Nei Duclós
O que deixaremos de herança? Nada que possamos levar. Para
quem parte, patrimônio ou nome vale tanto quanto o vento. Não que tudo seja
inútil, e sim que tudo se equivale, tem o mesmo peso. Sendo assim, prefiro escolher
o que parece bizarro ou inalcançável, mas é um sonho. Quero deixar como legado,
para usufruto de contemporâneos ou futuros, uma forma de ficar habitado nos
momentos de vazio. Considero uma arte o exercício de tirar leite, o espírito
habitado, dessa pedra , o tempo em queda
livre para o Nada.
Cada pessoa tem seus segredos para fazer isso acontecer. O
que serve para um não serve para o resto. Essa dificuldade é que me atrai para
a pulsação de um diamante no cosmo escuro. Como fui treinado na desdramatização
brechtiana no Arena de Porto Alegre, como o pouco que aprendi de interpretação
foi um livro de Eugênio Kusnet, como o pouco que sei veio de alguns ensaios de
Barthes e Foucault, como a viagem literária que fiz começa em Monteiro Lobato e
passa por Conrad e Lorca, como tenho um acervo pequeno para tão grande
pretensão, posso dizer que não são as leituras ou a imaginação que preenchem o vazio.
Devemos procurar a essência, o núcleo do sopro que reacende
a brasa. Ele é uma criatura livre de toda influência. O vazio cede quando você
descobre o mecanismo e consegue desmontá-lo. E o vazio é gerado pelo mau uso
das inúmeras linguagens que nos cercam, pelas ruínas do discurso, que inclui
desde o milionésimo anúncio de cerveja até a pentelhésima vez que você ouve
falar em democracia ou qualidade.
O vazio é fruto da linguagem em ruínas. E não basta ler grandes
obras ou tentar criar romances espetaculares ou poemas inesquecíveis. Você
precisa aprender a se distanciar, extirpar de dentro de si o que é implantado
diariamente, não apenas pelo som das vozes e as luzes dos sinais, mas pelos
gestos repetidos e que te formatam. As falas do Mesmo, que circulam nas almas
possuídas pelo vazio, derrubam as pessoas por terra e só sabendo como elas exercem
essa tirania é que poderemos nos livrar delas. Precisamos deixar de escutá-las,
apagá-las na mente por meio da mais poderosa força da expressão humana: a
capacidade que temos de gerar uma linguagem de poder, o poder que nos acompanha
e impregna.
Dizem que Tom Jobim, gênio absoluto e maestro soberano, só
falava traquinagens e passarinhagens nas suas conversas. Habitadíssimo como
criador, e muito crítico em relação aos desmandos em geral, na intimidade ele
simplesmente não assumia o discurso ambiente da economia, política,
publicidade, culturas em geral. Ele falava de passarinhos. Nas
redações,rolávamos de rir com as asneiras que falávamos e no dia seguinte lá
estava aquela edição maravilhosa, seríssima. Pois soubemos desmontar o vazio
por meio da nossa criação suprema, a linguagem habitada que é resultado da
liberdade de pensar e agir
É a capacidade de se expressar sem freio, costurando o
incosturável e defendendo teses impossíveis. Só assim tornaremos habitável o coração
outrora vazio do tempo. Essa arte é o que eu gostaria de deixar como legado. Criar
um contraponto permanente ao domínio. Sem fórmulas, apenas a força da intenção
de fazer acontecer.
RETORNO – 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: “Estrelas
sobre Innsbruck“,foto premiada do austríaco Norbert Span na .3º
edição do Concurso Internacional de Fotografias da Terra e do Céu.