cinco Vezes Tarso de Castro, que serviu de subsídio para tese de mestrado na Unviersidade de Passo Fundo e de inspiração para uma biografia de Tarso, de autoria de Tom Cardoso, que será lançada pela Editora Planeta. Li um capítulo do livro e posso garantir: é obra de primeira linha, totalmente obrigatória. Tom é filho de Jary Cardoso, que um dia deverá lançar a antologia do seu fundamental trabalho jornalístico. Demorou, Jary. Os novos jornalistas precisam saber o que nossa geração aprontou nos veículos deste país sem fim. E nós, os veteranos, precisamos relembrar o que fizemos na imprensa brasileira. Por muitos anos, lia Jary e comentava: isso dá um livro. E o melhor é que Jary continua no front, no jornalismo de Salvador.

8 de julho de 2005

O PASSO DO MEDO



Vocês notaram como o Bush caminha? Ele joga cada perna bem para o lado, espichando o pé toda vez que dá um passo. Isso deixa o quadril à vontade, para transmitir uma imagem cool, enquanto os braços acompanham o ritmo numa posição entre a pose marcial e a non- chalance. A abertura extrema das pernas no andar de Bush significa que ele precisa de bastante espaço para dispor confortavelmente do seu par de bolas, dando assim a impressão de que possui muito mais do que duas, uma quantidade suficiente para tornar o mundo um lugar insuportável. Não satisfeito, ele ainda caminha rapidamente, franze o cenho e levanta o braço de maneira entre animada e abrupta, enquanto um leve curvar das costas o deixa um pouco para frente, como a dizer que está atento e imponente na sua determinação de destruir nossas vidas. Não é apenas um pesadelo, é o subproduto daqueles vilões de histórias em quadrinhos, enviados pelo Mal para dominar tudo. O pior é que não temos super heróis disponíveis. Temos vítimas, tanto no Iraque quanto em Londres.

PERFIL - Está na hora de fazer minha breve biografia. As pessoas não me conhecem, por culpa minha, que jamais me preocupei com isso. Agora vai ser assim: sou um poeta do Brasil soberano, citado por Mario Quintana como um dos quatro melhores poetas do Rio Grande do Sul (o que arrancou a frase carinhosa de Caio Fernando Abreu, escrita por ele numa carta endereçada a mim: "Esse é o maior elogio da tua vida; confesso, fiquei com inveja"). Ao receber meu livro Outubro, Tabajara Ruas escreveu que iria colocá-lo na estante junto a Drummond, que esse seria o lugar merecido. Meus livros foram apresentados por Mario Quintana, Mario Chamie, Juarez Fonseca, Cláudio Levitan e Raduan Nassar. Sou também um jornalista de primeiro time. Trabalhei nas equipes de Mino Carta, Samuel Wainer, Tarso de Castro, Múcio Borges da Fonseca, Woile Guimarães, Nestor Fedrizzi e Walter Galvani. Criei revistas e jornais. Ajudei a fundar e a consolidar alguns veículos importantes. Enriqueci pessoas com o meu trabalho. Estou casado desde 1972 e sou pai de três filhos e avô de uma neta. Sou ensaísta, resenhista, poeta, escritor, romancista, contista, jornalista, bacharel (e por um tempo, doutorando) em História pela Universidade de São Paulo (formado com média geral de 9,3). Tenho poemas traduzidos para o inglês e o italiano. Tenho quatro livros publicados, três livros para sair este ano e mais alguns na fila, já prontos. Portanto, se quiserem me colocar em alguma gaveta, que seja enorme e esteja situada bem no alto. O fato de eu me referir a tudo isso com humor não significa que essa trajetória não tenha valor. Falo tudo isso porque dei entrevista para um trabalho universitário e lá apareço como um qualquer. Não sou um qualquer. Sou um poeta do Brasil soberano. Escritor de primeira água. Jornalista top de linha: editor, repórter, colunista, editorialista. Como eu disse sobre Quintana e que serve para mim: Respeitem seu andar.

AFORISMAS - Todos fazem, também tenho os meus. Lá vai: Não faça autocrítica no Brasil; todos acreditam. No Brasil ninguém se mexe e quem se mexe leva chumbo. Jornalista é aquele que não sabe, por isso vive perguntando. Tenho outros, que vou colocar enquanto for lembrando.

RETORNO - 1. Estréia no portal Consciência um Guia de Sites de Filosofia, totalmente desenvolvido, como tudo o que Consciência oferece, por Miguel Duclós. As entradas são cuidadosamente selecionadas e classificadas em diversas categorias. Cada link tem uma ficha própria, que permite ao visitante comentar e avaliar as entradas, tornando o guia mais confiável e completo. É possível contribuir para aumentar a base de dados enviando links para serem validados pelo editor. Registrando-se você pode manter uma lista de favoritos on-line. Participe! 2. A pesquisa de Ida Duclós sobre canções de ninar do mundo todo, com ênfase para o trabalho nessa área de Garcia Lorca, está cada vez melhor no seu blog e já é destaque no Google. 3. Daniel Duclós chama a atenção para o Wikipedia, enciclopédia feita pelos usuários, onde ele, daniduc, estréia com seu excelente e ddidático texto sobre a Ilíada. 4. Jesús Gómez Gutiérrez faz um alerta no La Insignia sobre os últimos acontecimentos em Londres e os antecedentes em Madri, onde mora.

7 de julho de 2005

O LADRÃO DO TEMPO


O LADRÃO DO TEMPO

Nei Duclós

Alguém está roubando o tempo, e não é Deus.
Seja quem for, tem poder.
Mas não se entrega porque usa de todos os ardis.
Não rouba, por exemplo, horas inteiras,
nem pacotes de minutos redondos.

Descobri sua manha usando minha caçapa
de pegar neutrinos, o metrô.
Desci as escadas às 10 e 14 e quando cheguei
no último degrau, eram 10 e 17.
Não se leva três minutos para chegar até a plataforma,
mas um minuto no máximo.

O roubo portanto é sutil, para ninguém dar falta.
Parece até um benefício: você se livra de lembrar
que às 10 e 15 precisava tomar seu remédio
ou dá graças a Deus que faltam agora apenas
três minutos para as 10 e 20, quando faltavam seis.

Descobri também que o roubo é diário, sistemático
e deve existir em reserva uma eternidade
de tempo surrupiada.
Nem sabemos, talvez, que ainda estamos no século 20
e que o ladrão foi colocando na algibeira
incontáveis minutos
enquanto nos apressávamos em sair da ditadura,
da recessão, do sufoco, da juventude.

Agora me dou conta: os pais morreram depressa demais
e ganhei um corpo desconhecido em poucos dias,
como um susto na balança.
Foi ele, que aos poucos levou o tempo
que eu deveria gastar
para ir me acostumando
à falta de eternidade da minha vida.

Não há remédio para isso, pois nada fizemos
quando havia tempo.
Fomos ficando cada vez mais passivos em relação
aos milhões de segundos escoados pelo ralo
e agora o ladrão está bem estabelecido,
derrubando a lógica de todos os ponteiros
e números digitais,
ludibriando os relógios eletrônicos,
convencendo as autoridades mundiais
de que estamos no tempo certo,
como se uma irresistível imbecilidade
tivesse tomado conta de todos.

Para quem tem dinheiro - e não é o meu caso - o roubo
do tempo faz parte de suas rotinas, já que roubam tudo,
de merenda escolar a fósseis.
Mas para quem está sendo acionado para pagar imposto,
a defasagem dos quartos de hora acumulados
em montanhas de arquivos mortos
servem apenas para aumentar os juros.

Alguém está roubando o tempo e deve ser o governo.

(Do meu livro Partimos de manhã, a sair).

6 de julho de 2005

OS IANQUES CHEGARAM FINALMENTE

O enclave militar americano na zona estratégica de Itaipu é o resultado do golpe de 1964, do alinhamento com o Império desde a guerra fria, do seqüestro da soberania financeira e da sucessão de governichos da ditadura civil. Por coincidência, eles chegam exatamente no momento em que o governo atual exibe as vísceras da sua fragilidade, e com elas, as feridas abertas da nação que o elegeu.

A PULVERIZAÇÃO DO IMPÉRIO ESPANHOL é resultado das suas derrotas na guerra e na diplomacia. Na guerra é notório o fracasso diante dos americanos em Cuba, no final do século 19, quando os gringos se arvoraram então em donos da ilha, coisa que só acabou em 1960, dois anos depois da revolução cubana, quando Fidel Castro declarou-se alinhado a Moscou. Mais perto de nós, há a perda dos territórios do sul do continente para os portugueses, que resultou na ampliação territorial do Brasil, país que se estendeu até o rio Uruguai. O Brasil quase levou de quebra o Uruguai, não fosse a derrota da Colônia do Sacramento, no século 17, e da guerra de D. Pedro I pela província Cisplatina, na segunda década do século 19. Até hoje tem reflexos perversos a grande derrota do Paraguai na guerra que resultou no genocídio praticado pelo conde D´Eu depois que a luta já estava decidida no campo de batalha graças ao Exército comandado por Duque de Caxias, à Marinha Brasileira de Osório e Tamandaré, e aos voluntários da pátria. Estamos pagando caro pela destruição do Paraguai. Este virou um não-país, uma contrafação industrial, entreposto de contrabandos e produtos piratas. Itaipu, obra da engenharia nacional, precisa pagar pedágio para os paraguaios, que são co-proprietários por serem donos da margem direita do Paranazão. Nessa zona de falta de soberania, instala-se agora o exército americano, graças à conivência do Brasil, que atualmente trabalha como pau mandado no Haiti.

O GRANDE TERROR NA ÉPOCA DO Brasil Soberano era a invasão americana, que quase aconteceu em 1964, com a operação Brother Sam, que estava pronta para ser desencadeada caso houvesse resistência ao golpe de estado (e foi por isso que João Goulart, o vice- presidente eleito pelo voto direto e confirmado presidente em plebiscito popular decidiu encerrar o mandato para evitar sangue). A direita queria matar e estava preparada. Lembro que em 1964 minha sala de aula recebeu a visita de um filho de alto oficial da Marinha, que veio ver de perto os comunistas do Colégio Santana, que na época estava querendo ganhar as eleições do grêmio estudantil. O sujeito chegou para mim e disse: Vi que és um dos primeiros da classe, um rapaz inteligente, mas que fica escutando esses comunistas. É melhor você se comportar. Assim foi 1964, o crime hediondo, que preparou o terreno para a atual invasão americana de Bush.

ELES PODEM FAZER ISSO, pois tivemos uma sucessão de governichos. A começar pelo de José Sarney, o eterno demiurgo da ditadura civil, que atualmente é fiador de um presidente enfraquecido por uma equipe de trapalhões e, ao que tudo indica, corruptos. Sarney fez o primeiro serviço: destruiu a moeda com seus planos cruzados no queixo da nação, fez-se patrono da Constituição Frankestein, a que foi escrita pelos grotões e os corporativismos, e entregou o poder para um sucessor à altura, Fernando Collor, criado na estufa do autoritarismo e inventado pela manipulação do marketing político e do noticiário comprado na televisão. Collor fez o segundo serviço: acabou com a credibilidade da democracia que tentava se implantar na primeira eleição direta para presidente em décadas, seqüestrando a conta corrente e a poupança de toda a população, no maior golpe da História mundial. FHC fez o terceiro serviço: vendeu o patrimônio nacional a preço de banana, subsidiando os piratas estrangeiros com recursos do Tesouro Nacional. Lula completa a obra: destrói as aspirações populares por mudança, entrega o território ao permitir a exploração do subsolo por empresas estrangeiras e ainda cria um enclave na fronteira sob os auspícios do politicamente correto e o álibi da proteção aos indígenas.

OS GRINGOS SE INSTALAM na América do Sul para fazer o que mais sabem: matar. Inventaram que a Tríplice Fronteira tem terrorista pois está cheio de árabes e aí se sentiram à vontade para vir colocar seus pares de bolas em território sagrado, regado pelo sangue dos ancestrais deste continente, que agora assiste boquiaberto a consolidação de velhos terrores. Nem na época mais negra das mais tremendas ditaduras tivemos uma situação destas. Precisou que fosse desmascarada a verdadeira natureza da ditadura que nos governa. Ela sempre foi civil e usou por um tempo as Forças Armadas para erradicar a oposição e inventar esses revolucionários da araque que hoje comparecem com suas caras lavadas diante das denúncias. Não existe oposição porque não há mais Brasil Soberano. Agora os inimigos armados chegaram. Onde estão os machões que por décadas judiaram das gerações imberbes e desarmadas?

5 de julho de 2005

BRASIL EM TRANSE




Estamos em plena cena de Terra em Transe. Othon Bastos diz de maneira abrupta e rascante para Jardel Filho, o anti-herói dividido entre a corrupção e a revolução (Glauber sabia de tudo): "Sua irresponsabilidade política, sua irresponsabilidade política, sua irresponsabilidade política". Ao que Paulo César Pereio completa, com sua voz de Brasil profundo: "Seu anarquismo" (várias vezes). A chance de os atuais governantes encaminharem a nação para sua independência vilependiou-se numa sucessão de horrores. Trocaram o sentimento do dever cumprido pela mala preta. O que temiam? Perder a boca que tão duramente conquistaram. A festa junina da primeira dama foi o Baile da Ilha Fiscal do governo Lula. Os foguetes devem ter assustado alguns convivas. Muito longe da cena do pipocar de fogos por toda Porto Alegre às cinco da tarde de 3 de outubro de 1930. O secretário José Simplício, que assessorava o presidente do estado gaúcho, quase foi para debaixo da mesa quando a artilharia se manifestou. "Fique calmo, Simplício", disse Getúlio Vargas com um sorriso tranqüilizador, "é a Revolução, é a Revolução". Tempos de coragem e de transformação, com profundo engajamento popular (só no Rio Grande do Sul, 100 mil voluntários alistados ficaram na reserva dos combatentes). Naquela época havia um país a inventar e apenas uma chance, que parecia mínima e não custava nada, só custava a vida.

OBSCURANTISMO - A culpa da situação atual, segundo Clovis Rossi, da Folha, é, claro, de Brizola e Getúlio. Para ele, o que há é o "acaudilhamento" do PT e um "neo-pai dos pobres", Lula. Outro exemplar do obscurantismo pátrio, Arnaldo Jabor, põe a culpa em Lenin e Maquiavel (também citado pelo oportunismo de Roberto Jefferson). Como se a revolução fosse algo parecido com a tomada do poder por José Dirceu. Como se a fundação da ciência política em Maquiavel, que tirou o exercício de governar da sombra do falso moralismo e da religião, fosse reduzida a pó pela máxima "os fins justificam os meios". A direita adora colocar a política sob o manto do falso moralismo, que é onde ela trafega bem. Foi para "moralizar"a política que se fez 1964, que se inventou Collor e se elegeu Lula. Precisamos de estadistas, não de pastores. De justiça social verdadeira e de nação, para que a colcha de grotões dominada pelo coronelismo seja substituída pela União, a força federal do Brasil Soberano.

TROPAS - Tropas americanas no Paraguai, na região estratégica de Itaipu, como informa Mauro Santayana , é o resultado de 41 anos de ditadura no Brasil, que tem como objetivo principal a entrega do Brasil aos estrangeiros. Primeiro houve aquela onda de que a região da Tríplice Fronteira em Foz de Iguaçu estava cheia de terroristas (cada sacoleiro é uma bomba!). A dívida externa crescente e impagável, como notou Gilberto Vasconcellos, é pura entrega futura de território. Intervenção direta, numa região fronteira à nossa, consolida essa política, que faz dos Estados Unidos os donos do mundo. Contam como aliados não apenas a direita entronizada na manipulação da falsa democracia, mas a pseudo-esquerda brasileira, golpista também. Os movimentos estudantis de 1968, dos quais participei em Porto Alegre, foram desviados para a radicalização irresponsável, o que deu chumbo grosso para a continuidade da ditadura. Hoje Gabeira comenta o fato de que seqüestrou o embaixador americano para libertar José Dirceu. São todos farinhas do mesmo saco. O que une todos os ditadores é o ódio ao trabalhismo, força política surgida nos anos 40, contra o alinhamento com os americanos, que tornara-se obrigatório com a Guerra Fria. O trabalhismo veio de longe, do governo getulista que promoveu a harmonia entre o capital e o trabalho, ou seja, a remuneração justa aos trabalhadores e o lucro sob controle dos empregadores. Nossa revolução francesa foi a de 1930, que inventou a burguesia industrial e o operariado amparado pelas leis trabalhistas, além do voto universal, estendido às mulheres, que na ditadura da República Velha não votavam.

POVO - O povo é retratado na televisão como retardado mental, ao contrário da época do Brasil Soberano, em que o povo, amparado pelas políticas públicas na educação e na saúde, nos deu Baden Powell, Dorival Caymi, Ary Barroso, Luiz Gonzaga, Noel Rosa, entre milhares de outros. A tal de Marinetti, personagem da série A Diarista, é a mulher do povo sem especialização, preparo ou escrúpulos, disponível sempre para o sexo fácil e sem compromisso, como quer o patronato da ditadura. O povo travestido de cowboy em America é uma perversidade visual e cultural, onde as fivelas brilhantes significam a anulação da vida ativa, já que reflete o ouropel das modinhas. O analfabetismo dos personagens, a falta total de livros na vida deles, o merchandising explícito em cada cena, tudo colabora para transformar a cidadania num consumismo sem critérios, tudo pontuado pela falsidade do politicamente correto, que é o alibi da safadeza para "terceirizar" recursos públicos. Para onde foram as DLPs, Divisões de Limpeza Pública? Foram sucateadas em função da grande sacanagem que é a coleta do lixo hoje, na mão de "empresários" fajutos. Empresariar serviço básico é mole. Quero ver gerar uma empresa do nada e lutar por ela toda uma vida, como acontece com muitos brasileiros corajosos, infelizmente ainda em minoria graças ao cerco da tributação sem limites e ao ambiente oposto aos negócios honestos.

RETORNO - O Diário da Fonte, antes que a mídia descobrisse o óbvio, se manifestou algumas vezes sobre esses dois personagens nefastos, José Genoino e José Dirceu, que hoje estão sob o olhar espantado da nação. Vamos reproduzir algumas ocorrências: "A esquerda oficial, personalizada em José Genoino e José Dirceu, pegou carona e hoje se locupleta no estamento, onde dão as cartas graças aos acordos em Washington com os abutres do Império. A esquerda fez um arreglo de elites e assumiu o governo para desmoralizar o povo que votou nela. Abriram assim caminho novamente para a extrema direita, que já bate o punho na mesa exigindo voltar". (1 de maio de 2005). "Agora que todos se convenceram do que se trata o atual governo, é hora de resgatar o mais moderno conceito político do Brasil, aquele que garantiu para os trabalhadores seus direitos mínimos, sucateados pela atual fase do regime autoritário, que encontrou naquela pseudo esquerda dos 60 - tipo José Dirceu - a salvação da própria lavoura. É hora de apagar os preconceitos e apostar firme no trabalhismo, que é uma criação brasileira, apesar das acusações dos oportunistas que conseguiram provar o contrário". (22 de fevereiro de 2004). "Pior político: José Dirceu e José Genoíno. Pela arrogância, pela incompetência, pelo obscurantismo, pela traição, pela burrice". (Lista dos Piores do ano, em 30 de dezembro de 2004). "A declaração de José Genoino que quer o voto não só dos malufistas, mas do próprio Maluf, é da lógica da eleição (quanto mais voto, melhor), mas contraria a lógica do eleitorado. Os malufistas são opostos aos petistas, e declaradamente não gostam de Marta. Não votarão nem atados no PT. Serra deverá ganhar de lavada" (...). (4 de outubro de 2004).

4 de julho de 2005

CAI A MÁSCARA DA DITADURA



Comprar voto de deputado não é democracia, é golpe de estado. Superfaturar serviços prestados às estatais e ao governo implica conivência dos meios de comunicação, que se beneficiam do esquema ao pegar boa parte do butim na cobrança da veiculação. Para isso serve a publicidade: para encher a televisão de propaganda e roubar o tempo precioso da população, que deveria ter acesso à cultura, informação e arte, e tem apenas a exaustiva exposição de mensagens como a da mãe que quer despachar o filho nerd via sedex. Para que propaganda dos Correios? Quais são seus concorrentes? Para que propaganda do governo? Ele não deveria fazer nada mais do que sua obrigação? Para um objetivo muito simples: para fazer o que condenaram em Getúlio Vargas, ou seja, a propaganda maciça que mente para criar falsos mitos e gerar sobras de dinheiro que percorrem aeroportos em malas suspeitas. A crise política atual nos ensina que a ditadura civil existe e é reiterada todos os dias. Existe porque os princípios instaurados pelo golpe de 64, consolidados a partir de 1985, continuam ativos: corrupção, desprezo ao povo, entrega da soberania, manipulação do voto. E precisa ser reiterada para impor-se atrás da máscara da falsa democracia.

MERCADANTE - Por um desses acasos supremos, testemunhei o entusiasmo de Aloísio Mercadante logo depois da eleição que erradicou todas as chances de Brizola de ser o nosso presidente. Era 1989 e eu estava no aeroporto de Florianópolis esperando o meu vôo. Vi o bigodinho gesticulando e falando alto, com um desplante absoluto e à vontade nos assuntos mais altos da República. Nunca o tinha visto antes ou ouvido falar. Sou um péssimo leitor de jornais e o noticiário da TV há tempos me provoca bocejos. Prestei então atenção na conversa (que era gritada para quem quisesse ouvir). Mercadante contava para uma pequena roda o encontro que teve com Leonel Brizola logo depois do resultado da eleição, quando Lula, apoiado por gigantescas mentiras cevadas na universidade e na mídia, como o populismo e outras asneiras, conseguiu vencer Brizola (o atual presidente Lula Lábia estava pronto para perder no segundo turno para Collor). Brizola, segundo Mercadante e seu linguajar de botequim, "estava puto dentro das calças" e recebeu a comitiva petista furioso. Assim mesmo, conseguiram arrancar dele o apoio para o próximo passo eleitoral (sinal que Brizola era um estadista, que respeitava o voto popular). O tom era de deboche. Estavam felizes, pois cumpriam o seu papel: o de enganar o povo em relação ao trabalhismo, acabar com as pretensões de retomarmos o processo interrompido em 1964 (o golpe contra o trabalhismo) e assim aplainar o caminho para o poder, ou seja, o acesso ao butim. Mas havia antes Collor e toda a direita tucana para usufruir das benesses. O PT só seria laureado muito tempo depois, quando chegaria a sua vez de usar a ditadura civil em seu proveito.

RISADINHAS - Roberto Jefferson participou do Canal Livre, da Rede Bandeirantes, e expôs novamente sua contundência, um discurso articulado pela sua liberdade e que ainda não mostrou inteiramente a que veio, pois ficamos imaginando o que prepara em direção a Lula, atualmente preservado por ele. Talvez Jefferson coloque Lula no limbo para poder acabar primeiro com seu inimigo, José Dirceu. O que virá depois? Perdemos a confiança nos políticos há muito tempo, quando eles implantaram no país a noção de que tudo não passa de uma malandragem só, ao atirarem-se pedras uns nos outros. Na educação, os estudantes são bombardeados com falsas versões sobre nosso passado histórico. Colocar todo o período do Brasil Soberano (1930-1964) sob suspeita é um erro crasso de profundas repercussões no imaginário nacional. Desmontar o heroísmo dos principais protagonistas é outro. Desvincular a nação da ética é um suicídio coletivo que expõe agora na mídia suas vísceras. O noticiário seleciona o que quer. Quando teremos qualquer idéia sobre o que ocorre na veiculação de tão gigantesca massa de dinheiro na publicidade? Por enquanto os analistas podem mostrar suas risadinhas cínicas como ostentação de independência jornalística. Mas sabemos que não existe independência. Existe interesses. Ou interésses, como dizia nosso guerreiro Leonel Brizola, o primeiro a tirar o apoio a este governo que acabou com as esperanças de qualquer mudança e que devolveu à direita o carisma que perdera em décadas de ditadura. Dói ver o neto do ACM assumindo as investigações.

2 de julho de 2005

CINEMA NOVO, EVOLUÇÃO E RUPTURA




O Cinema Novo veio de dois vetores. Um deles é o oficialmente aceito, o da ruptura, por meio de Nelson Pereira dos Santos influenciado pelo neo-realismo italiano, e de Glauber Rocha, que bebeu em todo o cinema europeu do pós-guerra, de Visconti a Fellini e Ingmar Bergman (Glauber, é bom lembrar, originou-se do impacto promovido por uma troupe de vanguarda, com Lina Bo incluída, que instaurou em Salvador uma Roma Negra). O outro é mais polêmico, o da evolução, por meio de Anselmo Duarte e seu Pagador de Promessas, filme que é fruto do longo aprendizado do Brasil na sétima arte, incentivado pelas políticas públicas da era Vargas. Entre os dois vetores há um link poderoso: a amizade entre Glauber e Anselmo, antes que rompessem, e que os uniu pelo menos num projeto comum: o de filmar uma peça de teatro de Jorge Andrade. De Glauber saiu dessa peça Deus e o Diabo, e de Anselmo, Vereda da Salvação. Além disso, Anselmo garante que Glauber aprendeu a filmar vendo-o trabalhar no Pagador de promessas. Tudo isso ficou claro para mim ao ler e analisar, como membro da banca a convite do autor, o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) do jornalista Wendel Martins, do Jornalismo da UFSC, o extraordinário Não dá para acreditar neste cara - Histórias e lendas de Anselmo Duarte.

VERSÕES - Estão de parabéns, além do autor, o orientador do trabalho, o prof. Ms. Ricardo Barreto, que conheço de longa data e o prof. Dr. Francisco Karam, ambos participantes dessa equipe maravilhosa do corpo docente da universidade que forma excelentes quadros para o jornalismo pátrio (disso sou testemunha e beneficiário, pois tenho tido o privilégio de trabalhar com vários ex-alunos que saem dali prontos). Na análise do TCC, sobressai-se também a profa. dra. Daisi Vogel, que fez minuciosa análise do texto, apontando qualidades e imperfeições com o um esmero e um cuidado que deveria ser imitado por todos aqueles que se dedicam ao ensino universitário. Minha participação foi encarar esse livro quase pronto como um exemplo de trabalho acadêmico, pois se baseia no que há de mais importante no aprendizado: o de que, na busca do conhecimento, trabalhamos sempre com representações. Começa pelo título: Não dá para acreditar nesse cara é um achado que revela o núcleo da exposição, pois chama a atenção para a evidência de que o texto vai abordar versões. Essa consciência é o caminho mais seguro para esclarecer fatos. Não se deixar iludir de que as coisas são como são, mas que elas são como são vistas e estudadas, eis o fundamento de todo mergulho num tema proposto. O título é também uma ironia e pega carona na falta de credibilidade que Anselmo adquiriu ao longo de seus relatos, quando costuma difundir diferentes roteiros para os mesmos episódios. Argumentei a favor do protagonista, que personifica, como ator, as situações que estão dispersas pelo tempo e reescreve, como todo diretor que se preze, os inúmeros roteiros que deságuam em momentos culturais decisivos, como foi o caso da vitória em Cannes, única do cinema brasileiro até agora.

SOLIDÃO - Mas é também um alerta de que esse Brasil resgatado por Wendel Martins é absolutamente inacreditável. Um Brasil que chega ao esplendor da sétima arte que é desconstruída a partir de 1964, pune o vitorioso e o arrosta para a solidão. A pornochanchada, que foi a seqüência horrenda do Cinema Novo, é o sintoma mais evidente dessa doença política. Wendel consegue trazer à luz, baseado em mais de 30 livros sobre o assunto e árdua pesquisa nos jornais da época, como aconteceu o fenômeno e como Anselmo foi levado contra a parede. Ele destaca a origem do Pagador, no teatro social de intensa dramaticidade surgido a partir da montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues em 1955 e que na época das filmagens do Pagador (início dos anos 60) estava em plena maré alta. No primeiro capítulo, o autor costura essa história utilizando o esquema criativo do esqueleto imantado (conceito que criei para definir a estrutura de um texto), ou seja, segura toda a narrativa a partir de um episódio, a presença de Anselmo na estréia da peça de Dias Gomes, dirigida por Flavio Rangel e que tinha como ator principal, Leonardo Villar, que mais tarde emagreceu doze quilos para fazer na tela o papel do pagador. Depois do teatro, é a vez da industria cinematográfica brasileira, com todas as suas iniciativas e desastres, da Cinédia à Vera Cruz, da Atlântida à produção independente. As origens da trama também incluem as viagens de Anselmo à Europa, onde ele encarna o mito que todo diretor de cinema gostaria de personificar: o cara que esteve nas principais rodas e levou o maior prêmio.

ENTREVISTAS - O mais impressionante é que as versões de Anselmo fazem parte desse mosaico de versões históricas, não havendo descontinuidade entre a fala do personagem (e seus vários papéis) e o resgate dos marcos da produção cinematográfica no Brasil. Isso impede que o trabalho se dedique às revelações mais intimas do encontro entre o repórter e protagonista, com exceção de uma: a de que Anselmo, aos 85 anos, sofre de mal de Alzheimer, fato que a família não gosta que abordem, com toda a razão. A doença prejudicou a memória de Anselmo em duas das quatro entrevistas exclusivas feitas por Wendel, mas há uma diferença: enquanto nas primeiras Anselmo fala sem interrupção, nas duas outras ele é entrevistado com perguntas pontuais, para evitar que se perca. Esses detalhes dão o perfil desse TCC que contribui enormemente para a compreensão não apenas do personagem, mas da história do cinema brasileiro. Na bibliografia, Wendel destaca o livro Esse Mundo é um pandeiro, de Sergio Augusto, fundamental para colocar a importância da época da chanchada.