Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
31 de dezembro de 2009
NOVO
Nei Duclós
Novo
Palavra de louça
Em giz na lisa lousa
Novo
Com as forma das mãos
Dos anjos no sono
Novo
Roupa de algodão
Sopro de voz rouca
Novo
Curto cobertor, brim tonto
Porto no sonho
Novo
Pecado no mundo louco
Verão, extremo outono
Novo
Palmas exangues
Abraço posto
Novo
arte irmã, mana
Louvo
RETORNO – 1. Um poema para cruzar a meia noite e chegar em 2010 em forma. Para todos os que seguem este Diário da Fonte, de onde brota o coração e os miolos. 2. Imagem desta edição: a menina carrega o artesanato somado ao poema. 2010, Ano do Artesanato + Poesia. Foto de Juliana Duclós.
30 de dezembro de 2009
MIDIA BLOG
Quando entrei oficialmente para a profissão, em 1970, depois de ter passado pela peneira de focas promovida pela Folha da Tarde, dirigida pelo Valter Galvani, freqüentávamos o prédio da Caldas Junior, empresa que publicava, além da FT, o decano Correio do Povo, e que era uma referência física importante em Porto Alegre. Hoje faz parte das construções históricas, mas na época era uma espécie de Meca para onde se dirigiam não apenas os jornalistas gaúchos, mas os estudantes, os políticos e toda a fauna humana existente.
A Caldas Junior era um portento, imbatível, líder em tudo,até mesmo no rádio, já que, como escreveu Rubem Mauro Machado no seu romance A Idade da Paixão, “o som da Guaíba era, para mim, o som de Porto Alegre”. Sua gráfica a chumbo foi um impacto quando a conheci dois anos antes, em 1968, recém chegado na Ufrgs. Os pagamentos eram feitos em cash, num guichê idêntico aos que víamos em filmes antigos de Hollywood, até mesmo de faroeste. Vinha o holerith, o salário, com todos os trocos e centavos. Reclamávamos que era pouco. Mal sabíamos que escrever como profissão remunerada um dia poderia desaparecer.
Naquele tempo escrever era um esforço muscular. Máquinas pesadas, carrilhões barulhentos, laudas grossas de papel, cestos cheios de leads estropiados, mesas cobertas de tudo que é tralha, telefones pretos tilintando sem parar, cafezinho e fumaça, gritos e xingamentos, pressão de todos os lados. Hoje, com os recursos digitais, você pode derrubar um governo ou tomar o Suriname pelo twitter entre dois goles de água gelada. Facilitou geral e já existem bons exemplos que, com as ferramentas disponíveis, tentam lembrar os veículos que por mais de um século foram a cara do mundo em constante transformação e guerra.
Os blogs são hoje exercícios importantes de comunicação, de grande diversidade, concorrendo até com as versões digitais dos jornalões (que não passam de superblogs, cheios de mini-blogs dentro). Afora os blogs que se consolidaram como padrão do gênero, como o do Noblat e o do Nassif, temos aqui em Florianópolis excelentes produtos desta mídia, que não é mais nova, mas ainda tem muito caminho a percorrer. Destaco alguns, notórios.
Meu amigo Sergio Rubim, jornalista da pesada, faz seu Cangablog uma referência de notícias importantes para a região e o leitor brasileiro, destacando a política local, as barbeiragens políticas nacionais, sem abrir mão de um perfil autoral, pois sempre há um texto saboroso sobre suas andanças, ambiente doméstico e relações familiares e de amizade. Há o terremoto Tijoladas de Mosquito, várias vezes censurado, que chega a atingir cinco mil visitas diárias, em que o responsável Amilton Alexandre (se recuperando de um enfarto) abre a metralhadora giratória contra os desmandos locais, sem nenhuma auto-censura. Há ainda no blog o reforço da TV Mosquito, que são inserções no You Tube.
Destaco também o Coluna Extra, do jornalista Alexandre Gonçalves, meu ex-colega na editora Empreendedor, sempre na vanguarda das informações sobre Comunicação. E há blogs pessoais com um bom acervo de posts sobre vários assuntos como o de Dauro Veras, ou ainda o Balaio de Siri, da jornalista Elaine Borges, que diz bastante sobre a ilha e seus encantos e problemas. E, last but not least, o excelente Deolhonacapital, http://www.deolhonacapital.com.br/ do jornalista Cesar Valente (foto acima), que conheci ainda nos anos 70 na redação do jornal O Estado, de Florianópolis, e que recebeu recentemente reforço dos meus amigos Mario Medaglia e Emanuel Medeiros Vieira. Pois Deolhonacapital é o blog mais bem resolvido em termos de mídia blog e fazia parte de um pacote de serviços para o Diarinho, de Itajaí.
Um desencontro entre o editor e a empresa acabou vitimando Deolhonacapital, referência de leitura, um pacote forte de concentração de mídias. Dezenas de comentários lamentam o fim do blog. É uma pena, mas todos acreditam que o bom Cesar Valente vai voltar em plena forma, em outro veículo que irá certamente criar. É o que esperamos. Mídia blog é atualmente a grande força da imprensa. Não tem perigo de piorar.
RETORNO - Imagem de hoje: Cesar Valente. Tirei daqui.
29 de dezembro de 2009
NESTA ÉPOCA
Nei Duclós (*)
Hábitos estranhos tomam conta das pessoas nesta época do ano. Manchas vermelhas enormes desfilam em corpos indiferentes, como se queimadura de último grau em peles brancas fosse a coisa mais natural do mundo. É tocante ver as vítimas na fila do sorvete com essas manchas, numa espécie de resgate dos tempos em que não se falava em camada de ozônio ou protetores solares.
No fundo, os costumes formatados por gerações anteriores continuam firmes diante das novidades. Expor-se em demasia faz parte de um acervo que inclui celebrações, encontros ruidosos, fogos. Mas principalmente o álibi perfeito para furar toda espécie de compromisso. Tudo se justifica com a expressão “nesta época”. A encomenda que foi despachada para um lugar e acaba misteriosamente num depósito suburbano de megalópole remota. O serviço prometido e ansiosamente aguardado que cai no buraco negro da viagem súbita dos encarregados, ou então do estranho sumiço dos clientes. “Fecharam tudo e foram embora” é o que dizem os vizinhos para abnegados funcionários em pânico.
A certeza de ganhar um extra, por parte de quem está empregado, e a possibilidade de faturar algo fora da rotina, para quem vive os altos e baixos do trabalho autônomo, repassa coletivamente uma ansiedade sem precedentes. Cortiços alugados a preços de hotéis cinco estrelas. Ou faxinas e jardinagens urgentes imploradas com lágrimas ao custo de uma viagem a Paris. O excesso de migração para os grupos que emitem ordens ou fazem pedidos acaba valorizando os remanescentes que resolvem tudo.
Assim mesmo, sobrevive uma qualidade imponderável, a boa vontade. Não se trata do “espírito” que obrigatoriamente deveria tomar conta do ambiente hostil até duas semanas atrás. Mas da índole de pessoas que encontramos por acaso, na nossa faina de tomar providências antes que o ano acabe. É quando vemos o quanto vale um gesto que desarma um pesadelo, dado muitas vezes de graça.
O encantador é que essa surpresa faz parte da natureza de quem soube ser solidário quando todos procuravam apenas satisfazer seus prazeres e necessidades. Sobreviverá à festa, assim como existia antes dela. Precisamos é ter a sorte de encontrar os que cultivam o amor no deserto. Talvez possamos ser como eles, imitá-los de todas as formas, de janeiro a dezembro.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada neta terça-feira, dia 29 de dezembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Navio, foto de Regina Agrella. 3. Dois textos meus, um sobre John Reed e outro sobre Claudio Favieri, estão na lista Da vida para a história da seção "2009 - Memória ", do Observatório da Imprensa. "Para manter viva a lembrança dos que se foram, mas deixaram suas marcas na história da imprensa e do jornalismo", diz o site.
26 de dezembro de 2009
CASO SEAN: O BRASIL NO RALO
Não contesto o direito do pai biológico David Goldman querer o filho Sean para perto de si. Nem os argumentos de que a Justiça brasileira não é confiável, tanto é que o caso passou pelas provas “naturais” de exaustivos meandros. Também não vou ficar defendendo uma poderosa família de advogados brasileiros que queria impedir a volta o garoto de nove anos para seu país natal. O que realmente me torra o saco é a maneira desprezível com que o Brasil é tratado num caso desses, em que a poderosa indústria de espetáculos americana fez uma celebração da própria nacionalidade num evento familiar.
O que me satura os gargomilhos é ver Hillary Clinton e Obama se meterem no assunto, como se fossem os arautos dos direitos humanos, logo eles, representantes e gerentes de um império que não respeita ninguém, invadindo quando e como querem de um lado e batendo no peito a devoção de todas as virtudes de outro. O que realmente me enche a paciência é ver como os americanos passaram por cima da mãe biológica do menino, que o teria “seqüestrado”. Eliminam a fonte do evento, o amor materno, que queria o filho junto a ela, mas não queria mais o marido. Falam em seqüestro o tempo todo, como se o Brasil fosse lá roubar o americaninho e o trouxesse para o meio da selva para entregá-lo à gula dos jacarés.
O que me irrita profundamente é essa palavra que os americanos tornam nojenta, “home”. Vocês sabem o que é home. É o único lugar do mundo que vale, a América, o único país que conta, na visão tosca deles. Tirar o menino das garras do lobo mau foi uma bem sucedida cruzada americana patriótica, como se a criança não fosse metade brasileira e, pelo tempo que ficou entre nós, quase toda brasileira, tanto é que mal fala inglês. Tudo isso não conta. Eles cuspiram no Brasil de tal forma que isso vai, inapelavelmente, respingar na formação de Sean. Ele terá problemas de identidade, já que sua maior porção não presta, é brasileira.
Isso não foi levado em consideração por esse fracasso político chamado Hillary Clinton, que só está no cargo em função de um ressentimento familiar, pois ninguém me tira da cabeça que ela queria ser presidente para desforrar-se do marido, que a traiu na frente do mundo inteiro. Hillary não tinha uma carreira política, até resolver tê-la, quando explodiu a grande farsa do seu casamento. Mulher ressentida (motivos lhe sobram), é totalmente inábil politicamente, tanto é que teve de voltar atrás do caso Zelaya. Nos momentos decisivos ela não apita, então sobra para que se meta em falsos seqüestros de anjinhos americanos por maldosos ricaços brasileiros.
Ela deve ter seu quinhão de poder. Na guerra, precisa obedecer ordens, mas em questões familiares, bate com o pau na mesa, já que está cheia de razão depois de ter sido desmoralizada publicadente pelo marido metido a comedor. Bill gerou Bush com sua boquete. Foi um desastre, apesar de ser, pessoalmente, um gênio. Considero Clinton uma das cabeças mais brilhantes do nosso tempo. Mas colocou tudo a perder.
Obama, acusado de não americano, com nome de terrorista árabe, precisa mostrar que é alguém da home, da América como lar e por isso meteu também o bedelho. É fácil desmoralizar o Brasil, que tem um governo panaca se pavoneando pelo mundo, que abre as comportas das perdas internacionais, já que os juros estratosféricos remuneram nababescamente os especuladores da pirataria global. O governo atual compra a mídia, dominada pela bandidagem financeira.
Por isso agimos como gado em direção ao corte. Não mugimos nem tugimos. Deixamos que desmoralizem o país. Não aparece uma voz forte dizendo que não houve seqüestro. Houve um drama familiar. Uma separação, a opção da mãe de trazer o filho para cá, a morte dela em função do parto do segundo filho e a vontade natural dos avós quererem que Sean ficasse. Isso poderia ser resolvido sem que a nacionalidade americana tratasse o caso como uma invasão do Comando Delta para resgatar a vítima.
Deveria haver civilização, já que tudo isso envolve uma criança. Mas houve apenas barbárie. É justo que Sean fique com David. O que não é justo é o Brasil fazer papel de palhaço, não por culpa do seu povo ou de sua biografia, mas porque somos governados por merdas, que fingem independência, mas basta um poder estrangeiro roncar para todos irem se meter embaixo da cama. Não temos estadistas, temos poltrões. Não era preciso dar uma de machão para depois voltar atrás como uns filhos da mãe. Bastaria analisar o caso à luz do Direito, dar a mão à palmatória, arrumar tudo para que as duas famílias pudessem compartilhar o amor do menino.
Do jeito que foi feito a caca, poderá haver seqüelas. Deus queira que não, mas tudo indica que sim.
RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.
24 de dezembro de 2009
ALÔ NO LUGAR DE ADEUS
Há excesso de despedidas por parte de tuiteiros e blogueiros, como se o mundo digital fosse idêntico ao espaço físico, quando fechávamos as portas do estabelecimento e sumíamos. Por mais que você se afaste, sempre haverá um micro no ermo, uma conexão feita a martelo, que dará para atualizar os mails e até mesmo fazer uma edição rápida. Não se trata de fanatismo, é outra coisa.
McLuhan, na sua famosa sacada, dizia que as rodas eram a extensão do pé humano. Podemos aplicar o mesmo princípio ao universo digital. Nele, criamos uma série de desdobramentos de nós mesmos. Veja o que acontece por todo o canto: jornalistas que foram jogados fora estão mais atuantes do que nunca, incomodando horrores, pois agora dispõem de espaços virtuais sem chefes nem patrões. Falam o que querem e quando bem entendem. O mesmo com escritores. A gaveta acabou, você pode publicar seu poema on line, enquanto trabalha nele.
Você pode ser aquele sujeito calado que vai até padaria comprar pãozinho e mal cumprimenta as balconistas. Ao mesmo tempo, fazer furor com um texto inesquecível, uma denúncia decisiva, uma carta aberta às autoridades. Ninguém dá nada, ao vivo, para um blogueiro porreta. É até maltratado, pois ninguém sabe o que faz em sua casa-escritório, onde cultiva um fluxo interminável de criações, que se espalham como fogo no milharal.
Uma revolução dessas não está confinada a departamentos, a salas fechadas em edifícios imponentes. As sedes luxuosas e gigantescas dos grandes jornais estão virando pirâmides do antigo Egito. Hoje você pode editar o NYT com um teclado e um mouse. Então não precisa fazer como os apresentadores de TV que se despedem dos telespectadores enquanto o público continua onde está. Nunca entendi o até amanhã do final dos noticiários. Como assim, vocês dizem adeus e nós dizemos alô, como nota eternamente John Lennon?
A liberdade proporcionada pela internet serve para difundir hábitos obsoletos. Olá, estou aqui, estou saindo, dizem as pessoas no Twitter. Que importa se chegas ou vais? Está tudo 24 horas por dia no ar. Tantufas se entras por aqui ou sais por ali. Todos estão dentro, e ao mesmo tempo, fisicamente, fora. Acho redundância tanto salamaleque quando todos podemos partir diretamente para o lead. Não se trata de falta de educação, simplesmente isso não faz mais sentido. Um Papai Noel blogueiro distribui presentes até em datas improváveis.
Talvez precisemos de um tempo para nos adaptar. Seguir uma trilha para esquecer o computador. Acampar no deserto, mergulhar numa praia remota, subir o Aconcágua para relembrar o sentido da vida. Eu desejo boa sorte a todos, porque continuo sempre no mesmo lugar, onde nunca estive antes e de onde ninguém parte. Encontrei finalmente a estação ideal dos amores eternos, os que não possuem despedidas. Aqui não é aeroporto de Casablanca para você blefar dizendo que seu grande amor será feliz com o herói da guerra. Aqui você se entrega e ao mesmo tempo em que acena do trem está correndo atrás dele.
É como diz aquele poeta :
"EU SOU TREZENTOS
Mário de Andrade
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo."
RETORNO - Imagem desta edição: a rua Direita, em São Paulo, tantas vezes palmilhada por Mário de Andrade. Tirei daqui.
23 de dezembro de 2009
“OS BONS, COMIGO”
Ser bom está fora de moda, mas não em desuso. Não é valorizado e já vi gente pedindo desculpas por divulgar suas vitórias escolares. Há um medo geral de ser confundido com os nerds. Todos querem ser o boquinha torta da esperteza, a caricatura publicitária do Ligador. O grande crime é ser flagrado como trouxa. Isso diminui as chances para o exercício da bondade, ou pelo menos, sua visibilidade. Esconder-se para fazer o bem é o limbo para onde foram atiradas as pessoas boas, enquanto os vivarachos batem no peito dizendo-se paradigmas da correção.
Lembro quando essa onda começou. Éramos bonzinhos na época em que se amarrava cachorro com lingüiça. Ser mau não pegava bem. Ninguém admirava um canalha. Mas aí foi implantada a cultura da malandragem. No início era uma reação à falsidade geral e começou a ser vista como algo positivo, legal de embarcar. Mas tornou-se hegemônica e hoje é obrigatória. Ou você é malandro ou você é um abombado. Como em terra de escravos todo mundo quer ser senhor, em ambiente de espertos todos são o último grito da sacanagem.
Existem sinais evidentes do sujeito que se esforça em ser o que não é. Um dos vícios mais comuns é dirigir olhando para o lado. Enquanto o carro vai a toda velocidade, o motorista in, por dentro, torce o pescoço e olha para as garotas na parada de ônibus, para as mulheres carregando bebês, para as senhoras ao celular, para as adolescentes indo para a escola. O sujeito pode também estar ao telefone, falando aos berros ou sussurrando alguma cantada. Ele se sente admirado, o mau da turma.
O cara bom sente desconforto em prejudicar qualquer pessoa. Teme pela vida dos outros, é solidário nos momentos mais críticos, não pede reconhecimento e não finge que é o grande amigão para tirar vantagem. Ele faz o bem e não deixa pistas. É possível que o beneficiário, se for um cretino, e normalmente é, esqueça a fonte de sua atual fase de sucesso, coloque na gaveta oculta de desmemória aquele gesto salvador, achando que só ele conta.
Tenho atualmente inúmeras manifestações a meu favor e sempre tive. Fui e sou cercado por pessoas boas. Claro que topei com todo o tipo de traste, de gangsters sem limites, de falsos amigos e tudo mais. Mas a maioria se pauta pela decência. Sofrem na mão dos carrascos e quando tem poder, abrem generosamente as portas. Vimos isso muitas vezes. A quantidade de aproveitadores que cercam alguém de boa índole no poder impressiona. São moscas ao redor do doce. A vítima, que toma os outros por si, não se dá conta. Ou quando enxerga, resolve agir estrategicamente.
Não há estratégia que vença a maldade. A única coisa que funciona é chute na canela. Ou você dá um tranco ou deixa-se enredar pela súcia. Vi várias vezes pessoas boas serem erradicadas de empregos sem se dar conta. Quando viram, estavam na rua. Aí foram fazer a última visita ao local de trabalho e quem estava aboletado na sua mesa? O melhor companheiro, o sujeito amigo de todas as horas. Acontece sempre.
Mas por ser vocação, a bondade não diminui diante das decepções. A pessoa boa continua com sua grandeza diária, encantando tudo o que toca. Por ser humana, ela também comete erros, deslizes e pode até fazer maldades. Mas sente remorso, essa lixa ardida da consciência. Volta atrás, pede desculpas. E assim reforça vínculos muitos antigos, os da amizade e até do amor. Porque o amor é, no fundo, o laço eterno da bondade humana, seu fruto mais nobre.
Que fique entre nós essa percepção de que somos maioria e que não baixamos a guarda por mais que tentem nos transformar em soldados do outro lado. Combatemos daqui, onde nada nos derruba. Deixe que nos chamem de babaca. Nossa esperteza é de outra natureza e tem vida longa. Renasce sempre, rodeada pela inocência. E voa sobre o mundo distribuindo presentes em salas iluminadas por uma alegria infantil. Esse é o mito que alimenta a sobrevivência da espécie, num universo bruto, onde corre bala. Somos esse atalho que surge no meio do tiroteio.
“Por aqui”, dizem os que existem para evitar o pior. “Os bons, comigo”, como diz André Falavigna quando convoca para o pôquer no “Cambuci profundo”. Significa: os melhores, ao meu lado. Somos um timaço. O jogo vai recomeçar. Vale até blefar. Não vale é achar que bandidagem é um royal flush.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: royal flush, tirei daqui.2. O sistema de comentários mudou e ainda estou me enrolando com a nova versão do Haloscan. Por isso, Virson Holderbaum não conseguiu postar seu comentário e as palavras do amigo Wladir Dupont, por um erro por aqui, foram apagadas. Para o Virson já enviei um e-mail e agradeço ao Wladir, que está no seu blog http://wladirdupont.blogspot.com/, que merece ser visitado. Disse ele: "Nei, gostei do seu blog, ácido, crítico, como deve ser." Grande Wladir. Também recebo de Carmen Silvia o seguinte: "Nei, querido Poeta! Vivas às soldas do amor, um laço Soldado de futuro!!!Um abraço carinhoso, amei a Crônica: Os Bons Comigo!!!"
22 de dezembro de 2009
MENTE ANIMAL
Nei Duclós (*)
O cachorro se concentra na mente do dono para adivinhar intenções e se antecipar. Desenhamos na mente nosso gesto seguinte, o animal lê e se adianta. Também tem a história do cão que ficava horas quieto esperando e só se movimentava no instante em que o dono, a quilômetros de distância, decidia voltar para casa.
Trazer o chinelo ou rolar quando lhe ordenam não tem valor nenhum. Eles fazem isso só para nos agradar. No fundo, a raça canina é a única dos ditos irracionais que ficou próxima a nós. Nossos ancestrais tinham mais sorte e sabedoria. Sabiam que o puma se instala no pensamento da caça para capturá-la. Não é apenas a espreita, como nos ensinam os documentários sobre a natureza. É outra coisa.
Não é também a “inteligência”, espécie de concessão que fazemos às criaturas ditas inferiores. Os animais possuem a chave do que perdemos. Tente matar a mosca que lhe incomoda. Ela sempre encontra uma saída, por mais que você se esforce. A não ser que uma ferramenta o ajude. Mas o truque, de mãos limpas, é esvaziar a mente, como nos ensinamentos zen. Isso faz com que a futura vítima relaxe, pois acha que você não está a fim de matá-la. Aí um gesto brusco acaba pegando-a em pleno vôo. Obama mostrou isso esses tempos num programa de TV.
Quando o perdigueiro “amarra” a presa, acontece um duelo mental. O cachorro está trêmulo de tensão. Todo seu corpo se concentra no futuro movimento da perdiz. O olho da ave está dividido entre a visão do algoz e o vôo iminente. Ela então arrisca. No exato segundo que tenta dar o salto, o cão se atraca. Quem acompanhou os adultos no meio do pampa, armados de espingardas e cartucheiras, sabe disso.
Os pioneiros aprenderam truques para aprisionar os animais apenas com a mente. Bastava sacudir pedras numa panela no momento em que a onça urrava nos arredores. Repetir o gesto duas ou três vezes era suficiente. No dia seguinte, ela ainda estava lá, acuada, presa num espaço imaginário. Quem contava essa história era Orlando Villas Boas, que mergulhava no rio junto com a comida, para escapar das varejeiras. Um dia ele revelou o que um índio lhe disse sobre a existência de um “céu do céu”.
Não se trata de primitivismo ou magia. É, antes, o acervo de maravilhas que jogamos fora enquanto perdemos tempo discutindo política brasileira.
RETORNO - 1. Crônica publicada nesta terça-feira, dia 22 de dezembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.2. Imagem desta edição: tirei daqui.
20 de dezembro de 2009
OS MELHORES DE 2009
Desta vez, não são obrigatoriamente os melhores deste ano duro, difícil, complicado, mas o que de melhor pôde ser visto, ouvido e lido nos doze meses de provações que passamos, da crise mundial à marolinha perversa, da chuvarada aos ventos a 300 por hora. Ou seja, o que passou por aqui neste ano e merece destaque absoluto, não o que foi lançado em 2009, certo? Você verá o quanto estou por fora do que aconteceu este ano. Não faz mal. “Meu tempo é quando”, como disse Vinícius de Moraes.
BLOG
RENZO MORA - Disparado o melhor blog do ano. O escritor cool que “envelhece mal” traz de volta a idade de ouro do humor escrachado e fino, o melhor e o pior da América e tem tudo para ser visto como um Chuck Norris digital, mas ao elencar suas admirações, que vão de Frank Sinatra a David Letterman, mostra que não é bem assim. Além de Renzo, destaco todos os blogs linkados de maneira permanente aí ao lado. É uma avalanche de informações e criatividade.
JORNAL
MOMENTO DE URUGUAIANA, o jornal que me trouxe de volta o hábito de ler jornal. Com uma equipe da pesada, Ricardo Peró Job e Vera Ione Molina fazem um semanário na medida certa, reportando Uruguaiana e analisando o mundo, sem medo da internet e apostando na sobrevivência da espécie, o impresso bom e velho de guerra. O fato de alguns textos selecionados do Diário da Fonte serem publicados no Momento não interfere na seleção. Eu bem poderia me calar, como costumo fazer.
ROMANCE
OS PASSOS PERDIDOS, de Alejo Carpentier - Lançado em 1953, soeste ano mergulhei nesta obra-prima absoluta, o livro que dispensa a leitura de todos os outros. Parece exagero, mas não é. A saga do sujeito que vlta aso país Nnatal, mergulha na selva e volta para a cidade é tudo o que Garcia Márquez queria fazer, e fez – pois de ler este livro rasgou o que tinha escrito e recomeçou o Cem Anos de Solidão.
POESIA
MAR ABSOLUTO E RETRATO NATURAL, de Cecília Meireles. Dois livros reunidos num só, numa edição dos anos oitenta da Nova Fronteira, é a porta para muitos assombros. Todo gênio escreve sobre a linguagem e Cecília nos traz sua arte magnífica distribuída em paisagens e águas profundas, numa incomparável demonstração de força. Todos os outros que me perdoem, mas esta criatura é a verdadeira Poeta Maior.
CINEMA
O SONO TRANQUILO DA MALDADE, de Akira Kurosawa, ou The Bad Sleep Well, de 1960. Quase tudo o que é feito no cinema vem de Kurosawa. Entre inúmeras peças fundamentais da Sétima Arte, esta obra coloca no ralo a falsa percepção que temos dos honoráveis executivos que se “suicidam” depois de um escândalo. São assassinados. Impressionante que o mestre denunciou isso há 50 anos e o expediente maroto continua sendo usado, de fato
MÚSICA
MILES DAVIS - Sou a última criatura sobre a terra que se rendeu ao gênio. Descobri tardiamente que ele é um construtor, como o poeta João Cabral, que define seu projeto sonoro com precisão e soberba, sem dar a mínima para a vontade alheia. Não pretende emocionar e nem fala à razão. Faz música de alto calibre, que é uma coisa que nos falta nesta época de cretinicie sonora, analfabetismo melódico, burrice ruidosa etc. No video selecionado, Miles Davis e John Coltrane.
São muitos os destaques, mas aponto dois, fundamentais: @BrazilTour, um banho de informação sobre o Brasil para o mundo, e @tfsolomon, a atenção permanente para o que há de mais importante no noticiário internacional.
RETORNO – 1. Com este, são 408 posts só em 1989. Ao todo, o blog publicou 1934 edições. Ao mesmo tempo, meu site http://www.consciencia.org/neiduclos/ entra em nova e portentosa fase. Um luxo só, up-grade a cargo de Miguel Duclós. O site é um portal sobre assuntos diversos, abordados com criatividade e profundidade. Um enciclopédia pessoal on line. Mais de 600 textos, entre artigos, poemas, ensaios, trabalhos acadêmicos, resenhas etc. 2. Um recado para meu amigo Dauro Veras: fiz minhas opções para 2009 esses dias e deixei o texto acima pronto, sem publicar. Fiquei gratificado com a coincidência do enfoque, pois você também destacou o que viu no cinema este ano, sem se ater aos lançamentos. Muito bom.
19 de dezembro de 2009
MATADOR DE MATADOR – UM CONTO NO TWITTER
Nei Duclós
Máximas do Matador de Matador: "Me alimentem. Não trabalho durante as refeições."
Máximas do Matador de Matador: "Não encomendo a alma de ninguém. Só faço o serviço que foi apalavrado."
Máximas do Matador de Matador: "Franco atirador é covardia. Preciso ver a fuça do sujeito encomendado."
Máximas do Matador de Matador: ""Quem mata ruindade deve ter desconto na hora do Juízo."
O Matador de Matador só é encontrado em biroscas isoladas,longe até das estrebarias.Lá ele produz pensamento, debruçado sobre o balcão podre
O Matador de Matador tem ponto fixo na frente dos muros penitenciários. Encostado num poste, debaixo do sol a pino, ele aguarda o indigitado
"Circulando" diz o Guarda para o Matador de Matador.Mas se arrepende.Acaba de ser fuzilado pelo olho morto envolto na córnea do poço amarelo
Todo fim de ano, o Matador de Matador vai visitar o pai, morador do deserto em tenda de lata. Cego,o velho sente a catinga da Morte chegando
No reveillon, o velho tenta atingir o Ano Velho com seu rifle, mas em vão. Então o Matador de Matador aponta o céu e descarrega o revólver
Ele existe.Conheci o Matador de Matador na Feira do Livro.Ele ia praticar genocídio de autores, mas não deixei.Falei para entrar na política
Perguntei por que queria exterminar escritores. Ele disse: "Li dez livros, todos os personagens acabam morrendo. Prometi vingança."
Sugeri que fosse para Hollywood. "The killers killer?" perguntou. "Não me agrada. Não gosto do genitivo"
Tentei corrigi-lo, mas voltei atrás. O Matador de Matador jamais reconhece um erro. Seria o fim de sua espécie.
"Estavas indo bem com teu conto",me disseram."Até que descambou para a metalinguagem". Vou sugerir ao Matador de Matador mirar os críticos.
Máximas do Matador de Matador: "Desliguem o som. Meu revólver é acionado automaticamente pelo baticum."
RETORNO - Conto publicado nos limites até 140 toques, no Twitter. Imagem desta edição: Agildo Ribeiro, no clássico de Roberto Pires de 1962, o inesquecível filme Tocaia no Asfalto, recentemente restaurado e relançado. Um pedaço da sequência final vai abaixo. Agildo Ribeiro é o pistoleiro contratado para matar. Meu conto dialoga com o filme, mas os personagens são diferentes. Um reza pela alma de quem vai matar, o outro não. Um mata quem nunca matou, o outro não. Um bota metalinguagem no vatapá, o outro não.
METAS PARA O MEIO AMBIENTE
Pequenas nações se insurgiram contra o fracasso do encontro em Copenhague e resolveram fazer um documento alternativo ao pífio acordo oficial, se é que houve um. Foram definidas algumas metas, dentro do enfoque proposto pela Ministra Dilma, de que o “o meio ambiente é, sem dúvida nenhuma, a maior ameaça para o desenvolvimento sustentável e, portanto, para o planeta e os nossos países”. O objetivo é salvar o planeta acabando logo com o meio ambiente. Isso guindará os países anões a potências poluidoras como a China.
Entre os signatários estão enclaves como a Toca da Raposa, territórios como Cucaracha do Oeste (que fica entre o Acre e a Chavezland), ermos montanhosos europeus como Luxemburgo Central, além de lugares que declararam independência recentemente, como Tuvalu Sem Jaça, na Ásia, Ilha da Páscoa Meridional, perto da Patagônia, e Pé do Vesúvio, um paraíso histórico turístico situado nos Pirineus. Vamos às principais decisões:
DESMATAMENTO - A meta é chamar os malaios para acabar de uma vez com a Amazônia, como fizeram com a mata Atlântica. Derrubar dez milhões de acres por segundo com tratores alemães fará com que a região do norte do continente sulamericano se transforme num Saara, onde, invariavelmente, existirá petróleo. Isso será uma bênção para o desenvolvimento automóvel-sustentável.
FULIGEM CHINESA - Os países signatários se comprometem a importar tecnologia para promover e provocar a fuligem que atualmente toma conta das grandes cidades chinesas, pois isso é um sinal evidente de Nojo do Outros professados pela China e tão necessário para a afirmação internacional – e, portanto deve ser imitado. O único problema é agüentar a sacanagem dos técnicos vindos dessa potência do lixo universal. Como se sabe, eles são especialistas em fabricar porcarias. Possivelmente vão implantar chaminés fajutas e fumaça sem aquele impacto ambiental poderoso que faz de Xangai uma atmosfera jupiteriana.
BIO-UNIVERSIDADE - Ao contrário da biodiversidade, a meta é praticar genocídio de todas as espécies, deixando apenas algumas para que a ação politicamente correta possa concentrar recursos públicos do mundo inteiro. O negócio é eliminar jacus, papagaios, antas, rinocerontes, emas e deixar apenas tartarugas, golfinhos e mico leões dourados. Assim, a biouniversidade trará o brilho das teses sobre a importância do casco da tartaruga para a defesa do mau ambiente , além de disseminar o horror visual que é a botação de ovo glégous por meio de cloacas devidamente protegidas.
BARANGAS – Preservar as Barangas, dando-lhes trabalho remunerado e concentrando-as em mini-séries como Cinquentinha, da Globo, é medida ultra-moderna para que as próprias não invadam as salas luxuosas dos executivos e joguem na cara as barbaridades que cometeram há cem anos, quando as atuais Barangas eram consideradas pitéus. Regar a plantação de Barangas com a presença de pré-adolescentes com pretensão ao estrelato, e provocar cataclismas estomacais com cenas de lesbianismo entre esqueletos celulíticos, será de bom proveito para os emergentes que quiserem brilhar no cosmo da devastação do meio ambiente mental. O modelo será o sovaco da Suzana Vieira, considerado sensacional, e o rodopio sexy da carcaça da Xuxa nos intervalos comerciais.
GEOPOLÍTICA - A meta é fazer com que haja neve no deserto e tempestades de areia impulsionadas por tornados extra-plus gerenciais nas serras aprazíveis. É preciso desmistificar as idiossincrasias geográficas e fazer com que todo mundo se exploda no planeta, que todos sabem que rima com o quê. Assim, tomando na tarrasqueta a humanidade vai bater maceta dançando ao som da retreta, sem falar no palavrão que será dito toda vez que alguém falar em monitoramento das reduções de emissões. É como diz Caetano: Eeeeta. Eta eta etaaaa...
ANTÁRTICA - Como todo o gelo do pólo sul será devorado pela permanência do paradigma da primeira revolução industrial, que ainda domina o mundo, apesar da conversa fiada da Microsoft, haverá chances de povoamento naquela região. As atuais estações de observação serão demolidas e substituídas por fábricas de automóveis chineses, que começarão imediatamente a rodar por lá movidos a gasolina que será fabricada em destilarias locais, que aproveitarão o petróleo extraído das profundezas do ex-continente desaparecido sob toneladas de gelo. Será definido lugar especial de globalização bandida sob a batuta das grandes corporações e do Marco Aurélio Garcia, que todo ano aparecerá na janela do seu Iglu e fará top top top para quem estiver passando.
Pelo menos, alguma coisa que preste foi decidida na reunião,que consumiu bilhões de dólares para reunir centenas de panacas que ficam definindo metas para 2050. Se quisessem despoluir era só fechar as fábricas poluidoras e mandar todo mundo para casa. A pé, de trem elétrico ou de bicicleta. Não seria preciso ficar enchendo o saco com um encontro que não serviu para nada. Nem mesmo houve a presença de Berlusconi para que alguém pudesse jogar um sapataço nele e assim movimentar as turbinas da indignação, hoje tão confinadas a passeatas e comícios, ações obsoletas na atual fase da sociedade pós-pré-sal.
RETORNO - Imagem de hoje: a China já cumpriu todas as metas para acabar com o meio ambiente e assim salvar o planeta - tirei daqui.
17 de dezembro de 2009
OS SERES SUPERIORES
O Brasil perdeu a auto-estima, mas seus habitantes – não os confunda com “os brasileiros”, que são outra coisa – não. Todos são cabeças coroadas do Reino da Cocada Preta. Estão por toda a parte. Vamos a alguns exemplares:
ATRÁS DO VOLANTE - Moram nas cidades vazias dos filminhos publicitários dos lançamentos automotivos. Por isso negam a existência de quem está na frente, atrás ou dos lados. Ocupam todos os espaços. Entram em todas as brechas. Não esperam ninguém. Se fazem esperar até a medula do osso. Berram que você é um bosta. Estão acima da carne seca.
ATRÁS DO BALCÃO – Eles estão ali para provar que você é um deficiente,já que precisa de alguma coisa. E trouxa, pois se dispõe a pagar por isso. Só que as criaturas que os abordam não entendem que eles não estão ali para ganhar a vida, mas para execrar quem chegar no estabelecimento e levantar o dedo dando dicas de como você deve se comportar como consumidor. Isso em outra freguesia, claro, porque ali não tem nada para você.
A VOZ FANHA - Vimos como a ministra Dilma (foto acima)soprou o som metálico de sua voz fanha para dizer que a maior ameaça para o planeta, o nosso país e o desenvolvimento sustentável, é o meio ambiente. Essa postura bebe na fonte do analfabetismo titulado, em que as pessoas luminares dizem obviedades e abobrinhas num tom professoral e depois sacodem a cabeça afirmativamente em direção à platéia. È um sinal para que os mortais se apressem e atinjam as alturas da sua produção de pensamento.
OS INÉDITOS - O cara descobre a pólvora e anuncia sua descoberta aos quatro ventos. Não permite ser desmascarado, saber que o que diz ou faz já foi dito e feito antes, que ele não leu os livros básicos e que portanto deve se calar e ouvir em vez de se escalar para conferências e exigir que o mandem para o Exterior ensinar padre a rezar missa.
OS FORMADORES DE OPINIÃO - São criaturas bizarras pois evoluíram do estado vegetal que tomou conta da humanidade para algo grandioso, ou seja, a opinião verdadeiramente fundamental, que eles disseminam em artiguetes toscos, tratados como obras-primas da literatura universal. Seu público alvo são os rebanhos, que pagam para pensar igualzinho a eles.
OS VIZINHOS - Você não pode sair na porta da rua, eles é que saem na porta da rua. Não pode colocar seu carro na garagem, no mesmo instante eles colocam o carro na garagem, pois foram feito para isso, você é apenas uma contrafação. Eles sobem no muro para ver o que você está fazendo, tentam abrir sua porta da frente para mostrar que podem,e pintam as casas deles exatamente da mesma cor que a sua, porque eles é que são, você não.
OS COLEGAS - Chamam os outros de coleguinhas e se referem a esses com a expressão “existem uns tantos coleguinhas que...” Não existem concorrentes para essa raça de víboras. Se vier a reengenharia, são eles os reengenheiros, se eliminarem os postos de chefia, eles são os eliminadores dos postos de chefia, se implantarem um plano de qualidade, eles são os mais qualitativos.
OS CONVIDADOS - São o arroz-de-festa dos eventos. Pagam os tubos para tê-los em festivais, feiras, celebrações. Todos conhecem: são sempre os mesmos. Levantam uma grana sendo figurinhas carimbadas. Quem decidiu que só eles podem aparecer? Eles mesmos, com sua poderosas peças de marketing pessoal e seus ágapes com os poderosos, que impõem programas e comportamentos e assim concentram renda até nesse nicho de convites oficiais.
16 de dezembro de 2009
PARA ENTENDER SUSAN BOYLE
A esplêndida erupção do fenômeno Susan Boyle na mass media do século 21 nos coloca contra a parede, obrigando-nos a fazer algo desconfortável, pensar. O gostoso é ficar na nossa, achar que ela é uma típica representante da easy music e que seu mega-sucesso está ligado à sensibilidade rasteira do público e sua endêmica falta de exigências. É complicado: pode até ser uma obviedade embalada para agradar em época de Natal (o disco tem o clássico Noite Feliz, que na versão americana é Silent Night). Mas o evento pega mais fundo.
Para começar, não existem mais vozes, superstars da linhagem de Susan Boyle, o que em tempos não tão remotos existiam aos potes. O que há hoje é a sincopagem ruidosa de gargantas guilhotinadas pelo hip hop, a sacudição pornô da Madona, o festeirismo fake das Ivetes Sangalos. Não há mais uma Elizete Cardoso, nem mesmo uma Barbra Streisand, que anda sumida (pelo menos não está tão presente como deveria). Existia esse vácuo de uma grande voz feminina que cantasse coisas obsoletas – canções com melodia, harmonia e outras sutilezas técnicas que foram arrastadas pela ganância do dinheiro fácil do atual sistema econômico internacional, não baseado em indústria e comércio, mas em falsidades improdutivas. Susan Boyle é candidata a ocupar o espaço deixado vago à força.
Ela surgiu de maneira transversa, num programa de calouros. O amadorismo tem uma chance nesse tipo de vitrine. Costumava revelar grandes talentos. No Brasil, muitos surgiram assim, como Elis Regina e tantos outros. Mas como tudo foi amarrado, aprisionado, manipulado, os programas de calouros deixaram de exercer sua função de revelar talentos. Susan Boyle aproveitou-se de uma exceção. Os britânicos são muito metidos e fazem coisas abandonadas em outros lugares. E fizeram bem, colocando na roda uma interpretação que explodiu, o hoje já clássico I dreamed a dream, que é o título do cd lançado recentemente por SB e que já chegou ao meio milhão de cópias vendidas, mesmo estando disponível inteiro no you tube.
Você não precisa comprar o disco para escutar as faixas. Mas as pessoas vão lá e adquirem o produto, o que deve deixar os executivos responsáveis pela produção e difusão do fenômeno encantados. SB rompe com o paradigma de que deve-se proibir tudo, o que é impossível, para garantir o pagamento de direitos autorais. Deixa rolar, mostra, escancara, que as pessoas quando compram não querem apenas escutar, querem ter, querem guardar, presentear, pegar, gostar de ficar junto. Um produto cultural assim transcende seu conteúdo, ele se torna um objeto próximo, ele ocupa lugar na casa.
As canções escolhidas por SB estão na rede, portanto não vou elencar aqui. Mas gosto de saber que ela, ou seus orientadores, escolheu grandes músicas, que estavam dispersas por aí e que ganham um resgate oportuno. É preciso lembrar que existia algo chamado música, abandonado pelo massacre da serra elétrica que é a indústria cultural do tunc tunc de hoje. Ao mesmo tempo, SB não se derrama como em muitos esganiçamentos pop. Ele tem uma contenção básica, mantém suas interpretações em roupagem de gala, sem se atirar como gana nas distorções vocais , que é a praga que assolou nossas maiores vozes.
Permanecer nessa base em que foram construídas tantas canções memoráveis, não deixar que seu acervo se perca em perversidades metidas a besta, centrar no fundamental, levantar vôo quando necessário, tolher-se quando a música pede, eis algumas qualidades da cantora que ficou na sombra por tanto tempo. E por que ainda não tinha vindo à luz? Exatamente porque o sistema impediu que vozes como a dela emergissem. O pecado é deixar tudo a seu encargo. É preciso desamarrar as camisas-de-força que mantém tanta gente fora do circuito.
Precisamos de um milhão de Susan Boyles para termos de volta uma Billie Holliday. A grandeza não surge de graça. Ela vem de longe, vem do fundo, vem da diversidade, das oportunidades. É preciso apostar que nada se perderá e que todo esse pesadelo em que se transformou o chamado “som” seja erradicado da terra. Queremos de volta Frank Sinatra. Ou seria pedir demais?
Nem todo fenômeno de massa deve ser colocado no alto forno de nossas convicções pseudamente corretas. Quando duplas urbanas ágrafas e sem formação musical berram barbaridades para platéias de mãos ao alto, devemos desprender os paredões que guardam avalanches de pedras. É preciso dar uma lição nessa canalha. Mas quando Susan Boyle surge de repente, abrindo a voz diante do mundo, precisamos prestar atenção. Alguma coisa está acontecendo de novo.
É uma questão de justiça: conheci grandes cantores que jamais vieram à tona. Até mesmo Zé Kéti, ouvido absoluto e voz de ouro, foi deixado de lado quando ainda estava vivo. Não havia clima. Agora, quem sabe, possamos te algo...
15 de dezembro de 2009
PRESENTES DA FÉ
Nei Duclós (*)
É complicado o caminho da fé. Acredito que o futebol obedeça à geometria clássica na base e à mecânica quântica na ação. Posso provar: a esfera jogada nos limites de um retângulo voa em direção à linha de fundo, mas some por instantes, refaz a rota e despenca miseravelmente beijando a rede, deixando o goleiro atônito. Jamais atribuo esse fenômeno aos deuses dos estádios, entidades inverossímeis inventadas pela crônica esportiva.
O que é imaginado costuma existir. Há exceções. O trem bala, por exemplo. Inúmeras vezes esteve na bica de ser implantado, ligando celeremente grandes cidades na velocidade da luz, mas fica apenas no papel. Outra armadilha é o Papai Noel. Assassinado todos os anos quando a criança já pode ser alvo da má notícia, ele ressurge dando colo no Natal seguinte. A resistência do santo que virou herói do consumo deve ter origem no seu entorno de milagres. Pois ele não existe sozinho. Há os presentes. Cada embrulho encerra algo que se mantém vivo na memória pela vida afora.
Nem vou falar do pião que rodava sob pressão e emitia um apito. Ou o tanque de guerra movido a pilha que desviava de obstáculo e bombardeava o mundo com suas luzes coloridas. Ou a bola número cinco de couro novinha, pronta para ser destruída nos pedregulhos do terreno baldio. Ou do livro inesquecível que até hoje mora na estante, com sua dedicatória datada. Mas da sensação, do brilho, do encanto que é acordar na noite de Natal e correr para o lugar onde os sapatos acolhem os pacotes tão aguardados.
Isso faz parte do passado, me dizem. O problema é que também não acredito nisso. A árvore da sala não ultrapassa um metro de altura, mas já está engalanada com soberba estrela no pico e, por força da pressão exercida pelo público infantil, com dúzias de calçados em prontidão. Isso aconteceu naturalmente, sem que ninguém fizesse nenhum esforço. Os rituais do fim de ano se impõem pela fé limpa e objetiva. Se houver acusação de consumismo, temos o presépio, para anunciar a esperança.
Depois, chegam os votos para o ano seguinte. Tenho fé que, se elaborarmos nossos sonhos com cuidado, haverá mais chances de fazê-los acontecer. Um deles é andar de trem. Nem precisa ser bala. Basta ser como um presente, desses que ficam para sempre.
RETORNO – 1. Imagem desta edição: trem japonês, meu presente de Natal. Tirei daqui.2. (*) Crônica publicada nesta terça feira, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
14 de dezembro de 2009
OS INVASIVOS
Eles estão por toda parte. Transformaram o Brasil numa tortura. Vamos identificá-los, quem sabe esse é o primeiro passo para a gente um dia neutralizar essas pragas.
DJs DE SERTANOJOS - Toda música no último volume é uma merda. A preferida, claro, é a dos gritões, Rick e Ruck, Cagãozinho e Chiruru, Zezé di Bundão e Porrano e por aí vai, todos preferidos dessa bagacerada que tomou conta dos governos, da mídia, e dos bairros. Você tenta ler um livro e o sujeito invade. Se acham programadores do ouvido alheio.
ARRASTADORES DE FERROS – A serra elétrica é a vida espiritual dos brutos. Prisioneiros da Idade das Grandes Caldeiras, eles retinem nos horizontes seu malhar incessante sobre coisas, como se estivessem forjando um puxado para o Inferno. Nenhuma migalha de pensamento medra diante do cerco da atividade desses canalhas.
SOCADORES DE SOLOS – É um mistério. Por que eles batem tão profundamente no chão com seus pilões de granito, como se a terra fosse culpada de todos os males? Por que precisam fazer tremer os alicerces da vizinhança, nos horários mais impróprios?
ANUNCIADORES DO APOCALIPSE - Munidos de poderosos sistemas volantes de som, eles escolhem tua rua para anunciar tudo que é quinquilharia, te convocando não só para as compras, mas para a salvação, basta que você vá ao evento do pastor Brontossauro Rex, que traz a boa nova em que o mundo inteiro vai virar um enorme templo de fundamentalistas analfas.
OS AVON DE JESUS - Eles batem na sua porta todo santo domingo propondo uma leitura. O jornaleco Respira Senão Tu Morre, ou o folheto Vão Todos Morrer de Caganeira. Para se entregar a esse destino manifesto, deixe-os entrar e fiquem horas escutando suas arengas. Depois, não vá cortar os pulsos.
DEDINHOS ADVERTINTES - Eles são o paradigma da virtude, modelos do sanguibom, superiores raciais e se dedicam a consertar a vida e o mundo torto das sub-raças. Gostam muito de dizer “o brasileiro” e adoram corrigir crianças alheias, para, desde cedo, inocular o ódio à liberdade.
AVATARES DO TRABAIO – Trabaiá é fazê baruio. O sujeito caminha apressadinho e grita para quem estiver ao redor que está trabaiando. Todo vagabundo adora jogar para cima dos outros a grande canga do trabalho compulsivo e obrigatório. Assim, se livra das responsabilidades e dedica seu tempo a derrubar quem estiver na frente para poder se manter à tona. Adora dizer: ”Tô na correria”.
GRITALHÕES MONOCÓRDIOS – Você acorda e eles já estão a postos. Ficam assim até de madrugada. Não dormem nunca. Tem assunto para quilômetros de tempo. Não param de falar nem um milésimo de segundo. Assim entopem as mentes alheias dividindo sua própria infelicidade, vendida como estar de bem com a vida. Deveriam ser confinados em ambientes sem condições de propagar o som de suas vozes.
OS BEM INTENCIONADOS - Eles dão beijos no coração e querem que você fique com Deus. Também acham que você precisa deixar de ser tão pessimista. Dedicam-se a disseminar a boa nova ao gentio, que são todos os outros, menos eles. Ungidos pelo destino, usam batas brancas imaginárias e distribuem bênçãos guardados no bolso do colete.
ANALISTAS DO ÓBVIO - Dominam os espaços da mídia. Aparecem fazendo gestos irônicos e caras cínicas diante da tua incompetência de lidar com um mundo tão complexo, que eles cuidam de decifrar com falas rotas e textos mancos. Adoram dizer “é a economia, estúpido” só para poderem te chamar de estúpido.
OS QUE CAPOTAM - Tomam todas, varrem calçadas com seus carrões atropelando mulheres, crianças e velhos, geram deficientes físicos e depois dizem que estavam de cabeça fraca. A falta de laço quando aprontaram pela primeira vez, o estudo baseado na perversidade do mercado onde o aluno é cliente e o professor, banana, além da situação geral do país criam esses monstros num ritmo de fábrica de parafusos.
RETORNO - Imagem desta edição: Máscaras, tirei daqui.
12 de dezembro de 2009
MACBETH: O DESTINO TRAÍDO PELA PROFECIA
Nei Duclós
O relançamento de MacBeth, de William Shakespeare, com tradução de Manuel Bandeira, pela Cosacnaify, nos permite ler o texto sem a interferência da montagem ou da infindável fortuna crítica que acompanha a obra desde seu lançamento em 1606. O livro solitário, iluminado em cena pela leitura sem vínculo com a mitologia criada em seu entorno, é como um personagem dramático diante dos seus fantasmas. É um documento, aqui tratado como preciosidade (tanto pela lendária obra-prima original quanto pela tradução feita por um dos nossos maiores poetas) desenterrada do tempo e que chegasse até nós como um enigma.
O grande poema épico é limitado, neste pequeno ensaio, pela transposição da língua (mesmo que Bandeira tenha assumido o risco com precisão e elegância) e pela configuração à parte, livre das inúmeras camadas críticas ao longo de quatro séculos. Mas isso, antes de ser um problema, é um passaporte para visitarmos o gênio na essência de sua grandeza, já que está desarmado das artes coadjuvantes que fazem sua glória - cenários, presença física de atores e atrizes fundamentais, direção de mestres do teatro, acompanhamento musical etc. Algumas fotos inseridas no volume retratam as personalidades que navegaram na peça, como Michael Redgrave, Orson Welles, Peter O´Toole, Lawrence Olivier, Vivien Leigh.
De que trata o texto? De uma profecia sobre destinos, no caso, de pessoas que irão assumir a coroa da Escócia. E de como essa profecia foi apunhalada pela ambição. Falando com mais clareza: trata de um herói de guerra, MacBeth, que ao ser plenamente recompensado e reconhecido pelo seu rei, Duncan, resolve apressar o que lhe estava reservado no futuro, o trono. Ao escutar as bruxas lhe dizerem que assumiria o poder, contrariou sua condição de nobre fiel para, em conluio com a esposa, destruir o obstáculo e assim chegar ao lugar para o qual fora predestinado.
A charada começa pela dúvida de que a profecia emitida por entidades subalternas era realmente legítima ou não. Não teria sido uma armação das pitonisas, já que mais tarde foram contestadas por uma entidade superior? Esta, sim, inventou uma predição que levou MacBeth à ruína. Ao vislumbre verdadeiro de que o guerreiro bem sucedido iria, forçosamente, sentar-se um dia no lugar de Duncan, seguiu-se os conselhos sinistros de uma nova caldeirada, que transmitiam a falsa certeza sobre os poderes do tirano. O usurpador do trono, segundo a armação bruxólica, não tinha limites e poderia alcançar todos os seus desígnios sem fazer força.
As cenas dos cinco atos são sínteses da ação que pula todos os detalhes e se circunscreve ao núcleo do drama. A técnica teatral canônica não perde tempo, antes o insere em sucessivas situações que se reportam ao que veio antes e não foi mostrado. Isso economiza espaço-tempo sem desperdiçar a oportunidade de revelar os desdobramentos que circundam os diálogos, como se a realidade fosse uma espiral em que o vórtice é o embate dos protagonistas. Ficamos sabendo o que ocorreu sem que o dramaturgo exponha tudo com todas as letras. Isso serve para focar o principal: o poema, que transcende o jogo de palavras e instaura as contradições que movem as personagens.
O casal MacBeth se considera novato no crime e entra em parafuso depois do regicídio. O novo rei é assombrado pela alucinação dos espectros que o visitam e a rainha entra em processo de loucura pelo remorso subjugado na vigília e hegemônico no sonambulismo. Ao mesmo tempo, os dois são impelidos para o Mal pela lógica da profecia. Se MacBeth será rei, o que o impede de cometer o crime? Seu álibi é que está apenas obedecendo ao desejo das divindades. Quando fica indeciso antes do ato hediondo, é chamado às falas pela mulher, que clama por sua hombridade perdida na dúvida.
O herdeiro legítimo, Malcolm, num diálogo magistral com o nobre MacDuff, pinta-se como a pior das criaturas. Se conseguir ser rei, diz para o amigo atônito, provocará a desgraça da pátria e dos súdidos. É apenas uma armadilha para testar a lealdade do outro, mas a situação absurda de um predestinado que nega suas virtudes é mais uma dissecação da verdadeira natureza de pessoas comuns ungidas pelo destino. Não é a precariedade humana que contestará a legitimidade monárquica, mas a ambição que pode colocar tudo a perder. A humildade do herdeiro que pôs o amigo à prova é garantia de que será um rei justo, já que tem noção exata das diferenças entre o Bem e o Mal.
A esposa de MacDuff, que o renega por ter abandonado a família, sabe que está vivo e por isso não chora. O filho pressente que há algo errado na falta de lágrima e não acredita que o pai esteja morto, como lhe diz a mãe. A lucidez da inocência diante da tragédia é um dos muitos sintomas de que o moralista Shakespeare, por mais que sujasse de sangue as mãos de seus brilhantes personagens, tinha se decidido pelo lado virtuoso das criaturas. O drama ético e em conseqüência, o teatro e por extensão a vida terrena, por mais mergulhada no terror, terá no talento a revelação do que realmente importa quando os princípios parecem ter submergido.
O fascínio que exerce o assassino MacBeth, com suas falas inesquecíveis, diz muito sobre a manipulação das grandes obras entre nós. A maior delas todos conhecem: “A vida é uma sombra ambulante; um pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada”. Essa fala terrível é atribuída a Shakespeare, quando todos sabem que é de MacBeth. A diferença, sutil, precisa ser colocada. A vida só não faz sentido para quem mancha as mãos num crime hediondo, levado pela ambição.
De onde vem essa distorção de caráter do guerreiro que acabara de receber todos os elogios e presentes do seu rei? Vem do reconhecimento. Todo mortal aspira ao reconhecimento, que é a extrema unção de sua obra. Há insatisfação permanente, pois o gênio (o mais alto grau de uma atividade) só pode ser reconhecido pelos seus pares ou por quem o transcende. O aplauso subalterno não preenche a desmesurada fome de alguém que atingiu o ápice. É preciso que do alto venha o sinal. E quando ele vem, é porque o ungido atingiu o patamar de quem o eleva. Sem os princípios, sem as virtudes, esse é um processo perigoso, o mesmo que devorou MacBeth.
Sua vocação, a de exímio artífice nas atividades da guerra, desemboca na tirania. Mata seu rei, que o admira. Mata o melhor amigo Banquo, que poderia ser rei. Não vale a pena destruir o adversário se junto com ele destruímos a vontade de viver, reconhece Lady MacBeth no auge do remorso. Mas arrepender-se, nesta trama mortal, não interfere na continuidade das ações voltadas para o Mal. Triunfa, para morrer depois na guerra provocada pelos assassinatos, o voluntarismo de quem traiu o destino ao distorcer a profecia. Ou ao encará-la como mero instrumento do egoísmo.
O enigma principal é saber se a trajetória humana determinada pelo Absoluto pode servir de repasto para o livre arbítrio. No momento em que a vontade se impõe e faz acontecer, ela estaria apenas cumprindo a escrita ou se transformando, por meio da transgressão, numa volúpia, a de desobedecer o sagrado, que até as bruxas adivinham?
RETORNO - Imagens desta edição: além da capa do livro, em destaque, a cena em que Orson Welles faz o papel do trágico MacBeth.
11 de dezembro de 2009
O QUE É PAZ?
Paz é a situação de conforto e alívio proporcionada pela ação vitoriosa de chutar o traseiro alheio. Se você dá coice no semelhante que está lhe incomodando, derrotando-o nas suas pretensões de encher o saco, então você terá paz. Os americanos são mestres nisso. Jogaram duas bombas atômicas em populações civis do Japão quando a Segunda Guerra já estava ganha. Mas era preciso dar o pontapé definitivo nos japs que ousaram destruir aquela frota no Havaí. Agora Obama (sim, ele pode) manda 30 mil soldados para o Oriente Médio enquanto recebe o Nobel da Paz.
O ato de chutar os outros pode reverter contra o chutador. Os alemães, por exemplo, jamais se livrarão do crime de ter mandado para o forno 11 milhões de pessoas, sendo seis milhões de judeus. Nunca serão perdoados e no ano cem mil haverá filmes sobre os nazistas. O erro dos alemães, além de terem perdido a guerra, foi não ter criado um sistema de espetáculo a seu favor. Os americanos foram derrotados no Vietnã, mas inventaram o Rambo e o Oliver Stone. No fim, ganharam.
Inventar algo a seu favor é mentir. Todo currículo mente. Tem especialista em currículo, que manipula a percepção do empregador. Tem estreante que vem com currículo, quando deveria revelar apenas a data do nascimento, o que nem sempre é necessário, já que, para os mais velhos, a certa altura da vida toda a humanidade ganha a cara de bebê. Acho graça quando vejo a gurizada deitando sabedoria bem postada em cargos importantes. Um juizinho de merda, apaniguado do poder idem, com carinha de porquinho Chonchon, esses tempos “pediu vistas” de um processo. Ora, vai jogar bulita.
Quando me pedem currículo ofereço cinco linhas, senão assusta. Não por ser grande coisa, mas por ser coisa grande, interminável. Significa que não suportei a maioria dos empregos. Migrei pelas redações como um zumbi. Acabei ficando mais tempo com o Mino Carta, que me aturava, e na Fiesp, para onde eu podia ir de metrô. Adoro trem, trilho, vagões, comboios, aquele barulho de tatunc, tatunc, tatunc.
Mas, e a paz? É verdade. Me perdi no assunto. Paz é ficar na rede e imaginar como eliminar a população inteira do planeta, enterrar no buraco negro tudo o que faz barulho e navegar no éter do silêncio absoluto. Isso só vai ser conseguido depois que a grande diversidade do traseiro humano for devidamente chutada pela nobilíssima capacidade de encher a boca do mundo de pasta de dente. Daqueles fedidas, que entopem.
Cada vez mais me impressiona a cara de pau dos atuais líderes. Obama é um espanto. O cara diz que para ter paz é preciso matar gente. Ora, mate gente mas não fale em paz, tchê. O nosso daqui diz que o povo está na merda, o que é uma constatação importante, dado que ele está no poder há sete intermináveis anos. O truque do sujeito é passar por cima dos partidos (“Não importa se é desse ou aquele partido”) e falar diretamente com o eleitor.
Jamais teremos paz enquanto não for destruído esse sistema que gerou uma sucessão de nulidades na presidência, desde 1964. Eles, sim, usufruem da paz total, já que nos chutam desde aquela época. O mais engraçado é ver a Lucia Hippolito fazer sucesso dizendo “é estarrecedor” quando aborda a censura no Estadão. Estarrecedor é essa súcia de falsos formadores de opinião se locupletarem no regime político e agora, quando tudo foi desmascarado, vir posar de vestal. São corruptos, estão envolvidos com a bandalheira. Jamais ousaram peitar o sistema. Ficaram fazendo denúncias, comentando de olho arregalado, e não viram que a tirania se serviu de todos para brincar de democracia. Somos todos culpados.
Isso não quer dizer que não devemos continuar lutando por uma verdadeira democracia. Mas o caminho certamente não é ficar puxando os cabelos diante dos fatos. Tentem entender a merda antes de comentá-la de maneira superficial e irresponsável. Oh, que coisa, os Sarney, como eles são! São da ditadura civil, que nos governa, seus! Não existe fato isolado. Tudo se costura, e se desfaz, como na colcha de tricô de Penélope.
RETORNO - Imagem de hoje: Rambo "ganhando" no Vietnã.
10 de dezembro de 2009
O QUE É CORRUPÇÃO?
Corrupção é o conjunto de atividades das pessoas comprovadamente honestas. O sujeito que foi defenestrado da Presidência da República depois de inúmeras denúncias, por exemplo, e que ficou famoso por sequestrar a conta corrente e a poupança da população, é uma pessoa comprovadamente honesta, nada consta contra ele na Justiça, tanto é que virou senador. Outro exemplo notório é o presidente do Congresso que foi acusado de grossas irregularidades no Senado. Ele recentemente publicou um artigo na Folha falando de sua honestidade e como combateu a corrupção. O estadista de estádio e seu infiel escudeiro, que negam a existência do mensalão, também. Além do doutor Honoris Causa em entrega do país que se reelegeu graças a uma artimanha financeira gigantesca que tungou o país em 50 bilhões de dólares, conforme denúncia do repórter britânico Greg Palast. São todos pessoas comprovadamente honestas. O conjunto de suas atividades é a corrupção.
Vamos pegar outros exemplos. Os milhões de pessoas comprovadamente honestas que trabalham para os governos, bancos, autarquias, entidades etc. A toda hora explode um escândalo. Empresários que sonegam, governadores que desviam verbas, deputados envolvidos em falcatruas, ministros que estupram contas bancárias etc. Isso acontece no mundo legal e envolve inúmeros agentes, pessoas que não podem denunciar ou remar contra a corrente, pois senão serão marginalizadas. Mas elas são honestas. Nada consta contra elas. O conjunto de suas atividades é a corrupção, como pode se ver nos vídeos em que as pessoas jogam grana para dentro das ves-ti-men-tas, já que não possuem pas-tas. Secretárias, office-boys, assessores, diretores, todos sabem do que se trata, mas moitam. Voltam para casa com paz na consciência. Se eles não calam, alguém cala em seu lugar.
Mas algo está errado nessa definição, não é verdade? Você vai contra-argumentar escandindo a existência da honestidade, de quem denuncia as falcatruas, de quem vive dentro da lei. Advogado de bandido, por exemplo, vive dentro da lei, não é mesmo? São sujeitos honestos. Conseguem relaxar a prisão dos acusados, soltam antes do cumprimento de um tempo razoável da pena, porque assim a Justiça determina. Você vai chamá-los de corruptos? Nunca, mas o que eles fazem é corrupção. Está claro?
Mas onde então está a corrupção, se ela é praticada por pessoas honestas? Pois, pela lógica, dirão, o honesto jamais poderá ser confundido com o corrupto. Aí é que está o truque. As pessoas que se insurgem contra esse estado de coisas, que denunciam, que se ralam, são marginalizados, assassinados, presos e surrados, esses são os corruptos. Porque, por comparação, o conjunto de atividades das pessoas honestas de verdade (e que nunca conseguem comprovar nada) é a corrupção. Fica fácil de entender. Na hora em que o filho da puta rói a corda e leva o escândalo para a imprensa, pode haver sacana maior, corrupto de maior quilate?
Trata-se de um cretino. Vai dançar no primeiro processo. Ficará sem provas. Vai acabar numa estrada vicinal, abandonado, tenha sido ele prefeito ou não. Porque o verdadeiro corrupto é o Madalena arrependida, o que tem um ataque de ética e tenta colocar todo o esquema a perder. Esse merece punição, castigo. Esse é o corrupto que deve ser denunciado, que é o alvo das campanhas bem intencionadas, das passeatas dos adolescentes, que trazem novo contingente de trouxas para acreditar nos comprovadamente honestos. Pois na hora em que você denuncia a fraude, você faz parte da quadrilha, enquanto a gang de verdade se safa por meio de mil artimanhas.
Então fica assim esclarecido. O conjunto das atividades das pessoas comprovadamente honestas é a corrupção. E o conjunto das atividades das pessoas corruptas é a honestidade. Depois não digam que eu não expliquei isso direito.
RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.
PROVAS PARA COPIAR
Como as instituições não investem mais em pessoas qualificadas e contratam qualquer bunda suja para cobrar os tubos providenciando provas copiadas para testes em geral, reslvi ajudar os estudantes e professores com minha contribuição de veterano de vestibulares. Anuncio que passei em vários. O da Engenharia da UFRGS em 1967, o de Jornalismo na Ufrgs (com primeiro lugar!) em 1968, na Eca da Usp em 1980, na História da Usp em 1984 e de novo na História da Usp em 1996. Portanto, tenho cacife para elaborar provas. Como ninguém me convoca nem me paga por isso, vou colocar aqui alguns vestígios da minha capacidade.
FÍSICA - Dada uma velocidade V num espaço E, qual o tempo T transcorrido para que nossa idiotia atinja o patamar do mínimo entendimento? Precisa ainda flagrar mais gente roubando e rezando depois de roubar? Ou já chega?
MATEMÁTICA - Se uma árvore de Natal custa 3,7 milhões e tem 50 metros de altura, como calcular a percentagem dedicada aos autores da barbaridade, dado que no papel o troço tem 60 metros e na prática o preço exorbitante se reduz a igualmente exorbitantes 50%?
HISTÓRIA - Se a ditadura foi derrotada graças ao movimento Diretas Já, por que o movimento Diretas Já foi derrotado no Congresso em 1984? Se a censura acabou quando veio a redemocratização, por que o Estadão está sob censura há mais de 130 dias? Se existe liberdade de expressão, porque não param os assassinatos dos jornalistas?
GEOGRAFIA – Se o ritmo do desmatamento diminuiu de 18 mil Maracanãs por minuto de derrubada para 17.980 Maracanãs, por que o Brasil continua sendo acusado de crime contra o meio ambiente? Se o Brasil, país multiétnico, em tese vai até a fronteira, por que exatamente na fronteira existe um enclave independente étnico chamado Toca da Raposa?
QUÍMICA – Qual o tornassol que define na combinação entre o megaempresário cacifado pelo BNDES e a picaretagem da Madona, que chorou diante de um cheque de 7 milhões de dólares, desviados do dinheiro público vindo da teta gorda do banco estatal e que servirão (ah ah ah) para ensinar cabala para as pobres crianças?
PORTUGUÊS – Se tiraram o acento circunflexo de vôo, deixando a palavra com dois oo jogados ao léu, se tiraram o acento agudo de idéia, deixando a palavra confusa na sua pronúncia, pois corre-se o risco de fechar o som do e, o que nos levaria ao sotaque alemão num conceito tão avesso a ele, o que resta para a língua portuguesa se transformar na merda que os imbecis sempre sonharam?
LÍNGUAS - Conjugue o verbo “dar para os gringos” mantendo a boca túmida de um líquido viscoso de animalidade, para provar que você não nasceu em Conceição de Mato Dentro, mas em niu iorque, niu iorque, apesar do seu erre caipira servir para disfarçar o erre ingrêis.
REDAÇÃO - Escreva um texto imaginando o que fazer com as Ongs que saem vestindo bata branca jogando pombas para o alto, que servem de alvo para os traficantes armados pela indústria bélica . De quebra, justifique a preservação das tartarugas no lugar de recém nascidos no Brasil, o ensino da capoeira em vez do ensino da gramática, o estímulo à bateção de tambor no lugar da alfabetização musical.
Aguardo as respostas dos leitores. Passa na prova quem responde corretamente sem achar que isso não passa de brincadeira pautada pela vontade de jogar todo o conteúdo do pré-sal na garganta dos meliantes que copiam provas e cobram uma baba para isso. Também não vale me chamar de rabugento. Até que eu me esforço.
RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.
9 de dezembro de 2009
A INVENÇÃO DO CAOS
Ver São Paulo submersa, com pessoas ilhadas, carros parados, gente morrendo, é enxergar um dos monumentos mais bem acabados da ditadura brasileira: o caos urbano, implantado de propósito, objetivamente. As ruínas em que se transformaram as cidades não é resultado da falta de políticas públicas, mas obra de políticas públicas voltadas para a desestabilização do espaço físico de convivência. Foi um trabalho e tanto. Vejam como isso aconteceu (é bom lembrar a origem dos problemas e não achar que eles fazem parte da natureza, assim como se o horror fosse um cogumelo que brota desavisado no campo molhado pela chuva):
MIGRAÇÕES - É a palavra políticamente correta para um crime. Tiraram a população do vasto interior brasileiro e a amontoaram nas cidades. Em vez de promover o bem estar social num assentamento tradicional, simplesmente optaram pela grilagem brutal das terras e o uso dos latifúndios para as plantations. Produzimos commodities, ou seja, frutos da terra transformados em mercadorias para a especulação a futuro.
O deserto verde da soja e da cana e as patas da proteína animal sem freios nos lugares onde era mata e cerrado, são eventos celebrados como grandes conquistas, enquanto todo mundo lamenta a favelização geral do país, como se uma coisa não tivesse a ver com outra. Como o escândalo é notório, fizeram o seguinte: inventaram o Incra, que é uma instituição que gasta o dinheiro disponível para a instauração da paz no campo, e marginalizaram os principais interessados. Estes se agrupam em organizações que acabam na mão de mentes criminosas.
Ao mesmo tempo, uma parte do agronegócio se ressente também da lógica e do bom senso e os produtores a toda hora se vêem às voltas com o endividamento e a escassez. Ninguém lucra, a não ser os superconcentradores de insumos e renda, que se dão o luxo de desperdiçar um terço do que é produzido. Nos alimentos, a máfia que domina o comércio atacadista e varejista soca tudo na Ceagesp, lucram os tubos e todos são incapazes de resolver o problema das inundações no local. Ver melancias, vendidas a preços extorsivos, rolando pela água suja é o espetáculo sinistro a que a invenção do caos nos condena.
TRÂNSITO - A partir do acordo de gaveta (secreto) entre JK e as multinacionais, os trens brasileiros, instalados no país desde o Império, foram sucateados. Principalmente depois de 1964, no seu lugar foi implantado o pesadelo da gasolina e do diesel, poluindo as cidades e entupindo o trânsito de assassinos e vítimas. Os bondes, ônibus elétricos, trilhos, tudo sumiu pelo espaço para dar vez aos bandidos que colocam aqui dentro uma fábrica nova por semestre, já que nos países de origem estão proibidos de cometer esse crime.
Todos exultam com “a geração de emprego e renda”, retiram o IPI e torcem para que se compre cada vez mais (à custa de endividamentos crescentes que vão gerar um buraco negro mais adiante). Não importa o dano físico e social que isso acarreta, com cidades paradas de tanto carro. É feito de propósito, para acabar mesmo com o país, retirar do suor da população tudo e não dar nada em troca. O excesso da gasolina também alimenta a indústria dos roubos de automóveis, que como se sabe está na mão de alguns por aí. Lembro um dia que um colega meu teve o carro roubado. Ele falou com um sujeito poderoso e o carro surgiu uma hora depois. Esse não pode roubar, foi a ordem.
Enlouquecidos pelo caos urbano, em que as ruas não suportam mais o volume de automóveis, e as estradas vivem cheias de criminosos em potencial, as pessoas praticamente se suicidam, sem deixar cartas de adeus. Todos querem escapar do pesadelo chamado Brasil. Por isso ultrapassam a toda velocidade na curva, batem de frente em caminhões e ônibus, despencam de precipícios e pontes, além de tomarem todas para invadir calçadas cheias de senhoras e crianças.
HABITAÇÃO - A população brasileira, a maioria sem recursos, imbecilizada pela longa ditadura, brinca de casinha: constrói moradias de papelão e madeira podre em terrenos encharcados de bactérias e miséria e ainda pagam aluguel para isso. Vive-se na mão de milicias e traficantes, além de vizinhos pentelhos que fazem barulho 24 horas por dia, isso em qualquer bairro e a qualquer hora. A falta de respeito que vem de cima se dissemina por todo o tecido social. O sujeito acha que pode colocar carro explodindo de som na frente da sua casa, berrar na madrugada (o que tanto celebram, meu Deus?), ligar serra elétrica, invadir teu quintal e ainda te chamar de trouxa.
Tudo isso é feito de propósito: quando mais divididos estiverem os brasileiros, melhor para eles. Podem continuar roubando à vontade. O problema é que os frutos dessa política do caos se reflete no varejo. Aqui onde moro, numa praia que deveria ser aprazível, o trânsito caótico e barulhento toma todos os espaços e transforma ruas e avenidas numa dura prova para os motoristas. Com raras exceções, ninguém dá vez, ninguém tem paciência para nada. Colocam suas máquinas uns sobre os outros porque não há estímulo bom que venha de cima.
RETORNO - Imagem desta edição: engarrafamento em São Paulo em 22 de dezembro de 2008, na região da Berrini. Tirei daqui.
8 de dezembro de 2009
ERVILHAS DEVOTAS
Nei Duclós (*)
O spam, a mensagem virtual não solicitada, seria inconcebível na época em que havia apenas correio impresso. Não me refiro aos folhetos de propaganda ou as ofertas comerciais que continuam chegando em papéis de luxo. Mas às cartas mesmo. Impossível conceber a mensagem escrita e selada de um desconhecido sugerindo que você deixe de ser tão pessimista, por exemplo. Ou que te deseje longa vida para que você possa mudar de rumo e, em vez de um erro humano, passe a ser algo parecido com um anjinho de presépio.
O pior dos textos e imagens que nos chegam de inúmeros endereços obscuros é assinado pelos arautos dos bons sentimentos. Ficamos sabendo que a culpa da corrupção é nossa. Que roubam porque nós fazemos. Também somos acusados de desleixo. O lixo acumulado nas cidades e campos é tudo obra, digamos, da nossa desfaçatez. Por sermos responsáveis pelos males da saúde e da economia, nossa tarefa é entrar para um SPA moral, onde faremos dieta de ervilhas devotas.
Depois que vimos os ladrões do dinheiro público fazendo uma roda de orações para lavar a mancha do ato cometido, descobrimos para onde pode nos levar essa obsessão de tentar fazer da vida alheia uma cobaia do bom-mocismo da auto-ajuda. Como a virtude foi decretada pela individualidade isenta de erros, ou por grupos auto-erigidos em paradigmas, o resto da coletividade merece punição. O meio mais rápido e eficaz de operar esse milagre é o spam, espécie de púlpito do caráter de ocasião.
As correntes são representativas da terceirização dos pecados. Ao recebermos mensagens enviadas ao mesmo tempo para dez incautos como nós, somos imediatamente obrigados a passar adiante a convocação. Como recebemos uma avalanche de pressões, é óbvio que vamos apagá-las. Eis aí a danação eterna. Basta um clic para perdermos todo nosso acervo de acertos.
É uma utopia sonharmos com a possibilidade de nossa caixa postal ficar limpa de tantos apelos. Qualquer reivindicação para que parem de difundir besteiras é tratada como crime hediondo. Só nos resta esperar o carteiro tradicional, com sua cesta de surpresas. Nenhuma tentando nos dizer o que ser ou fazer. Apenas coisas banais, como um bilhete registrando saudades ou a notícia de uma visita ansiosamente esperada.
RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
7 de dezembro de 2009
SHAKESPEARE DE CHUTEIRAS
O drama shakespeareano tomou conta do campeonato brasileiro, que terminou ontem com o Flamengo campeão. O principal foi a hamletiana dúvida do Grêmio que antecedeu o jogo de ontem no Maracanã, em que uma vitória sua daria o título para o Internacional, desde que o colorado ganhasse do Santo André, o que de fato aconteceu. Abordei aqui esse assunto no texto “Drama na última rodada” . Para resolver o “ser ou não ser” escrevi que não haveria marmelada. Mas, como a célebre pergunta de Shakespeare, a dúvida permaneceu no ar, já que os gaúchos foram sem oito titulares e pareceu, para muitos, que amoleceram na fase terminal da partida. Eu vi um jogo limpo, disputado, como eu tinha previsto (como dizem os narradores esportivos, que sabem tudo antes), em que o Flamengo quase dançou (um golzinho e kaputt).
Falando em narradores esportivos: deve ser confortável ser um espírito tosco. O comentarista de árbitros (!) da Globo disse textualmente no início da partida que não ia acontecer nada. Ele quis dizer, acredito (nunca se sabe), que torcia para não haver sururu, como houve no Fluminense x Coritiba, em que Fred e companhia despacharam o Coxa para a segunda divisão e garantiram a permanência na série A. Mas o comentarista de árbitros, que árbitro foi (!) não alcança os meandros e armadilhas da linguagem, então fala besteira. As emissoras não entendem que comentar futebol não é futebol, é linguagem. O cara não precisa ser jogador para analisar, precisa saber analisar.
Para não ficar atrás, o narrador passou o tempo todo gritando “olha lá o Adriano”. Claro, com tanta carga em cima, o pobre do Adriano não conseguiu marcar seu gol de despedida. Por que a ameba insistia no seu grito? Porque, se Adriano de fato marcasse, ele “já tinha dito antes”. Prever, eis o verbo favorito da cobertura esportiva. Dá status, condecora os sabichões.
Na peça MacBeth, de Shakespeare, a premonição das bruxas acaba em desastre. Elas anunciam que MacBeth será rei, então o guerreiro benquisto pelo monarca resolver tomar o trono de assalto, já que ele iria mesmo ser coroado. Comete crimes, traindo e matando pessoas chegadas, sob o álibi de que assim estava escrito. Para o São Paulo, estava certo que seria o campeão, mas entrou pelo cano. Para o Palmeiras, que teve de marcar passo por nove rodadas para enfim chegar em quinto lugar, parece que houve o contrário do drama shakespeareano. Já que o título estava, de antemão, garantido (as pitonisas anunciavam) então não fizeram mais nada, esperando a consagração. Acabou em briga feia no gramado entre dois jogadores e a desmoralização do técnico Muricy.
Pois Muricy Ramalho nos leva de volta a Hamlet. Ele era o técnico do São Paulo, foi demitido e passou-se para o inimigo, o Palmeiras. Quis que todos encarassem isso como normal, já que sua desculpa é que foi demitido. É óbvio que foi vingança. O ressentimento orientou sua passagem para o Verdão. Ele queria, como Hamlet, vingar-se da “mãe” (o time que o acolheu por tantos anos), que o renegou. Ser ou não ser? Ser tricolor ou ser palmeirense? Nem um nem outro. O Palmeiras implodiu com essa contradição no miolo da sua ação. Não era possível fluir quando algo tão poderoso e profundo travava o caminho. Havia também o choque Wagner Love x Obima, o ídolo comprado no meio do campeonato e o ídolo que estava crescendo e viu seu lugar ser usurpado. Os dois caíram. É muito rolo.
E como podemos comparar o Fluminense, com sua arrancada deslumbrante, saindo de maneira gloriosa do rebaixamento? É puro Henrique V . Aquele discurso, ponto alto da carreira de Kenneth Branagh, em que ele convoca os soldados, em inferioridade numérica, para o grande combate do dia de São Crispim, faz levantar as pedras. Foi isso o que aconteceu. Sob orientação de Cuca e com seu gols, Fred levou o pequeno exército para uma jornada inesquecível.
Resta ainda Andrade, o general Otelo, e seu grande amor, o Flamengo, a bela Desdêmona, que não podia, a princípio, cair nos braços do mouro. Otelo provou que merecia a donzela e ficou com ela. Só que, neste caso, por enquanto, o caso acaba em triunfo e não em tragédia. Ainda não chegamos, nem, acredito, chegaremos, às cenas letais de ciúmes.
Para um país que, na política, caiu na pornochanchada, o futebol resgata nossa grandeza. Com seus conflitos deste campeonato inesquecível, o esporte nos remete ao gênio da dramaturgia universal, o poeta que , esse sim, viu antes, viu tudo, de maneira clara e incontestável.
RETORNO - Imagem de hoje: Keneth Branagh no seu inesquecível Henry V, de 1989. Quando escrevi "drama" no post de 1º de dezembro, pensei em Shakespeare. Depois, vi que não tinha citado o poeta. Num telefonema, Tabajara Ruas disse explicitamente, comentando o Grêmio e o seu Colorado: "É um drama shakespeareano". Na mosca. Taba, atual vice-campeão, tem, portanto, valiosa participação no enfoque deste post.
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