31 de agosto de 2004

OS PARTIDOS INVISÍVEIS

As eleições municipais estão focadas nos candidatos, não nos partidos. É o que chamam de populismo, em que indivíduos inflados pelo marketing político conectam-se ao eleitorado indiferente. Os partidos desmoralizaram-se por várias razões. Uma delas é que enriqueceram ao assumir o poder federal. O PMDB queimou-se na época do Sarney, o PSDB nos dois mandatos de FHC, o PT agora no reinado Lula (notem como ele levanta o dedinho para despejar, didaticamente, suas retóricas). Outra é o de terem se transformado em legendas de aluguel, como o PTB e o PDT. Os demais ou estão no mundo da lua, como o PSTU, ou são meras curiosidades, como o Prona e o PC do B. A falta de partidos é o que caracteriza uma ditadura.

ELEIÇÕES - Voto quente é na Fiesp. Quando eu trabalhava lá, costumava dizer aos jornalistas, muito ácidos em suas críticas à torre, que o presidente da Fiesp tinha sido eleito pelo voto direto, ao contrário do jornalista, que foi nomeado para a função que exerce. O racha que houve nas últimas eleições das entidades da indústria significa que lá existe mais democracia do que transparece no noticiário. Os jornalistas não entendem a Fiesp. Primeiro, acham que ela faz parte da indústria. Não é verdade. A Fiesp é uma federação dentro de uma torre de serviços para a indústria. Lá trabalham jornalistas, sociólogos, economistas, advogados e um ou outro industrial. Há uma grande quantidade dos sem-empresas, que continuam lá por direito adquirido. A Fiesp representa um orçamento anual de quase um bilhão de reais.. Os recursos vem do desconto compulsório das folhas de pagamentos das fábricas, 1,5% para o Sesi e 1% para o Senai. Essa dinheirama é dinheiro público, alocado para uma gestora, que é a Fiesp, e deve ser gasto nos dois sistemas, um educacional e outro profissionalizante. Vi no noticiário que a Fiesp sustenta o Sesi e o Senai, é ao contrário. Cláudio Vaz, que ganhou as eleições no Ciesp (Paulo Skaf, do setor têxtil, ganhou na Federação) fez um saneamento famoso nas contas do Sesi e com isso ganhou força nas entidades. Outro equívoco é achar que a Fiesp apita em reposição salarial de trabalhadores, negociação que está a cargo dos sindicatos patronais e respectivas presidências, jamais a cargo da Fiesp, que pode ser no máximo mediadora de conflitos. Há também muita confusão com as siglas: o atual Ciesp nada tem a ver com o Ciesp criado em 1928. Este, foi transformado em Fiesp nos anos 30. O Ciesp atual foi criado depois, para complementar a Fiesp e é uma espécie de clube de empresas (apenas 7 mil num universo de mais de 80 mil indústrias).

TRÂNSITO - Desta vez, voto em trânsito. É um alívio não ter que enfrentar uma longa fila para decidir entre voto branco, nulo ou algo parecido, só para evitar dar força às velhas figuras carimbadas de sempre. Votei décadas contra o Maluf. Resultado: ele continua aí. Outro resultado: elegi o Quércia, o Fleury e outras nulidades. Agora a campanha da Martha é sustentada pela OAS, segundo a Folha, a construtora baiana de notório passado. Tudo isso para quê? Para comprovar que vivemos numa ditadura e o PT é mesmo, como dizia o Brizola, a direita com punhos de renda. Aqui em Floripa vejo de vez em quando o noticiário político. Sempre começo a tremer. Temos uma capacidade enorme de destacar pessoas que nada tem a ver com as próprias palavras. Há uma desconexão entre o personagem e a fala. São coisas independentes. A linguagem na ditadura é desprovida de sentido. Isso serve para a política, o marketing, a literatura.

30 de agosto de 2004

O QUE A MARATONA NOS ENSINA

Nosso maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima não era para estar lá, naquela posição, liderando a mais importante e emblemática prova das Olimpíadas de Atenas, encerradas ontem. O jornalismo brasileiro não o tinha escolhido, portanto não merecia contrariar a pauta. O terrorista que impediu sua vitória (usando vestidinho plissé magenta) apenas completou o serviço da exclusão e o colocou à força no terceiro lugar. Porque o jornalismo brasileiro aspira a ser História, a obsoleta História do momento histórico, pretendendo transformar em eternidade o que é gritantemente provisório. História é outro departamento e surge numa curva, nas pernas de um atleta anônimo.

ESTUDO - A verdade é que os jornalistas brasileiros precisam estudar e aprender, especialmente com Eric Hobsbwan, as principais vertentes dessa ciência em mutação, no livro Da História. Como jornalista, em sua maioria, não estuda, e nem sequer lê livro que conta, fica falando abobrinhas sobre a cultura grega e dando show de incompetência no seu próprio ofício. Porque o jornalismo só pode fazer História quando fizer realmente jornalismo, e não quando pretender ser testemunha ocular da História. A História não se revela a olho nu, não é algo que caia na rede as redes de televisão. É preciso aprender, antes de tudo, metodologia. A que mais me toca é a de Sérgio Buarque de Hollanda, que não contente em nos presentear com seu filho Chico ainda tem uma obra que precisa ser lida inteira. O que faz o grande historiador? Encarna o documento e compõe a História nas águas da linguagem que estuda e consulta. É um trabalho de cão (para mais de uma vida, dizia ele), que fez de Visões do Paraíso a mais importante obra da erudição nacional. Fazer História não é berrar patriotadas diante dos jogos. Façam reportagem: onde estava nosso maratonista antes de ser atacado pela falha gritante da segurança, tão incensada pelo telejornalismo brasileiro? Porque foi isso o que aconteceu: gastaram bilhões em esquemas pirotécnicos de segurança e deixaram escapar o imponderável, o louco, que estava vestido exatamente igual ao dia em que interrompeu a Fórmula Um. Nada viram e deixaram que impedisse nosso querido maratonista de fechar as Olimpíadas com o Hino Nacional do Brasil soberano. Ao deixarem de lado Vanderlei (era só vôlei,vôlei,vôlei), o jornalismo brasileiro comeu a maior mosca da História. Parabéns, Giba, pela sua filhinha. Mas no jornalismo esportivo uma boa matéria sobre esporte é mais adequada do que as lágrimas do papai.

PERDÃO - Vamos visitar essa figura maravilhosa que é Vanderlei. O que fez ele? Sentiu pânico, sentiu medo de morrer. Depois, desconcentrado, exausto, sai abrindo os braços pedindo providências, reclamando da injustiça. Entrou no estádio como um verdadeiro herói, o maior atleta destas Olimpíadas. E a tudo perdoou porque essa é natureza do Brasil soberano, o país que tem consolidada sua soberania e por isso (viu, vice-presidente da República?) está deitado eternamente em berço esplêndido, graças a Deus. Vanderlei ficou feliz com o bronze, com a medalha especial e passou por cima do ouro que lhe negaram. Esse bronze e essa medalha especial suplantaram todos os ouros das grandes potências esportivas. É um gesto de grandeza, de perdão, de quem está por cima, de quem nasceu no berço de um grande país, hoje descosturado, mas tendo intacta ainda sua vocação para a maioridade. Vamos aprender com a maratona e seu herói: surpreenda quem o colocou numa gavetinha qualquer, supere-se, e se o imprevisto arrastá-lo para fora do seu destino, perdoe, porque perdoar é livrar-se do Mal e criar uma nova chance. Fiquei emocionado com a história dos taxistas gregos, que carregaram os brasileiros de graça e pediram desculpas pelo que aconteceu. O Brasil nasceu para mudar o mundo. Ensinou a humanidade a voar, agora ensina todos a vencer. Maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima: honra e glória aos heróis da Pátria.

29 de agosto de 2004

OS ESCRITORES QUE A DITADURA PRODUZ

Para que o país continue sendo saqueado, a linguagem precisa se deslocar da nacionalidade, portanto, do sentido. Esse é o papel da literatura que se consolida a partir da chamada globalização, ou da entrega do Brasil aos estrangeiros. Insurgir-se contra isso é ser acusado de patrioteiro, xenófobo e reacionário. Essa é a grande armadilha dos escritores notórios, que empalmam vastos espaços na mídia (latifúndios de divulgação, fruto da concentração de renda): como tornaram-se uma contrafação da vanguarda, sentem-se á vontade para exercer a exclusão que os compromete até o osso e os enche de dinheiro. Escrever é mentir e tirar a máscara é assumir personagens vazios de realidade. Esse pesadelo é justificado pela crítica comprometida com o círculo vicioso da linguagem artificial, que se alimenta também do artificialismo acadêmico, que reproduz indefinidamente as mesmas teorias pretensamente radicais e que no fundo não passam de álibis para manter os escritores de verdade no ostracismo.

SOBERANIA - O que são escritores de verdade? Os que não se deixam levar pelos modismos e escrevem com o espírito livre. Os mais radicais inovadores da linguagem, os que não fazem parte dessa curriola que se retroalimenta sem parar, compartilham desse ostracismo. Por que não incensam Campos de Carvalho, o genial autor de A Lua vem da Ásia? E J.J. Veiga, de A Hora dos Ruminantes? E Renato Pompeu, de Quatro Olhos? E J.A. Pio de Almeida, da obra-prima As Brasinas? Porque isso não dá dinheiro. O que dá dinheiro é cortejar a falta de escrúpulos dos pseudo-escritores, que fizeram do joguinho de palavras um saco aparentemente sem fundos. Mas o problema é que as invencionices lingüísticas têm um limite e eles não se tocam. Ficam ainda experimentando sem parar, aproveitando a inovação de um Manuel de Barros para manter-se à tona das premiações acertadas em bastidores (ninguém me convence do contrário). A pseudo-vanguarda hoje vitoriosa em todas as mídias nada tem a ver com a intensificação e o aprofundamento experimental e teórico que gerou, na música, a bossa nova, e na literatura a poesia praxis e o concretismo. Mas o que foi intenso e realmente transformador serve de insumo dessas vanguardinhas de araque que tomam conta dos cadernos culturais e, forças!, ainda se dão o luxo de se acharem marginalizados e perseguidos. É tudo mentira, claro. A falsidade é tamanha que, além de tomar conta da cultura oficial (a bem remunerada pelo dinheiro público) ainda conservam as paranóias das perseguições de gerações anteriores. Realmente cansei dessa turma. Mas isso não abre minha guarda para os conservadores explícitos, os que adoram um retrocesso e querem colocar tudo nos termos do século 19. Luto aqui pela democratização cultural. Hoje não há interesse em encarar a diversidade cultural brasileira, o país que teve sua nacionalidade transformada em pó e que acredita em Patrimônio da Humanidade (eles é que são a humanidade, dá para entender?) e entrega o seu subsolo amazônico a grandes corporações. Levaram o ouro e os minérios e depois as estatais. Agora é o território mesmo. Soberania para quê?

LUTA - A falsa literatura (que sobra em exemplos por toda parte) é essa que te tira tempo e em nada te retribui. Que te deixa vazio, irritado. E que não passa de um conjunto de poesias pífias e romancezinhos de araque, tudo fruto do desespero individualista que tomou conta da ex-nação, hoje um amontoado de indivíduos. Esse ambiente não aborda mais os princípios éticos, tornados vilões ou meras excrescências obsoletas; não cuidam da família, extinta em favor da celebração do Mesmo e sua tempestade lúdica desconectada do destino, da eternidade ou da alegria. É um ambiente sinistro e soturno, o dessas palavras que invadem todos os espaços, deixando de lado os valores que não possuem incentivo para proliferar. Quantas gavetas amarelam e vão para o lixo, quantos escritores assassinam a própria vocação, desencantados com tanto horror, com tantas luzes e holofotes sobre nulidades tornadas célebres. Vai ler esse cara tão incensado, vai ver o que ele escreveu! É o reino da baixaria, das palavras sem poder, de âncoras que pegam teu pescoço de leitor e te jogam para o fundo. E quanto mais escatológicos, mais fôfos nos seus olhares apertados, a sugerir reflexão, suas carinhas de anjo, a sugerir juventude, a sua falta de escrúpulos, a sugerir inovação. Cada um no seu espaço, funcionam como vasos comunicantes da linguagem que serve à ditadura civil, formada pelo arrocho financeiro, a exclusão social e o voto de cartas marcadas. Esses pseudo- escritores não serão apeados do poder que hoje usufruem (rumo à Academia de Letras) a não ser pela luta política. É preciso acabar com o insumo financeiro que os sustenta, para que caiam como um castelo de cartas.

SAÍDA - O que vale é o resgate clássico do acervo cultural da nação e o trabalho transformador a partir dessa herança. A língua levou séculos para se consolidar. Possui todas as chaves e não vai ser demitida assim por qualquer merrequinha cerebral e suas tiradas metidas a besta. Respeite os oito baixos do teu pai.

27 de agosto de 2004

A SEDUÇÃO DA DERROTA

Por que perdemos demais nas Olimpíadas? Porque a derrota é mais sedutora do que a responsabilidade da vitória. Vencer pesa demais sobre os ombros de indivíduos desamparados de uma estratégia vencedora, que deveria estar a cargo do Estado. O que faz o poder público? Enche de mordomia os cartolas do esporte e deixa à míngua quem vai vestir a camisa para virar o jogo ( as exceções são os que foram patrocinados). Como reagem os atletas? Vencem quando podem e acabam morrendo na praia escassa de estadistas. O país soberano deveria se impor sobre esse amontoado de individualidades, como faz a China, Cuba, Estados Unidos. Chama-se política pública. Chama-se espírito público. Chama-se asssumir a nacionalidade a partir do topo.

URUBUS - Esse ser daninho, fruto do monopólio da comunicação, instrumento da ditadura civil, chamado Galvão Bueno, como não colocou a mão no ouro para vituperar seus impropérios patrioteiros (pátria para ele é encher as burras de dinheiro) acaba fazendo pouco das nossas atletas. Galvão Bueno encarna aquilo que Nelson Rodrigues chamou de espírito de vira-latas. No fundo, acha que o povo brasileiro não presta, a não ser para servir de insumo para suas alocuções, cada vez mais tendenciosas, desinformadas, atrapalhadas e burras. Vejam o que fizeram com as atletas do futebol: não fosse a Band, nada saberíamos da grande campanha das nossas jogadoras. Pois na hora agá, lá estava o grande pé-frio, louco para colocar a mão no ouro. Não conseguiu, ficou decepcionado. O que fez ele, que ganha milhões, para aquelas valorosas brasileiras que suaram camisa até o último segundo, lutando como loucas, honrando o futebol pentacampeão do mundo e que caíram de pé, aos prantos, como os anjos caem diante das injustiças? O que fizeram com Daiane? Fizeram-na chorar dias antes da grande prova, apresentando seus amigos de infância que foram para a marginalidade, dizendo para ela, como sempre, veja como você tem sorte de estar aqui na nossa mão enquanto essa-gente mata e rouba para viver. Essa-gente que cumpre o destino do povinho brasileiro, parecem dizer. Veja lá, hem Daiane, veja o que te espera, traga o ouro para o nosso bucho senão olha o que vai acontecer com você. Tropa de sabujos asquerosos, falsos jornalistas, vozes insuportáveis onipresentes, que ajudaram a destruir a soberania do país que ensinou a humanidade a voar.

OS MAIORES - Vencemos em algumas duplas e não nas equipes maiores. Os indivíduos seguram, mas não os times. Quando dependemos do coletivo, da nação em miniatura, nada temos. Seis pontos de diferença naquele que deveria ser o ultimo set do vôlei feminino: perdemos. Show de futebol: soccer vitorioso (elas não seriam muito melhores, apesar de levarem o maior banho de futebol da história?). E assim por diante. No salto triplo, onde temos tradição, ficamos em quinto lugar. Não temos estratégia de vitória: medalha conquistada é medalha que deve ser segurada para a próxima olimpíada; cada olimpíada deveria ter como meta uma medalha de ouro a mais. Mas nada disso é discutido. O Brasil usa do velho extrativismo no esporte: trata os atletas de futebol como ametistas arrancadas à terra para serem devoradas pelo exterior (e agora parece que temos a máfia russa rondando nosso futebol, é assim que funciona?). Tivemos a chance de soberania quando soubemos vencer cinco vezes o campeonato mundial (graças à base implantada pelas políticas públicas na Era Vargas e que ajudou a criar uma tradição nesse esporte). Agora estamos á mercê do vento. Parece que somos uma ilha do Caribe, mendigando medalha, enquanto os outros países se locupletam com as vitórias. Não temos chance, ouvi dizer, nado sincronizado é coisa de Primeiro Mundo. Milésimo quinto lugar é uma boa meta, ouvi dizer. A remadora brasileira que chorou porque estava ao lado da campeã me deu urticária. Me lembrei de Cassius Clay, que foi enfrentar o bicho papão e disse antes: sou o melhor, sou o maior, ninguém pode comigo. É na mente que se formata antes a vitória. Somos os melhores. Duvidar disso dá naquilo.

MÍDIA - Contratar fontes no lugar de mídia é um erro crasso. Nós, gente judoca, dizia uma comentarista. O tom monocórdio, a fala corporativa, a falta completa de competência jornalística deixam os telespectadores à míngua. Até quando é preciso repetir? Quem tem área é futebol. A área do jornalista não é o esporte, a economia, a cultura. A área do jornalista é o jornalismo. É ali que ele exerce o seu ofício. Difundir, narrar, compor falas especialistas, é função do jornalista, que é mídia, um canal de transmissão. Fonte se ocupa de dar seu testemunho, mas não pode ficar no lugar do jornalista. Você que esteve lá, Falcão. Falcão nunca esteve lá. O campo é outro, o tempo é outro, as equipes são outras. Falcão vale pelo que sabe dizer, pelo seu poder de mídia, não porque esteve onde quer que fosse. A não ser que seja convocado como fonte.

26 de agosto de 2004

VERISSIMO E O FALSO PARADOXO GAÚCHO

Gosto, como todo mundo, de tudo o que o Luis Fernando Veríssimo escreve. Mesmo quando aborda assuntos que não domina (o que é raro), sai-se sempre bem por meio do brilho das suas generalidades. Por ser um sucesso, fica muito melhor implicar um pouco com ele, especialmente quando Veríssimo, um mestre do consenso cruzado pelo espírito crítico e vasta erudição, escreve sobre algo que pode incomodar muita gente, e portanto afastar leitores, como é o caso de Getúlio Vargas. LFV não afugenta leitores, por isso é super cuidadoso quando dá, por dever de ofício, uma no cravo e outra na ferradura.

CIDADES - O artigo de Veríssimo, publicado hoje no Estadão, defende que o gaúcho é paradoxal (oligarquia rural produzindo populismo urbano). Aborda Getúlio como um caudilho sem estampa e comenta que sua presença física estaria mais próxima de Franco, ditador espanhol. Veríssimo foi criado nos Estados Unidos pelo pai, gaúcho de Cruz Alta, que inventou uma editora, a Globo, para colocar-se entre os grandes mestres da literatura mundial da época, como não cansa de repetir o Wagner Carelli. Entende pouco de gaúcho, pois acha contraditório um Estado agropastoril produzir lideranças anticonservadoras. O Rio Grande do Sul é, ao contrário, um lugar pioneiro da indústria brasileira. Vocês podem rir o quanto puderem, mas é a pura verdade. Enquanto Minas e São Paulo reduziam seus horizontes ao extrativismo puro e simples (café, leite, minérios era hegemônicos, já que a indústria ainda estava na primeira infância nesses Estados) o Rio Grande do Sul dependia largamente do processamento da carne para produzir o charque e enfrentar a concorrência argentina e uruguaia. Os grandes frigoríficos internacionais (indústrias poderosas) instalaram-se no Rio Grande do Sul no século 19. A tal sociedade agropastorial produziu, junto com a cultura guerreira de defesa do território e da afirmação da soberania, um universo urbano exemplar (onde as cidades, seguindo as observações de Sergio Buarque de Holanda em suas Raízes do Brasil, obedecem à proposta espanhola de planejamento urbano, ao contrário da vertente urbana portuguesa, em que as ruas seguem os contornos da paisagem e não seguem nenhuma planificação).

DIALÉTICA - É Jorge Luis Borges que nos ensina que são as cidades produzidas pelo pampa que geram pessoas cultas, que por sua vez criam uma sofisticada cultura fundada na terra. Érico Veríssimo é um exemplo: escritor que fazia sucesso com dramas urbanos, aprofundou-se no mundo rural com sua obra-prima, a trilogia O Tempo e o Vento. O gaúcho nasce na literatura moderna com o pelotense João Simões Lopes Neto, um artífice da linguagem radicalmente criativa, que influiu diretamente em Guimarães Rosa, e com Érico Veríssimo. Getúlio Vargas não foge à regra. Ele não precisava usar bota e bombacha. Trabalhou sempre de terno, como advogado e político. Colocou farda quando fez a revolução, mas voltou imediatamente aos trajes civis. Não foi um caudilho, foi um estadista avançado, que levou para todo o Brasil o que viu no Rio Grande do Sul: a importância da atividade industrial, que se opõe ao extrativismo. Colocava a indumentária gaúcha como Luis Gonzaga, que vivia de terno, colocava gibão de couro e chapéu de cangaceiro: para fazer cultura e política, para trabalhar o imaginário, para identificar-se com o povo, jamais porque era um oligarca populista. LFV acha que Oswaldo Aranha tinha mais o físico de um caudilho do que o baixinho Getúlio. Isso é de um mau gosto atroz, que me perdoe o grande escritor criado em Washington e Nova York e que hoje vive uma boa parte do ano em Paris. Oswaldo Aranha foi secretário-geral da ONU, e tinha o porte de um estadista desde que fez política no interior do Rio Grande do Sul. Era de uma família rica, de origem paulista e impressionou estadistas como o presidente Roosevelt pela verve, o charme e a grande cultura.

POPULAR - Não há, portanto, paradoxo gaúcho. O povo do Rio Grande do Sul está dividido, como todos, entre conservadores e progressistas. Mas pela sua longa experiência guerreira, soube produzir políticos escaldados na luta e que implantaram transformações profundas no Brasil a partir da criação de um estado diferenciado daquele da República Velha, aquele sim uma oligarquia terrível, capitaneado por esnobes que se achavam europeus e desprezavam o povo. Getúlio sabia que era brasileiro. E gostava de fazer parte do povo que amava. Foi revolucionário para poder mudar o Estado e, na seqüência, o país. Soube se impor, soube compor e no momento em que armaram o banquete da sua desmoralização, puxou a toalha da festa. O povo então viu o que tinha perdido. E saiu quebrando tudo.

RETORNO - Tinha errado a terra natal de Erico Veríssimo, sorte que o conterrâneo e parente João Cesar Massia me corrigiu. João César é autor de carta magnífica sobre a Uruguaiana da nossa infância.

25 de agosto de 2004

O FUTEBOL QUE ELAS INVENTAM

A curva, no futebol (e não apenas na gramática) é sempre feminina. Aquele chapéu dado por Pelé na zaga do país de Gales em 1958 é uma saia rodada, típica dos anos 50. A folha seca é um vestido tomara-que-caia (sou do tempo do tomara-que-caia). O lance em profundidade, em curva, que não canso de citar aqui (Gerson, Zenon, Alex) é uma espécie de carta de amor com endereço certo (para o coração da possibilidade de um gol). No futebol jogado por nossas atletas (que a TV chama de meninas) tudo é curva e nisso está a reinvenção do futebol.

DIVERSIDADE - Escrevo antes da decisão contra as jogadoras de soccer (pois elas jogam soccer, esse produto artificial que os machões americanos deixaram para as suas mulheres se divertirem). Não importa ouro ou prata, mas sim o que a pátria de chuteiras mostrou nestas Olimpíadas. Diante dos nossos olhos cansados, acostumados a seguir os lances criados pelos homens, as jogadoras de futebol parecem patinar, perder tempo precioso ao dominar a bola, dar um drible, fazer uma tabelinha, armar o bote e definir o ataque. Mas tudo isso é um preconceito de quem só enxerga o que pensa que vê. Trata-se de um jogo totalmente em curva, que surpreende quando a bola, que parecia perdida, sai dessa criatura que joga sempre em arco, Marta, e estufa a rede. Elas parecem cair quando no fundo estão amarrando uma vitória. Antes de entrarem em campo, a partida tem tudo para ser difícil, mas dali a pouco elas colocam cinco gols nas adversárias. As americanas no primeiro jogo ficaram furiosas quando levaram um banho de bola no primeiro tempo. As americanas, instrumentos de uma política imperial de hegemonia em todo o planeta, aprenderam em escolinhas, são impulsionadas a proteínas na primeira infância, obedecem a uma estratégia formatada em algoritmos, amarram o meio de campo como se fossem as guardiãs dos mares, mas elas possuem um defeito: não são brasileiras, não pertencem à civilização do Brasil soberano. Por isso precisam empurrar nossas atletas, quebrar-lhes a clavículas, mandá-las para o hospital, para poder vencer, pois jamais aceitarão o fato de que sua pretensa superioridade não significa nada diante do povo que ensinou a humanidade a voar.

RAÍZES - O futebol tem uma origem, a Inglaterra, mas suas verdadeiras raízes estão no Brasil. Eles inventaram um jogo magnífico, mas não sabiam exatamente o que isso significava. Eles estão envolvidos em metas, vitórias, hegemonia. Nós conseguimos a hegemonia porque mudamos os parâmetros, aprofundamos a pesquisa do corpo que imita a curva da bola. Com essa sintonia colocamos em movimento o jogo que era para ser engessado pela linha reta, e que no fim é driblado pela saia rodada, pelo tubinho (o drible curto), pela frente única (o gol de cabeça na cara do arqueiro). Driblar é, primeiro, seduzir o adversário para a precariedade da posse de bola. Venha cá ver como sou frágil, como posso perder esse lance, como você poderá me desarmar, me humilhar, me jogar ao chão. Quem está sem a bola acredita e parte para cima. Leva um cambau, um repasse de perna, uma ilusão de ótica. Ele vai ao chão e não acredita. É famoso o lance do Canhoteiro, que tinha alguém grudado na costela o tempo todo. Pois o craque, na hora de uma arrancada, deixou a bola parada e foi adiante, levando o adversário colado nele. Depois voltou e recolheu a criança, já que tinha surpreendido o outro. Mario Filho também conta como um zagueiro famoso manteve a bola presa enquanto os adversários argentinos se engalfinharam todos para o fundo das redes e saíram de lá vibrando com o gol inexistente. Enquanto isso, nosso zagueiro, depois de colocar o pé em cima da bola e as mãos na cintura, saiu com o jogo dominado, para gargalhada geral do estádio.

RESPEITO - Esse clima, que não comparo a molecagem, mas ao diferencial civilizatório, é o que nossas atletas trazem de volta ao futebol. Não que sejam deusas ou coisa que valha. Não que sejam cracaças excepcionais. Mas porque são pioneiras e começaram do nada, assim como Garrincha um dia foi apresentado à bola de meia e em pouco tempo estava deslumbrando o mundo. Porque é disso que se trata: elas foram batizadas agora e trazem a sorte de quem começa, a ginga de quem aprende a gostar do jogo. Elas mostram a chance real de reencontrarmos as soluções que um dia fizeram a nossa fama e até hoje costumam reaparecer, principalmente quando o Ronaldinho Gaúcho faz uma fieira de seis italianos (só pelo prazer, só pela glória). Que todos os jogadores em atividade prestem atenção no que elas apresentam. Se trouxerem o ouro, saiam em praça pública para recebê-las. E mesmo que voltem com a prata (o que não é pouco) merecem que lhes beijem as mãos, em sinal de respeito e agradecimento. Elas fazem parte do país pentacampeão do mundo. E abriram caminho do jeito delas, sem apoio, sem alarde, sem medo. E sem deixar de ser o que são, mulheres de luta, do Brasil que vence sem imitar ninguém.

23 de agosto de 2004

O PASSO A MAIS DA PÁSSARA


Nenhuma palavra te serve de consolo, Daiane, já que não conseguiste a medalha que justificaria todo o teu esforço. Mas eu não poderia deixar de dar meu testemunho. Vi como esse falso jornalismo de comportamento (que desvirtua uma invenção antiga, a materinha humana) te extraiu até o último choro e como os urubus voltearam tua dança farejando ouro. Só que não tinhas uma vitória olímpica para oferecer, Daiane, pois o quinto lugar não sobe ao pódio. Tinhas muito mais, mas disso não cuidaram, porque as atenções estão focadas no que não interessa, no que é sabido até o osso. Jamais atentam para o que vale realmente, o que nunca foi feito, o que é invenção pura, marca registrada da civilização a qual pertences, a qual todos deveríamos pertencer, a civilização do Brasil soberano.

IMPULSO - Homenageaste Waldir Azevedo e seu clássico Brasileirinho, Daiane, para provar o quanto estás mergulhada nas raízes que te formaram, no teu povo sem máscara, na tua vocação para o vôo. Porque todas as outras saltam, Daiane, fazem piruetas, cumprem o regulamento, são perfeitas nas cambalhotas, na queda, nos gestos, no timing. Só tu, pequena pássara, voa de verdade. E porque voas tentaste o desenho mais ousado. E porque voas deslumbras especialistas que não entendem como o peso do teu corpo some quando te despedes do solo. É que eles não entendem a vontade que temos de voar. Homem voa? perguntavam para Santos Dumont menino. Voa, respondia e por isso era alvo das vaias dos outros. Ele descobriu que deveríamos imitar os pássaros não pelo que vemos neles, mas pelo que nos ensinam. Pois aquele brasileiro descobriu que o segredo estava não nas asas móveis, pois nisso todos erravam: até Ícaro bateu asas e estatelou-se no chão. O segredo estava no impulso que as asas, com seu arco, sua leveza, sua forma de triângulo, recebiam. E de onde vinha esse impulso? Do próprio movimento que as asas faziam para impulsionar o vôo. Foi então que Dumont teve a idéia de colocar um motor de automóvel para jogar a nave para a frente, mantendo as asas com suas formas fixas, já que eram duas coisas completamente diferentes que se completavam (e jamais deveriam ser confundidas numa coisa só), o impulso e o arco, o motor e o salto. Hoje parece simples, mas foi preciso um cidadão da civilização brasileira para entender isso. Tu também, Daiane, foste hoje para o tablado não para obedecer aos árbitros, mas para voar. Já tinhas feito a cabeça do teu anjo da guarda, que pulou junto contigo.

POESIA - O impulso foi tão grande, tão ansioso por se mostrar, que no final deste um passo para frente para reequipar teu equilíbrio. Para quem tem vocação para o vôo, para que servem linhas retas delimitando espaços, a não ser para eliminar a surpresa? Foi essa gana, essa vontade de mostrar tua invenção, que te jogou um metro a mais do que deverias, pelo regulamento, ficar. Depois, foi a consciência desse passo, doce pássara, que te deixou prostrada, a dar explicações para as câmaras famintas que te perseguiam para extrair o último suspiro da tua invenção, o vôo perfeito que precisa de um passo a mais para definir o reequilíbrio. Nesse instante, Daiane, só a poesia pode te acolher de verdade. Não a poesia vaidosa dos reiventores da roda, a poesia que recolhe dinheiro com o chapéu da notoriedade, a poesia da exclusão que nos ronda como um cão raivoso. Mas a poesia de verdade, aquele colo onde repousa nossa humanidade e tudo de repente faz sentido. Essa poesia te abraça e nela arrulhas teu desencanto enquanto nós, os poetas, ficamos impressionados com o que nos revelaste sem nada dizer, apenas colocando em forma teu corpo cheio de grandeza e voando para a maioridade da tua vida. Não é a derrota que nos humaniza, Daiane, e nem mesmo a maior das vitórias. O que realmente nos salva é a certeza de que colocamos a vida no que inventamos, que colocamos toda a nossa coragem num único e definitivo vôo. Esse pulo sobre o abismo da criação infinita é que nos enche de graça. E é com essa graça que cruzamos o tempo que nos deram para viver sobre a terra. Voei contigo, hoje, Daiane. Porque me ensinaste a voar e nenhum ouro pagará jamais essa lição majestosa que uma menina pode ensinar a um veterano, que procura ter os olhos livres para encontrar a poesia, onde ela estiver.

RETORNO - Mensagens emocionadas acompanham o texto acima, que a partir de hoje faz parte do selecionado internacional do La Insignia, graças ao editor Jesus Gomez e à torcida do amigo Urariano Mota. O poeta agradece e mantém a homenagem a Daiane na abertura do Diário da Fonte mais um pouco, enquanto estamos atentos ao que rola na mídia sobre Getúlio Vargas, subitamente tornado moda, depois que descobriram o quanto o povo amava o trabalhismo, nos funerais de Brizola. Ontem, no Jornal da Globo, a bomba: Lacerda, por engano, teria assassinado o major Vaz pelas costas e ao dar-se conta da besteira, teria dado um tiro no pé, segundo protagonista da tragédia. A família de Lacerda, claro, nega. Hoje tem continuação no JG.

A FALA DOS SOBREVIVENTES


O documentário de 45 minutos, dirigido por João Guilherme Barone, O dia em que o Brasil parou, sobre a morte de Getúlio Vargas, e que foi ao ar ontem, domingo, pela RBS, honra a TV brasileira e é uma valiosa aula de História. Totalmente fundado nos documentos vivos que são os sobreviventes da tragédia (como algumas exceções, como a do jornalista e escritor Flavio Tavares, que acha Lacerda genial), a obra vale pelo conjunto de revelações, como a reconstituição dos funerais e o impacto do suicídio na vida pública do país.

PERFIL - O telespectador fica sabendo que Oswaldo Aranha ficou duas horas discursando e batendo no caixão enquanto a massa aos prantos a tudo assistia. Vê então as imagens da grande destruição provocada pelo povo em revolta tanto em Porto Alegre quanto no Rio de Janeiro. Conhece melhor a personalidade de Getúlio, afável, bondosa, bem humorada, cheia de grandeza até na intimidade, bem ao contrário do retrato de ditador horrível e mau que pintaram em todas essas décadas em que destruíram sua obra e arrasaram com o país soberano. Ficamos sabendo da fidelidade de Getúlio à Constituição, ameaçada sempre pela direita, a sua visão de estadista, sua ligação profunda com o povo brasileiro. Uma revelação magnífica é o fato de que dentro da própria família Getúlio recebeu a mais poderosa lição de tolerância, pois sua mãe era federalista e o pai, republicano. Essa harmonização dos contrários com que foi criado serviu de parâmetro para sua grande obra política, que foi a pacificação do Rio Grande do Sul e os fundamentos do Brasil moderno, em que o Estado serviu de árbitro entre os conflitos do capital e do trabalho. Ou seja, uma obra política madura, já que Getulio sabia da experiência marxista (enquanto Prestes se entupia de literatura de manual), que em 1930 já tinha mais de uma década de poder na Rússia. Getúlio sabia também do ascendente fascismo (a marcha sobre Roma, de Mussolini, foi em 1924, mas até hoje inspira marchas sobre capitais) e nazista (ascensão irresistível de Hitler, que empalmou o poder em 1933) e sob nenhuma dessas bandeiras colocou o Brasil. Um depoimento tremendo é o do veterano jornalista carioca que explica o Estado Novo: não fosse Getúlio, aquele movimento militar desaguaria na direita e no apoio do Brasil aos países do Eixo, Alemanha e Itália (hoje países tão paparicados, parece que todo mundo quer ser italiano ou alemão, cruzes). Com Getúlio, o Brasil entrou na guerra contra o fascismo e o nazismo, consolidou as leis trabalhistas e implantou as raízes perenes do parque industrial (o que, segundo a obra autobiográfica de Celso Furtado, causou admiração ao grande economista argentino Raul Prebistch, que dirigia o célebre Cepal, instituição onde infelizmente também fez a fama o burro titulado FHC).

OLGA - Voltemos a Olga. Quando Prestes estava na prisão, depois de ter participado de um golpe de estado em que morreram militares brasileiros (o que já justificaria fuzilamento sumário, se formos adotar uma perspectiva militar) sua adorada Rússia firmou um pacto de não agressão a Hitler. Ou seja, seus grandes aliados comunistas é que sucumbiram diante de Hitler, o algoz que enviou sua esposa Olga para a câmara de gás (quando ela morrer no filme, lembrem de Hitler e dos alemães e não de Getúlio). Depois a Rússia teve que enfrentar a sanha hitlerista, que fez a burrada de abrir mais um flanco de luta e invadir o país, lugar onde abandonou seus exércitos, que sucumbiram diante da férrea e heróica resistência de Stalingrado. Enquanto Prestes apoiava a Rússia (que estava abraçada à Alemanha, assassina da esposa Olga), Getúlio enviava soldados para Europa, que voltaram cobertos de glória. A vitória de Getulio serviu para acabar com seu governo. Argumentaram que as forças armadas foram lutar pela democracia mas estavam a serviço de Getúlio, portanto, uma ditadura. Por isso o derrubaram e fizeram eleições. Mas o tiro saiu um pouco pela culatra, pois quem foi eleito foi o Marechal Dutra, apoiado por Getúlio. O problema é que de 1945 a 1950, como escreve Celso Furtado, as contas públicas foram para o brejo e o Brasil voltou a endividar-se, queimando toadas as vantagens que tinha adquirido com sua heróica participação na guerra (fomos os únicos na América Latina que enviaram tropas, já que os argentinos morriam de amores pelos nazistas, tanto é que muitos desses foram se refugiar entre los hermanitos).

DOCUMENTOS - O documentário transmitido pela RBS traz o depoimento das netas de Getúlio, entre elas Celina Vargas de Amaral Peixoto, que dedicou a vida pela preservação dos documentos da Era Vargas e assim salvou a Historiografia brasileira da sanha dos mentirosos que até hoje tentam manchar o nome do grande presidente. Uma sorte foi que o anunciado Carlos Heitor Cony, que deveria dar depoimento, nem sequer apareceu. O que é muito bom. Além de um ignorante completo, Cony é mal intencionado. Ele acaba de ver aprovada para o seu conforto uma pensão polpuda por ter lutado contra a ditadura de 1964 a 1985. Deixem eu rir um pouco, por favor. Cony, o maior paga-pau desse picareta que tem estátua em praça pública hoje, Adolpho Bloch, o ditador da Manchete, veículo porta-voz da tirania, lutou contra...a ditadura. Quá quá quá. O Bloch publicava na Manchete uma coluna que tinha como título Adolpho Bloch escreve. Tarso de Castro, sempre impagável, dizia que o título deveria acabar com um ponto de exclamação. Enquanto Cony se locupletava com os tiranos, Tarso morria só, esquecido, perseguido e incompreendido, depois de ter mudado a imprensa brasileira e dedicado toda sua vida à liberdade. Honra e glória aos heróis da Pátria.

GARRAFA NO CONVÉS



Nei Duclós

Tirei a máscara e descobri quem eu era: o capitão Woods, que tomou conta de mim retorcendo a boca (que era minha, mas era dele) e acendendo com fúria um charuto barato comprado em algum cais pirata e que iluminava meu rosto toda a vez que eu tragava como se estivesse me afogando.

Cheirava a tonel velho o ambiente em que me encontrava depois que incorporei o sujeito.

Meu cabelo quase carapinha grudava embaixo de um boné curto demais para minha cabeleira, que se arrumava como podia no alto da cabeça. A barba rala que descobri coçando com as poucas unhas que me restavam (eu, Woods, tinha todos os dedos comidos por alguma sarna que a tudo deixava em carne viva) poderia espetar uma posta de carne de tão rígida e pontuda.

Sentei num tamborete (que Woods tinha trazido de uma ilha, mas que eu desconhecia ser qualquer objeto normal de sentar) e matutei algum crime. Porque eu era criminoso, essa era a verdade que a máscara traída tinha revelado. Eu comandava um brigue imundo cheio de escravos e ai de alguém levantasse a voz para mim. Trazia uma escopeta na cintura, como se fosse um revólver. Com ela Woods poderia matar qualquer um.

Dei um pontapé na porta e saí para o convés. Havia um murmúrio de doença no ar, um rasqueado de voz cheia de testosterona vencida, um baralho pela metade que decidia alguma parada numa roda escura no canto perto do cordame. Embaixo da lua cheia, e acima de mim, a vela ensebada, gigantesca, rasgada a maior parte. À minha direita, embaixo, um canhão velho esperava a ordem de bombardear o que fosse.

Peguei uma garrafa suja e vazia que estava a meus pés e joguei no canto onde se debatia o baralho terminal. Quebrou-se a garrafa no meio de um ás de espada. Olhos injetados de sangue levantaram-se para mim como se Woods estivesse numa caverna e se deparasse com a morte fantasiada de mil morcegos. Reconheci logo no brilho mau os dois fogos do imediato Tronkle. Ele estava conspirando e Woods precisaria matar alguém.

Um urubu pousou no mastro. Uma ilha se divisava pela massa escura, volume grosso no areão negro da noite. O urubu era visto apenas por mim, que já estava quase acordando.

22 de agosto de 2004

SOB O CÉU DO CRUZEIRO



Antes da liberdade de expressão que adotei aqui no Diário, não tinha noção do estrago que sofri nestes 40 anos de ditadura. Neste longo exílio intelectual e político, tornei-me, supostamente para sobreviver, uma pessoa oposta ao que realmente sou. Precisava agradar aos outros, não chocá-los com minha memórias e posições. Adaptei minhas idéias, comportei-me como gado no curral. Minha única saída foi a literatura. Na poesia, consigo dizer realmente o que sinto e sou. Mas a poesia também foi confinada e esperaram que eu esquecesse completamente de mim para enterrar cada livro suado colocado no ar. Sorte que sou uma criatura nascida e criada sob o céu do Cruzeiro do Sul. Como disse num poema, eu não tenho voz ativa, mas tenho a minha palavra.

SONHOS - Assumir completamente o que chamam de trabalhismo, e que eu batizo de memória política, é a maneira que encontrei de me livrar completamente dessa herança. Livrar-me do que me formou deve ser uma decisão minha e não uma imposição alheia. Não me venham dizer como devo pensar e que preciso me envergonhar de achar isso ou aquilo do Brasil, esse vírus que contraímos cedo e dele adoecemos, como disse ontem para meu amigo Zé Gomes, o maior compositor do Brasil. Não que o trabalhismo, que vingará, pertença ao passado, o passado pertence ao passado. Apenas busco o acervo perdido para resgatar-me, reencontrar-me menino e seguir meus passos até agora, de coração na mão. Pela decisão de dizer, rompi vínculos que criei arduamente com muitas pessoas. Não quero mais que me aceitem, que me perdoem, que me convidem para jantar. Sou um urso que hiberna na sua vontade de mudar o mundo. Gostaria que o país onde vivo não fosse uma armadilha mortal, onde é preciso enfrentar a força animal dos contemporâneos, sempre prontos para dar o bote. Gostaria que o país onde vivo não fosse um jogo de cartas marcadas, onde todo esforço resulta num bocejo. Que não fosse um brinquedinho internacional, pois a simples menção do nome do nosso país já provoca imediatamente gargalhadas (vi isso várias vezes). Gostaria que não exportássemos carne para os russos nem plantássemos tanta soja. A carne deveria ser usada para engrossar os gambitos das crianças pobres e o trigo deveria se espraiar no espaço que o alimento de porco europeu ocupa hoje em todo o território. São sonhos vãos, já que todos estão convencidos do contrário.

MOEDA - Lembro do cruzeiro, a moeda. Um cruzeiro trazia a efígie do Almirante Tamandaré, dois cruzeiros a de Floriano Peixoto, cinco a do Barão do Rio Branco, dez a de Getúlio Vargas. Com essa moeda fizemos nossa infância. Juntamos os trocados para inaugurar uma conta poupança na Caixa Econômica Federal e então comprar as camisetas brancas e a fita azul que cruzava o peito, costurada pela nossa cozinheira, Rita. Com os trocos repassados pelo pai íamos ao cinema, comprávamos revistas em quadrinhos. Depois o dinheiro foi virando pó e ele mudou de cara mil vezes até chegar a essa caução colonial que é o real, nome asqueroso, de retrocesso ao tempo do Reinado. O cruzeiro era nossa palavra chave. Era moeda, era constelação, era letra de música. Sentávamos na frente da casa, na calçada bordada de cadeiras preguiçosas, e ficávamos vendo o Cruzeiro. Hoje vejo novamente todas suas estrelas, como um time perfeito, caindo de cabeça no horizonte que existe bem em frente de casa. Parece uma gaivota, um pássaro dos deuses a cumprir seu trajeto sem dar-nos a mínima. Esse vôo serve de parâmetro para nós, o país do Cruzeiro. Quem dera tivéssemos de novo uma moeda forte, respeitada, uma infância protegida, uma vida adulta plena. Hoje nem existem mais calçadas. Perto daqui, uma estrada serve de rua, avenida, sem acostamento nem nada. Ciclistas e pedestres disputam a poeira da margem da rodovia, cruzada a todo instante por caminhões, carros, ônibus. O caos que se instala no país sem planejamento, atirado ao Deus dará, aberto para o mundo seco por sangue e terra. Somos a Ilha Brasil, situada no Caribe, que esmola ouro na Olimpíada. Nem parece que temos um espaço gigantesco de terra, água e ar. Pagamos um mico brabo por termos nos afastado do nosso destino. Desvirtuamos nosso pensamento, podamos nossa ação. Atravesso a rua dos assassinatos sem olhar para o lado. Estás muito brizolista, me dizem, rindo. Não, nunca fui qualquer uma dessas gavetas da política. Sou apenas uma presença humana sob o céu do Cruzeiro.

21 de agosto de 2004

MEU NOME SERÁ VOSSA BANDEIRA DE LUTA



O melhor, o mais importante, o mais trágico e o mais belo discurso da República é a Carta Testamento de Getúlio Vargas. Neste cinqüentenário do suicídio do grande presidente, o Diário da Fonte traz de volta este documento que honra a nação, pela grandeza do gesto que representa, pela atualidade do conteúdo e pela quantidade de significados que encerra. O texto de Getúlio é denúncia, convocação e um balanço histórico da luta pela soberania do país, destruído pelos mesmos inimigos, que hoje triunfam em todos os cantos, enquanto o povo desce cada vez mais numa espiral de pobreza e violência. Reler a carta com os olhos livres, à luz dos acontecimentos recentes, traz a impressionante revelação sobre nosso estágio atual de miséria intelectual e política. Não haverá nenhum cidadão ou líder que chegue onde Getúlio chegou, em lucidez e coragem, naquele terrível agosto de 1954. Honra e glória aos heróis da pátria.

MOTIVOS - Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.(Neste trecho, Getúlio coloca sua decisão numa perspectiva histórica, justificando seu gesto como o resultado de toda uma vida dedicada à causa popular).

LIBERDADE - Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. (Getúlio se refere, pela ordem, aos 40 anos da ditadura da República Velha; à revolução de 30; ao golpe militar que o derrubou em 1945 e à sua eleição por voto livre e direto em 1950. E aborda as dificuldades que encontrou para levar adiante seu projeto, entre elas a reação ao aumento de 100% do salário mínimo, decretado pelo seu ministro do Trabalho, João Goulart).

POVO - Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. (Getúlio coloca inflação, corrupção e pirataria internacional como instrumentos da destruição da sobrevivência do trabalhador; qualquer relação com o tempo presente não é mera coincidência).

SANGUE - Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.(Getúlio define seu gesto de renúncia, para evitar a ameaça da guerra civil, que ele enfrentou tantas vezes, como um símbolo da sua boa-fé e inocência diante das acusações. A imagem clássica do cordeiro imolado, que atrai a sede do Mal para si, é o batismo do mito que ele construiu em vida).

SACRIFÍCIO - Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.(Getúlio coloca-se como síntese da resistência popular, como referência de transformação e como inspiração para lutas futuras).

VIDA - E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. (Estas frases são tão fortes e inesquecíveis que despertaram dúvidas sobre a autoria. Esquecem que Getúlio, além de homem de ação, era exímio com as palavras e jamais renunciaria à força do seu verbo, especialmente na hora em que decide morrer).

VOCÊ SABE O QUE É DIVISA?


Nei Duclós

Todo mundo fala em divisa, mas ninguém pergunta o que é (jornalista confunde sua função e só sacode a cabeça, pois nasceu sabendo tudo). Perguntei e me responderam. É assim: você, caro exportador, vende seu produto lá fora, que é pago em dólar. Esse dólar não vai para seu bolso, mas para o bucho do Banco Central, que te repassa uma quantia equivalente, mas em outra moeda, o real (que no concerto internacional das nações é não-conversível, é moeda pôdre). Você fica com o real para continuar produzindo e vendendo mais, tudo à mercê do câmbio oficial e paralelo. O Banco Central pega esse dólar que conseguiu com o teu trabalho e paga os juros escorchantes da dívida externa.

Ou seja, o país que importa e consome o teu produto recupera todo o dólar gasto nessa compra. Divisa, portanto, é dólar entregue ao Brasil em consignação, com retorno certo para sua origem. Esse acordo imutável de entrega de soberania via dívida externa foi rompido por Getúlio Vargas nos seus primeiros 15 anos de governo. Mas o José Dirceu, numa viagem a Washington, reforçou o mesmo esquema antes de o PT assumir.

CONTRATOS - Em 1931, primeiro ano do Governo Provisório de Getúlio, o Brasil colocou na justiça os credores e fez uma auditoria completa nos contratos que definiam os empréstimos em moeda forte. Descobriu-se que nenhum deles estava correto, pois não tinham como objetivo o desenvolvimento do país. Houve então longa batalha judicial (com o apoio de outras nações sul-americanas, que estavam no mesmo barco e não eram as paga-paus de hoje) e só em 1943 o governo do Estado Novo conseguiu uma vitória parcial, reduzindo pela metade a dívida.

Antes de Lula assumir o poder, José Dirceu foi a Washington e Nova York e o Guido Mantega foi a Londres, ambos para garantia a sobrevivência do sistema que arrocha o país. Fizeram reuniões a portas fechadas e voltaram com a licença de brincar de governar, desde que mantivessem a crescente e impagável dívida externa. A irresponsabilidade fiscal dos governos brasileiros, que teve seu momento de glória na República Velha e que só foi retomada com Juscelino, foi uma farra que custou nossa soberania.

Depois, fomos obrigados a enxugar as contas públicas de maneira criminosa, pois esse enxugamento não é para o desenvolvimento brasileiro nem para a sobrevivência do povo, mas para o pagamento dos dólares devidos, uma cordilheira de papel pintado que arranca gargalhadas dos gringos. Pois tudo isso fizemos por dois motivos: medo e corrupção.

CORAGEM - Por que não se comentam essas coisas? Porque se isso acontecesse essa canalha que nos governa teria que ser apeada do poder e aí adeus viagens internacionais, futebolzinho na granja do Torto, botox com água oxigenada. Justiça social, espírito público, coragem? Isso tudo sobrava em Getúlio, que teve sua primeira grande lição de injustiça quando foi convencer o veterano político Borges de Medeiros a deixar que um sucessor assumisse o governo do Rio Grande do Sul. Borges já estava há quatro mandatos no poder. Pois o governador disse para Getúlio: Vieram me dizer que serei novamente governador? Ora, como são simpáticos!

Getúlio, leitor de Emile Zola, segundo Joseph Love, autor do clássico O Regionalismo Gaúcho, viu a conseqüência dessa decisão: a guerra de 1923 que por oito meses ensangüentou o pampa. Quando Getúlio deixou o ministério da Fazenda de Washington Luís para assumir a presidência do Estado, sucedendo Borges, que cumpriu o acordo de Pedras Altas depois de mais de 20 anos instalado no Palácio do Piratini, o futuro grande presidente encontrou a chance que procurava.

Pacificou o Rio Grande, uniu as facções até então inimigas e com essa união conseguiu a presidência da República. Getulio entendeu cedo que a revolução no Brasil deveria ser feita com o Estado e não contra ele. Por isso mudou o Estado para compor um novo país. Disso não tomaram ciência os demais revolucionários, que ficaram fazendo catilinárias em quartéis, guerras regionais e calúnias sem fim.

A tudo e a todos Getúlio enfrentou para construir um país moderno, industrializado, com salários compatíveis aos do Primeiro Mundo, com uma economia de desenvolvimento e de austeridade fiscal. Fomos então paparicados por todas a potências.

MERCADO INTERNO - Joseph Love, que fez o melhor e mais completo estudo (até hoje imbatível) sobre esse Rio Grande do Sul que assumiu o poder, aponta as raízes da postura de Vargas. Os governos do Rio Grande lutavam pelo mercado interno, ao contrário de outros estados poderosos, a maior parte voltados para a bocarra gigantesca dos gringos. Getúlio convenceu os milionários superprodutores de café que era mais negócio montar indústrias para vender aqui e lá fora, ou seja, era bem melhor produzir o que consumíamos do que cansar a terra com um grão que desvalorizava. Todas as grandes fortunas, como a de Ermírio de Moraes, se consolidaram na época getulista.

Ao contrário da indústria que gostava de colocar os operários num redil, Getúlio criou as leis trabalhistas que fizeram do operário um cidadão com capacidade de poupar, crescer. São coisas simples que hoje estão fora de moda. Os melhores empregos vão para meia dúzia e sobra esse monte de sub-emprego para a massa gigantesca de desempregados sonhar com uma merreca mensal.

Tudo isso custou a vida a Getulio, pois houve inveja, houve calúnia, houve perseguição, culminando com o suicídio. Posso ver o momento decisivo em que Getulio pesou, de um lado, a sobrevivência física, e de outro, a humilhação que seria ser deposto mais uma vez, depois de ter sido eleito pelo voto direto. O medo que sentiu, a certeza da morte, que inspirou sua brilhante Carta Testamento (o mais importante discurso da República) e finalmente o tiro. A nação soberana cobriu-se então de luto ao perder seu gênio político.

RETORNO - Artigo de Eric Toussaint (pesquisado e traduzido por Ida Duclós) intitulado Brasil, a atualidade da auditoria sobre a dívida externa E a responsabilidade do governo Lula: Durante crise da dívida externa nos anos 30, o Brasil e mais 13 países latinos americanos suspenderam o principal do pagamento durante vários anos - a suspensão foi total em 1931, parcial em 32 e 36 e de novo total em 37 e 1940. Isso foi muito benéfico, porque quando o país negociou um acordo com o cartel de credores estrangeiros, obteve uma redução de quase metade do total da dívida, o acordo final foi fechado em 1943.

A dívida cujo montante alcançou 1.294 mil milhões de dólares em 1930, foi reduzida a 698 milhões em 1945 e a 597 milhões em 1948. Em 1930, o serviço da dívida representava 30% das exportações; em 1945 este serviço representava não mais que 7%. As autoridades brasileiras na época fizeram uso da auditoria para fundamentar a decisão unilateral da suspensão do pagamento. Em 1931, o governo decidiu por meio de um decreto, passar em revista todos os contratos referentes a todos os empréstimos públicos externos, impondo por outro decreto em 1932, a análise detalhada de todos estes contratos. A auditoria permitiu detectar numerosas irregularidades na construção destes contratos.

20 de agosto de 2004

UMA FALSA REVISÃO HISTÓRICA


Agora que a obra de Getúlio Vargas foi destruída e o Brasil voltou a ser o brinquedinho do mundo, graças aos governichos de Sarney a Lula, comete-se a heresia de fazer tardiamente o que a História exigia o tempo todo: encarar o grande presidente sem as picuinhas que mancharam a sua memória. Pena que esse tipo de falsa revisão histórica (que só chega agora, não por coincidência, depois da comoção provocada pela morte de Leonel Brizola) envolva gente de bem como nosso amigo Antenor Nascimento, autor da matéria de capa A Força do Líder, da última Exame. Os textos de Antenor, em sua maior parte, procuram fazer justiça à herança de Vargas. Mas o grave é o tratamento dado à edição e os artigos assinados por FHC, Maílson da Nóbrega e Bóris Fausto.

FECHAMENTO - Antenor Nascimento, jornalista de primeiríssimo time, não coloca em sua matéria que a definição de Getúlio como inventor do Brasil moderno é de Samuel Wainer, que assinou essa frase numa edição especial do Folhetim, encarte da Folha de S. Paulo criado por Tarso de Castro e editada por este e Nelson Merlin. Usa a expressão, infelizmente sem dar o crédito, para dar o tom desta edição 824 da revista. Ao fazer justiça a Vargas, ele destaca algumas colocações importantes como desmentir a acusação de que as leis trabalhistas eram de inspiração fascista. A matéria coloca como fonte das leis a OIT, Organização Internacional do Trabalho, mas Gilberto Vasconcellos já foi mais fundo, pois descobre as fontes das leis de amparo ao trabalhador no Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e em Julio de Castilhos, inspirador de Getúlio Vargas em quase tudo, na maneira de governar, na educação etc. O texto de Antenor é um primor, mas o fechamento (títulos, olhos, legendas, fotos) é de uma má vontade sem fim. Primeiro, adoram colocar o Getúlio apenas de bombacha, como se ele fosse um palhaço fantasiado de gaúcho. Getúlio pertencia a uma geração letrada, sofisticada e rica de jovens intelectuais, conforme podemos ver nas memórias de João Neves da Fontoura, o grande tribuno da revolução de 30. Cosmopolitas, eles tinham acesso à cultura internacional e liam no original os grandes autores da época. Por isso é de gargalhar que Antenor, paulistano da gema, fique impressionado como Getúlio conseguiu liquidar a ditadura civil de 40 anos em apenas um mês, se ele, diz Antenor, era um gaúcho de uma cidade do interior, São Borja. Como si ser gaúcho fosse como ser um macaco, uma criatura ágrafa, que nasce em cima de um cavalo e se afoga em mate.

POVO - Quem nasce em Sampa acha que todo o resto do Brasil é um grotão só. Pois deviam conhecer São Borja, Uruguaiana e ter contato com um pouco de civilidade e civilização. Conheçam esse gentleman, Cabeto Bastos, esse ator magnífico, Miguel Ramos, esse fotógrafo de primeiro time, Anderson Petrocelli, esse músico de vanguarda, Bebeto Alves, esse poeta, J.A. Pio de Almeida e me digam se na fronteira tem gente bruta. Venham apertar as mãos das pessoas da fronteira gaúcha e entendam porque mudamos o Brasil quando nos levantamos em armas como um só homem e nada nem ninguém conseguiu nos segurar. Porque tínhamos Oswaldo Aranha, Batista Luzardo, Getúlio Vargas. Por isso, quando morre Brizola o povo sai à rua para chorar o choro perdido do desespero sem fim. Porque o povo sabe quem sempre esteve ao seu lado. A isso chamam populismo, os bandidos que venderam o Brasil. Além de colocar Getúlio de bombacha, a edição estampa fotos grotescas de Franco, Mussolini e Bismarck, como se Getúlio pertencesse a um biotipo de ditadores totalitários fantasiados. Getúlio era o fino da bossa. Escrevia o fino, era um orador fantástico e tinha um notório bom humor. Aliava essas qualidades a uma seriedade para governar reconhecida em outro texto da edição, da autoria de Maílson da Nóbrega. Este, declara o óbvio: Getúlio jamais teve irresponsabilidade fiscal e quem detonou as contas públicas foi o mineirinho sestroso, Juscelino Kubistcheck, eleito nas águas de Getúlio Vargas (apoiado pelo PTB e PSD, fundados por Vargas). JK, hoje tão incensado, foi quem deu início à dilapidação do patrimônio nacional criado pelo grande presidente. Mailson cita Boris Fausto (autor de outro texto na edição), que reforça mais uma calúnia: Getulio teria reprimido os esforços organizatórios da classe trabalhadora urbana fora do controle do estado atraindo-os para o apoio difuso do governo. Como lembrou uma vez Brizola, quando Lula chegou no ABC, o sindicato estava lá porque Getúlio garantiu a existência da organização com o apoio da polícia, já que os patrões não queriam nada disso.

SALVAÇÃO - Exame traz também um texto absolutamente execrável e mal escrito de autoria do FHC, um pernóstico criminoso que usa expressões como algo fundamental. Parece aqueles redatores ruins que implantam um a rigor para dar consistência ao texto frouxo. Mas FHC é a pessoa que jogou o Brasil fora, vamos pular. O importante é comentar o preciosismo de Boris Fausto, que usa os jargões velhos dos anos 90 para justificar a destruição da obra getulista. Ele diz que as reformas, a responsabilidade fiscal (tudo o que pregaram e jamais fizeram), além das as privatizações (sucateamento da riqueza do povo), a abertura (destruição do parque industrial brasileiro, para implantar a presença maciça da pirataria internacional) substituem o sistema criado por Getúlio. Este estaria defasado e encarnaria o papel de herói salvador da pátria. O tosco senhor esquece que Getúlio é considerado um salvador porque fez coisas concretas a favor do povo e do Brasil, não porque fosse um mágico especializado em ludibriar quem quer que seja. Se fosse um enganador, estaria esquecido. Exatamente porque foi sério, responsável, profundo e um gênio político é que é lembrado e nulidades como Fausto precisam pagar o mico de tentar enquadrá-lo. Fausto, respeite quem morreu pelo país. Honra e glória aos heróis da pátria.

RETORNO - Brizola morreu e a mídia foi alegremente enterrar o trabalhismo. Talvez venha de mais esse equívoco a tranqüilidade com que se tenta dar agora crédito ao presidente Vargas. Como não há mais perigo de se cumprir novamente a profecia de Samuel Wainer (Ele voltará), chegou a vez de relaxar e gozar. Só que o resgate é feito sempre nas águas pôdres da ilusão colonialista, de que temos um destino a cumprir, o de sermos periferia para o resto dos tempos (por isso Vargas, o inventor do Brasil soberano, continua sendo isso e aquilo, na visão torpe dos seus inimigos). O que Lula (que considera os jornalistas uns covardes) está fazendo com a Amazônia é motivo para insurreição popular em todo o país. Lula, num ato nada falho, disse que gostaria de aprender com o ditador da República Dominicana como ficar 37 anos no poder. Vejam aí a ironia: esse tipo de gente que governa o país adora adotar os crimes que eles sempre atribuíram a Getúlio. Lula deve tudo a Vargas e Brizola. Estudou no Senai, fundada na época do Estado Novo e foi fazer carreira no sindicato, garantido por Getúlio com o apoio da polícia. E elegeu-se com o apoio do trabalhismo. O samba não mente: ele pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão.

19 de agosto de 2004

VIGÍLIA DOS HERÓIS EM AGOSTO


O Diário da Fonte está num ritmo de mais de uma edição por dia. O cruzamento da História do país com memória pessoal, o resgate de um sonho de paz que levou bomba no Iraque, um passeio pelos eventos mais importantes da primeira metade do século vinte, tudo isso está na mão com um simples toque do mouse, basta rolar o cursor. Hoje, 19 de agosto, primeiro aniversário da morte de Sérgio Vieira de Mello, encerro a Semana a ele dedicada e publico mais três poemas sobre o melhor dos brasileiros. Este Diário continuará nesse ritmo pelo menos até o próximo dia 24, cinqüentenário do suicídio do Presidente Vargas.


LIMITE

Nei Duclós

Da terra que palmilhaste
Com as botas de peregrino
Do fôlego sem desgaste
Enfim te coube um limite

Não havia outro meio
de impedir a tua sorte
e mesmo já quase morto
Deus sabe que tentarias

Negociar mais um instante
para consertar o destino
Não era outro o motivo

daquele sorriso claro
Senão convencer a Morte
A desistir da visita


SE TE CABE UMA BANDEIRA

Nei Duclós

Se te cabe uma bandeira
Nenhuma outra seria
mesmo sabendo que todas
em teu perfil caberia

Já que dos povos ganhaste
estrelas na biografia
e qualquer nação quisesse
teu registro como filho

Embora tenhas partido
da terra que te amaria
mesmo que te obrigassem

amargar interno exílio
É o pavilhão do Brasil
que deve ficar contigo


NÃO DIGO FATALIDADE

Nei Duclós

Não digo fatalidade
Quando a vontade decide
Não está nas mãos de Deus
O caminhão de explosivos

Não digo fazer o quê
Quando matam o estadista
Não me coloco à mercê
Das imposições do crime

Não me conformo perder
o que de fato já tínhamos
Não posso me recolher

quando a metralha se anima
A História mais uma vez
Não me protege, me obriga

RETORNO - Além de ter criado e manter em constante evolução o estupendo site Consciencia, Miguel Duclós, generosamente, é o webmaster deste Outubro. Não contente, estréia também com seu blog, que de cara traz três posts assombrosos cruzando Matrix com Castañeda e criando massa crítica em cima da Teoria da Conspiração, além de resgatar presenças da cultura clássica na geléia geral da cultura audiovisual. Miguel não está na Internet a passeio.

HOUVE GUERRA, HOUVE MORTE, HOUVE SANGUE



Hoje respondo a maior parte das perguntas que formulei, impulsionado pela incredulidade de uma leitora sobre minhas análises históricas. Sempre fico impressionado com o que os professores não ensinam para os estudantes. Fiquei sabendo que professores de jornalismo dizem que a diferença entre texto de jornal e de revista é que o primeiro é feijão-com-arroz e o segundo tem que dourar a pílula. O primeiro é pão-pão-queijo-queijo e o segundo tem que ter nariz de cera, aquele início nada a ver que tanto cansa os leitores. Esse é um crime pedagógico altamente prejudicial ao futuro da imprensa. Mas vamos à História, que é um enigma nas salas de aula, graças à má fé, ao despreparo e às distorções de grosso calibre.

P - Por que e como Getúlio Vargas assumiu o poder em 1930?
R - Porque o governo da República tinha perdido contato com o país e governava sob férrea ditadura, impondo sua vontade contra as reivindicações populares e de algumas regiões. Havia marginalização geral de pessoas e estados. A pressão armada, via revolta militar e civil, foi violenta desde a renúncia de Deodoro em 1892. Três guerras marcaram os 40 anos da ditadura civil da Primeira República: a de 1893-95, a de 1923 e a de 1924-1927. Getúlio assumiu o poder ao fazer-se líder de uma reivindicação nacional por mudança. Presidente do estado gaúcho, Getúlio contou com a estratégia militar bem sucedida de Góis Monteiro, da liderança revolucionária de seu secretário de Justiça, Oswaldo Aranha, das tropas dissidentes do Exército e das forças estaduais de três estados sublevados (RS, Minas e Paraíba). Houve guerra, houve luta, houve sangue, houve morte. A guerra começou dia 3 de outubro. No dia 24, o presidente Washington Luis foi derrubado pela parte das Forças Armadas até então legalistas, que quiseram assumir o poder. Oswaldo Aranha não deixou. Embarcou num teco-teco e desceu no Rio de Janeiro para impor as condições. Podemos vê-lo alto, jovem, só e com um cigarro no canto da boca, pisando firme na capital da República, para falar com militares de alta patente. Eis um homem de coragem, Oswaldo Aranha, que tem um biógrafo respeitável, o brasilianista Stanley Hilton, autor de um livro obrigatório sobre esse grande personagem, que foi o primeiro secretário geral da ONU e que viabilizou o estado de Israel (sim, ele era getulista, que dizem ser anti-semita, não é mesmo?).

P - Por que Getúlio enfrentou a guerra contra integralistas, comunistas e militares revolucionários nos anos 30?
R - Getulio tornou-se chefe do governo provisório e enfrentou cerrada oposição, a começar por São Paulo, que declarou guerra dois anos depois. Getúlio venceu a luta e conseguiu pacificar o estado. Os comunistas tentaram dar o golpe em 1935, mas o esquema foi mal planejado e o tiro saiu pela culatra. Os envolvidos foram deportados (um deles morreu torturado) e o líder da revolta, Luiz Carlos Prestes, ficou preso por dez anos. Prestes só foi solto em 1945, quando saiu candidato vitorioso ao senado, num mandato que durou apenas até 1947, quando seu partido, o Comunista, foi colocado fora da lei pela presidência do Marechal Eurico Gaspar Dutra. Os integralistas de Plínio Salgado sentiram-se fortes com seu sucesso popular (existiam um milhão de militantes integralistas no país, usando camisa verde e levantando o braço na saudação de inspiração nazista anauê). Cercaram e tirotearam o Palácio. Alzira Vargas (autora do belo livro Getulio Vargas, meu pai) pegou em armas para defender o governo. Os integralistas também foram derrotados.

P - Por que instaurou o Estado Novo em 1937?
R - Getúlio prometeu eleições, mas deu o golpe de estado em novembro de 1937 instaurando o Estado Novo, com Congresso fechado e imprensa censurada. Coincidiu com a época da guerra, desencadeada em 1939, a crise das grandes potências e o ocaso do liberalismo em todo o mundo. Declarou guerra às potências do Eixo (Alemanha e Japão) pressionado pelas manifestações populares depois que navios mercantes brasileiros foram afundados pela marinha alemã. A FEB, Força Expedicionário Brasileira, foi lutar na Europa e voltou coberta de glórias, sendo sua mais famosa batalha a de Monte Castelo (que Tabajara Ruas quer filmar com o sugestivo título A cobra vai fumar, slogan dos pracinhas da FEB; o roteiro está pronto, onde está o patrocínio para nosso primeiro grande filme de guerra?). Os motivos do golpe do Estado Novo, segundo os inimigos de Getulio, são de que esse sempre tinha sido seu objetivo, já que era mesmo um ditador. Estudei pouco o Estado Novo, mas duvido dessa tese. O golpe foi dado por um chefe de Estado pressionado pelas tentativas de desestabilização. Nada justifica o fechamento do regime, mas durante o Estado Novo Getulio viabilizou o parque industrial por meio da Usina de Volta Redonda, transformou o salário dos trabalhadores para níveis idênticos ao dos europeus, pagou toda a dívida externa e o Brasil ganhou prestígio internacional, sendo bajulado por todas as grandes potências. Não é pouco. Seu chefe de polícia, Felinto Muller, é o personagem mais polêmico: relatos (e documentos, acredito) confirmam que ele exercia tremenda censura à imprensa, prendia, matava e torturava. No Estado Novo, o Exército tornou-se enfim unido e foi a principal base de apoio do regime. Eis um período riquíssimo para ser decifrado pelos historiadores, longe da campanha de difamações que envolve o ex-presidente, que era apoiado pela população, tanto é que voltou ao poder em 1950 pelo voto direto.

P - Por que foi derrubado em 1945?
R - Porque havia uma nova ordem internacional e as forças armadas brasileiras tinham sido cooptadas para a divisão que mais tarde seria conhecida como Guerra Fria. O militar nacionalista deu lugar ao militar pragmático, que achava necessária fechar com a parte dita democrática das facções que se digladiavam no mundo. Foi também um golpe militar que derrubou Getulio, mas as eleições diretas saíram, sendo eleito o candidato getulista, Dutra, que governou até 1950. A direita, que tinha se assanhado com a queda de Getulio, ficou furiosa.

P - Como conseguiu voltar ao poder em 1950?
R - Toda a imprensa estava contra ele, mas não o povo. Era um uivo que se ouvia em todo o país, me disse Samuel Wainer, o uivo era a palavra Getúlio gritada pela população, que acorria em massa ao refúgio do presidente em São Borja. Ele voltará, escreveu Samuel Wainer numa reportagem dos Diários Associados. Quando venceu as eleições, Getulio apelidou Samuel de Profeta e garantiu que ele montasse a Ultima Hora para ter uma parte da imprensa enfim a seu favor.

RETORNO - Depois eu continuo. Ninguém faz perguntas? O curso vai acabar por aqui, desse jeito. O título desta edição é uma provocação aos que sustentam a tese de que no Brasil tudo se faz da boca para fora e que nunca houve guerra. Os combatentes que tombaram merecem que os historiadores contem outra História.

18 de agosto de 2004

VIVA O PRESIDENTE GETÚLIO VARGAS



A barra do dia mal se desenha no azul tímido deste céu de litoral. Não consigo mais dormir. A urgência do Brasil me acorda e algo precisa ser dito antes que chegue o 24 de agosto, quando a morte do presidente completar cinqüenta anos. O que dizer depois de tanto que já se disse? O que contrapor ao ganido dos chacais que estampam nas revistas, jornais, televisões, o perfil do homem que eles não compreendem e que tentam devorá-lo com suas palavras sem poder? Pois passarão os séculos e essa canalha irá sumir do mapa sem deixar vestígio. Mas o presidente ficará, no seu posto, e é disso que preciso falar.

DESFILE - Naquele tempo, éramos crianças apenas para nossas mães. Para nossos pais, éramos homens. Eu vestia uma avental branco, com um enorme tope azul no pescoço, calça curta, meia branca e sapato preto. Esse era o uniforme de quem ainda estava no jardim da infância. Não chamávamos nossa professora de tia, chamávamos nossas tias de tia. As palavras ocupavam um lugar seguro, assim como nosso lugar na fila. Formávamos para marchar na majestosa avenida Presidente Vargas, que se espraiava por um longo trajeto, toda embandeirada, com um obelisco pontificando bem no meio dela e ao som das marchas militares. Nosso coraçãozinho batia apressado. A grande emoção não era a Pátria, não era marchar, não era olhar para a bandeira. Não estávamos numa cena do patriotismo oficial. Nossa grande emoção, vestindo aquele avental branco lavado, passado, engomado, que fazia um arco ao nosso redor, não era marchar com nossos pezinhos pequenos batendo firme no asfalto e fazendo movimento com os braços dobrados, rígidos, imitando o gesto cívico das paradas de soldadinhos em movimento. Nada disso nos emocionava realmente, pois como nascemos numa pátria soberana, isso era assunto para os mais velhos. A grande emoção era saber que minha mãe estava no meio do povo, levantando a cabeça para me ver, sorrindo o sorriso orgulhoso das mães, abanando para nós que não podíamos abanar de volta, pois estávamos compenetrados demais. Essa era a festa cívica: ficar compenetrado diante de uma mãe que expunha publicamente o seu grande amor por nós. Só então a pátria fazia sentido.

CENA - Agora compreendo inteiramente a cena favorita da minha infância, quando meu pai me levou, aos três anos de idade, para conhecer a casa nova que ele estava reformando para nós morar. Ele não me pegou na mão, pois eu sou um dos seus filhos homens. Ele abriu a porta do carro para eu entrar e lá eu fiquei ao lado dele. Depois desceu comigo do automóvel e visitamos a obra. Ele me mostrou todas as peças, comentando o trabalho dos operários que se dependuravam em imensas, longuíssimas escadas, que iam até o distante teto. Meu pai tornou-se maior, aos 18 anos, em plena revolução de outubro de 1930. Casou aos 28 anos e fez sua vida na era Vargas inteirinha. Meu pai foi levado pelo exemplo do presidente Getúlio, que provou o quanto um homem podia fazer numa só vida. Os homens daquela época, antes de Getúlio, estavam confinados a um destino mesquinho. Meu pai nasceu pobre e trabalhou desde criança para sobreviver. Mas fez sua vida porque soube ousar. Não limitou-se ao emprego público, tão seguro, que segurou minha mãe até a a aposentadoria. Conheceram-se numa repartição e de lá formaram uma família. Os dois, lindos na sua juventude sem par, posaram para a eternidade aquela felicidade deslumbrante e serena. Meu pai palmilhou o país com seus sapatos branco e marrom, seu terno de linho branco, seu chapéu de feltro com borda desabada. Viveu no país que Getúlio reinventou. Era um cidadão que foi chamado à sua responsabilidade, assim como eu, na primeira infância, fui convocado para conhecer e aprovar a casa (o país em obras!) onde iríamos morar. Fui convocado para o que chamam hoje de cidadania. Quando saí daquela visita, eu não era apenas o filho mimado da minha mãe. Eu já era um homem, pronto para mudar de vida, sob a proteção do pai no país soberano do presidente eleito (estávamos em 1951), Getúlio Vargas.

RÉQUIEM - Ele era escravo do poder, diz Flavio Tavares num documentário que irá ao ar dia 22, domingo, às dez da noite, pela RBS (achei que era na Globo, é na RBS, faz diferença). Conheci Flavio rapidamente numa Bienal do Rio. É extremamente gentil e talentoso escritor. Pessoa marcada pela ditadura de 64, foi torturado e tem uma história digna. Mas está equivocado. Getúlio era escravo do povo, como diz sua carta-testamento, não do poder. Por que minha declaração deve soar ingênua e a do Flavio madura, coerente, científica? Baseio a minha num documento histórico. Até hoje o Brasil sente sua influência, para o bem e para o mal, diz a revista (V)Exame, a mesma que estampou o candidato FHC na capa na véspera da eleição para elegê-lo antes do povo. Por que para o mal? Que mal fez um presidente que entrou na guerra mundial antes dos Estados Unidos, como nota Gilberto Vasconcellos, que foi o único que pegou em armas contra o nazismo e o fascismo e foi punido por isso, sendo agora acusado de nazista e anti-semita? Conheço gente que vive às custas do falso anti-semitismo de Vargas. Ganham os tubos, dinheiro internacional, para provar que o presidente perseguiu judeus. Getúlio reprimiu quem tentou derrubá-lo pelas armas, mas não fez algo torpe como perseguir judeus. Entrou firme na divisão interna do Exército, que estava cheio de células de conspiração, muitas sob influência comunista. Não furtou-se ao seu destino e por isso morreu, para o desespero do povo que, segundo me contou pessoalmente Samuel Wainer, arrancou a Última Hora de dentro dos caminhões que distribuíam o grande jornal popular e para dentro deles jogava o dinheiro dos exemplares. Esse é o povo brasileiro: queria saber se a notícia era verdadeira e o único jornal que tinha credibilidade era a Última Hora. Por isso comprou-o à força, mas não saqueou, não roubou o jornal que estava do seu lado. Pagou pela notícia terrível. E saiu quebrando tudo. A direita morreu de medo e recolheu-se. Tentou o golpe em 1961, Brizola não deixou. Aí veio 1964 e ficamos reféns dessa canalha que até hoje manda no país que Getúlio Vargas construiu e que eles tentam destruir, todos os dias. Por isso digo, sem medo nenhum, de ser chamado disso ou daquilo. Viva o presidente Getúlio Vargas, a quem a nação brasileira tudo deve. E que deu-se um tiro no coração porque não se deixaria humilhar depois de tanta luta. Honra e glória aos heróis da pátria.

SEMANA - A Semana Sérgio Vieira de Mello termina amanhã. Hoje publico mais um poema do meu canto sobre o melhor dos brasileiros.

LIVRAI-NOS DO MAL

Nei Duclós

O brasileiro cordial colocou os pés na lama
Livrai-nos de todo o mal
para o sossego na Bósnia

A batalha terminal carregou o melhor homem
Livrai-nos de todo o mal
para haver paz em Ruanda

O Brasil chegou na guerra levando apenas a cara
Livrai-nos de todo mal
Para o consenso no Iraque

Não havia sentinela para defender sua História
Livrai-nos de todo mal
para o sucesso de Angola

Quem dera fossem assim os mandatários da terra
Livrai-nos de todo mal
Marquem reunião em Genebra

Que em Genebra está o corpo do brasileiro cordial
Para lembrar aos senhores
O cerco de Sarajevo

Não lhe façam homenagens sem assinar um acordo
Que Sérgio não sairá
de Timor Leste tão cedo

E se escolherem Nova York para celebrar a trégua
Lembrai-vos do brasileiro
Que foi-se antes da hora

O futuro lembrará deste diplomata estranho
Que forjou sua vocação
No chão de Copacabana

Quem sabe não estaremos um dia na mesma mesa
Livrados de todo o mal
Com Sérgio na cabeceira

17 de agosto de 2004

HISTÓRIA DO BRASIL URGENTE

Por que e como Getúlio Vargas assumiu o poder em 1930? Por que enfrentou a guerra contra integralistas, comunistas e militares revolucionários nos anos 30? Por que instaurou o Estado Novo em 1937?Por que foi derrubado em 1945? Como conseguiu voltar ao poder em 1950? Por que se suicidou? O que diz a Carta Testamento? Quem era Luiz Carlos Prestes? O que é o tenentismo? Quem era Olga e o que veio fazer no Brasil? Por que acusam Getulio de fascista? Qual a herança do grande presidente? Quem vem lá? perguntavam na revolução de 30. Oswaldo Aranha, era a senha. Quem foi Oswaldo Aranha? A quem Getúlio Vargas continua contrariando?

TODAS AS RESPOSTAS - Vou responder cada uma das perguntas, mas não tudo hoje. Sou convocado para isso pela minha amiga Larissa, do Rio de Janeiro, que me pergunta de onde tirei as informações . Agora, a repercussão do meu artigo sobre Olga serve também para eu entender o quanto devo em explicações sobre o que defendo aqui. Vamos começar pela guerra. A revolução de 30 não foi um acerto entre elites, como ensinam os professores mal formados em todas as escolas do Brasil. Foi um gigantesco movimento popular armado, liderado na área militar por dissidentes do Exército, líderes guerreiros civis e forças estaduais dissidentes; e na área civil pelos governadores de três estados. A revolução resultou na derrubada de uma ditadura, a da República Velha, instaurada logo depois do governo de Floriano Peixoto, no final do século 19, por oligarquias políticas e financeiras. Essa ditadura jogava com eleições de cartas marcadas (havia sempre um conselho de notáveis que mudavam o resultado das eleições, por si só fraudulentas, a bico de pena) e porrete grosso contra as manifestações populares e as revoltas armadas. Um dos presidentes da ditadura, Arthur Bernardes, governou quatro anos em estado de sítio e mandou bombardear por duas semanas alvos civis da cidade de São Paulo. Getúlio foi apoiado, só no Rio Grande do Sul, por cem mil voluntários civis, que se alistaram para entrar na luta. Foi aclamado pela multidão por onde passou, especialmente no Paraná e chegou ao Rio de Janeiro ovacionado pela população da então capital da República. A Revolução de 30 mudou o país. Implantou o parque industrial brasileiro, as leis trabalhistas, o voto das mulheres. Antes de 30, crianças, homens e mulheres, sujos da cabeça aos pés, trabalhavam 14 horas por dia, sem direito a nada, até morrer. Getúlio governou então como presidente do governo provisório até 1933, quando houve as eleições diretas para a Constituinte, que o elegeu presidente constitucional.

EXÉRCITO DIVIDIDO - Para entender a revolução de três de outubro de 1930 (agora as novas gerações sabem porque votarão no próximo dia três de outubro, que em tempos passados era feriado nacional) é preciso focar o exército dividido. Haviam três tipos de militares. Os jovens oficiais revolucionários, que pegaram em armas na década de 20 para derrubar a ditadura civil. São inúmeros, mas vamos citar Luiz Carlos Prestes, Siqueira Campos, João Alberto, Juarez Távora. O estopim para a rebelião foi o sentimento de desonra que experimentaram quando se sentiram ofendidos pelo ditador civil, Arthur Bernardes, mas os brios estavam exaltados desde a época da presidência de Hermes da Fonseca. O segundo grupo eram jovens oficiais reformadores, adeptos da guerra do movimento e da modernização do Exército. Seus ídolos eram os alemães. Dele faziam parte Bertoldo Klinger e Pedro Aurélio de Góes Monteiro, entre muitos outros. E o terceiro grupo eram os oficiais legalistas, que foram derrotados em 30, mas continuaeram ativos depois do movimento. Com a recusa de Prestes de assumir o comando da revolução de 30, Góis Monteiro, que era tenente-coronel, aceitou o convite e tornou-se um dos principais personagens das Forças Armadas brasileiras do século vinte, pois conseguiu unir o exército dividido, união que continua até hoje. Os reformadores ganharam a parada e os revolucionários, com Prestes à frente, perderam.

SIQUEIRA CAMPOS - Getúlio ofereceu o comando militar da revolução para Prestes, o mais prestigiado líder do exército rebelde. Mas Prestes tinha se entupido de cultura marxista doada pelo Partido Comunista Brasileiro, que tinha poucos anos de vida. Achou que deveria fazer a revolução popular e não aquela revolução, que considerava elitista. João Alberto e Siqueira Campos, seus companheiros de Coluna, foram a Buenos Aires, onde estava exilado, tentar convencê-lo. Mas este disse que não faria aquela revolução, causando tremendo sururu no quarto onde estava hospedado. João Alberto e Siqueira Campos saíram alterados da reunião. Pegaram um pequeno hidroavião com um piloto e começaram o sobrevôo do Mar Del Plata, rumo a Montevidéu. O avião caiu. O piloto morreu, junto com Siqueira Campos, o herói dos 18 do Forte (1922). Sua morte causou grande comoção nacional. Desde 1924 estava foragido e era idolatrado pela população. São Paulo inteira foi sepultá-lo. Foi nesse momento que o parque Trianon, na Avenida paulista, ganhou o nome do grande revolucionário. Amanhã continuo. Façam perguntas, senão não consigo focar direito, diante de tantos eventos. Quando passarem pelo parque Siqueira Campos, lembrem de quem arriscou a vida por uma nova nação. Em 1922, era quase um menino, um jovem oficial quando pegou em armas, repartiu a bandeira nacional com seus camaradas e saiu atirando, de peito aberto, contra as forças da ditadura nas areias de Copacabana. Quem poderá com essa raça de leões? perguntou o veterano escritor Coelho Neto no dia seguinte à batalha, que deixou apenas quatro sobreviventes entre os revoltosos, Siqueira entre eles (na hora em que personalidades da ditadura foram visitar os feridos, um dos combatentes arrancou os pontos da barriga para mostrar as vísceras e provar que a luta era até o fim). Quando morreu afogado, estava por volta de 30 anos. Honra e glória aos heróis da Pátria.

ADMIRAR OS CONTEMPORÂNEOS

Perdemos a capacidade de admirar nossos contemporâneos. Todos são campeões em tudo, como diria Fernando Pessoa. Resta pouco espaço para o reconhecimento de verdade e nesse vazio entra a indústria da idolatria fajuta e plantada, dos auditórios vendidos e gritantes. Nos shows, vejo sempre o povo brasileiro de mãos ao alto diante de alguém que agarra o microfone, se retorce todo, franze o nariz e se esganiça num esforço supremo de ser o que jamais será. Enquanto isso, pessoas como Sérgio Vieira de Mello, para brilhar, saíram do país e lá receberam o devido retorno. Admirava-o desde sua excepcional gestão em Timor Leste. Sua morte foi a pior notícia possível. Por isso, nesta semana inventada pelo Diário da Fonte em sua homenagem, publico mais um poema do meu Canto dedicado ao melhor dos brasileiros.

EXEMPLO

Nei Duclós

Não canto os mortos de hoje
Haverá quem cante
Não canto a paz com honra
Haverá quem cante
Não canto os sonhos no front
Haverá quem cante

Canto o brasileiro raro
exemplar distante
Aquele que impôs o diálogo
no lugar de tanques
Aquele que em Timor Leste
trouxe a esperança

Canto seu andar
livre e soberano
Canto seu fervor
sobre o incêndio
Canto seu mergulho
por demais humano

O que o talento faz com o destino
Sérgio é o exemplo.
O que o exercício da soma traz de grandeza!
O que pode dizer de um herói
qualquer poema?

Canto porque não foi em vão
este projeto
que uma civilização engendrou
em campo aberto
Canto porque um só homem
faz diferença
Basta que ele saiba como
compor o gesto:

Esse punho cerrado se houver concreto
Esse abraço sem freio
se chegar gente
Esse nado na praia
por trás do vento

Canto o mar que repousa
na sua infância
A onda que viajou o mundo
e voltou mansa
Canto o que fica vivo
e não o morto

RETORNO - O obrigatório artigo do professor Mangabeira Unger na página dois da Folha, e reproduzido aqui em Santa Catarina pelo jornal A Notícia, aborda a mais poderosa porção da ditadura civil: o que ele chama de bonapartismo negocista. Desprovido de conteúdo, com ênfase no adjetivo e não no substantivo, o bonapartismo negocista é formado pelo grupo palaciano e o bando de aparelhistas emergentes que compartilham a grana. Mangabeira propõe que todos os cidadãos defendam a liberdade de imprensa, não apenas os jornalistas. E insiste num projeto político para 2006. Não vá de novo apoiar o Ciro Gomes. Aposte em quem o sr. acredita, professor. Está na hora de esquecer Maquiavel, o voto útil e outros instrumentos de tortura.

16 de agosto de 2004

O HERÓI AGONIZA DIANTE DO MUNDO


Quando a bomba explodiu no prédio da ONU no dia 19 de agosto de 2003, estava vendo a CNN. Segui então cada passo da agonia do mais brilhante diplomata brasileiro, Sérgio Vieira de Mello, que ainda sofreu por cinco horas até o desenlace. Durante todo o tempo de seu velório por três continentes e seu enterro em Genebra escrevi uma série de poemas. Coloquei na poesia o que significava aquela vida, que surgiu de repente no imaginário nacional e que tinha vindo de longe, das raízes do Brasil soberano e que se mostrava ao mundo em toda a sua integridade e entusiasmo. Nesta Semana Sérgio Vieira de Mello, vou publicar aqui, até o dia 19 de agosto, alguns desses poemas de inspiração lorquiana, mas com luz própria, gerada por um país que se redescobre.

A VIDA PERGUNTA ÁGUA

Nei Duclós

A vida pergunta água
a dor responde fuligem

O cal endurece as mãos
Num corredor de gatilhos

Todo espelho se quebra
ninguém é reconhecido

O Mal não suporta a sombra
que lhe faz o seu carisma

A ligação cai no colo
O poema lança o grito

Se a fala esqueceu a boca
nossas artérias se abriram

A morte pergunta fogo
Nós respondemos abrigo

Um teto bem mais acima
Dos pés que jamais fugiram

Que não desabe a parede
Nas costas desse conflito

A vida pergunta Sérgio
Todos respondem perigo

A SOBREVIDA DE UMA CALÚNIA


Aproxima-se o cinqüentenário do suicídio de Getúlio Vargas, o inventor do Brasil moderno segundo Samuel Wainer, e não por coincidência a Rede Globo faz vasto estardalhaço com o filme Olga, que será usado para incrementar a campanha contra o trabalhismo. A história é verídica, mas sua abordagem baseia-se numa calúnia: a de que Getúlio teria enviado Olga, esposa de Luiz Carlos Prestes e revolucionária alemã comunista, grávida, para o campo de concentração nazista. Getúlio não mandou ninguém para o campo de concentração. A verdade é bem diferente.

FATOS - Quem mandou Olga para o campo da morte foram os alemães, não Getúlio. O presidente brasileiro cumpriu apenas os acordos internacionais da época, pois o país, como todo o resto do mundo, mantinha relações normais com a Alemanha (a Rússia soviética, onde Olga tinha se refugiado antes de vir para o Brasil, chegou a fazer um pacto de não-agressão com a Alemanha nazista em plena Segunda Guerra; o que aconteceria com Olga se ela continuasse por lá?). Dito assim, a de que o algoz e tirano não teria piedade nenhuma para com sua vítima e maquiavelicamente enviou-a para a morte certa, soa como verdade, mas não é. Os fatos são claros e precisam ser conhecidos. Olga participou de uma tentativa fracassada de golpe de estado, a que foi batizada pelos militares de Intentona Comunista. Era procurada pela Alemanha, na época governada pelo Partido Nazista, país que mantinha relações normais com o mundo inteiro, que não estava ainda em guerra. Acontecia o mesmo com a Italia fascista. Na mesma época, anos 30, o filho de Mussolini tinha sido recebido com pompa pelos americanos em Nova York. Ainda na véspera da segunda guerra em 1939, o primeiro ministro britânico Chamberlain voltou de uma visita a Hitler e garantiu que ele não entraria em guerra, pois a Inglaterra tinha entrado em acordo com os alemães. Esse relacionamento de país para país são normais em tempo de paz, precisa dizer? Os campos de concentração só vieram à luz em 1945, no final da guerra.. Não se sabia deles antes disso. Olga tinha se refugiado na Rússia stalinista e de lá veio com Prestes para preparar e desencadear aqui o golpe contra o governo eleito pela Assembléia Constituinte de 1933 em eleições indiretas, com voto de parlamentares eleitos em grande e maciça votação direta em todo o país, inclusive com a participação, pela primeira vez na História do Brasil, das mulheres. Em 1935 o governo Getulio Vargas era legítimo, eleito democraticamente. Repatriou Olga pois assim ditavam os acordos na época. Olga estava sendo reivindicada pela Alemanha. Poderia tê-la condenada ao fuzilamento, já que queria matar para chegar ao poder. O que aconteceu com Olga é de uma brutalidade sem par, mas o fato não justifica a calúnia.

TEIMOSIA - A abordagem, que transparece agora no marketing da Globo, servirá para ajudar a destruir o trabalhismo (o único movimento político que condenou a Rede Globo à morte, por meio de declarações explícitas de Leonel Brizola). É notória a lembrança de muitos jornalistas veteranos de que o Roberto Marinho entrava na redação do jornal Globo e exibia para as visitas aqueles a quem chamava os meus comunistas. Os comunistas brasileiros são um fracasso político retumbante e fazem parte da reserva de argumentos usada para acabar com a memória de Getúlio Vargas. Até mesmo Prestes teve a grandeza de reconhecer Getúlio depois que saiu do cárcere em 1945. Isso significa que não havia essa maldade explícita do presidente brasileiro, como quer transparecer a propaganda. Prestes cometeu um erro grave, que contraria não apenas o bom senso, mas o próprio marxismo-leninismo: recusou-se a participar da revolução de 30 por achar que ela era burguesa. Desconhecia o fato, ou não quis levar em consideração, que os bolcheviques participaram da revolução democrática que derrubou o Czar e colocou Kerenski no poder em fevereiro de 1917, oito meses antes, portanto, da revolução comunista. O pior é que Prestes recebeu dinheiro de Getulio para fazer a revolução e acabou desistindo, sem devolver nada. Depois, refugiou-se na Rússia e voltou com um núcleo de conspiradores profissionais para derrubar o governo eleito. Foi uma burrada monumental, fruto do seu sectarismo e teimosia. Se tivesse aceitado a liderança militar em 30 estaria mais próximo do poder do que nunca e aí teria melhores condições de fazer a revolução que sonhara.

GUERRA - Mas tudo isso é muito complicado para fazer sombra à mensagem que o filme Olga, baseado no excelente livro de Moraes, vai distribuir pela população brasileira. A de que tínhamos aqui no poder um tirano nazista, o que é uma calúnia monumental. Getulio sempre enfrentou a conspiração que procurava desestabilizar o seu governo. Foi atacado militarmente por comunistas e integralistas (estes, cercaram o palácio do governo). Enfrentou uma guerra contra São Paulo que durou oito meses. Por muito menos, governos ditos democráticos fazem cerrada censura à imprensa. Bastou uma reportagem no New York Times para Lula mostrar o que sabe sobre liberdade de imprensa. Vejam o que está acontecendo agora, quando tenta-se institucionalizar alguns instrumentos poderosos de legalização da ditadura civil, como a lei da Mordaça. Quando foi presidente eleito por voto direto nos anos 50, Getulio enfrentou toda a imprensa unida contra ele, com exceção da Ultima Hora de Samuel Wainer, que revolucionou os jornais brasileiros. Li esses dias a declaração de uma testemunha dizendo que Lacerda jamais foi ferido no pé, já que correu como nunca no atentado da rua Tonelero. Em 1954, jogaram o presidente eleito por voto direto contra a parede (Getúlio não sabia nada sobre o atentado), obrigando-o a se suicidar. O dia da sua morte, 24 de agosto de 1954, é a data magna do luto nacional. Sussuravam para mim, que mal acordava da cama: o Getúlio se matou, o Getulio se matou. Abri a janela do meu quarto, que dava para a rua. As pessoas choravam e tinham aquele gesto com os pés que declaravam o quanto não sabiam para onde ir. A cidade inteira chorou e Porto Alegre foi incendiada pelo povo. No Rio de Janeiro e em todo o país a multidão extravasou a sua raiva contra o movimento que enfim levou nosso grande presidente para a tumba. Ainda não conseguiram enterrá-lo totalmente. A Rede Globo promete um especial dia 22. Nenhuma pá de cal vai cobrir de desonra o presidente que fez do Brasil uma nação soberana.