A barra do dia mal se desenha no azul tímido deste céu de litoral. Não consigo mais dormir. A urgência do Brasil me acorda e algo precisa ser dito antes que chegue o 24 de agosto, quando a morte do presidente completar cinqüenta anos. O que dizer depois de tanto que já se disse? O que contrapor ao ganido dos chacais que estampam nas revistas, jornais, televisões, o perfil do homem que eles não compreendem e que tentam devorá-lo com suas palavras sem poder? Pois passarão os séculos e essa canalha irá sumir do mapa sem deixar vestígio. Mas o presidente ficará, no seu posto, e é disso que preciso falar.
DESFILE - Naquele tempo, éramos crianças apenas para nossas mães. Para nossos pais, éramos homens. Eu vestia uma avental branco, com um enorme tope azul no pescoço, calça curta, meia branca e sapato preto. Esse era o uniforme de quem ainda estava no jardim da infância. Não chamávamos nossa professora de tia, chamávamos nossas tias de tia. As palavras ocupavam um lugar seguro, assim como nosso lugar na fila. Formávamos para marchar na majestosa avenida Presidente Vargas, que se espraiava por um longo trajeto, toda embandeirada, com um obelisco pontificando bem no meio dela e ao som das marchas militares. Nosso coraçãozinho batia apressado. A grande emoção não era a Pátria, não era marchar, não era olhar para a bandeira. Não estávamos numa cena do patriotismo oficial. Nossa grande emoção, vestindo aquele avental branco lavado, passado, engomado, que fazia um arco ao nosso redor, não era marchar com nossos pezinhos pequenos batendo firme no asfalto e fazendo movimento com os braços dobrados, rígidos, imitando o gesto cívico das paradas de soldadinhos em movimento. Nada disso nos emocionava realmente, pois como nascemos numa pátria soberana, isso era assunto para os mais velhos. A grande emoção era saber que minha mãe estava no meio do povo, levantando a cabeça para me ver, sorrindo o sorriso orgulhoso das mães, abanando para nós que não podíamos abanar de volta, pois estávamos compenetrados demais. Essa era a festa cívica: ficar compenetrado diante de uma mãe que expunha publicamente o seu grande amor por nós. Só então a pátria fazia sentido.
CENA - Agora compreendo inteiramente a cena favorita da minha infância, quando meu pai me levou, aos três anos de idade, para conhecer a casa nova que ele estava reformando para nós morar. Ele não me pegou na mão, pois eu sou um dos seus filhos homens. Ele abriu a porta do carro para eu entrar e lá eu fiquei ao lado dele. Depois desceu comigo do automóvel e visitamos a obra. Ele me mostrou todas as peças, comentando o trabalho dos operários que se dependuravam em imensas, longuíssimas escadas, que iam até o distante teto. Meu pai tornou-se maior, aos 18 anos, em plena revolução de outubro de 1930. Casou aos 28 anos e fez sua vida na era Vargas inteirinha. Meu pai foi levado pelo exemplo do presidente Getúlio, que provou o quanto um homem podia fazer numa só vida. Os homens daquela época, antes de Getúlio, estavam confinados a um destino mesquinho. Meu pai nasceu pobre e trabalhou desde criança para sobreviver. Mas fez sua vida porque soube ousar. Não limitou-se ao emprego público, tão seguro, que segurou minha mãe até a a aposentadoria. Conheceram-se numa repartição e de lá formaram uma família. Os dois, lindos na sua juventude sem par, posaram para a eternidade aquela felicidade deslumbrante e serena. Meu pai palmilhou o país com seus sapatos branco e marrom, seu terno de linho branco, seu chapéu de feltro com borda desabada. Viveu no país que Getúlio reinventou. Era um cidadão que foi chamado à sua responsabilidade, assim como eu, na primeira infância, fui convocado para conhecer e aprovar a casa (o país em obras!) onde iríamos morar. Fui convocado para o que chamam hoje de cidadania. Quando saí daquela visita, eu não era apenas o filho mimado da minha mãe. Eu já era um homem, pronto para mudar de vida, sob a proteção do pai no país soberano do presidente eleito (estávamos em 1951), Getúlio Vargas.
RÉQUIEM - Ele era escravo do poder, diz Flavio Tavares num documentário que irá ao ar dia 22, domingo, às dez da noite, pela RBS (achei que era na Globo, é na RBS, faz diferença). Conheci Flavio rapidamente numa Bienal do Rio. É extremamente gentil e talentoso escritor. Pessoa marcada pela ditadura de 64, foi torturado e tem uma história digna. Mas está equivocado. Getúlio era escravo do povo, como diz sua carta-testamento, não do poder. Por que minha declaração deve soar ingênua e a do Flavio madura, coerente, científica? Baseio a minha num documento histórico. Até hoje o Brasil sente sua influência, para o bem e para o mal, diz a revista (V)Exame, a mesma que estampou o candidato FHC na capa na véspera da eleição para elegê-lo antes do povo. Por que para o mal? Que mal fez um presidente que entrou na guerra mundial antes dos Estados Unidos, como nota Gilberto Vasconcellos, que foi o único que pegou em armas contra o nazismo e o fascismo e foi punido por isso, sendo agora acusado de nazista e anti-semita? Conheço gente que vive às custas do falso anti-semitismo de Vargas. Ganham os tubos, dinheiro internacional, para provar que o presidente perseguiu judeus. Getúlio reprimiu quem tentou derrubá-lo pelas armas, mas não fez algo torpe como perseguir judeus. Entrou firme na divisão interna do Exército, que estava cheio de células de conspiração, muitas sob influência comunista. Não furtou-se ao seu destino e por isso morreu, para o desespero do povo que, segundo me contou pessoalmente Samuel Wainer, arrancou a Última Hora de dentro dos caminhões que distribuíam o grande jornal popular e para dentro deles jogava o dinheiro dos exemplares. Esse é o povo brasileiro: queria saber se a notícia era verdadeira e o único jornal que tinha credibilidade era a Última Hora. Por isso comprou-o à força, mas não saqueou, não roubou o jornal que estava do seu lado. Pagou pela notícia terrível. E saiu quebrando tudo. A direita morreu de medo e recolheu-se. Tentou o golpe em 1961, Brizola não deixou. Aí veio 1964 e ficamos reféns dessa canalha que até hoje manda no país que Getúlio Vargas construiu e que eles tentam destruir, todos os dias. Por isso digo, sem medo nenhum, de ser chamado disso ou daquilo. Viva o presidente Getúlio Vargas, a quem a nação brasileira tudo deve. E que deu-se um tiro no coração porque não se deixaria humilhar depois de tanta luta. Honra e glória aos heróis da pátria.
SEMANA - A Semana Sérgio Vieira de Mello termina amanhã. Hoje publico mais um poema do meu canto sobre o melhor dos brasileiros.
LIVRAI-NOS DO MAL
Nei DuclósO brasileiro cordial colocou os pés na lama
Livrai-nos de todo o mal
para o sossego na Bósnia
A batalha terminal carregou o melhor homem
Livrai-nos de todo o mal
para haver paz em Ruanda
O Brasil chegou na guerra levando apenas a cara
Livrai-nos de todo mal
Para o consenso no Iraque
Não havia sentinela para defender sua História
Livrai-nos de todo mal
para o sucesso de Angola
Quem dera fossem assim os mandatários da terra
Livrai-nos de todo mal
Marquem reunião em Genebra
Que em Genebra está o corpo do brasileiro cordial
Para lembrar aos senhores
O cerco de Sarajevo
Não lhe façam homenagens sem assinar um acordo
Que Sérgio não sairá
de Timor Leste tão cedo
E se escolherem Nova York para celebrar a trégua
Lembrai-vos do brasileiro
Que foi-se antes da hora
O futuro lembrará deste diplomata estranho
Que forjou sua vocação
No chão de Copacabana
Quem sabe não estaremos um dia na mesma mesa
Livrados de todo o mal
Com Sérgio na cabeceira