30 de janeiro de 2020

CADEIA

Nei Duclós


Procura-me onde não digo
a  palavra presa antes do crime
o trabalho duro do segredo
 não por mistério mas porque não escutam
 Talvez pelo temor ao relâmpago
 que a voz da criação desencadeia 
Medo da teia, meu poema inexorável
grito dentro da cadeia



GANGORRA


Nei Duclós


Subo até a autoestima
 despenco para o remorso
 a vida é só sentimento
 a lógica não domina
Gangorra de amor e fúria
 busca eterna de equilíbrio
 sofri para chegar na altura
 de onde oculta a neblina
o sopro do paraíso
 voo de fantasia
pedra que rola fria
no vulcão ainda extinto


CANÇÃO DO PROVEDOR

Nei Duclós

 Quando eu virar vegetal
Saiam da minha sombra
Não reguem minhas raízes
Não varram as folhas mortas
não consertem os galhos
Ou colham as flores

Deixem-me no deserto
Onde o pássaro mais faminto e indiferente
Arrancará meus olhos

Estarei longe
Num mundo sem mãos estendidas
Abutre do meu sonho
Me alimentarei do nada


PURO

Nei Duclós


Um poema tão puro que não me pertença
Porção anônima da natureza
Fruta que tomba sem o desfecho
Pairando entre o mar e o silêncio



ACORDAR


Nei Duclós


Do amor acordei a tempo
Antes do adeus bater o ponto
Preservei-me nas vozes do silêncio
Guardei o poema, anel do sentimento

Não deixo agora a dor cobrar a conta
Ponho na despensa, o esquecimento
Procuro ouro no aluvião da vida tonta


DE ILHA EM ILHA

Nei Duclós


Não preciso rebuscar palavras de exóticos glossários
Desvirtuar o sentido nos dicionários
Quebrar versos como numa pedreira
Entregar-me a platitudes ou transgressões

Basta cultivar o trigo
e colher o ar agradecido
de quem cruzou o deserto

Navegar de ilha em ilha
Até atingir o continente
Sem limite da poesia



PREMONIÇÃO

Nei Duclós


Você não surpreende um cão um pássaro
Eles trafegam em outra dimensão
Captam tua intenção teu sentimento
Sabem de antemão o gesto que farás
O passo em direção da tua vontade
Voam para longe quando imaginas a foto
E já estão no portão sabendo que vais sair

Só teu semelhante ignora
O que vai dentro de ti
E nada sabias do amor
Que foi embora



16 de janeiro de 2020

FURTIVA


Nei Duclós 

Arrisco dizer mesmo sem clima
Num quase remorso do desperdício
Pois muito já disse e fiquei na mesma
Ocupo um lugar sem força de arrimo

Perdi na política e no sentimento
Avesso aos conselhos não sou mais humano
Recebo o vazio como pobre cântaro
Feito de barro e de esquecimento

Na rua mendigo aguardo a lua
És tu, porção de conflito
És minha inimiga, amor sem desculpas
Mostro meus olhos de água furtiva
Teu coração, eu sei onde fica



14 de janeiro de 2020

ÁRVORE

Nei Duclós


Dentro de ti é onde eu moro
Não sendo casa nem ninho
Paredes do teu carinho
Funcionam como refúgio

Colheste meu abandono
Sem dizer água nem vinho
Deste amor onde não tinha
Rosto virado para o leste

Hoje sou teu acolhido
Faço tudo o que não digo
Gozo de flor e ametista
Árvore de brotos mais puros



HÉRCULES

Nei Duclós


Não posso te enganar, enxergas longe
Olhos de lince, águia no topo
Desces o abismo até minha garganta
Foges aflita depois que me esgana
Sou verbo de carne és pomo de ouro
Meus doze trabalhos inclui teu trono
Só volto depois que apagaste meu sonho
Não passo de um celta a enfrentar meu rebanho
Que perdeu-se no mato sob o fogo romano
Princesa de jóias de puro diamante
Esgrimas no poente quando não sou mais humano



12 de janeiro de 2020

IMPRESSO

Nei Duclós


Jornal impresso dava noticias com menos pressa
O furo pertencia à rádio ao plantão do noticiário
Não que o jornal impresso oferecesse só a análise
Disso também se encarregavam as ondas Hertz
E hoje sobram em mil sites
Mas era um cardápio com forma organizado
Em folhas que obedeciam teu cérebro
E ofereciam competência em textos imagems e manchetes
Obra de veteranos escolados e estagiarios de densa mocidade
Amantes da linguagem aprendizes da coragem
Haviam as reportagens apuradas aos trancos pela deadline
Os erros os acertos e as seções a cargo de visionários
Tudo isso lido de manhã num tempo dividido entre a dor e a felicidade
Quando existia o mundo que no fim foi embora
 

CON LA PALAVRA


Nei Duclós

Te dibujo con la palabra
Eres la loca paisage
De mi alma
Un árbol vino en socorro
El sol muere en la luna

 *
Me gusta quando dices no
Y sonries con tu cuerpo guapo
Tengo la culpa por seres tan bella
Hija de un dios hecho de marmol
Y del amor, peligro de pájaro



O TEMPO É SOM

Nei Duclós

Um baterista lendário passa todos os minutos da vida aprimorando sua arte
Assim deve agir quem se dedica à literatura
Não que fique o tempo inteiro se corrigindo ou reescrevendo
Mas colocando seus acertos de talento e experiência no espaço mais esticado de tempo.
Quando se for permanece intacto o som da sua obra
Desdobrando cada letra como num acorde


4 de janeiro de 2020

O QUE NOS DIZEM?

Nei Duclós


Não compreendemos o que nos dizem 
esses ancestrais de pedra
Nem como construíram esses monumentos 
que nos assombram
Ou como viviam antes que algo poderoso
Talvez o próprio Tempo
Os devorasse

Podemos adivinhar suas esculturas 
altares e templos
E seguir seus passos pela água corrente
Que ainda verte em suas eternas entranhas



2 de janeiro de 2020

CRIME

Nei Duclós


És um crime que cometo
Musa sem o dom da profecia
Sabe-se lá de onde você veio
Do eu profundo ou de uma dor tardia

Sou o pastor bruto e mal nascido
Que apascenta o gado reiúno
Vejo-te passar com séquitos de duendes
quando concedes a flor da tua presença

Desisto de te amar, é muito grave
a solidão quando deita raízes
ainda mais que preferes ser princesa
de um castelo feito de granito

Te ofereço mais, a poesia
mas não escutas, essência do divino
deverias abdicar do trono, à revelia
dos teus sonhos e desejos mais íntimos



SEMEEI A SOLIDÃO


Nei Duclós

Semeei a solidão com a palavra exata: o silêncio
Foi em vão a viagem no alheio coração. Sou a passagem
Entre a oração e a fuga sem perdão
Deus é a dor que tive em minhas mãos
Surdo combate