30 de junho de 2008

DRAGÃO COM AL CAPONE


A lei seca, que proíbe alguém que sorveu um martini seco de dirigir, e que, se for flagrado, será chamado em todas as mídias de bêbado, multiplica por um bilhão as chances de achaque. Será fácil postar-se na saída de qualquer birosca ou restaurante fino e ir arrecadando, como diria o gerundismo militante. A lei seca faz sentido, estamos em plena época do Al Capone (com o agravante de que nem crime financeiro – muito menos este – mete chefão na cadeia).

Não é o álcool que produz os acidentes de trânsito, é o desespero que leva ao álcool e ao massacre. Não adianta encher o saco com um a lei idiota. De repente, os jornalistas ficam detectando choques fatais em que os culpados todos estavam embriagados. Acabou a cervejada, a happy hour, o vinho no inverno, o quentão na festa. Agora todo mundo bebe guaraná e coca-cola e ninguém mais mata ninguém. Dá licença.

É como impedir que cidadão honesto possua uma arma para sua defesa. O objetivo é arrancar da cidadania que não milita politicamente, a imensa maioria de pessoas de bem, todas as suas oportunidades de sobrevivência no mundo hostil da ditadura financeira e política. Como cuidar dos direitos das pessoas de bem se quem está no comando é do Mal? O conceito de honestidade foi para as cucuias. Temos o comcertezismo politicamente correto, ou seja, o tucano-petismo ongueiro e melífluo, e não pessoas reais que podem tomar cerveja sem que tenham sido impulsionados para isso pelo marketing.

A inflação, que retirou arroz e feijão da merenda escolar e come a bolsa-esmola pelas beiradas, é o resultado de um governo centrado nos interesses da especulação financeira. Ah, mas a crise é mundial, dirão as justificativas de sempre. O petróleo está a mais de 140 dólares! Os créditos pôdres na economia americana e que sei eu mais. Releiam o noticiário econômico da Era Lula. Crescimento, carteiras assinadas, ascensão social, estabilidade. Então tá. A inflação é o dragão sempre presente na sala, que devora a mobília antes de lamber o tapete da sala sujo de sangue das vítimas que se sucedem.

Viu como sabemos governar, como temos credibilidade, como enxugamos para depois ganhar impulso, como fizemos tudo certo etc? Mas, e a inflação? Carne nas alturas, materiais de construção e tudo mais? Isso passa. O que vale é a grandeza do lulismo triunfante, o cara do terceiro mandato, o que tentou se comparar a Vargas, o que ficou alardeando poços sob o concreto do fundo do mar, enquanto a brutalidade, a miséria, a corrupção grassavam pela nação em farrapos.

A inflação apenas segue o rumo dos donos do mundo, os especuladores e a bandidagem nos negócios. A ditadura financeira, que impõe na indústria do entretenimento e nas mídias em geral o vazio do eterno presente (a cantora com cocô de vaca na cabeça que aos 20 anos já está morrendo de overdose) é quem produz o desespero. A falta de perspectivas, a falta de hábito de habitar-se com cultura de primeiro time, a sensação de exclusão permanente num mundo que entronizou a barbárie (chamam de concorrência) leva as pessoas ao suicídio no trânsito e na violência em geral.

Tem saída? Claro. E não é vendo “um bom suspense”, como disse atorzinho global no sábado, ou lendo “um bom livro”, como se costuma dizer. Ou você mergulha na arte e na cultura para se transformar radicalmente nela, ou você vê algum sentido na sintonia fina com grandes autores, ou você parte para uma vida plena de luz e encantamento, ou você se decide pelo bem que traz dentro de si, ou você não se deixa enganar pelas armadilhas dos aproveitadores, que sugam espíritos em época de terror, ou você reage, se insurge, se expressa com todas as letras, ou você tem a coragem de estar vivo, ou então você paga o pedágio na hora de sair do restaurante ou do bar.


RETORNO - Imagem de hoje: o chefão é levado preso.

29 de junho de 2008

SINISTRUS JOE ESTÁ UMA FERA


Há tempos não visitava Sinistrus Joe. Quando acaba o verão, não costumo palmilhar a areia para uma conversa com o velho eremita, que vive numa praia escondida aqui na ilha, num puxadinho ao lado de um grande menir. Mas é sempre a curiosidade de saber o que ele está pensando sobre tudo que me leva novamente para lá. Sinistrus costuma ver o noticiário num aparelho de tevê que existe no bar mais próximo. Lá ele fica isolado, numa mesa do canto, a olhar, furibundo, a tela. Quando acaba o telejornal, permanece na mesma posição. Foi nesse momento que cheguei e cumprimentei.

― Senta aí, escritor, disse ele.
Joe jamais perguntava sobre a vida de ninguém. E falava da vida dele do jeito que bem entendia. Mas desta vez abriu uma exceção:
― Escrevendo muito livro?
― Sim, bastante...e ia começar a desfiar meu rosário de inéditos ou projetos encaminhados quando ele me interrompeu.
― O senhor não tem a postura de escritor. Dá muita bandeira.
― Você acha, Joe?
― Tenho certeza. O senhor escreve demais. Isso pega mal. Tem que vender caro o peixe. O senhor é um cardume de tainha na época das grandes safras. O pessoal joga muita coisa fora. Aprecia, mas descarta demais. Chega uma hora que enjoa. Acabam esnobando.
― O que devo fazer então?
― Falar de maneira pomposa, por exemplo. Não dar bola para a xiruzada. Ficar inacessível. Jamais responder e-mails. Quem responde e-mail ou fica de bobeira no orkut está querendo levar. E leva, como bem o senhor deve saber.
― Não concordo, disse. Escrevo normalmente, um texto por dia, às vezes um poema e muitas vezes algo como um conto ou o capítulo de um romance. Normal.
― Pois aí é que está. Escritor no Brasil não escreve, dá conferência. Por exemplo: quantas conferências o senhor preparou sobre Machado de Assis para este ano? É o centenário do bruxo velho, sabes disso.
― Nenhuma, claro.
― E sobre Guimarães Rosa? Tem gente ganhando os tubos com esses troços. Ficas perdendo tempo, es-cre-ven-do. Ora, ora, ora...

Era o velho Joe implicando comigo. Só podia ser isso. Não me conformei:
― Quer dizer que eu não deveria escrever coisa nenhuma?
― Isso mesmo. Quanto menos escrever, mais tempo livre para acumular capital simbólico. Se não cometeres uma única linha, então, é a glória. Serás como a vestimenta do rei nu, finíssimo.
― Mas aí alguém vai gritar a verdade.
― A verdade, no Brasil de hoje? Em que vendem o Estadão assim no más? Em que empilham bebês mortos no Nordeste sem que ninguém se dê conta até que a coisa fica demais e explode? Em que empalam uma índia excepcional? Em que matam a torto e a direito? Em que cobram os tubos a carne que sobra da exportação? Em que até alfinete é made in China? Não diga besteira.

Eu ia retrucar, mas Sinistrus estava afiado.
― Sabe por que tem tanta gente falando com blandícia na voz? Sabe o que é blandícia não é? É aquela boquinha mole cool, sibilina e meio cusparenta das falas acompanhadas por um olhar de licor de cacau. Tem muita gente falando assim, ciciando, com blandícia, sabe por quê?
― Não. Mas me diga.
― Porque fazem blow job em poderosos da terceira idade. Dá nisso. Ficam com esse vício melífluo no falar. Praticam muito blow job, pois são muitos os estamentos da corrupção que obrigam ao ato. Então eles ficam assim. Com a boca mole de tanto se dedicarem a objetos sem consistência. Aí viram autoridade não sei do quê. E dão entrevista.

Achei demais. Sempre acho demais quando visito Sinistrus Joe, o furibundo. O último brasileiro indignado do país perdido. Mas tinha mais:

― A compra do Estadão não é concentração midiática, é ditadura. Para que serve a ditadura? Para celebrar a si mesmo e assim manter os privilégios da meia dúzia que manda no país. Como celebrar a si mesmo com tantas contradições e problemas, não deixar vazar a realidade? Comprando quem interessa e apertando o cerco à comunicação. Por exemplo: distribuir concessões de rádio e TV para apaniguados políticos, os mesmos do sistema engessado, o que desde 64 cria ilhas de prosperidade enquanto o país se dana. Já houve o boom da classe média na época do início da soja. Agora é o da cana. Sobra dinheiro público movimentando o consumo desenfreado dos grotões.

― Qual a conseqüência disso, Joe?
― Isso atrai os bem pensantes, que vão lá fazer conferência. Ignorantes de que o Brasil é um país endógeno, que tem mercado interno, apesar de informal, desde o início da colonização, que existem inúmeras influências, não apenas dos países “de cima”, basta ver a convivência do Rio Grande do Sul com o Prata. Tivemos estadistas formados no interiorzão e que deram banho de civilização pelo mundo afora, como Oswaldo Aranha encantando Roosevelt, JK deslumbrando a imprensa francesa com seu francês impecável. Eles então dão uma colher de chá e descobrem o Brasil dos grotões, tão rico agora, cheio dessa música gritada horrorosa que dizem encantar as multidões.

― Eles se acham do centro, Joe, os reis da cocada preta.
― Quando que o centro foi centro? Por 25 anos, no século 20, fomos governados pelo chamado Sul. A maioria dos presidentes foram de fora de São Paulo. Infelizmente, agora estamos em plena fase paulista. Desde quando exportar proteína, num país carente de proteína como o nosso, deva ser celebrado? Eles se traem quando dizem "que pena" para a menina que pronuncia palavras fora do seu circuito íntimo da corte carioca, essa pronúncia com erres na garganta, bem melhor, claro, do erres na ponta da língua.

Joe não dava trégua:
― Esse boom da cana-de-açúcar é feito às custas da terra arável que deveria ser usada para produção de alimentos. É como a soja na época dos 70, quando explodiu os financiamentos para nos entregarmos como filhos da mãe aos interesses estrangeiros. Pessoas ficaram milionárias da noite para o dia, plantando soja às custas do dinheiro público. Isso cria ilhas de prosperidade. Lembre do município baiano batizado de Luiz Eduardo Magalhães ou dos melões e uvas dos japoneses às custas do que restam das águas do São Francisco. Os caras vêem apenas uma ilha. E ainda tem preconceito contra ela, pois falsamente se deslumbram. Claro que precisam divulgar sua falsa admiração, estão ganhando os tubos para mentir. E são convidados para tudo que é evento. Obrigam os estudantes a comparecer.

Me dei por satisfeito. Cumprimentei meu irado interlocutor e sumi mais uma vez. Precisava escrever o que acabara de ouvir.

RETORNO - Imagem de hoje: Alegria, obra de Ricky Bols. Só a alegria da criação poderá nos levar a atos verdadeiros de libertação.

26 de junho de 2008

AS PIORES PERGUNTAS DO MUNDO


Perguntas recorrentes, que costumam nos atormentar, fazem parte do pior do convívio humano. São uma espécie de anteparo para a conversa que deveria ter consideração e expõe apenas indiferença, muitas vezes desprezo. Lembrei de algumas.

VOCÊ TRABALHA? – Essa é mortal. Significa: admita, ouvi falar, estou vendo, você não trabalha, ou seja, não faz parte do mundo produtivo, é um vagabundo, deixou-se ficar, é looser, foi demitido e não consegue recolocação, não construiu uma carreira (assim como ele ou ela, a pessoa que pergunta), não participa do fomento financeiro do sustento, é um pária, por que continuas vivo se não mereces? Quando te perguntarem “você trabalha?” responda: “Não, mas costumo comer muito cu”. É tiro e queda.

TE ACORDEI? – A pessoa telefona para tua casa e pergunta se estavas dormindo. Significa o óbvio: quem pergunta está há horas acordado enquanto dormes a sono solto, irresponsável e ridículo. Mas quem telefona está fazendo um bem para você, está tirando você dessa modorra sem sentido que é sua vida e inoculando um pouco de anima, alma, para poderes sair da posição de verme para o de, pelo menos, escravo. É como dizia a mulher do sambista: acorda e vai trabalhar que já passa de 1930. Se perguntarem “te acordei?” responda: “Sim, estava só esperando um imbecil me despertar”.

É MENINO OU MENINA? - A cretinice adora fazer essa pergunta diante do teu pimpolho. A criança está expondo seu gênero em roupa, maquiagem etc., mas o canalha acha que pode ser engraçadinho colocando em dúvida se tão formosa menina não passa de um garoto ou tão explícito guri talvez seja no fundo guria. Significa que o filho está repassando a dúvida herdada do pai. O animal está chamando você de viado, é isso. Ou quer provar que os pais não conseguem manipular os sinais convenientes para definir o sexo dos anjinhos.

POR QUE VOCÊ ENGORDOU? – Há muitas respostas para essa pergunta, todas elas malcriadas, desaforadas ou ofensivas. Mas tem uma que é um míssil: “Engordei porque comi tua mãe. Meu bucho não conseguiu digerir a véia”. Tente. Mas diga isso armado.

O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI? – Sabemos o significado da pergunta. Quem deveria estar aqui é o perguntador, não você. Ele é que é, ele que merece estar nesse local privilegiado. Você não tem nada a fazer ali. Você, portanto, deve explicações, já que nada justifica a sua presença. E se você está aqui é porque alguma você vai aprontar. Pedir alguma coisa, por exemplo. Derrubar vinho caro no chão. Tentar puxar conversa com o presidente. “Vim cuidar da minha carrocinha de cachorro-quente” é uma boa resposta. Reforça o perfil de um pobretão marginal, deixando a pessoa ao mesmo tempo satisfeita e confusa.

JÁ TE APOSENTASTE? – Há muitos anos que escuto essa pergunta. Como não cheguei aos 60, a resposta, bem educada, é não. Mas dá vontade perguntar por que tanto interesse. Certamente é porque a pessoa quer te chamar de velho imprestável e não sabe como. Aliás, há sempre uma nova maneira de te chamar de gordo ou velho. Ficaste forte. Queres que eu arrede mais a mesa? Você consegue passar? Será que você cabe? O senhor tem oitenta anos? Agora eu entendo aquele senhor muito distinto de Uruguaiana, que ao fazer noventa anos começou a sacudir seu grande cajado com a janela aberta, chamando a atenção dos maledicentes. "Vão se roçar numa tuna", como se diz por lá.

RETORNO - 1. Aviso aos navegantes. O Diário da Fonte tenta fazer justiça e defender as vítimas do pesadelo da linguagem. Não significa que eu me enquadre entre os sofredores o tempo todo. Para fazer este post, por exemplo, consultei minhas bases para levantar cases. Se você tiver alguma pergunta indecente para lembrar, diga para nós que a gente inclui. 2. Imagem de hoje: Dias Felizes, foto de Clovis Heberle, em que apareço, super-gurizão, no Imbé, de férias, de camisa amarela, remontando pandorga com meus filhos Daniel e Miguel. Fotaça que eu não conhecia e que foi resgatada por Clovis, esse cara magnífico que esta sempre conosco. Por que está neste post? Para lembrar que somos a soma do tempo e que jamais poderão nos enquadrar.

24 de junho de 2008

VIDA EM MARTE


Nei Duclós (*)

Temos pavor da diferença. Colocamos em fila gigantescos receptores de emissões de rádio na esperança de captar o Frank Sinatra de Andrômedra. Por que existiria alguém no fundo do abismo estelar querendo se relacionar conosco? Agora ficam atormentando Marte em busca de vida. Por que não procuram outra coisa? Quem garante que os planetas, todos eles, tenham alguma a coisa a ver com o que chamamos vida? Marte poderia estar envolvido com outro esquema, produzindo cubos fractais invisíveis, com faces viradas para o centro da galáxia, por exemplo.

Nada a ver com o teodolito de “2001, Uma Odisséia no Espaço”, aquele objeto-cabeça que deixou todo mundo falando besteira por décadas. Mas com algo que nos escapa, fora dos limites do Mesmo. Queremos coisas idênticas ao que temos, como se Deus perdesse tempo produzindo gêmeos de tudo. Insistem tanto que são até capazes de descobrir alguma coisa parecida com petróleo em algum lugar distante. Vamos imaginar comboios cruzando o infinito, carregados com essa gosma caríssima.

É hora de dar as costas para o cara-metadismo cultural que nos assola, desde que esqueceram Glenn Miller e entronizaram Madona. A verdade é que a cultura de massa, tão celebrada quando surgiu, perdeu completamente a compostura. Antes, ela cuidava de multiplicar a recepção dos talentos. Depois, substituiu Russ Tamblyn, a maior explosão coreográfica do cinema, em “West side story”, por Reynaldo Gianecchini dando passos de tango no Faustão.

A verdade é que não importa mais quem faz o quê. O que vale é preencher as milhares de horas disponíveis para servir de recheio no sanduíche dos mega-interesses. Não é que o mundo tenha mudado. O mundo, de fato, acabou. Viramos marcianos a olhar, incrédulos, o que fizeram com o lugar onde passamos a maior parte de nossas vidas. A destruição é tão completa que fica difícil explicar para a moçada como foi que aconteceu o desastre. Corremos o risco de ficar falando sozinhos, diante de pelotões infindáveis de celulares.

Fui pioneiro no uso do celular. Logo que aportou no Brasil, eu pendia de um lado com o peso do aparelho, muito parecido, nas dimensões e alcance, com aqueles telefonões portáteis da Segunda Guerra. Ainda insisti um tempo, mas acabei desistindo. É que na fila do fast-food sempre tinha um chamado urgente no aparelhinho para estragar o apetite. Agora que os bichos tiram fotos e navegam na internet, prefiro o velho micro de guerra. Sou tão antigo que faço parte do tempo em que os microcomputadores ficavam em cima das mesas, com um visor na frente. Não eram como agora, em que o Google é um beija-flor pendurado nos olhos coletivos em movimento.

É uma época de espantos. Querem a todo pano que haja água em Marte. Sonham até com bactérias, mas não adianta confundir rocha com gelo. Marte é uma gigantesca bola de coisas inúteis. Serve para provar que estamos sós no cosmo e que Steve Spielberg mentiu o tempo todo. Até é melhor assim. Senão teríamos o governador da Califórnia reinando no deserto vermelho. Falando em Schwarzenegger, soube por Sly Stalone num making of que ambos seriam agora anti-diluvianos.

É chocante ver John Rambo tão deslocado na terra quanto eu. Rambo surgiu há pouco, quando eu já estava pronto. Não pode me tirar o privilégio de denunciar, antes dele, a exclusão dos contemporâneos. Que vá navegar em Marte, procurar sua cara-metade. Ou na Birmânia, que também faz parte do Mundo Perdido.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça, feira, dia 24 de junho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: o cara. Ele não existe em Andrômeda, mas sua voz pode nos levar para lá.

COISAS INSUPORTÁVEIS DO CINEMA


Costumo escrever sobre filmes que considero importantes ou que me impactam. Os outros, a quantidade de bobagens que me fazem desistir no meio da sessão ou passar ao longo nas locadoras, esses eu ignoro. Mas é importante destacar algumas coisas insuportáveis do cinema. Precisamos dizer o que nos incomoda, para detectar parâmetros (às vezes não conseguimos identificar o núcleo do desconforto). A seguir, alguns itens desse assunto candente:

VAMPIRISMO - Odeio filme de vampiro. Não suporto a idéia de que chupar o pescoço alheio com grande caninos seja algo que dê tesão. O que mais me incomoda é que trata-se de uma maldade sem fim tratada como entretenimento. Pior: as mulheres nesses filmes, as pessoas em geral, se entregam como filhos da mãe para os hediondos chupadores. É a celebração do Mal pelo Mal.

CANIBALISMO - Desisti de seguir adiante no novo filme de Tim Burton, Sweeney Todd - O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, sobre o navalhista sanguinolento interpretado por Johnny Depp. O diretor coloca a própria mulher, Helena Bonham Carter, excelente atriz, no papel da lojista fabricante de torta que aproveita a carne humana para rechear seus produtos. É de um mau gosto sem fim. Tudo ao som de músicas medianas, num filme dark horroroso, em que só faltam os caninos no barbeiro para o troço ficar completo. Brincam com essas coisas e depois ficam chocados com os casos de canibalismo, reais, que a polícia descobre.

ESCATOLOGIA - Ontem, segunda-feira, na Tela Quente da Globo, vi um pouco do filme em que um idiota metido a gigolô na Europa participa das cenas mais nojentas possíveis. O cinema americano adora mostrar porcarias que as pessoas fazem como se isso fosse engraçado. Adoram filmar gente mijando, cagando, vomitando na privada ou que sei eu. Já temos urina e fezes o suficiente na vida diária, com tanta falta de esgoto e políticas públicas de saneamento básico inexistentes. Para quê tentar fazer comédia com isso? É demais, é muito filme asqueroso para suportar. Odeio produtos da indústria cultural em que as pessoas “se cagam e se mijam”. Virem esses troços para lá.

IMPERIALISMO - Continuo me perguntando: os atores, produtores e cineastas entram em acordo com a CIA e o FBI para provar como os americanos são fodalhões e chutam o traseiro de todos os povos, dentro e fora da América, ou eles acreditam piamente nisso? Acho que tem grana preta do Pentágono e outras instituições do Império na indústria cinematográfica e as estrelas apenas obedecem ordens. Sim, eles devem acreditar que os EUA são mesmo inocentes (será?). Mas daí a destroçar birmanenses, nicaraguanos, árabes, africanos com convicção e baba de prazer na boca é outra coisa.

VIDEOCLIPISMO – Fazer videoclipe no meio do filme é de uma pobreza visual e narrativa sem fim. Vi recentemente “Meu nome não é Jonnhy”, que é uma sucessão de videoclipes. Depois descobri que o diretor faz isso mesmo, na publicidade. Puseram o cara a criar clipezinhos ao longo do filme. Esse é um recurso usado até o osso. Se o cineasta não tem capacidade de manter segura a estrutura do filme, então vá fazer outra coisa, não cinema.

COVARDIA - Tem filme demais em que as vítimas sofrem horas nas mãos dos mais variados tipos de covardes. É mulher apanhando, criança sendo morta, desarmados sob tortura. Nesse ambiente, inventam good guys (os chamados antigamente mocinhos) truculentos, que ficam à altura da covardia reinante. Tudo isso desvirtua os valores, inocula o vírus da maldade, pois só sendo horroroso para conseguir peitar a brutalidade. É a celebração da covardia, como se fosse um novo valor moral.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Depp e Carter no filme do barbeiro matador. Vingança não justifica caniobalismo. 2. Pode parecer contraditório bater na covardia explícita dos filmes depois de elogiar "No country for old men". A diferença é que os Irmãos Cohen não produzem perda de tempo apelativa, é cinema de alta voltagem. Aqui, me refiro às bobagens que nos incomodam, como se fôssemos coniventes com todas as barbaridades. O Mal interpretado por Javier Bardem não é o gozo comercial de Depp interpretando o barbeiro. É diferente. Um nos aterroriza, o outro tenta nos seduzir.

22 de junho de 2008

O DESTINO NÃO É HUMANO


Nei Duclós

Não há lugar para a memória numa terra em desencanto. Tudo o que for lembrado soa como se fosse de outro mundo. Xerifes desarmados, por exemplo. Ou facínoras previsíveis em crimes sob controle. Dinheiro e drogas rompem os limites do humano e abrem as comportas de algo além do drama: o fim da espécie, a fase terminal da vida que imperou por tanto tempo.

Par encarnar o Mal que assombra a rotina da paisagem aparentemente imutável do deserto texano, foi escolhido um ator espanhol, Javier Bardem, ou seja, um alienígena que inicia a perseguição no último reduto da América tradicional. No lugar onde até o gado tinha alguma chance quando havia apenas abate e não extermínio, as pistas não fazem sentido, a brutalidade não cabe nas celas. O destino, que se refugia no sonho, abre mão para uma outra natureza. Ele deixa de ser humano e se transforma numa catástrofe.

Há uma seqüência capital de No country for old men, dos Irmãos Cohen, que no Brasil ganhou o improvável título de “Onde os fracos não têm vez” (o que bate com a velha tendência nada-a- ver tipo “Os brutos também amam”, para o filme Shane, ou “Assim caminha a humanidade”, para Giant, ambos de George Stevens). É quando o facínora persegue o texano, interpretado por Josh Brolin, na fronteira com o México. O assassino não mostra a cara o tempo todo. Os espectadores já estão impregnados de sua presença. Não há mais o que mostrar, a não ser suas ações, seus impactos na vítima em fuga. As balas se sucedem por todo o lado, arrancando pânico e sangue. O rosto animal não aparece, mas somos tomados pelo terror.

Isso se chama cinema. O melhor de tudo é que os diretores não caem nas armadilhas fake de quem pretende fazer filme noir. Ninguém fuma o tempo todo para dizer que estamos nos anos 80. O claro-escuro, que parece ser fruto de um processo de colorização em cima do preto-e-branco, é feito de sombras e de câmaras que capturam de longe as tramas da perseguição. Não nos lembra “ah, isso parece anos 40 ou 50”. Nada disso. É século 21 mesmo, da técnica apurada, da explosão de recursos visuais que jamais sufocam a quem assiste, ao contrário, nos invocam, nos atraem para a tentação de ver o que parece sempre obscuro, confuso, irremediável.

Assistimos à revelia da realização, da obra. O filme não se entrega como um filho da mãe para quem está preso na cadeira, tomado de pânico diante do que vê. Os acontecimentos nos escapam, como se fôssemos obrigados a também entrar numa espécie de perseguição. Nosso olhar pergunta: o que está acontecendo? Esse serial killer foi contratado pela máfia que teve prejuízo na transação do deserto? Esse texano, é mau? Ou é um caçador comum, um pobre bicho qualquer, que só estava no local do crime por acaso?

Perguntamos para não perdermos o fio da história, que se desenrola sem piedade. Sabemos que tudo desaguará em mais tragédia. Não temos ilusão de algo acabará bem. O destino, encarnado no bruto cerebral e sádico, não presta atenção aos nossos apelos. Vai se consumando, como naufrágio previsto pelas blasfêmias. Somos então atirados no meio de uma procissão de horrores, sem jamais nos perguntar o que estamos fazendo ali. Sabemos que não perdemos tempo ao assistir o filme. Porque tudo o mais é desperdício a não ser ver o cinema de verdade, tão raro nesta época de vazio.

Não saímos habitados da obra, pois ela não faz parte da cultura, da emoção, ou da arte. É algo maior. É como se uma bomba de plasma explodisse no nosso nariz. É como se Van Gogh fosse o pesadelo dos mais cruéis desenhos de Goya. É como se o mundo fosse um cenário de sombras, a solidão nossa única realidade, o assassinato a única ocupação, o medo a única missão. Sonhamos, sim, com um mundo melhor. Mas é presunção nossa, como diz o personagem visitado no final pelo velho xerife, interpretado por Tommy Lee Jones, querer que as coisas não aconteçam dessa maneira.

Esta tudo escrito, não apenas no romance original de Cormac McCarthy. Está escrito na neve da montanha misturada aos cascos dos cavalos exaustos. Está escrito na mesa do café frio e intragável da casa em ruínas. Está escrito neste incomparável cinema impiedoso, que os americanos fazem para nos assustar. Nós, que pertencemos a um sonho feliz de universo, somos chamados às falas pelos artistas de um povo mutante, fruto de sobrvivências ancestrais de mortes em massa e que nos preparam diante do que há por vir. E virá, essa avalanche de coisas que só Deus, dizemos nós, é capaz de segurar.

RETORNO - Imagem de hoje: Javier Bardem, a maior encarnação do Mal no cinema, a exemplo de Jack Palance em Shane.

21 de junho de 2008

ARTE AFORA


Nei Duclós (*)

Lidergrama é a charada que se decifra para se chegar ao poema. As letras dos versos escondidos eram tiradas a esmo de uma dança de palavras. A descoberta da resposta exata nascia da consulta de pilhas de exemplares Lello, aquele dicionário que escoltava a cabeceira de meus pais nas noites intermináveis de inverno. Com capa cor de vinho, o roteiro seguro da língua indicava o sinônimo adequado, o sinal mais evidente, o significado oculto de tantas perguntas que se somavam nas edições do sagrado jornal de domingo.

Vendo assim, de óculos pendurados no rosto cheio de concentração, quando passávamos em direção ao nosso quarto, nos parecia que ali existia algo misterioso. Não pela charada em si, mas pela alegria serena, renovada toda semana, de chegar enfim às estrofes que coroavam o esforço. Sobre grandes travesseiros, minha mãe palmilhava os segredos propostos sem pedir ajuda a ninguém, pois a graça era enfrentar com poucas armas a dificuldade prazerosa, que enfim se consumava na solução.

Longe dali, eu ainda convivia, na lembrança, com aquela cena, quando comecei a publicar os primeiros poemas na imprensa da capital, exatamente na empresa que despachava o Lidergrama para a fronteira havia décadas. Num daqueles domingos, a composição da resposta revelou para a mãe ainda incrédula, uma das poesias que saíram do meu caderno para a multiplicação editorial.

Foi a confluência de duas artes por inumeráveis rotas. A mais óbvia é entre mãe e filho que se encontram sem aviso, surpresos do abraço que elimina distâncias. Mas há outras. Especialmente a comunhão das artes que sustentam a vida. Ambos nos encantávamos com as palavras. Até hoje guardo suas cartas, escritas com uma sinceridade que não era comum nas conversas ao vivo e que adquiriam o tom melancólico e comovente das situações eternas.

Ela tinha o dom e procurava, no exercício das charadas, intensificar essa sintonia fina entre trajetória pessoal e sonho, pela larga estrada do verbo impresso. Os livros a acompanhavam desde menina, quando era colocada, aos gritos, para debaixo da cama pela família assustada com revolução nos difíceis anos 1920; e quando era a colegial brilhante que completou a formação em Porto Alegre. A literatura fazia parte dela quando, noiva, posava ao lado do elegante cônjuge de fino bigode e olhar sedutor; e quando, mãe orgulhosa, levantava seus filhos recém nascidos nos braços, como se fossem taças de muitas vitórias. A consolava quando assumia o papel de preocupada vigilante dos estudos que se espalhavam por toda a casa. Temperava sua conversa quando cumpria a função de educada anfitriã na mesa farta, diante das visitas e rodeada de seus rebentos.

Lendo, e, eventualmente, escrevendo, foi a senhora séria que sofria com desvios de rumos dos mais rebeldes; e por fim a anciã precoce, de grossos óculos, mergulhada em lençóis e papéis quando tinha algo a resolver nos cadernos dominicais. Todas essas personas cultivavam a arte lendária das mulheres desta nação hoje em farrapos, que ela ajudou a construir com a paciência e a força de seus braços e com a doçura do seu grande coração.

Sem eu saber, essa era a arte que sempre me inspirou na hora de ler ou escrever. A fonte não era apenas a paisagem natural da terra lisa que se estendia até tocar o céu, no horizonte molhados pelo rio que separa nações, mas que une abismos. Brotava principalmente daqueles gestos que fecundavam sem exigir retorno, que protegiam porque essa era a missão, e que nos projetavam para frente porque esse era seu desejo.

Arte afora, a vida que levamos é esse mar formado por quem nos gerou e criou. Fomos adotados por Deus quando nascemos de seu ventre. Fomos sonhados antes de nascer. Palavras, no fundo, são os recipientes onde o orvalho familiar pousa o bico de beija-flor. Sorvemos aos goles a herança que nos garante o vôo.

As palavras de nada serviriam se não lutássemos com elas para chegarmos ao poema. Assim como de nada serviria esta passagem sobre a terra não fosse a percepção de que somos parte de algo maior, que nos transcende, como um raio de sol depois do vendaval.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: eu no colo da minha mãe, Dona Rosinha.

20 de junho de 2008

JOHNNY NÃO É FILME


Estava curioso em relação a “Meu nome não é Johnny”, de Mauro Lima. Fizeram grande estardalhaço sobre o filme, colocando-o como contraponto de “Tropa de Elite”. Quanta baboseira. Johnny é um filme medíocre, cheio de clipezinhos, com diálogos de teatro amador, de obviedades sem fim. Garoto classe média tolerado em suas traquinagens pesadas na infância, que tem a família destroçada por uma separação dos pais, se envolve com drogas e vai parar na cadeia. O tema não interessa, o que vale é o cinema. E como linguagem cinematográfica é um desastre.

A preocupação em reproduzir os anos 80, nas roupas, comportamento e gírias, é patético. Época não se reproduz, sumiu para sempre no buraco negro. O que existe é a disposição dos elementos do cenário e do figurino em função de uma narrativa. E nisso Johhny é um fracasso. O lugar comum, o clichê impera. Por que não tiram o cigarro da boca? Para reproduzir a época e a tribo drogada. Essa história de abordar de maneira fake o vício do cigarro está enchendo o saco. Vi filme americano em que os caras sugam o cigarro sem parar para mostrar que era assim na época. Ora, uma tragada bastaria, não precisa obrigar os atores a chupar indefinidamente a cigarreira e soltar fumaças cools na cara dos espectadores.

A reiteração do óbvio tem momentos lancinantes, como a cena em que Johnny cheira no térreo enquanto o papai morre tossindo no primeiro andar. Que coisa sem sentido. E ficam horas nisso, com um desenlace ridículo, de um filho inconsolável sendo consolado pelos parceiros do cheiro e do fumo. Droga, em si, é uma porcaria. O drogado só pensa em se drogar. Não quer outra vida. Finge prestar atenção nos outros, mas o foco está lá, no pó ou no fumo, ou na birita (ainda se diz birita?).

Tropa de Elite é cinema, Jonnhy não. Não interessa quem tem razão em relação à classe média e sua relação com as drogas. Importa o que é cinema, produção audiovisual competente, forte, original, de vanguarda. Johnny parece novela das sete. Tem até a Cléo Pires. Selton Mello, que nos deu um ótimo “O Cheiro do Ralo”, agora escoa à toa pelo filme afora, olhando significativamente pela janela do carro da polícia, enquanto a cara dele quando menino também olha pela janela do carro da família. Ó, quanta criatividade.

O irritante é ver tanta polêmica à toa. Não se discute cinema, se debate idéias fixas, papos modinha, pautas jornalísticas. Tenham dó. É preciso prestar atenção no básico. E cinema é o que está na tela, só. O resto – classe média, drogas, samba ou rocknroll, é besteira. Você pode fazer um filme genial sobre coisa nenhuma, não obrigatoriamente contar uma história ou entreter. “Oito e meio”, de Fellini, é um filme sobre o nada, o vazio, o impasse criativo. Um filme que dá voltas sobre si mesmo e tenta se encontrar. É absolutamente genial. A série Seinfeld, dos anos 90, é sobre coisa nenhuma, ou seja, sobre pessoas conversando o tempo todo e se entregando enquanto interagem. Não há nada melhor.

Agora, discutir a situação social da classe média enquanto fumeta, vista de um ângulo sociopata econômico da marginalidade produzida, é o caralho. Parem com isso. Johnny é um filme ruim. Tropa de Elite é um filme ótimo. Simples.

RETORNO - Imagem de hoje: Selton Mello sendo preso em Johnny.

19 de junho de 2008

DITADURA MANTÉM EXÉRCITO OBSOLETO


É o melhor dos mundos para a ditadura que se escuda no conceito de democracia. Ao abandonar o Exército à própria sorte, tirar-lhe poder e recursos, deixar que seus instrumentos sejam sucateados, a ditadura financeira, globalizante e entreguista mantém as Forças Armadas sob pesado jugo, intensificado pela fidelidade de uma parte da farda ao regime de 64 (a ilusão do Brasil Grande, desperdício de sonhos e ante-sala da atual situação).

Com políticas anti-Brasil, a ditadura mantém no Exército os mesmos métodos obsoletos que acabam fazendo vítimas entre recrutas e aspirantes, e colocam os soldados para serem testas de ferro no Haiti (sob mais uma ilusão, a de que fazemos parte do jogo de cena da segurança internacional). Pior: envolveu o Exército nos negócios parlamentares na favela, onde o crime do tenente que entregou os garotos para os traficantes é apenas o resultado. Assim, a ditadura mantém o álibi perfeito de que é uma democracia, já que faz do Exército gato e sapato.

Um dos grandes feitos da ditadura é ter em suas hostes o rescaldo do movimento Diretas-já, que é a cultura política dos bem pensantes, os estadistas do Direito, os ex-torturados a reiterar o perigo que um dia corremos, sem deixar transparecer que tudo continua igual, a censura à imprensa, o assassinato de jornalistas, a corrupção, a entrega da soberania, a venda indiscriminada do território a estrangeiros, as obras no papel, as medidas provisórias, a inflação, o arrocho, a tortura, a escravidão, o império da publicidade e dos megaeventos.

Quem poderia se contrapor a uma situação estratégica de invasão estrangeira na Amazônia? O Exército, claro. Onde está o Exército? Respondendo por envolvimento no tráfico do morro da Mineira. Não é perfeito? Mas confio na instituição, nos homens de palavra que não interferiram mais na política. Quando vejo os militares com sua postura, seus uniformes, seu equilíbrio, falando para as câmaras, quando os vejo em seminários de História, defendendo o país que tanto querem destruir, quando os vejo com sua grandeza, herança de cinco séculos de luta, confio que os militares vão superar tudo isso: a ilusão de 64, o jogo bruto atual da política, a falta de condições para defender as fronteiras, a defasagem de suas instalações etc.

É pecado defender o Exército na atual maré alta do bom-mocismo correcional, o mesmo que enche as burras de dinheiro público. É pecado abordar as Forças Armadas com espírito livre, sem patriotadas, mas também sem negar a brasilidade. Vejo evento do príncipe japonês no Planalto. Um xiruzão brasileiro, com traços orientais, fala que ele, xiru, é um “súdito” da majestade japonesa. Súdito o quê, cara pálida? Tu és cidadão brasileiro. Como podes te abaixar assim para uma etnia, como se ela fosse te salvar dos nossos conflitos e nossa miséria? Como se a etnia fosse te dar a grandeza que não enxergas em nós mesmos, brasileiros de todos os quadrantes.

Era o que faltava. Temos súditos. Aproveito para perguntar: que história é essa de uma República ter tantos palácios? Palácio é para reis, não para pessoas eleitas pelo voto direto. Chega de palácios. Chega de ficar “em Palácio” como se costumava dizer. Chega de negociatas com o patrimônio nacional, como essa da Varig. Viram a boca mole do advogado? Ele fala de boca mole, escandindo as sílabas. Está com tudo e não está prosa! Mas a culpa toda é do Exército, claro. Daquela “ditadura”, a que nós “derrotamos”. Conta agora a piada do papagaio fanho. É mais recente.

RETORNO - Imagem de hoje: carga de cavalaria dos índios guaicurus.

17 de junho de 2008

SABEDORIA DE ESQUINA


Nei Duclós (*)

Há muitas vantagens para quem trabalha em casa. Escapar da greve de ônibus é uma delas. Perder a chance de ser contestado pelos mais moços é outra. No escritório caseiro, não há o convívio forçado entre pessoas que pouco tem em comum, a não ser a escolha da profissão e, às vezes, nem isso, se a equipe for multidisciplinar. Imagino que o maior ganho é poder se resguardar das armadilhas do clima, ou então deixar de pagar o mico nas festas de fim de ano.

Numa grande corporação, que tem rodízio de liderança e as contratações obedecem aos caprichos dos diretores emergentes, fica estranho cantar Parabéns a Você no meio do expediente, para pessoas que participam de grupos voláteis. Os empregos somem ou mudam de mãos, e as substituições não delegam a intimidade necessária para bolo e refrigerante. Produzir em ambiente doméstico nos livra dessas mutações que sempre deixam algum rescaldo, normalmente amargo.

A não ser que os abraços corporativos girem em torno do sucesso de quem decide dar o salto para outro lugar. Ser convidado para assumir novas funções, melhor remuneradas, é uma das glórias da vida coletiva dentro de empresas e repartições. É mais raro do que as demissões, e às vezes significam um pulo no escuro nem sempre com final feliz. Mas o que vale é saber-se integrado no mundo em movimento, e isso só é possível sentir quando se sai todos os dias para o trabalho.

Quem fica em casa por opção já resolveu alguns impasses básicos e tem credibilidade suficiente para manter contatos, sem precisar bater ponto. Mas há desvantagens. Uma das mais duras é não participar das conversas interessantes, pescadas ao acaso, de vidas que cruzam conosco e deixam boas lembranças, sabedorias surpreendentes ou experiências inéditas.

Quando a abordagem inclui mentes esclarecidas, dessas que não aborrecem o interlocutor, surgem boas oportunidades. Como alguém que puxou conversa comigo quando estávamos parados, depois do almoço, em frente a um prédio comercial de esquina. Ele me confidenciou que as lojas, hoje, não vendem mais produtos, mas juros. O objetivo é endividar o cliente, disse ele, e é por isso que as casas de comércio se transformaram em agências financeiras. Os móveis, os eletrodomésticos, são só um detalhe. Achei pessimista demais a observação, mas não li nenhum especialista com um insigh tão impactante. E se for verdade?

Imagino que as pessoas estocam conhecimento sem esperança de passá-lo adiante. Há bastante má vontade em relação ao pensamento autóctene, o que não segue a cartilha e que se perde na multidão. A sacada empírica, fundada na observação direta, a mesma que fez a glória dos fundadores da ciência, foi deixada de lado. Os sabichões abundam por toda parte, calcados no que já foi comprovado, esquecidos de que existe muita estrada ao nosso redor para ser processada por mentes insaciáveis.

Recolher-se em casa não é a melhor solução para quem tem o que dizer e sofre com a falta de interlocutores. Vemos como os idosos estão secos para falar em qualquer instância. Eles querem compartilhar a sabedoria nas esquinas da cidade. Mas esse hábito já não existe mais. Quando voltaremos a nos falar, acreditando no que ouvimos uns dos outros? Talvez quando a violência ceder e voltemos a nos dedicar aos debates ao ar livre, como acontecia nas praças e nas calçadas.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 17 de junho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: obra de Di Cavalcanti.

16 de junho de 2008

SELEÇÃO BRASILEIRA E IMPRENSA


Dunga perdeu a invencibilidade nas eliminatórias e o Brasil está numa sinuca de bico. O time praticamente não existe, mas tem sido assim há mais de 15 anos. Acho que 1982 foi a última seleção brasileira da fase heróica, representativa do que se jogava no Brasil. Estava ainda no início a maciça internacionalização, como era o caso de Falcão, rei de Roma (o “rei” vinha de Pelé, mas num reino mais estrito).

Vai ficar cada vez pior, pois estamos exportando promessas de craques, com menos de 16 anos, ou seja, estamos raspando o tacho de mais um rico veio de recursos. Assim mesmo, ganhamos a copa de 94 e todo mundo falava mal de Parreira. Também ganhamos a de 2002 e todo mundo execrava Felipão. Lembro de comentaristas olhando sampacu para a câmara enquanto vociferam “In-gla-terra!” (os ingleses levaram um toco). Ganhamos a Copa América com Dunga, acusado de ser um anão espetado.

Voltam os arroubos e os suspiros diante dos estrangeiros. Na tarde de domingo, vimos Galvão Bueno tirar rapidinho o time de campo quando a seleção começou a fazer água. Se a equipe mantivesse a escrita, derrubando os paraguaios, lá estaria Bueno na maré alta da vitória, como sempre faz, alardeando nossa superioridade, que nada mais é do que a velha patriotada servindo de embalagem para faturamentos diversos. Bastou os canarinhos se mostrarem descosturados, sem chutar a gol, na defensiva, para a síndrome de Zizou Zidane voltar com tudo. É incrível a capacidade que a cobertura brasileira esportiva tem de fazer declarações de amor aos adversários. Ayala, Tchibêbe, Cienfuegos: que craques! Armendariz, Pitchoco, Menendez: ay ay ay!

Como todo mundo, tenho perguntas a fazer para Dunga, como o fato de ter colocado Adriano só depois de termos levado o segundo gol. Mas isso não me libera para execrar técnico e seleção como se fossem leprosos. O medo diante da Argentina, que enfrentaremos nesta quarta-feira, e que é fruto de temores ancestrais, se transforma em admiração pelos portenhos, como sempre, apesar de terem levado de nós tocos sobre tocos, perdendo copas Américas e se classificando abaixo nas eliminatórias. A retenção diante dos argentinos sempre volta, como o inverno.

Cansei desse jogo de empurra, dessa má vontade diante da seleção. Lembro como malhavam o Telê Santana, como caíram em cima dele depois de 1982 (arte, arte, que escândalo!) e de 1986. Do Telê! Quando Vanderley Luxemburgo começou a ratear um pouco, o derrubaram. Ninguém presta, ninguém dá conta. Como se o futebol fosse propriedade da imprensa, que cobra como se estivesse numa relação patrão escravo. Ora, catem-se. Seleção somos nós lá, e se somos nós, precisamos ser solidários. Erraram, vamos criticar, mas não destruí-los. Quantas vezes a imprensa se desmoralizou diante dos resultados, que calaram a boca de todo mundo?

Faltou inteligência, confiança, força, tática, estratégia e até mesmo alguns craques na seleção de Dunga no domingo contra o Paraguai. Mas o que não pode faltar é vergonha da imprensa, que cai de pau matando como se fôssemos os eternos beneficiários do suor dos atletas e jamais os conterrâneos na hora das derrotas. Basta perder para todo mundo virar venezuelano. Tchávez, Tchávez, veni acá, pibe de oro! Estamos numa fase ruim, mas podemos melhorar. A seleção teve momentos bons e vi que se desenhou várias vezes o time que deveríamos ter. Ainda acho que a seleção deveria refletir o futebol que se joga no país e não esse conjunto de jogadores trazidos de times estrangeiros. Mas já que temos o que aí está, vamos fazer uma abordagem mais equilibrada.

Execro Lucio, não sei quem é Josué, acho Anderson fraco, apesar de ter dado dois bons tironaços a gol, acho que Robinho sumiu no jogo, não temos batedores de falta etc. Mas temos condições de reverter esse quadro. Argentinos? Correria com precisão de relógio cuco. Basta firmar um pouco que se desmancham. E depois choram. Pode ser que ganhem. Mas isso jamais deve ser motivo para zidanear a esmo. Zizou, Zizou, vai tomar...

RETORNO - Imagem de hoje: Batalha do Riachuelo, do tempo em que a gente ganhava do Paraguai.

15 de junho de 2008

JAPONESES NO BRASIL


Os japoneses são de um país sem terra. Não que haja pouca terra lá, não há terra nenhuma. É um arquipélago de rochas, o que obrigou a cultura deles a inventar tudo do nada. Sem madeira para queimar, se acostumaram a comer peixe cru, por exemplo. Para mim, não tem sashi ou sashimi que chegue aos pés de postas de dourado frito na beira do rio Uruguai. Mas isso não importa. O que vale é que o Japão não existe fora de sua cultura. Não se pode dizer o mesmo do Brasil. Se tirarem todos os habitantes do país, derrubarem as cidades, expulsarem as pessoas do campo, o Brasil continuará firme e o mato tomará conta de tudo. Já o Japão será apenas uma série de fósseis de ostras empilhadas batidas pelo vento, com alguns terremotos e vulcões no meio.

Agora estão fazendo o maior estardalhaço com o centenário da imigração japonesa. Como é moda achar que o Brasil é obra de estrangeiros, dos migrantes que vieram depois de três séculos de luta aqui dentro, é bom colocar algumas coisas. Os japoneses aproveitaram os erros da monocultura e do latifúndio para desenvolveram por aqui uma agricultura de pequenos espaços, fundado na produção intensiva, sustentada por métodos artificiais de plantio e colheita. O uso excessivo de agrotóxico é fruto dessa mentalidade de tirar o máximo proveito em termos de custo-benefício.

No momento em que acusam o Brasil de ser predador e envenenador do meio ambiente, é bom lembrar que toda nossa alimentação tradicional é fundada na abundância, no extrativismo e plantio não predatórios, já que por séculos nossos ancestrais se alimentaram do que colhiam e plantavam e a mata continuava firme, até que vieram os grandes deflorestadores internacionais e começaram a dar cabo de tudo (o fofo navio Queen Elizabeth, de usufruto da rainha da Inglaterra, é todo feito de madeira brasileira). Nas nossas roças, algo ficava para os bichos, não era preciso transformar o chão num deserto produtor de coisas. O desmatamento que há, ala Jeca Tatu, é o resultado da apropriação indevida da terra por parte do latifúndio. Este, por sua vez, já desmatou o que pôde, e continua na ativa.

Os territórios atuais do agronegócio, desde a soja transgênica até as hortaliças produzidas em série, desde as horrendas florestas de eucaliptos às pastagens artificiais para gado, roubadas da selva desmatada, são cemitérios da natureza. Não, os japoneses não têm culpa disso tudo. Mas estão envolvidos (a manga irrigada por águas do São Francisco – rio que está morrendo - no Nordeste, a cargo de empresários japoneses, “induz” a época da colheita com produtos químicos, como revelou neste domingo o Globo Rural). Não podem ser elevados à categoria de reis da cocada preta só pelo fato de serem japoneses. Parte do segredo do sucesso deve ser debitado à eugenia. Empresas de propriedade de japoneses ou seus descendentes costumam contratar só funcionários de olhos puxados. Assim é mole. Corporativismo racial, baseado na extrema fidelidade e, pelo que dizem das condições de trabalho a que estão acostumados, sem refresco trabalhista. Pode-se dizer, correndo o risco de exagerar: é um escravismo bem conceituado.

O Brasil tem ainda escravidão, mas não pode fidelizar trabalhadores por meio da raça, só por obra das leis de proteção social. Não temos raça, temos meta-raça, uma identificação baseado na experiência e no comportamento. Aqui nazismo não tem condições de colar - até os que se consideram alemães ostentam o nariz batata dos botocudos. A bugrada mandou ver no sangue europeu. Não entendo tanto orgulho de serem de outros continentes. Vejo na televisão o sujeito que espicha o queixo, alarga a testa e olha para o infinito quando diz que seus ancestrais vieram da Europa. Sei, aquele lugar de barbárie extrema, que matou 40 milhões de pessoas há pouco tempo e que expulsou gente pelo ladrão devido à carnificina, pessoas que vieram para cá refazer a vida destruída por lá.

As celebrações da imigração japonesa não podem se transformar na glorificação de uma raça. O centenário não deve servir para aumentar o fosso entre japoneses e brasileiros, como se a nossa população fosse um mau exemplo de formação de povo e os japoneses, esses sim, que portentos! São seres humanos como os outros. Mataram milhões em várias guerras, na invasão da China, com exemplos notórios de crueldade, entraram na Segunda Guerra ao lado dos nazistas e eram uma ditadura extrema até a metade do século passado. Não são a coisinha fofa que pintam. Têm valor, como todos os outros povos. Merecem ser homenageados, sim. Mas devagar com o andor.

RETORNO - Imagem de hoje: japoneses invadem a China e cometem barbaridades.

SE OS PORTUGUESES PUDERAM


Nei Duclós

Se os portugueses puderam
Eu, que sou fera, navego

Barco se quebra cedo
Antes que avistem terra

Em naufrágios de mim mesmo
Na espinha do mar surpreso

Estou no leme, esfrego
Areias de sal e ferro

Dobro grutas de tormenta
No Tempo que faz estrago

Deus! Meu canto é cego
Não viu o morto poema

Carregado como incenso
Nos funerais de um segredo

Deus, que fomos expulsos
Das narrativas a esmo

Em que os poetas remavam
Para converter as correntes

Se os portugueses puderam
Eu, que sou duro, mantenho

A mesma rota de pano
Em direção ao eterno

RETORNO - Poema feito hoje, inédito, para compensar os dias secos.

13 de junho de 2008

A VOLTA DO RAPSODO

Como estou seco como um arenque, vazio como um pássaro na chuva, preocupado como plantador sem semente, decidi pedir socorro a um clássico, o grande rapsodo dos pampas, Jayme Caetano Braun. O que me conquistou para este post foi o verso dele, "Abriu-se uma cicatriz de onde brotei na paisagem...", que está neste magnífico poema que transcrevo a seguir.

Caetano Braun lava alma, por ser o poeta que chegou mais alto e de lá nos encanta com sua arte sem igual. Para acompanhar, esta foto de O Laçador, estátua de Antônio Caringi (obrigado pela correção, Clovis Heberle), que representa aquela alma gaudéria, tão atacada, tão usada, às vezes, de maneira errada, mas altaneira e orgulhosa como toda obra que cumpre seu destino diante do Tempo. Vamos ao poema, que está na prestigiada Página do Gaúcho.

PAYADA

Jayme Caetano Braun

Raízes, tronco, ramagem... Ramagem, tronco, raiz...
Abriu-se uma cicatriz de onde brotei na paisagem...
O tempo me fez mensagem que os ventos pampas dirigem,
Dos anseios que me afligem de transplantar horizontes,
Buscando o rumor das fontes pra beber água na origem.

Sobre o lombo da distância, de paragem em paragem,
Fui repontando a mensagem de bárbara ressonância,
Fazendo pátria na infância porque precisei fazê-la,
E a Liberdade, sinuela, sempre foi a estrela guia
Que o meu olhar perseguia como quem busca uma estrela.

Pensei chegar alcançá-la, no estágio de índio rude,
Mas nunca na plenitude, porque essa deusa baguala
Que aos andejos embuçala, nunca ninguém alcançou,
Bisneto nem bisavô, nos entreveros mais brutos,
Labareda de minutos que o vento sempre apagou.

Primeiro era o campo aberto, descampado, sem divisas...
Com fronteiras imprecisas, mundo sem longe nem perto..
Eu era o índio liberto, barbaresco e peleador
Rei de mim mesmo, senhor da natureza selvagem,
A religião da coragem e o sol de bronze na cor

Um dia veio o jesuíta a este rincão do planeta
Vestindo a sotaina preta na catequese bendita
Foi mais do que uma visita à minha pampa morena
Bombeei por trás da melena, olhos nos olhos o irmão,
E gravei no coração a santa cruz de Lorena!

Mais tarde veio mais gente às minhas terras campeiras...
A falange das bandeiras, impiedosa e inclemente...
Me levantei de repente e as tribos se levantaram...
As várzeas se ensangüentaram, elas que eram verdejantes,
Mas eu venci os bandeirantes, que nunca mais retornaram!

E depois vieram os lusos, os negros, os castelhanos,
E nos pagos campejanos, novas normas, novos usos...
As violências e os abusos da Ibéria, Castela e Lácio
Que rasgaram o prefácio e mataram as plegárias
E as ânsias comunitárias dos irmãos de Santo Inácio.

Não pude deter a vaga de Andonega e Barbacena...
Se a História não os condena, a mancha nunca se apaga!
A opressão jamais indaga na sua ambição mesquinha,
Era meu tudo o que tinha, era meu tudo o que havia,
E eu morri porque dizia que aquela terra era minha!

Mas o eterno não morre, porque permaneço vivo...
No lampejo primitivo de cada fato que ocorre
O meu sangue rubro corre na velha raça gaudéria,
Corcoveando em cada artéria pela miscigenação
Na bárbara transfusão com os andarengos da Ibéria...

Fui sempre aquilo que sou, sou sempre aquilo que fui,
Porque a vida não dilui o que a mãe terra gerou...
Sou o brasedo que ficou e aceso permaneceu,
Sou o gaúcho que cresceu junto aos fortins de combate
E já estava tomando mate quando a pátria amanheceu!!!

E assim, crescendo ao relento, criado longe do pai,
Junto ao mar doce - o Uruguai -, o rio do meu nascimento,
Soldado sem regimento no quartel da imensidade...
Um dia me meu vontade, deixei crescer toda a crina
E me amasiei com uma china que chamei de Liberdade!

Por mais de trezentos anos fui pastor e sentinela
Na linha verde e amarela, peleando com castelhanos,
Gravando com "los hermanos" a epopéia do fronteiro!
Poeta, cantor e guerreiro da América que nascia
Na bendita teimosia de continuar brasileiro!!!!

Com Bento em mil entreveros, em barbarescos ensaios...
Depois contra os paraguaios, em Humaitá e Toneleros
Andei em Monte Caseros, Paisandu, Peribebuí
Passo da Pátria, Avaí... longe do meu território...
E fui ordenança de Osório nos campos de Tuiuti

Depois, em Noventa e três, na gesta federalista,
A pátria a perder de vista, andei peleando outra vez...
Sem soldo no fim do mês porque pelear era lindo,
As espadas retinindo, chapéu batido na copa,
Como carneador de tropa nas forças de Gomercindo

Mais adiante, em Vinte e três, em Vinte e quatro de novo...
É o destino do meu povo que assim altivo se fez,
A marca da intrepidez deste velho território!
Ante o bárbaro ostensório dos lenços rubros e brancos
Acompanhei os arrancos do velho Flores, e Honório...

Chimangos e maragatos, farrapos, federalistas
Caminhadas e conquistas que a história guarda em seus fatos
Os tauras intemeratos de adaga e pistola à cinta...

Não há ninguém que desminta nossa estirpe de raiz
Que se adonou da matriz nas arrancadas de Trinta

Depois vesti a verde-oliva, como sempre voluntário,
No "cuerpo" expedicionário, formando uma comitiva
Da nossa indiada nativa pra responder um libelo
E o pendão verde-amarelo, no outro lado do mundo,
Cravei, bem firme e bem fundo, no velho Monte Castelo!

Hoje, tempo de mudar, meu coração continua
O mesmo tigre charrua das andanças do passado.
Sempre de pingo ensilhado, bombeando pampa e coxilha...
A pátria é minha família! Não há Brasil sem Rio Grande
E nem tirano que mande na alma de um Farroupilha!

RETORNO - Tanta coisa para comentar, mas não tenho paciência. Varig: a bandalheira começou em 1965, quando inflaram a empresa modelo da era Vargas (fundada em 1927 por um alemão) com o patrimônio da assassinada Panair do Brasil. CPMF: a volta dos morto-vivos. Fim do décimo-terceiro: eles vão conseguir acabar com a CLT toda. Amazônia: a única grande paisagem em disputa no mundo. O resto está bem guardadinho pelos outros países. E assim por diante. Em compensação, temos o Sport, campeão da Copa Brasil: fiquei emocionado com a bela conquista dos pernambucanos.

10 de junho de 2008

ARTES DIÁRIAS


Nei Duclós (*)

Buscamos a excelência no mundo prosaico. Trabalhar bem é uma arte, que aprendemos todos os dias. Funcionamos diante do espelho, os outros. Enxergamos melhor quando vemos a fonte e as conseqüências de ações e gestos dos contemporâneos. E qual é o espaço mais intenso de relacionamento humano? O namoro, o amor, as relações de sangue ou o comércio? Vendemos e compramos sem parar, por uma questão de sobrevivência. Você pode viver no mundo da Lua, apaixonar-se, passar as férias com os pais, mas a presença gigantesca das trocas de produtos e serviços remunerados se impõe na maior parte da nossa vida.

E não são apenas as oito horas sagradas dedicadas ao expediente, mas no amanhecer, quando se busca o pão, o leite e o café; ao meio-dia, na hora do almoço; e à noite, quando voltamos para casa com algumas compras básicas. E também nas horas dedicadas ao supermercado, à imobiliária, ao corretor, ao pedreiro, ao cabeleireiro. Quando saímos de férias, passamos na agência, vamos ao balcão da companhia aérea, pagamos adiantado no hotel, compramos a passagem de trem ou ônibus, colocamos gasolina no carro.

O amor é tolerante, mas o comércio, a indústria e as vendas, não. Tem dia para tudo: namorada, mãe, avó. Mas para cada homenagem há fila em shopping, empréstimo, crediário, pagamento à vista. Você é fiel a uma pessoa, mas pode ter dois carros, mais de um aparelho de televisão, além do celular, do telefone fixo. Sem falar em sapato, tênis, meia, camisa, saia, blusa, cachecol. Somos cobrados pelo senhorio, convocados pelo síndico. Em tudo há dinheiro, cartão, saldo. Chamam de capitalismo. Mas em qualquer aldeia de qualquer tempo as artes diárias ocupam os habitantes.

Você pode ficar solteiro, mas não escapa do aluguel ou prestação. Você pode brigar com a namorada, mas não passa sem uma refeição (a não ser quando a fome é instrumento de pressão política ou contingência social). Você pode esquecer um aniversário, mas se não pagar as contas será lembrado em juízo. Você releva uma série de defeitos na convivência familiar, mas não perdoa um atendimento precário ou feito de má-fé.

Discutir a relação é café pequeno diante das exigências quando comparecemos ao front produtivo. Não suportamos quando os funcionários conversam entre si e tratam o cliente como intruso. Devolvemos as mercadorias que vieram sem as especificações acordadas. Processamos quando nos sentimos lesados. Catequizamos o contingente que nos recebe com um sorriso, pergunta o nome do freguês, mas tenta empurrar o que tem para vender e não o que o comprador precisa.

Mesmo que desinventassem o dinheiro (como aconteceu com nossa moeda, que depois da hiperinflação é apenas uma referência global para manter os negócios ativos), não seria possível desinventar esses ofícios. Acharíamos um caminho, ou pelo próprio escambo (o troca-troca que salvou os argentinos na época da crise), ou por outra solução qualquer. O importante é saber que o assunto mais candente não está nas superfícies, nas pílulas douradas, nos arroubos, nas fantasias. Mas ao nosso redor: areia, brita, madeira, cerâmica, ferro, aço, fogo, terra, água e ar. E gente manobrando tudo isso, envolvida em intermináveis debates sobre a melhor padaria, o preço mais em conta, o material mais resistente. Só a violência compete com esses temas na escolha das conversas.

Deus se esconde no que permanece: a civilização que erguemos com nossos ombros e que nos socorre quando tudo parece perdido.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 10 de junho de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: cidade de Viena, Áustria, segundo o olhar talentoso de Daniel e Carla Duclós.

8 de junho de 2008

EXÉRCITO REAGE À PROVOCAÇÃO


Não adianta fingir inocência e justificar o exibicionismo do major gay que foi logo aonde, no Superpop, da Luciana Gimenez (aquela que alcançou a celebridade fazendo um filho com o Mick Jaegger), do SBT, falar sobre suas preferências eróticas. Ele tem a patente de major antes do nome, portanto estava representando o Exército, que reagiu à provocação e cercou a emissora, dando voz de prisão ao militar. Jorge Coli, na sua coluna Ponto de Fuga, no Mais! deste domingo, na Folha, em artigo intitulado “Corpos eróticos”, achou o episódio mirabolante, espalhafatoso, pouco inteligente, que criou uma situação mais espetacular do que o “problema”.

Coli acha que o Exército se entrega na represália contra o sargento. Para se justificar, cita os exemplos de homoerotismo em exércitos da Antigüidade. Invoca até Platão, quando devemos olhar para as especificidades do presente e ver o fato como um acontecimento político e não filosófico ou comportamental. Chamar os outros de viados porque se opõem à celebração de uma opção de foro íntimo é o expediente usado pelos moleques. Você não pode criticar alguém de pele negra, por mais errada que a pessoa esteja, porque senão você é racista. Se criticar gay, aí tem. Menos.

O Exército embarcou na canoa furada da ditadura que não lhe pertencia, e sim ao império globalizado financeiro. Confundiu seu projeto nacional com interesses do coronelato civil e dos estrangeiros. Paga caro até hoje pelo equívoco. De maneira injusta, pois sabemos que houve oposição dentro da caserna contra o golpe de 64, sem falar nas defecções que acabaram lutando frontalmente contra o regime, como aconteceu com Lamarca. Amarga um exílio político que se reflete na sobrevivência das Forças Armadas brasileiras, tratadas como obsoletas e desnecessárias.

Na maré alta da desmoralização e do deboche, a mídia estampa o caso dos gays dentro do Exército, fazendo um carnaval de capas e programas ao vivo na televisão. Força o Exército a tomar uma atitude, pois está em jogo a imagem da corporação. Debocham do slogan, ótimo, “braço forte, mão amiga” e jogam lama na farda, como se os nossos militares precisassem ser desrespeitados para todos se iludirem que estamos numa democracia. Pois não estamos. Vivemos em plena ditadura, em que o poder de meliantes próximos ou dentro do poder é apenas um sintoma.

O pior da ditadura está no meio de nós. Quem fala com todas as letras o que acontece, sem cair no preciosismo de textos políticos ou econômicos que ficam em cima do muro, já que papel em branco aceita tudo? Estamos calados, travados, à mercê de sucessivas crises financeiras, que acabaram sucateando nossa moeda, destruindo o patrimônio publico e permitindo a invasão estrangeira maciça em nosso território. Desmoralizar o Exército faz parte do esquema: sem militares treinados, sem estratégias de guerra, sem sentinelas nas fronteiras, sem pessoas aquarteladas de prontidão, a nação fica totalmente à deriva, pronta para o usufruto internacional. Pois essa canalha só vai parar no muque.

O erotismo é a representação mais completa da nossa entrega, como uns filhos da mãe, para a sanha imperial. Compram terras a torto e a direito, se assenhoram da selva e das terras aráveis, usam laranjas para invadir o território e aí linkam a imagem do Brasil ao sacudir incessantes de celulites em fio dental, ao travestismo pujante nas capitais européias, às paradas sexistas cevadas a dinheiro público e agora aos exemplos homoeróticos dentro dos quartéis.

A quem serve o sensacionalismo de destacar casais gays dentro das Forças Armadas? Aos inimigos da nação. Ser gay é uma opção de foro íntimo. Mas se essa opção servir para reforçar a falta de compostura que a ditadura civil definiu para o país, então, reagir é uma questão de sobrevivência. Foi o que Exército fez. De maneira elegante e determinada, como reconheceu a própria Luciana Gimenez em entrevista à Folha. Nada de mirabolante ou espalhafatoso. Simplesmente impediu que o carnaval continuasse.

Há comando. Temos Exército. Gostem ou não.

RETORNO - Imagem de hoje: nossos pracinhas da FEB nos campos da Europa, lutando de armas na mão contra o nazi-fascismo. Essa é a imagem que se sobrepõe a todo tipo de provocação.

7 de junho de 2008

FILME DE OURO


Você tira o filme na locadora sem apostar muito nele. E se surpreende. É o caso de O Resgate de um campeão (Ressurecting the Champ), um conjunto de acertos que o transformam num lançamento raro entre as barbaridades oferecidas em massa para o público sem opções. É sobre jornalismo, mais do que sobre boxe. Oferece perfomances primorosas, a começar com Samuel Jackson no papel do Champ, o ex-pugilista que vive nas ruas como mendigo. E mostra o roubo magistral de todo o show feito por um irreconhecível e magnífico Peter Coyote, que reproduz um velho empresário judeu de boxe, baseado em personagem real que conheceu na infância, já que o pai de Coyote era um boexeador e o filho se criou no meio dos ginásios dos pugilistas.

Segundo a Wikipédia, o filme, de 2007, filmado no Canadá, é dirigido por Rod Lurie e escrito por Michael Bortman e Allison Burnett, baseado num artigo publicado no L.A. Times Magazine por J.R. Moehringer. Além de Jackson e Coyote, o excelente Alan Alda e o jovem talento Josh Hartnett. E ainda mais uma ponta memorável, a de Teri Hatcher, no papel da âncora do programa esportivo Showtime, que avisa: “O jornalismo acabou, não existem mais notícias, ninguém quer saber de informação, mas de entretenimento. Coloque sua carinha bonita no vídeo e veja como é fácil trabalhar na televisão, não precisa fazer nada, apenas ser o que você é”.

Não importa que seja baseado em “true events”. Costumam me vender “baseado em fatos reais” como se fosse grande coisa. O importante é o que você faz com o material, real ou imaginário. E, nesse caso, só fizeram coisa boa. Além do mais, tudo é baseado em fatos reais. E toda representação é pura linguagem e representação. Portanto, vamos aos fatos.

O jovem repórter foi com muita sede ao pote e, para subir na vida, salvar seu emprego ameaçado pela internet, resolve vender uma pauta para o editor da revista da corporação onde trabalha. Trata-se de uma traição, pois ele cobre boxe para outro editor, o do jornal diário. Mas ele quer se destacar, fazer apenas umas doze matérias por ano, se aprofundar na profissão, o que é justo. O que não é justo é a maneira como ele faz, trocando os pés pelas mãos e pagando o maior mico diante do filho, que ele tenta conquistar.

O cara não consegue checar direito suas informações e se justifica com uma seqüência de álibis, coincidências, confusões e recusas. Uma lição do bom e velho jornalismo é dado por Ike Epstein, o personagem de Coyote: num ambiente dos anos 40, uma sala do ginásio esportivo, o empresário liga para algumas fontes, discando o antiqüíssimo telefone. Quando pergunta porque o repórter não checou direito a história e escuta as explicações, faz uma cara inesquecível de deboche. Segurando o gasto charuto, tremendo a mão pelo Parkinson, o personagem de Coyote é tão impressionante que merecia no mínimo um Oscar. Por muito menos deram a estatueta para a ponta feita por Sean Connery em “Os Intocáveis”.

Como a maioria dos filmes americanos, é sobre ganhadores e perdedores. É politicamente correto resgatar histórias de perdedores que, no final, se transformam em vitoriosos. Vitória em termos, pois nada muda na galeria de heróis. A visita da morte para o velho pugilista é representada por Rocky Marciano, o lendário boxeador que jamais foi vencido. Os vencedores continuam no mesmo lugar. O que o cinema americano faz é encantar os espectadores com histórias de pessoas que tiveram sua chance e a perderam, e conseguem resgatar alguma glória, mesmo à custa da própria vida. É o heroísmo possível dos que não deixariam marcas sobre a terra.

Alguém muito talentoso com as palavras, criticado pelo excesso de digitação e cobrado por qualidade, encontra nas ruas uma pauta. São as pautas, fora da tendência de ir a reboque do marketing da notícia, que vão segurar sempre os veículos de comunicação . Podem inventar o que quiserem, mas nada supera uma boa pauta desenvolvida com brilho num texto de primeira. O filme mostra como o repórter se deixou enganar pelas evidências que reforçavam a gana que tinha de vencer, de superar o nome do pai famoso que o abandonara ainda na infância. E como colocou tudo a perder por não seguir o básico da profissão, a checagem minuciosa, a paciência, o suor.

Assuntos candentes neste filme primoroso, que merece ser visto.

6 de junho de 2008

ARE YOU OK?


Todo filme é sobre cinema e todo cinema é sobre o país de origem. Filme francês é sobre a França, chinês sobre a China, americano sobre a América, brasileiro sobre o Brasil e assim por diante. Mesmo quando o filme tenta se situar fora da nacionalidade acaba se entregando. Toda ficção revela o mundo real que o gerou. Todo esforço internacionalista deságua na aldeia. Não vivemos num planeta, mas numa casa, apartamento, rua, cidade, estado país. O cinema reproduz essa contingência, mesmo os híbridos, co-produção entre nações. Nesses casos, o que chamam Europa, por exemplo, é o lar do cineasta ou o produtor que define a trama (o que sempre significa um país específico).

Vejo muita bobagem em dvd (faço tudo para escapar da TV aberta). Uma delas é essa Lenda do Tesouro Perdido, interpretado por Nickolas Cage, Ed Harris e Jon Voight. Grandes atores deveriam ser melhor aproveitados. Mas eles se submetem a uma propaganda deslavada da América. Do que trata o filme? Da apropriação mítica dos tesouros ancestrais dos habitantes do continente americano. Faz um link entre tesouro asteca e monte Rushmore, aquele em que foram esculpidas os rostos gigantescos dos Pais da Pátria, os presidentes americanos. Justifica a apropriação do território das Américas (as três) introduzindo o improvável (a história dos Estados Unidos) na cultura antiga.

O cinema americano não prega prego sem estopa, como se dizia em Uruguaiana. Tudo gira em torno da sobrevivência e o crescimento do Império. O cinema catástrofe funciona como advertência, para assustar a opinião pública sobre os grandes perigos que todos correm se o Império americano for destruído. Parece que o novo Indiana Jones (não vi ainda) tem uma história que acontece na selva amazônica, cheia de terroristas, claro. Já comentei aqui o deslocamento do foco, do Oriente Médio, para a América do Sul, no cinema dos gringos, a começar pelo Miami Vice. Agora José Padilha, de Tropa de Elite, vai filmar um herói policial americano em luta contra terroristas na Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu.

Já fui atacado pelos que adoram gritar “não te falei?”, como se a denúncia do premiado filme de Padilha fosse mesmo a reiteração do fascismo que agora, parece, ficaria explícito no seu novo filme. Padilha pode fazer o quiser. Se fizer merda, vou denunciar aqui. Mas quando fez Tropa de Elite, acertou na mosca: todos agora sabem como funciona a polícia brasileira. Ou pelo menos, essa é a primeira grande representação da corrupção policial no Brasil. Não é pouca coisa. O fascínio (já existente antes do filme) pelos torturadores tem a ver com as injustiças promovidas pela ditadura civil e não com Tropa de Elite, que apenas encara o problema de frente (onde a transgressão da lei está explícitamente apresentada como desvio de conduta e não como paradigma). Por ser o que é, foi premiado com o Urso de Ouro em Berlim por Costa-Gravas.

Uma coisa que me invoca é como são acertados os filmes que fazem propaganda explícita das instituições americanas. Kiefer Sutherland recebeu um extra do Serviço Secreto da Casa Branca para interpretar um guarda-costas? Clint Eastwood recebeu dinheiro direto do Pentágono para fazer o filme em que resgata um avião da Rússia? Os scripts são encomendados? Existe intervenção direta, ou tudo é acordado nas altas esferas, entre o FBI e Hollywod, entre o lobby dos advogados (como tem filme de tribunal, meu Deus!) e as grandes produtoras? E quando a coisa cai na mesa dos artistas, eles têm plena consciência de que estão a serviço de mil sacanagens, como fazer filmes favoráveis à CIA, por exemplo. Ou simplesmente acreditam nisso e dizem: Ok, let´s do it.

O cinema americano é cheio de frases e perguntas prontas. Antes era o recorrente “eu sei como você se sente”. Agora, podem notar, em cada filme existe pelo menos uma vez (são sempre mais) a pergunta : are you ok? O “go, go,go” continua em voga. São aboios para entusiasmar platéias imóveis em suas cadeiras. Serve para representar o movimento inexiste na sociedade. Tudo deve ficar como está, crescendo para pior. Assim é que eles gostam.

RETORNO - Parece que Lula quer uma moeda única para a América Latina, já batizada de “moerda” pelo Macaco Simão. Já temos moerda, é o real, que é um título ao portador do compromisso firmado com o sucateamento global do Brasil. 2. Imagem de hoje: Nickolas Cage com o falo americano ao fundo.

4 de junho de 2008

NO CORAÇÃO DA REPORTAGEM

Nei Duclós

A estréia de Profissão: Repórter como programa fixo, semanal, e fora do guarda-chuva de outros espaços (começou como quadro do Fantástico), nesta terça-feira, dia 4 de junho, depois dos intermináveis e insuportáveis "Casseta & Planeta" e "Toma lá Dá Cá", foi um acontecimento raro no atual estágio da imprensa brasileira. Abordando a fila dos transplantes de coração no Incor, em São Paulo, Caco Barcelos e sua jovem equipe mostrou como se faz jornalismo.

Ao cumprir um roteiro específico do assunto, de como funciona o trabalho dos médicos desse centro de excelência, que é o hospital público de maior prestígio e competência do país, Profissão: Repórter soube equilibrar o aspecto humano com o técnico, reproduzindo o clima épico da busca desesperada e consciente de salvação de vidas em risco, sem cair na pieguice ou na superficialidade.

Que emoção a da menina que está à espera de um coração ser recepcionada pela família de mulheres que foram festejar seu aniversário no hsopital! Que revelador a seqüência da fragilidade do esquema (por trabalhar com um órgão humano que viaja de um corpo a outro no mais curto espaço de tempo possível), em que o coração é transportado de helicóptero até chegar à sala de cirurgia. Quantos detalhes na delicada e arriscada operação que faz o coração alheio trabalhar no paciente terminal!

Mas o mais emocionante, o mais profundo, o mais impactante dessa reportagem, que deverá ganhar todos os prêmios, foi a colocação de um detalhe pessoal do repórter Caco Barcelos no miolo do drama: a lenta e dolorosa agonia do nosso amigo comum Delmar Marques, que morreu recentemente na fila do transplante e se foi aos poucos,. Sem poder dar seu depoimento, Delmar ainda assim escreveu algumas frases para Caco, que de maneira digna e emocionada revelou para o Brasil este jornalista importante que morreu sem que houvesse a repercussão devida pelo seu desaparecimento.

Quando fiz a homenagem aqui ao Delmar por ocasião da sua morte, disse que não sabíamos ainda o que tínhamos perdido, por nossa culpa, que não nos aprofundamos devidamente com nossos contemporâneos. Pois no programa Caco mostrou quem é Delmar e o quanto o Brasil perdeu com sua morte. Ele estava no auge do seu trabalho, disse Caco, que mostrou imagens de Delmar em atividade, cavalgando, viajando, divulgando a pesquisa que fez dos índios minuanos. Apresentou-o como jornalista, escritor, dramaturgo. Fez justiça num tom contido e contundente.

Caco Barcelos atingiu o coração da reportagem: é quando o repórter se coloca por inteiro naquilo que reporta, sem trair a objetividade nem a subjetividade implícitas neste nosso trabalho, tão mal compreendido. Jornalismo é Delmar Marques se apresentando em rede nacional e escrevendo suas últimas palavras para o repórter amigo, competente e talentoso.

Quando Delmar me telefonou da cama do Incor para falar um pouco comigo, com a voz trêmula e sumida, partindo meu coração aqui no ermo, ele me disse que Caco esteve lá, pressionando para que encontrassem um coração para ele. No fundo, a reportagem mostra como é difícil salvar uma vida na fila do transplante e como a morte de Delmar traumatizou os médicos e enfermeiras envolvidos neste evento tão doloroso para todos nós.

No coração da reportagem, Caco Barcelos nos devolve o jornalismo perdido, resgata o amigo e sua grandeza, nos coloca a par da grande perda que sofremos todos os dias, quando lutamos, muitas vezes em vão, pela vida que escapa por todos os lados. Longa vida ao jornalismo brasileiro, coração valente da nação que um dia voltará a ser soberana e orgulhosa dos seus filhos.

RETORNO - Imagem de hoje: Delmar Marques em viagem de pesquisa ao Exterior. Esta foto está no seu espaço no Orkut.

3 de junho de 2008

GALO INVENTA A MANHÃ


Nei Duclós (*)

Refém da madrugada, o galo forja a brasa da manhã. Seu canto, lance solitário, rasga a paisagem. O esforço trava na garganta exausta. Cercada pela indiferença, a sentinela se alimenta de dúvidas. É um mistério que ainda se entregue ao ofício. Poderia abaixar a crista e insistir no sonho, mas prefere ser garimpeiro de brita. Romper os dias que nascem escuros nas promessas, se transformar num adivinho de tocaias, enfrentar pânicos ameaçados por ciclones, molhar-se em súbitas tempestades. Nem sempre o ano tem a sorte de ser maio.

O galo é a impaciência que vem a furo. Não confia, não desiste, não delega. Ignora as luzes artificiais que tentam mascarar o tombo do abismo sobre o mundo. Não deixa que permaneça impune a mudança do dia para o poço que torna a criação indistinta. Tudo se confunde ao redor. Há submissão, enquanto se instala a certeza de que não veremos mais a separação entre o morro e a lua, a rã e a coruja. Quando tudo dorme, é comum perder a esperança, acostumar-se ao luxo de esquecer.

Talvez seja a memória que torne o galo prematuro. Ele se recorda e arrisca uma conversa com o destino, num jogo mortal de cabra-cega. Os duendes ocultos repetem histórias de assombração, tentando dobrar o teimoso. Há um desespero no peito, que vomita a insubordinação. Ainda é cedo, no entanto. O breu não sucumbe ao primeiro intruso.

O galo torce o quebranto, ensina a sobrevivência. Ele se espicha, cisca o que tem de mais fundo, se supera. E aos poucos vai acostumando o ambiente à batida do seu pulso, que pressiona a vigília. Cria curiosidade entre os vivos, que torcem para ver quem ganha. No duelo desigual, a tampa noturna luta de um lado. No outro, o cantar do galo ganha ritmo, e aos poucos orquestra o ouvido adormecido da multidão, faminta de luz.

Quando convence que é possível erradicar a cortina de grosso veludo, opera-se o milagre. Os pássaros são os primeiros a ouvir. E depois que os ninhos são abandonados em favor do vôo e do sopro, tudo pode acontecer. Até mesmo o sol, que tinha desistido de nos assistir, e partia para outras paragens, volta a espiar.

O sol é apaixonado pela ilha, mas, amante ingrato, abandona a cama depois do crepúsculo. Só mesmo o canto do galo para pô-lo de sobreaviso, reverter sua decisão de ir embora. O galo o convence que a ilha é o seu estúdio. E que sempre é possível resgatar a arte, mesmo que haja o perigo do transe fácil, a emoção flácida, a comunhão amarga.

O galo ensina o sol. Fala da contundência da missão a que foram destinados. Mostra a praia, a tela do mar e seu múltiplo azul, seu verde indeciso. Esmeraldas e violetas vão desfiando a manhã agora ensolarada. O galo então se recolhe à sua faina matinal. Debulha o trigo, roça as nuvens, planta figo. Deita depois, quando a tarde desce em direção aos navios.

Na noite seguinte, abre o olho, alarmado, e pergunta o que nem a Lua sabe responder. Esse enigma, o escuro, o coloca novamente em guarda. Lança de novo o primeiro grito. Prevendo o desenlace, a madrugada treme de pavor. Ela sabe.

O galo puxa o dia não como um fardo, mas como a nota musical que nos conduz à liberdade. Não como hábito, mas como descoberta. Não como aventura, mas como lastro. É dia porque alguém se insurge. É de manhã, porque soou o alarme.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 3 de junho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: manhã na Lagoa, foto de Dauro Veras.

1 de junho de 2008

O NOME DO BRASIL É “PLANETA”


Substituir nações que não podem se defender (sem a bomba nuclear) pelo nome genérico de Planeta é o expediente maroto das potências que derrubaram suas matas, envenenaram seus rios e poluíram seu ar e agora chegam cheios de moral para cima de nós, que ainda temos a selva. O álibi dos meliantes é o saneamento em alguns pontos, como o rio Tamisa, em Londres, ou as paisagens limpas da Alemanha Ocidental. Mas vai ver o Mediterrâneo: é uma cloaca industrial só.

De suas paisagens naturais eles não abrem mão. Vamos, por exemplo, chamar de Planeta as Cataratas do Niágara, ou o Grand Canyon ou mesmo o deserto de Sonora. Não isso não. Tudo isso faz parte das nações deles. Engraçado, ninguém chama a Coréia do Norte de Planeta. Nem a Rússia. Nem os Estados Unidos. A França é a França, idem a Inglaterra. Não são "Planeta". Eles tem a bomba.

Vamos fazer uma Ong com o nome de Bosque de Viena Para Todos, ou Salvem para Nós os Grandes Lagos Canadenses. Aí invadimos com nossos bons propósitos, pressionamos os governos locais para criarem reservas de piolhos dos pingüins e definimos uma área do tamanho da Austrália para imperarmos sem piedade. Vamos ver se eles gostam.

Depois de décadas sendo conivente com a entrega da soberania, a mídia resolve dar um alerta, ou um Basta, como costumam dizer. Tarde piaram. Os caras já se instalaram. Batizaram de Planeta e invadiram. E vão invadir mais. Compraram latifúndios de selva, vão poder explorar o subsolo e tudo o mais. Porque somos cruéis e ferozes e não merecemos aquela biodiversidade. Cretinos. A selva continua lá por quê? Porque o Brasil não fez como os americanos, que destruíram tudo e ainda posaram para as fotos em cima dos troncos mortos.

Sinto calafrios com o Al Gore. Ele convenceu a opinião pública mundial de que eles, os primeiromundistas, são responsáveis pelo que vai acontecer em nosso território (conhecido como Planeta). Precisamos salvar as bolas das corujas, dizem, convictos. Claro que ouro, ferro, água, terra, árvores, manganês, diamantes, ametistas, petróleo e tudo o mais que existe de sobra em nossa pátria não contam. Eles estão interessados mesmo é no rabo das emas. É de doer.

E não tem que fazer parceria nenhuma com gringo nenhum, viu Carlos Minc? Tem que expulsar os caras de nossas terras. Não deixar que façam como no Texas, que foi tungado dos mexicanos. Não somos cucarachos, que repartiram até o infinito os territórios até virarem esse conjunto de paisecos pobres. Somos o Brasil, potência mundial desde sempre. Os projetos precisam beneficiar a população e a nação. E não deixar que eles levem tudo com seus discursos apocalípticos.

Não pode permitir que desmatem, ainda mais para plantar soja ou criar gado. Não pode deixar índio armado de facão dando ordens diante das autoridades. Os índios, como todos os habitantes do país, precisam se submeter às leis. Não podem desmatar, estuprar, retalhar com facão ou meter uma lança ou flecha nos outros, só porque isso faz parte da cultura deles. Não pode inundar a selva sem mais aquela, mas também não pode deixar medrar a indústria das vítimas das barragens. É preciso políticas públicas sintonizadas com os interesses da nação e com o desenvolvimento da população.

Para isso temos que deixar de ser Planeta e voltar a ser Brasil. Tem uma bandeira fincada no meio do mata. No mínimo, deve servir para enfiarmos a dita em quem vier do estrangeiro tentar tomar conta de tudo. É como se dizia em Uruguaiana antigamente: “No cu, papagaio!” Agora eu entendo o que isso quer dizer.