Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
31 de julho de 2011
ESCONDERIJO
Nei Duclós
Um canivete, uma pedra,
qualquer objeto
a foto de um quintal
guardados no esconderijo,
ao pé do da árvore brava
Tudo é memória e poeira.
O Tempo nada vale
e a vaidade,
presa na clepsidra, se derrama
sobre um formigueiro
Não importa,amor, o que o século
trouxe e depositou em nosso rosto.
Folheamos os dias como frutos
que ninguém colhe
e caem na primeira chuva
RETORNO - Imagem desta edição:obra de Caspar David Friederich
29 de julho de 2011
FEDORA: BILLY WILDER FILMA O CINEMA
Nei Duclós
Num enfoque tradicional, cinema é produção e consumo de mitos, encarnados em rostos que imantam a atenção do público. Não é precioso atuar, basta ter essa mágica visual, muito além da fotogenia: o mistério da projeção de personalidades que transcendem a vida ordinária do público, que assim se identifica com algo maior e mais alto. A abordagem oposta é outra ilusão: a do cinema verdade, que aposta em narrativas cruas sobre personagens comuns e não carismáticos. Em vários momentos, esses dois conceitos antagônicos da Sétima Arte entraram em confronto direto por meio de obras, autores, atores e atrizes, roteiristas, produtores.
São processos empresariais que se digladiam e transbordam na tela em conflitos explícitos. É famoso o caso da nova geração de cineastas, como Coppola e George Lucas, que se insurgiram e depois foram tragados pela megaindústria. Mas há antecedentes. Na virada para o cinema sonoro, esse antagonismo era entre o rosto angelical e expressivo de Greta Garbo, a transparência do ego divinal, e o rosto mascarado de Al Jolson em The Jazz Singer (1927), a persona sobreposta ao personagem de maneira clara para o público. Garbo emanava luz em closes majestosos de cinema mudo (apesar do filme ser falado) sobre o convés de A Rainha Cristina (1933); Al Jolson colocava diante do público uma outra realidade: a da imagem de mãos dadas com o som, dividindo assim a atenção que antes ia inteira para o fotograma (e o piano das sessões era apenas coadjuvante e não protagonista, como a música inserida na obra e as falas em voz alta).
Essa ruptura e suas graves conseqüências para o cinema clássico estão magistralmente colocada na obra-prima Sunset Boulevard (1950), de Billy Wilder, em que o narrador morto, biógrafo gigolô e vigarista, interpretado pro William Holden, extorque dinheiro a estrela decadente e veterana (Gloria Swanson, ela mesma atriz que conheceu a fama e estava fora do circuito), alimentando sua ilusão de que continua no auge, quando não passa de uma ruína. Billy debocha do cinema verdade ao colocar o narrador boiando numa piscina e tirando sarro da própria situação. Mas seu drama em forma de comédia, como em toda sua obra, é cruel, pois mostra a derrocada de um conceito de se fazer cinema em detrimento de outro, vencedor, que traz o cinismo para a tela e enterra a mitologia das divas.
Não por muito tempo, pois o cinema sonoro foi ainda mais explícito na sua fabricação de mitos, como a provar que essa essência sobrevive às transformações e mantém-se intacta, como se fosse a razão de ser do cinema. Billy Wilder continuou sua saga de filmar o cinema e é isso que se vê em várias obras suas, como em Stalag 17, em que o prisioneiro se apaixona por Betty Grable em intermináveis sessões de cinema e alimenta sua idolatria com o poster dela de corpo inteiro. No mesmo filme, há um especialista em imitações que a toda hora traz à tona James Cagney, Cary Grant e outros mitos masculinos que irromperam com força a partir dos anos 30, quando Billy, saído da perseguição nazista, chegava com tudo em Holllywood para fazer história.
Ele mesmo aparece num dos seus cantos de cisne, Fedora (1978), numa cena em que filma um baile de gala, cena típica do cinema mitônomo dos 30 em que a aristocracia européia era o modelo dos sonhos de uma república envolvida na depressão e depois na guerra. Em Fedora, que é sobre cinema, o personagem de William Holden ressurge 28 anos depois de Sunset Boulevard como produtor de filmes independentes. Mantem-se idêntica a relação desse personagem, que cruza três décadas, com a atriz decadente – do cinema mudo no clássico com Gloria Swanson e do cinema falado nesta continuação encarnada pela atriz Marthe Keller. O sujeito precisa da estrela que se apagou para levantar um dinheiro. Sabemos do que trata a primeira história, clássico absoluto sobre o terremoto do som na Sétima Arte e a desgraça dos que tinham tudo e ficaram sem nada. Mas o que acontece em Fedora, deste Billy Wilder em fim de carreira, sem cacife dos grandes estúdios e que acaba criando com apoio do escasso dinheiro europeu?
O mestre não abre mão do gênio e junto com seu fiel roteirista, IAL Diamond, conta a saga da estrela que envelheceu e resolveu manter a lenda colocando na roda a própria filha, que encarna o mito. Isso é fatal para a substituta, que, como diz o filme, é uma amadora, não tem o aço apropriado para manter-se firme sob a maquiagem. A insistência em manter o rosto intacto, como quis Greta Garbo ao se recolher no auge da carreira (não permitia que as câmaras captassem sua derrocada física) gerou um estado psicótico na filha,que depois de fazer alguns filmes como a falsa Fedora acaba se apaixonando por um jovem ator (Michael York, interpretando ele mesmo) e desistindo da carreira ao saber que teria de continuar como Fedora até morrer.
O público está cansado de cinema verdade, diz a verdadeira Fedora disfarçada de condessa. Precisa voltar ao mito, à lenda. É o que pensa Billy Wilder em fim de carreira, encerrando assim suas atividades de mestre do ofício, quando homenageia seus ídolos, colocando Henry Fonda como o presidente da academia de cinema que dá um Oscar de consolação para a atriz escondida. Pois o cinema não vive de arte, mas de lucros e se a arte traz lucro, como aconteceu com Wilder em grandes sucessos, melhor. Se não acenar com essa perspectiva, o autor fica fora. Foi o que aconteceu com ele. Mas, em vez de se entregar ao besteirol que tomou conta de Hollywood, ele foi atrás dos investidores europeus, para manter seu trabalho. Mais ou menos como Woody Allen e Roman Polanski hoje, que saíram do circuito e criaram outro para continuar trabalhando.
Billy viu na frente por ter uma visão crua do espetáculo que ajudava a inventar. Tudo não passa de truque e ilusão, dizem os personagens lúcidos de Fedora. Mesmo aqui, nesta obra que pesquisa as engrenagens do monstro e não se limite apenas aos bastidores da Sétima Arte. Tudo é representação, tudo é linguagem. Os gênios sabem disso como ninguém. Por isso são radicais na sua gana de mostrar todas as camadas superpostas da indústria do espetáculo. Contribuem assim, com seu ofício e testemunho, para nos dar esperança de que o confronto entre cinema clássico e intervenções opostas tenham como resultado o triunfo do gênio e a emoção de sermos transportados para uma glória tão efêmera quanto eterna que é o espaço de tempo que dura uma sessão de cinema.
RETORNO - Imagens desta edição, pela ordem: 1. Cena do baile de gala sendo filmada em Fedora.2. Greta Garbo e Al Jolson. 3. Holden e Swanson.
MAIS DE JACK O MARUJO
Nei Duclós
Aos poucos, o capitão ganha admiradores nas suas aparições no Twitter, onde tem se manifestado mais amiúde (gosto de dizer amiúde). A seguir, um tira-gosto de suas frases mortais.
Todos acham o sr. muito mau, disse a admiradora. Conversa, disse Jack o Marujo. Sou mole como barbatana. Mas venho junto com o tubarão
O que você acha da frase da cantora? perguntou o repórter. Acho que ela falou em prazer anual, disse Jack o Marujo
O que você diz quando te chamam de obeso? perguntou a nutricionista. "Comi a véia e não consigo digerir" respondeu Jack o Marujo
O sr. é crente? perguntou a fundamentalista. "Não me fale em Deus se você tem curvas", disse Jack o Marujo
"Quando eu for assunto, pensem bem nas consequências", disse Jack o Marujo com a mão na garrucha quando foi homenageado pelos grumetes
O sr. só tem coisas negativas para mostrar? perguntou a consultora. Sim, disse Jack o Marujo. As positivas eu deixo para os idiotas
O sr. se acha muito divertido dizendo barbaridades, observou o pároco. As barbaridades são divertidas, disse Jack o Marujo. Elas riem de nós
Perguntei a Jack o Marujo o que achava da morte da cantora. "E quem disse que estamos vivos?" foi sua resposta
Hoje estou vazia, disse a mulher. "Vamos pingar uma gota de orvalho", disse Jack o Marujo. "Receita da Lua quando a manhã pede um perfume"
Muitos planos para o fim-de-semana? perguntou a mulher. Sim, disse Jack o Marujo. Vou jogar minha rede no céu para ver se capturo estrelas
O sr.é pirata? perguntou o burocrata. Não, disse Jack o Marujo. Pago a banda larga, a luz, o micro, assisto e não vou vender na esquina
Parabéns, você salvou a moça, você é um herói! disse o repórter."Não ia deixar um material desses para os peixes comer", disse Jack o Marujo
Gosta do inverno? perguntou o turista. "Gosto. As moscas estão na cadeia", disse Jack o Marujo
O que faço com ela? perguntou o grumete, trêmulo. "Convide para dançar. Não caia na asneira de contar sua vida", disse Jack o Marujo
Você passa o dia escrevendo bobagens? perguntou Jack o Marujo. Não são bobagens, disse o grumete escritor. São aerólitos
O sr. já criou um microconto? perguntou o grumete escritor. Já, disse Jack o Marujo. Mas uma sereia comeu
"Bueiro explode porque é muita merda", disse Jack o Marujo. Não é esgoto, é gás, expliquei. "Dá no mesmo. Gás de merda", disse o capitão
Alguém já chamou o sr. de gênio? perguntou a admiradora."Às vezes, mas não de maneira consistente. Fale mais sobre isso",disse Jack o Marujo
Leste algum autor de auto-ajuda? perguntei a Jack o Marujo. Já, disse o capitão. Até pedi autógrafo quando ele estava na prancha, amarrado
O sr. ainda dirige! disse o imberbe vendo Jack o Marujo no volante de um Simca."Verdade? Pensei que estava no banco de trás" disse o capitão
Tem gente aí fora querendo falar com o sr, disse o grumete. Não vou, disse Jack o Marujo. Estou ocupado demais sendo um personagem
Pronto para a dieta? perguntou o médico para Jack o Marujo. Sim, doutor, respondeu ele. Carreguei a garrucha, no caso de o sr. vir de acelga
Não posso ser seu amigo, disse Jack o Marujo para a sereia. Não consigo ficar indiferente ao brilho das escamas
Há quanto tempo, disse o visitante. É porque não somos amigos, disse Jack o Marujo
RETORNO - Imagem desta edição: Charles Laughton como o Capitão Kid (em filme de 1945)
27 de julho de 2011
GÊNERO, O DISFARCE SUPREMO DE BILLY WILDER
Nei Duclós
Quando um amigo veio anunciar a Billy Wilder que a pressão dos maledicentes aumentou depois de seu sucesso Quanto mais quente, melhor (Some Like it Hot, 1959), filme-bomba em que Jack Lemmon e Tony Curtis se travestem para fugir da máfia, o velho cachorrão se defendia que iria traçar mais algumas mulheres para calar a boca de todos. O argumento não convence. Billy é explícito em suas preferências, basta ver o que pega em todos os seus filmes. Mas ele precisava se disfarçar. A época não permitia. Primeiro, era preciso desmoralizar a psicanálise. Por isso difundiu a história da sua juventude em que, repórter em Viena, foi entrevistar Freud e acabou expulso pelo ogro da sublimação e da repressão sexual.
A história tem tudo para ser obra do gênio imaginativo de quem fez inúmeros scripts de arromba. Mas vamos combinar que seja real. Várias vezes em suas obras, Billy se vinga de Freud, expondo a psicanálise como charlatanismo, como acontece principalmente em A Primeira Página (1974), onde um psiquiatra tradicional, da velha escola, fornece a arma do xerife para o condenado reproduzir o crime. Acaba sendo atingido por ele, gerando toda a correria da imprensa e da polícia. Feito esse serviço, o de achincalhar o cânone da psicanálise, ele pode então negar que haja algo mais do que as intenções moralistas dos seus enredos – a defesa dos princípios americanos, a honestidade, o desprendimento, a solidariedade. Mas vendo hoje seus filmes em sequência, as evidências se impõem.
Não se trata apenas de destacar a fala final de Quanto Mais Quente Melhor como a prova de que o gênero homoafetivo era aceito e compactuado entre os personagens. “Mas eu sou homem”, diz Jack Lemmon tirando a peruca, ao que o velho apaixonado rebate: “Ninguém é perfeito”, ou seja, eu já sabia e não me importo, ao contrário. Mas o de enxergar o que a tela mostrava na época mas não era percebido, porque Billy Wilder, expulso da Europa pelo nazismo e que perdeu a família nos campos de concentração, usava de seu supremo disfarce: a comédia de ritmo alucinante, perfeita na estrutura narrativa, pontuada por falas geniais e que circulava em torno do seu gênero favorito dando bandeira, mas sem influir na própria imagem de autor heterossexual.
Basta ver um outro grande sucesso seu, Stalag 17, ou Inferno Número 17 (1953), o inesquecível filme sobre o campo de concentração onde sargentos do exército americano tentavam escapar mas eram impedidos por um espião entre eles. “Ei, Animal, sou eu, Shapiro”, diz o prisioneiro interpretado por Harvey Lembeck tirando o disfarce, composto por chapéu feminino e palhas imitando o cabelo loiro, para seu companheiro inseparável ( Robert Strauss, que ganhou o Oscar com esse papel histriônico e dramático). Animal confundiu o companheiro com seu ídolo Betty Gramble, a atriz de pernas famosas e favorita da soldadesca na segunda grande guerra. Antes, dançou com ele de rosto colado, num baile de Natal onde existiam apenas casais formados só por homens.
Onde estavam as mulheres nesse filme? Eram russas,ou seja, estrangeiras comíveis (o álibi perfeito dos machões, opostas à mulher americana idealizada em Betty Grable), e ficavam em fila no banheiro para serem observadas pelo telescópio do acampamento masculino. O único que tinha acesso a elas era William Holden, negociante da prisão e que compartilhava espaço com um garoto frágil e delicado, seu braço direito, que inclusive leva uma surra por estar sempre grudado com ele. A relação entre Holden e Neville Brand, no papel de Duke, inimigos mortais que acabam se entendendo no final, inclui o detalhe de acender o fósforo na barba do outro, que sorri feliz.
Stalag 17 é um conjunto de casais homoafetivos disfarçados de companheirismo ou da situação favorita de Hollywood, o ódio entre bons e maus que não passa de uma armação de roteiristas homossexuais, como revelou certa vez Gore Vidal, que é do ramo, sobre o caso na tela entre Stephen Boyd e Charlton Heston em Ben Hur, uma homoafetividade feita de conflitos e sugerida pelo script . Mas claro que tudo isso ficava encoberto numa época em que não se falava abertamente dessas coisas. Era preciso jogar o foco para o outro lado, mas hoje tudo fica claro.
Vamos pegar outro filme de Billy, The Fortune Cookie (Uma loura por um milhão, 1966). É mais uma obra que mostra a impossibilidade do relacionamento hetero, como acontece sempre em Wilder (basta o exemplo do ato que não se consuma em O Pecado Mora ao Lado, em que a pobre Marilyn luta em vão para traçar o vizinho casado que está livre em Nova York). Walter Matthau é o canalha casado que sente vontade de jogar os filhos mal comportados na rodovia. A ex-exposa do personagem de Jack Lemmon, um cinegrafista que é convencido pelo cunhado Matthau a fingir a seqüela de um acidente para levantar um milhão de dólares, é uma vigarista.Só existe desprendimento e sinceridade em Luther 'Boom Boom' Jackson (Ron Rich), o jogador negro e parrudo de futebol americano responsável pelo acidente.
Boom Boom sente culpa e acaba cuidando do prejudicado. Carrega-o no colo, dá-lhe banho, faz massagens e põe o aventalzinho para lhe fazer a comida, que serve com prazer. Mas a vigarista ex, estimulada pelo cunhado, volta para os braços do idiota para fazer companhia à bufunfa que ele vai conseguir. Boom Boom sobra e se afoga no álcool e acaba preso depois de uma briga. O idiota se dá conta do erro, chuta literalmente a bunda da bandida e acaba o filme jogando bola com seu admirador no cenário ideal, no campo vazio, sem concorrência ao redor nem chatos para atrapalhar.
A impossibilidade do amor heterossexual também está no filme, pois o acidentado não consegue fazer sexo com a ex porque o cunhado não permite. Há muita sordidez no amor heterossexual, como em The Apartment, em que o chefe usa o subalterno para manter um matadouro. Em Kiss Me Stupid, a dupla de compositores faz tudo para expulsar a esposa de um (que tenta em vão transar no aniversário do seu casamento) para realizar o sonho de atender as necessidades sexuais do cantor substituindo a esposa pela prostituta. A relação heterossexual assim só se consuma pela transgressão social, quando o marido dorme com a mulher da vida e o mulherengo passa a noite com esposa do outro.
Em A Primeira Página, o assassino e a prostituta ficam três dias juntos mas não transam. E não existe casal mais fake do que o do filme Avanti! (1972). Homem e mulher colocados num balde de gelo. O jovem gigolô fracassado William Holden fazendo par com a decadente atriz Gloria Swanson em Sunset Boulevard, ou o casal heterossexual assassino de Double Indemnity são outros exemplos extremos dessa impossibilidade.
Mesmo em filmes não tão explícitos o homossexualismo entra com tudo. Em Avanti!, há a cena de dois homens entrando no banheiro do avião para se trocar de roupa, observados pela tripulação e todos os passageiros. Em One, Two Three, o fiel secretário de James Cagney acaba também se travestindo para ajudar seu chefe numa jogada na Alemanha Oriental.
Não se trata de insistir nesse enfoque, mas perceber claramente que esse é o disfarce supremo de Billy Wilder: o falso machão do gênero homoafetivo colocou na tela a relação homossexual em praticamente todos os seus filmes, neles ocupando papel importante e não periférico. Está na cara? Mas por que ninguém fala de coisa mais óbvia e explícita? Porque o disfarce ainda funciona? Dias atrás, disse num artigo sobre A Vida Secreta de Sherlock Holmes (estava no início desta minha saga wilderiana) que a relação entre o detetive e Watson tinha apenas a aparência homossexual, já que Sherlock se apaixona pela espiã no final. Mas estava enganado. O estúdio proibiu que o diretor colocasse a relação entre os dois em panos quentes e o Mestre arranjou uma saída: a paixão heterossexual impossível de se consumar (detetive/espiã), como é do seu feitio.
A evidência, naturalmente, não tira o mérito do Mestre, antes o confirma. Trata-se de um artista de primeira grandeza. Sabe como ninguém encantar as platéias com situações que contrariam o senso comum e seduz a todos pelo seu charme e competência. Não é por nada que contou com a parceria de 25 anos do seu roteirista coadjuvante, IAL Diamond, com quem costumava se encerrar numa casa de verão em Malibu para criar. Só os dois, por décadas. A viúva de Diamond dizia que as brigas amistosas na tela entre Sherlock e Watson, por exemplo, reproduziam as situações vividas pelos dois na vida real.
RETORNO - Imagens dessa edição, pela ordem: cena final de "Quanto Mais Quente Melhor"; o casal de prisioneiros em Stalag 17; Ron e Jack em cena doméstica; Hans Lothar travestido em "One, Two, Three".
ESCOLHAS
Nei Duclós
O jornalismo parece estar entrando em descenso depois de uma fase áurea de prestígio, pelo menos como escolha de faculdade. Houve um tempo em que o vestibular para a profissão era tão competitivo quanto o da medicina. Com o fim da obrigatoriedade do diploma e com a possibilidade de todo cidadão virar mídia graças aos recursos digitais, parece que a antiga “comunicação” entrou em fase decisiva de reciclagem, com algumas perdas importantes. Mas por mais que saia de moda, jamais, imagino, chegará ao estado em que se encontrava quando me decidi pelo ofício.
Como passou muito tempo posso agora contar. A proximidade com os fatos cria embaraços óbvios, pois o calor do momento vibra por décadas. A idade avançada nos permite rir de tudo, pois a vida é datada e precária, só nós não percebemos quando ainda estamos envolvidos com ela no auge da força. Quando eu tinha uns 16 anos fiquei rodeando o lugar que eu mais admirava, a rádio São Miguel, naquela época dentro do padrão Guaíba de qualidade, sem interferências publicitárias gravadas e com uma programação musical de primeira. Tinha também um bom jornalismo,mas nisso a Charrua se destacava mais, graças a grandes radialistas como Mario Dino Papaleo e Mario Pinto, entre outros.
Cheguei a entrar para oferecer meus serviços, pois era naquilo que eu queria trabalhar. Riram do gurizão, claro. Primeiro, não havia vaga, segundo, ali não era escola, terceiro era algo tão remoto quanto viajar para Paris. Mas dizem que insistir é que traz sorte, então quando fui a Porto Alegre ainda sonhava com essa escolha. Mas havia resistência forte no ambiente social. Jornalista era “boêmio e tocador de violão”. Mesmo depois de entrar para fazer estágio na Caldas Junior,os veteranos aconselhavam os novatos a fazer concurso público, pois aquilo era só um bico. Com breve passagem pela Engenharia (onde tinha me metido para provar que poderia passar naquele vestibular tido como difícil), escolhi o Curso de Jornalismo da Ufrgs, mas num momento tumultuado, exatamente o ano de 1968, quando o mundo explodiu na cara da nossa geração.
Acabei saindo da faculdade quando o AI-5 expulsou os melhores professores. O curso de jornalismo se abraçou à Biblioteconomia e não havia mais nada a fazer lá. Veio a praga teórica da ”comunicação” que imperou até há pouco tempo, quando as mídias sociais implodiram tudo e fizeram todas as teses sobre o futuro do jornalismo cair por terra. Estamos em plena revolução, no sentido de transformação radical. Na internet, mantenho o jornalismo autoral onde fui criado, pois ainda peguei a época em que as pessoas assinavam seus textos e podiam, dentro dos rigores da metodologia e da técnica, voar no texto e surpreender.
Mas nunca esqueço o tempo em que meu dentista debochava da minha escolha e que muitos bateram na porta de casa para convencer os pais e me internar, pois eu tinha surtado ao deixar a engenharia pelo jornalismo. Foi uma escolha difícil. Não havia estímulo. Mas esse é o momento apropriado para se decidir pelo front apenas com a cara e a coragem.
RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: obra de Marciano Schmitz.
26 de julho de 2011
A BIOGRAFIA DO POETA É O POEMA
Nei Duclós
A biografia do poeta
é o poema
limpa de todo excesso
leve até o extremo
intenso na vida breve
O poema é o batismo
de uma espécie
certidão incerta
verbo que se quebra
bolo com pimenta
Obra estendida
no deserto
Trêmula flâmula
que serve de aceno
para as caravanas
O ritmo do poeta é o som
colado à colméia
bate estaca na barreira
olho vermelho na cesta
balcão de nenhum sustento
Tudo é memória e poeira
Verbo antes da carne
rastro de água no peito
gatilho oculto no barro
susto de pólvora seca
Mármores de pose inquieta
paixões de estátua de cera
calçadas com mãos de estrela
concertos no contrapelo
exposta cabeça a prêmio
Nada merece esmero
do estudo que se quer sério
Só importa o verso entre seixos
pedra com canivete
fome na cidadela
Só vale o que foi tormenta
só conta o que está no ermo
só vive o que dá o salto
só fica o bolso do Tempo
só existe o que não tem jeito
RETORNO - Imagem desta edição: eu aos 27 anos. Foto de Eneida Serrano
23 de julho de 2011
DEPOIS DO DILÚVIO
Arthur Rimbaud, de Iluminações
Tradução de: Nei Duclós (*)
Logo que a idéia do dilúvio se aquieta
a lebre se posta pelas flores em febre
e faz sua prece para a aliança celeste
através do véu que a aranha tece
Ó pedras preciosas de veios ocultos
que afloram em forma de pétalas
Armamos a feira na sujeira da rua
Direita, e puxamos os barcos para
alto-mar. Lá ocupam o topo, como
as figuras em gravuras de metal
O sangue de Barba Azul jorra
aos borbotões borrando a serragem
das feras, no chão vermelho de leite
e no branco selo de Deus nas janelas
Os castores se atiçam nas construções
enquanto o café fuma o rum nos butecos
Os pingos nos vidros das mansões
deslumbram as crianças de luto
com imagens nascidas na guerra
A porta bate numa praça remota
onde a infância faz rodízio dos braços,
girando como os galos que brincam
nas torres faiscantes de granizo
Dona Asterisco põe o piano nos Alpes
e milhões celebram a hóstia no abismo
em milhares de altares do Santo Graal
Comunhões nos picos de uma catedral
As caravanas se foram, e o hotel perdido
emerge no caos de gelo e da noite polar
É quando a Lua ouve o uivo dos chacais
e diálogos pastorais no ermo de ervas
Surge então a floresta violeta. E a flor
da Eucaristia avisa a próxima primavera
Ronco surdo na laguna, rolos de espuma
sobre a ponte e a floresta se cobre de espessos
fungos ao som de órgãos e relâmpagos
Os trovões assombram o dilúvio, ciclo
de água e tristeza que inunda tudo
É horrível quando se dissipam as ametistas
que formam galerias. Ou as flores que brotam
Nunca saberemos o segredo guardado a chave
pela Dona dos Feitiços, que acende o carvão
no caldeirão de barro. E, ai de nós, só ela sabe
(*) Toda tradução é livre
RETORNO – Este é o poema original
APRÈS LE DÉLUGE - Rimbaud
Aussitôt que l'idée du Déluge se fut rassise,
Un lièvre s'arrêta dans les sainfoins et les clochettes mouvantes et dit sa prière à l'arc-en-ciel à travers la toile de l'araignée.
Oh ! les pierres précieuses qui se cachaient, − les fleurs qui regardaient déjà.
Dans la grande rue sale les étals se dressèrent, et l'on tira les barques vers la mer étagée là-haut comme sur les gravures.
Le sang coula, chez Barbe-Bleue, − aux abattoirs, − dans les cirques, où le sceau de Dieu blêmit les fenêtres. Le sang et le lait coulèrent.
Les castors bâtirent. Les "mazagrans" fumèrent dans les estaminets.
Dans la grande maison de vitres encore ruisselante les enfants en deuil regardèrent les merveilleuses images.
Une porte claqua, et sur la place du hameau, l'enfant tourna ses bras, compris des girouettes et des coqs des clochers de partout, sous l'éclatante giboulée.
Madame*** établit un piano dans les Alpes. La messe et les premières communions se célébrèrent aux cent mille autels de la cathédrale.
Les caravanes partirent. Et le Splendide-Hôtel fut bâti dans le chaos de glaces et de nuit du pôle.
Depuis lors, la Lune entendit les chacals piaulant par les déserts de thym, − et les églogues en sabots grognant dans le verger. Puis, dans la futaie violette, bourgeonnante, Eucharis me dit que c'était le printemps.
− Sourds, étang, − Écume, roule sur le pont, et par dessus les bois; − draps noirs et orgues, − éclairs et tonnerres − montez et roulez; − Eaux et tristesses, montez et relevez les Déluges.
Car depuis qu'ils se sont dissipés, − oh les pierres précieuses s'enfouissant, et les fleurs ouvertes ! − c'est un ennui ! et la Reine, la Sorcière qui allume sa braise dans le pot de terre, ne voudra jamais nous raconter ce qu'elle sait, et que nous ignorons.
Imagem desta edição: detalhe do arco-íris de Rubens
THE FRONT PAGE: ATUALIDADE DE UM CLÁSSICO
Nei Duclós
Peças de teatro dão bons filmes. O principal está garantido: diálogos e roteiro. Basta criar em cima e isso na mão de um mestre como Billy Wilder se transforma num material explosivo e de grande atualidade. A peça A Primeira Página, de 1928, de Ben Hecht, já tinha gerado um filme em 1931, dirigido por Lewis Milestone e indicado para três Oscar, quando o Mestre decidiu refilmá-la em 1974. Convocou uma dupla que ficou antológica no cinema, Jack Lemmon, como o repórter Hildy que tenta escapar, em vão, do ogro,seu editor Walter Burns, interpretado por Walter Matthau.
Hoje, quando os jornais fuleiros de Robert Murdoch são flagrados no crime dos grampos, este filme sobre jornalismo marrom ganha sobrevida como referência obrigatória. Com um detalhe: para Billy Wilder não existia jornalismo marrom, as barbaridades que se cometem no filme são a imprensa, ponto. Seus profissionais são cuspidos por uma prostituta e todas as versões são distorcidas até o escândalo total, compactuado pelo sistema de poder que a usa, mas é também sua vítima e sofre de chantagem. A falta de escrúpulos para obter a informação é a mesma que se dá o direito de desvirtuá-la, conforme o veículo.
Esse enfoque destaca não a matéria, mas a manchete e o lead, ditados aos berros pelo chefe da redação. Hoje seria a notinha ou a chamada na rede, divulgada com pressa para superar a concorrência. “Isso vai dar capa” seria uma tradução mais apropriada do que “A Primeira Página”. O repórter serve para dourar a pílula com seu talento histriônico e fornecer o mote para a chamada principal. O editor precisa do talento do seu profissional que tenta escapar para a publicidade (hoje não precisa, já que o jornalismo foi devorado pelo marketing), e faz de tudo para romper seus planos de casamento com uma pianista de cinema, interpretada por uma jovem e bela Susan Sarandon. O Examiner precisa algo exclusivo sobre o enforcamento de um assassino que matou um guarda negro em véspera de eleições e isso só Hildy poderá conseguir.
Baixaria, falta de coleguismo, transgressão da lei, perseguição política, uso da mídia para as eleições, mentiras, calúnias, ficções, ao contrário do que é estampado nos jornais, são a verdade dos fatos, que se desenrolam nos bastidores e que é a matéria do filme. Temos então a reportagem, que é o cinema diante de nós, flagrando a falcatrua, a imprensa e suas artimanhas para conseguir ludibriar o público (donas de casa e esposas de taxistas, segundo o script) e vender jornal. Existe algo mais atual? Vamos lembrar que até títulos tradicionais e que gozavam de grande prestígio foram engolfados pela miséria murdochista e tudo se transformou numa mixórdia sem fim que desaguou no crime de grampear personalidades e celebridades em função do aumento da tiragem.
O destino dos personagens, estampado no final do filme, revela muita coisa sobre as intenções de Billy Wilder. O casal formado pelo bandido (hilário e romântico, interpretado pelo baixinho magricela Austin Pendleton), que conseguiu o indulto, e a prostituta (Carol Burnett, talvez a maior performance de overacting do cinema) que o acolheu quando estava ferido, monta um restaurante de comida natural. Hildy não casa e volta ao Examiner para ser editor-chefe, enquanto sua noiva casa e tem três filhas, uma chamada... Hildy. O casal gay formado pelo colunista social veterano e o jovem foca vai dividir um teto. Os repórteres acabam mesmo no copy-desk, como tinha previsto Hildy quando tentou fugir da redação. E o editor salafrário vira professor de ética na Universidade de jornalismo. Bingo! Aí temos os modismos (comida natural e aulas de ética), a eterna presença do homossexualismo nos filmes de Wilder e o triste fim dos jornalistas, aqui tratados como gado.
Mas alguma coisa se salva. A paixão pela profissão nunca foi retratada de forma tão veemente e encantadora. O editor que dorme no sofá da sua sala no jornal, o repórter que se deixa engolfar pelos acontecimentos, a contundência da imprensa diante do poder, a camaradagem, apesar das diferenças, consolidada pelo mesmo destino, que é um front de batalhas quase sempre perdidas desfilam diante de nós, veteranos deste ofício, até a lágrima total. Não existe vocação mais avassaladora, que se destaca da literatura e se identifica mais com os folhetins do que com os grandes escritores (em “A Primeira Página”, debochados até o osso). Esse sabor ameniza o travo amargo do filme, um clássico em todos os sentidos, ou seja, uma obra que merece ser estudada em classe, conceito explicado pelo professor Fernando Novais numa aula da USP.
RETORNO - Imagens desta edição: 1. Lemmon e Matthau, repórter e editor, "grampeados" por obstrução da Justiça. 2. Lemmon esconde Austin Pendleton ajudado por Carol Burnett.
22 de julho de 2011
BILLY WILDER: A CELEBRAÇÃO DA DENÚNCIA
Nei Duclós
Em 1964 Billy Wilder chocou os conservadores com Kiss Me Stupid, que roteirizou junto com I.L. Diamond e trata da sublimação. No conceito freudiano, uma pulsão é sublimada quando se orienta para um alvo não-sexual, procurando objetos socialmente valorizados. A origem continua a ser sexual , mas o resultado não. A tesão sublimada dos carolas que querem fechar o puteiro, no filme, é representada pela partilha de um bolo de aniversário de casamento.
Na pequena cidade, todos estão nessa mesma situação sublimada: o compositor sem família que sonha com o sucesso; o marido fiel que fetichiza a bela esposa como um objeto sexual da devassidão de todos os que se aproximam dela, quando tudo é fruto de suas compulsões; a velha que fala de maneira obsessiva sobre o casamento ideal da filha; a esposa perfeita que na juventude foi presidente do fã-clube do bonitão e acaba se entregando para ele; a prostituta que sonha com a mobilidade, a fuga, como uma forma de sair de sua profissão e fazer uma família; o cantor de sucesso e mulherengo que deixa as coristas esperando por ele enquanto aproveita para ir embora, rumo aos seus parceiros da noite.
Os personagens são desmascarados quando trocam de papéis e se entregam para as origens da sublimação. O marido vira corno, bêbado e dorme com a prostituta, que tem uma noite de dona de casa. A esposa perfeita aproveita para fazer sexo com seu ídolo, o compositor trai o cliente para apanhá-lo numa armadilha. É uma desfaçatez atrás da outra, para dizer que a repressão mata os sonhos e transforma o indivíduo num personagem oposto ao que é de verdade. No fundo, é a repressão que não presta, pois não tem importância (“me beija seu imbecil e pára com isso” diz o mote do filme), mas é tão levada a sério que acaba vingando no cenário isolado de uma cidade perdida no meio da estrada.
O filme é um arraso, os atores são de matar. Dean Martin detona como o conquistador de voz de veludo, Kim Novak deslumbra com seu talento e beleza, Ray Walston, que felizmente substituiu o eterno Jack Lemmon (que desistiu por ter outro compromisso) está ótimo como o marido ciumento, a mulher de Lemmon, Felicia Farr convence como a bela esposa que acaba num trailer vagabundo, e Cliff Osmond é o hilário letrista que arma toda a bagunça. É um filme muito mais radical e transgressor do que tantas porcarias que ficam mostrando sexo explícito e não passam de baboseiras metidas.
Em Billy Wilder, sexo define o papel social: o pai de família, a dona de casa, a prostituta, o celibatário religioso, a viúva que vive de pensão, a mãe, os tios, os avós , o solteirão, o bígamo, o homossexual. Billy Wilder não compactua com essa sintonia e mexe fundo na relação entre a criatura e sua personagem, a biologia e o teatro, o script encomendado e transgressão da persona reconhecida. O mais impressionante é que ele abordou isso numa época de extrema repressão e soube dar charme e encanto ao drama vivido pela sociedade de massas, à mercê dos apelos sexuais da indústria do espetáculo e o rigor (que acabou implodindo com o tempo) das tradições. Arranjou encrenca bastante, mas deixou um rastro de obras-primas. Algumas eu vi há tempos, outras nos útimos dias,pois fui atrás da Obra para entender melhor o Mestre.
Seus filmes estão cheios de referências a esse fosso entre intenção e realidade: a prostituição disfarçada (The Apartment) ou romântica (Irma La Douce), o homossexualismo consentido (Some Like it Hot), oculto (Primeira Página), ou em forma de calúnia (A vida secreta de Sherlock Holmes), o lirismo das traições (Avanti!), o ridículo da fidelidade doentia (O Pecado Mora ao Lado) a insubordinação da Terceira Idade (Crepúsculo dos Deuses). O mal entendido em relação aos papéis sociais são recorrentes no filme. “Mas eu sou homem!” grita Lemmon no célebre final de Quanto Mais Quente Melhor, ao que recebe a resposta do velho homossexual que sabia de tudo: “Ninguém é perfeito”. Ou a troca de roupas no banheiro do avião entre dois homens no início escandaloso de Avanti!, que era apenas uma combinação sem outra conotação sexual.
Sua maior transgressão, dentro dessa abordagem, é criar cenas onde não há sex appeal e os protagonistas tentam se relacionar em vão. Quem esquece o marido no sétimo ano de casado que, para desespero da platéia masculina, não traça a mulheraça que é Marilyn Monroe, que dá aquela bandeira da saia levantada no metrô? Ou o executivo Fred McMurray que trata com indiferença a linda Shirley McLane? Ou mesmo Jack Lemmon, coitado, nadando nu em Avanti!, para desespero da parceira e dos espectadores?
E os “casais”?Walter Mathau e Jack lemmon em A Primeira Página, que trocam juras de amor, discutem a relação e acabam sendo inimigos da vida conjugal heterossexual; o travesti Tony Curtis que tenta seduzir a louraça Marilyn; o milionário Lemmon travado que descobre o prazer com a filha de uma manicure; o funcionário subalterno que empresta o apartamento para o chefe fazer sexo com o amor dele, funcionário? Billy é cruel o tempo todo, e brilhante no que pode ser encarado como denúncia, mas para ele era divertimento.
Billy nasceu numa cidade que fazia parte da Austria e hoje é na Polônia. Nasceu num lugar sem humor, numa época de grandes guerras. Migrou para a festa explícita do cinema americano. No início de Beija-me, idiota, todos os garçons morrem de rir de Dean Martin, menos um, com cara de polonês. Os colegas então o cutucam para rir também. Ele pensa que o estão advertindo sobre o mau uso que faz do guardanapo. O garçom de cara amarrada então, rapidamente, muda o guardanapo de braço, para imitar os outros. Essa talvez seja a representação da arte de Wilder: um outsider que tenta agradar os anfitriões com o que eles sabem fazer, a piada, o ritmo, o riso, o deboche. Mas que acaba trocando os papéis magistralmente, pois suas comédias são dramas e suas denúncias, pura celebração.
RETORNO - Imagens desta edição: no sofá vitoriano, em que o casal fica sob a guarda de uma tia velha e surda, Dean Martin e Kim Novak giram em torno do tricô de Ray Walston. Na foto do meio, Tom Ewell olha o jogo de sedução de Marilyn. O panaca sortudo e desesperador.
20 de julho de 2011
O CARÁTER DAS ROUPAS
Nei Duclós
Não existe peça do vestuário masculino mais bandida do que as meias. Talvez seja por vingança de estarem sempre nos pés. Mas elas jamais emparceiram, por exemplo, mesmo que preventivamente a gente decida comprar apenas de uma cor. Há nuances entre as texturas e você jamais consegue juntar dois exemplares idênticos. Mas em todas as roupas existe esse perfil psicológico, não porque se humanizem ao tomar a forma humana, mas porque são assim mesmo, na essência, por natureza, se é que se pode dizer.
Os ternos, está na cara, desviam dinheiro público, os pulôveres jamais se ajustam ao corpo e escasseiam na barriga e sobram nas mangas, para gerar desconforto em quem usa. Há todo tipo de meliante. As campeiras ganham imediatamente aquele cheiro de mofo de inverno e não há o que tire. Ponchos pesam toneladas com qualquer chuva miúda, chapéus desabam miseravelmente no terceiro mês de friaca e inundam o cocuruto no verão. E, com a nova dominação chinesa em todos os nichos industriais, vemos como tudo rasga fácil, estraga, encolhe, perde a cor.
Vinco é uma coisa que não se vê mais. Faz parte do Mundo Perdido, quando as roupas tinham caráter . Um vinco fazia média com as bainhas italianas e se exibiam para golas engomadas em riste. Os excessos deslumbravam nos bailes, como as abotoaduras que juntavam alvas pontas de mangas de camisas impecáveis. Os sapatos, hoje marginalizados pelos tênis saradões e por isso em eterna pose de ressentimento, já que se esforçam para clonar seus adversários, tinham personalidade e faziam a glória de todas as idades barbadas.
Um sapato de verniz bem engraxado era o espelho onde se miravam os rostos de bigodinho fino. Cordões de luxo faziam o calçado se adaptar magnificamente no pé, pois era preciso segurança para rodopiar a valsa ou caprichar no tango, nas altas horas. Havia rigor. Não era como hoje com essas calças meia canela, de pular sanga, que mais parece um xiripá mal ajambarado e que todos usam, inclusive os da terceira idade, o que dá um aspecto bizarro em criaturas que deveriam atingir o nível da sobriedade.
Os tecidos não existem mais. Linho, cambraia, lã, casimira e até mesmo o novidadeiro nycron sumiram para dar lugar a essa mixórdia plástica de fios que atraem eletricidade suficiente para acender dez lâmpadas. O que chamam de algodão é uma imitação barata daquele tecido amigável que fazia o conforto de nossos corpos tão ansiosos. Tudo é chinês, ou seja, não vale nada. É o que me disse o dono de um mercadinho 1,99. Mas esse brinquedo está estragado! disse. Claro, respondeu ele, é chinês.
Triste país que deixou de se pautar por indústrias estrangeiras de grife, como a alemã e a italiana, para se deixar levar para a quinquilharia generalizada. E não adianta vibrar a palavra da moda, “preconceito”. Depois que os imbatíveis e indestrutíveis vulcabrás migraram para a China, tudo pode acontecer. Desse jeito, essas marginais, as meias de poliéster, ou então as de algodão grosso que apertam nos tornozelos, ou mesmo as camisetas que te estrangulam por falta de bom senso no design, tomarão o poder. E ficaremos nus, como nunca fomos.
RETORNO - 1.Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Elvis Presley vestido a caráter. Tirei daqui.
18 de julho de 2011
COPA AMÉRICA 2011: A ORIGEM ESPÚRIA DA DERROTA
Representar o país é a única coisa legítima da atual seleção brasileira. O resto é espúrio, a começar pela sua origem, já que ela foi convocada a partir do ódio ao Dunga, alimentado pela Rede Globo, contrariada em seus hábitos de invadir a concentração para fazer matéria. Dunga se recusou e a briga gerada pelo evento desestabilizou o Brasil em plena Copa da África. Perdemos em função desse conflito, já que o time vinha bem, estava classificado, era vencedor, ganhou a Copa América, ficou em primeiro lugar nas eliminatórias, ocupava o topo do ranking da Fifa. A madame do Jornal Nacional quis entrar nos aposentos dos jogadores e foi barrada e por isso se vingou.
Faz parte dessa origem espúria a intenção de pintar o atual selecionado como uma resposta às escalações do Dunga, que não convocou os emergentes, na época, Ganso e Neymar, pois isso iria quebrar a forte estrutura montada ao longo de quatro anos de trabalho. Houve grita geral da imprensa, da mídia em geral e de muitos torcedores, mas Dunga estava certo. Neymar e Ganso são, como Messi, jogadores medianos, com alguns lances ótimos, mas fica nisso. É preciso trabalhar o talento, principalmente tirando-lhe a máscara, enquadrando-o num espírito de equipe e barrando a pressão da vaidade fomentada pela indústria do espetáculo. Um jogador não pode gastar os tubos para aparar penacho e chegar em campo e fazer quase nada.
Futebol é como cinema ou jornalismo. Há o exercício autoral da profissão, mas é um trabalho de equipe. Nada se faz sozinho. Mas a indústria financeira (a seleção é patrocinada por bancos), que é vaso comunicante da indústria de espetáculo, carrega no ego como se o jogo fosse composto apenas por protagonistas e não por conjuntos bem articulados e em sintonia fina. Vimos o que é o Messi na seleção, que não é um time: não faz nada. Ou Fred, que brilha no Fluminense, que é um time, e ficou perdido na Copa, ainda mais porque esquentou banco demais e só foi colocado nos últimos minutos.
Não vou entrar no mérito dos jogadores, já que todos jogaram mal contra o Paraguai, contrariando assim as análises da Globo, que achou que jogaram bem, só faltou gol. Se faltou gol numa partida decisiva é porque não jogaram bem, não foram objetivos, implodiram nas jogadas individuais, nos passes multiplicados por um milhão até dentro da área. Ninguém tinha peito para bater em gol e quando faziam, como Ramires, jogavam nos eucaliptos (o velho limites dos antigos estádios da várzea). E jogaram mal porque a seleção tem também outra origem espúria: é comandada pelos empresários do futebol, os que vendem craque no nascedouro até para o Pólo Norte, pelos anunciantes, que colocam propaganda até na bunda dos jogadores, e pelo monopólio das transmissões, capitaneada por alguém que foi execrado pela opinião pública recentemente nas mídias sociais.
Fazendo um balanço: você monta um time pretensamente de “arte”, com jogadores valorizados pelo empresarismo predatório, à mercê da avalanche de anunciantes trilionários e de madames ou coronéis da mídia e coloca em campo mascarados de gola alta, metidos a besta, hipercraques antes do tempo e não consegue ganhar nem da Venezuela, que ficava na rabeira e hoje está classificada. Somos piores hoje do que a Venezuela, já que ela se classificou, nós não. Ou você faz como o Dunga, que manda na escalação e peita a Globo, ou como o Felipão, que criou uma barreira contra a frescurada da imprensa, ou dança como o Mano Menezes, que está na mão da televisão.
Sem dúvida que o excesso de areia, armadilha argentino-paraguaia, interferiu nos pênaltis perdidos, mas os paraguaios conseguiram marcar, pois não? Então a areia não pode ser estrangeira, é isenta, prejudica ambos. O que houve foi quebra do salto. A máscara caiu, mas em vão. Mano Menezes continua, Ricardo Teixeira continua, o banco mais sustentável de todos os universos continua. Temos a sorte de sermos sede da próxima Copa do Mundo pois não nos classificaríamos desta vez (e do jeito que está, corremos o risco de nem ir para as quartas de final).
O Brasil precisa parar de exportar craques e importar máscara. Precisa forttalecer seus clubes, verdadeiras escolas de futebol brasileiro e não deixar que a meninada vá aprender o futebol estrangeiro. Fizemos escola, brilhamos e depois, por ganância, fechamos. Matamos a galinha dos ovos de ouro. Nem aprendemos as lições de fábulas conhecidas. Nossa tragédia continuará se não mudarmos radicalmente.
RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.
17 de julho de 2011
BILLY WILDER ABRE O BAÚ DE SHERLOCK HOLMES
Sherlock Holmes é personagem literário, por isso não pode viver longe do seu biógrafo, o dr. Watson, que o inventa por meio da narrativa. Ambos são criação de Conan Doyle, que coloca assim o relacionamento entre a dedução, que é a lógica em parceria com a imaginação, encarnado pelo detetive, e a sua versão idealizada e redutiva, sem nenhuma sofisticação e análise, representada pelo médico. A visão mais tosca dessa relação é a calúnia, ou seja, de que ambos formam um casal homoafetivo, quando o fato é que as duas criaturas siamesas convivem forçadamente com suas diferenças por imposição da literatura, já que fora dela não existiriam. O que pode ser feito para revelar essa complexidade? É preciso que o autor seja socorrido por um dos seus pares, no caso, o gênio de Billy Wilder.
No seu filme A vida secreta de Sherlock Holmes (1970), Billy Wilder revela um caso complicado em que Holmes teria levado desvantagem pela primeira e única vez (e esse seria o motivo da publicação tardia do evento). É pura criação cinematográfica, fundamente baseada na obra de Conan Doyle. O filme inicia e termina com páginas escritas, delimitando assim o lugar onde a história se circunscreve, um roteiro imaginado por um Watson morto (não pertencente mais à obra original) e que coloca na roda dos aficionados 50 anos depois de seu desaparecimento (portanto, já na era do cinema). O caso é o desafio proposto por uma espiã do império austríaco, exatamente onde Wilder nasceu (em Sacha, hoje pertencente à Polônia) , o que é uma metáfora poderosa do filme, pois essa personagem mulher seria a interferência de Wilder na história.
O deslocamento narrativo, da abordagem fora da Inglaterra por uma protagonista mulher pertencente ao “inimigo”, incide sobre os lugares comuns britânicos mais caros: a pontualidade exagerada como uma improbabilidade hilária, a governanta que trata seus hóspedes como crianças levadas e não como adultos solteiros, o puritanismo sexual elevado ao máximo absurdo, como a proibição de haver sexo na casa de hóspedes, ou a separação dos corpos do casal na cabine do trem, acrescidos do clima execrável e a falta de calefação adequada nas prisões e a ingenuidade da rainha diante dos avanços tecnológicos da guerra.
Esses excessos estão sintonizados com os desvirtuamentos narrativos do biógrafo, que pinta seu personagem sem defeitos, exagerando na dose, o que causa uma reação ferina de Sherlock (interpretado por Robert Stephens). O biografado assim escapa das garras do seu narrador que não consegue enquadrá-lo devidamente. E também escapa da percepção original que os leitores tem da obra, quando lidam apenas com as aparências das histórias e não mergulham na leitura de seus sinais. Essa independência é representada pelo vício da cocaína, algo que o seriíssimo Dr.Watson (Colin Blakely ) não consegue impedir. Watson entra em conflito permanente com Sherlock, no filme, por tentar se livrar dele de alguma forma, ou mentindo sobre o relacionamento dos dois para escapar de uma bailarina louca, ou porque o detetive se deixa levar pela mão da espíã (Geneviève Page). O que no início parecia homossexualidade de Sherlock é a impossibilidade de se relacionar com as mulheres devido ao seu ofício de desconfiar de todos. Um casal só existe na confiança mútua, como a que existe entre personagem e biógrafo nas páginas literárias.
Mulheres são traiçoeiras, como comprova a noiva que morreu de gripe uma semana antes de casar com o detetive. E a regra é confirmada pela falsa esposa que procura o marido e se revela a espiã inimiga. Mas a ligação acaba acontecendo e o amor só pode ser declarado por código Morse, quando tudo está perdido. Gente não passa de linguagem e os fatos são apenas representações, fruto do uso ou encarnação das palavras e imagens. A genialidade do filme é mostrar a imortal criação de Conan Doyle como uma obra aberta, que no fim confirma a escrita original. O que parece escapar da origem, da autenticidade da fonte, apenas a reforça. Mas com a sofisticação de denunciar que tudo não passa de criação literária e cinematográfica.
Não se trata de “atualizar” a obra, seria óbvio demais. Mas de descobrir nela o que parece faltar (o romantismo de Sherlock, mesmo não sendo um sentimental), ou de desmoralizar o que parece fazer parte (a relação homossexual que não existe). Sherlock é afetado não por não gostar de mulher, mas por fazer parte de uma civilização que transcende nações, já que se identifica com seus pares, como a espiã austríaca, e se indispõe tanto contra a Scotland Yard quando seu irmão, o sinistro burocrata governamental (interpretado por Christopher Lee).
Wilder abre o baú dos personagens de Doyle sem fazer nenhuma cerimônia. A riqueza visual, que começa acanhada no apartamento e nas ruas do fog londrino, abre-se para as paisagens da Irlanda. É o amor que desabrocha e torna-se datado e ao mesmo tempo eterno. O vicio da droga não é só o tédio por não haver um caso à altura da mente brilhante do detetive. Mas porque nesses hiatos não há como escapar da solidão. Sherlock ama o amor impossível. Nada mais século 19, numa história que mostra a engenhoca submarina como tentativa de transcender a época . E onde a metáfora de Jonas, ao personagem bíblico dentro da baleia, nos remete ao que estava oculto na vida de Sherlock e que agora vem à tona pelo mesmo caminho, a criação artística de um gênio do cinema, que aqui conta, no roteiro, com a proveitosa parceria de I.A.L. Diamond, seu companheiro em outras grandes obras como A Primeira Página.
RETORNO - Imagem desta edição: Billy Wilder.
16 de julho de 2011
O SANGUE AZUL DA REPÚBLICA
Os americanos cobiçam a Corte, instituição monárquica que garante status hereditário e hegemonia sobre os demais adquiridos no berço. Numa República, onde sobram palácios para tudo, o que atrapalha é o voto, mas nada que uma urna eletrônica programada, um bipartidarismo viciado, um sistema de representação política engessado, ou um marketing milionário não dê jeito. Por isso temos linhagens seculares no mundo republicano, com trisnetos seguindo o passo dos ancestrais, mas não é a mesma coisa do que um duque, um conde, uma princesa, um rei. Essa demanda reprimida acaba desaguando em todo tipo de título nobiliárquico para personagens da indústria do espetáculo, onde imperam as cabeças coroadas (aqui no Brasil, temos reis, rainhas e imperadores na música ou no esporte) .
No cinema, sempre há história de alguém que ascende à nobreza, principalmente por meio da especialidade americana, a ilusão da arte audiovisual. Basta ver qualquer Sessão da Tarde para se entupir de histórias de jovens americanas que conquistam príncipes europeus. Ou então, os contos de fadas em que cinderelas se fantasiam para roubar o coração de uma herdeiro do trono. Cinderela é personagem recorrente na Sétima Arte, mesmo que a ilusão seja datada e tudo volte ao normal no final da fita, pois alguém sai ganhando, se não a protagonista principal, pelo menos algum personagem coadjuvante, que acaba casando e ascendendo para o sangue azul.
Por duas vezes, Frank Capra filmou a mesma história que tem tudo a ver com essa vocação. Dama por um dia de 1933 (Lady for a Day) e sua refilmagem em 1961 (Pocketful of Miracles) conta a história da mendiga e vendedora de maçãs que recebe a visita da filha, que vem comprometida com um conde, já que ela, a mendiga, finge ser milionária em cartas de papel timbrado surrupiados de um hotel de luxo. A vinda da herdeira põe a velha mulher em pânico, que é socorrida por um gangster e sua noiva, que a transformam numa verdadeira senhora da alta sociedade, ou seja, o espelho mais próximo da nobreza européia.
Prefiro a segunda versão, que acabo de ver (a primeira também está disponível, mas no you tube). Ali estão todos os elementos da maneira como os EUA vêem sua principal deficiência, ou seja, a falta de uma linhagem nobre na sua elite. Como poderão imperar se não existir o destino manifesto, o cargo ungido por Deus, incontentável, como acontece nas monarquias? Sem isso, o poder precisa ser exercido à força, que é o que acontece com as sucessivas invasões em diversos países. Mas Capra deu um jeito. Sem tapar o sol com a peneira, mostra que a maestria americana em criar ilusões serve perfeitamente para outorgar ao país o que mais lhe falta, um título de nobreza. Assim, a velha mendiga (interpretada magistralmente por Betty Davis) é travestida para receber a filha (Ann Margret, linda, bem mocinha) e a família do noivo, com o apoio dos gangsters (Peter Falk está impagável, absolutamente gênio) e os ambulantes da cidade.
Ao contrário da primeira versão, que segue todo tempo os passos da velha, a segunda divide o foco entre Dude, o chefe da quadrilha (Glenn Ford, ótimo), e seu esforço para dominar Nova York, dividido entre a ação que isso representa e a perspectiva da modorra no casamento, e Annie Apple, a vendedora de maçãs, que vive em função da filha distante. Trata-se de Nova York, a sedução representada pelo fruto proibido. A moça que desconhece a situação miserável da mãe e é sustentada pelas gorjetas que a mulher consegue na sua faina nas ruas, vai virar condessa por meio do casamento, mas antes sua família precisa passar pelo crivo da auditoria monárquica. É para driblar essa inspeção que a trama se arma.
A mulher do gangster ( a bela Hope Lange)é filha de um assecla de Dude que morreu endividado. Ela precisa pagar a dívida e casar com o gangster, portanto quer também transcender sua origem para chegar ao seu destino, que é uma casa pacata com marido e filhos. Seu apelido é Queenie (diminutivo de Queen, rainha) e seu nome verdadeiro é Elizabeth, et pour cause. Para deixar de ser a pequena rainha da noite para tornar-se a rainha Elizabeth do lar, ela tenta (e consegue) convencer seu noivo a apoiar a vendedora de maçãs, alimentar a ilusão para que a filha possa escapar da pobreza.
Tudo dá certo, como acontece sempre nos filmes do otimista Capra. A velha convence os nobres graças a uma chantagem do gangster sobre os grandalhões de Nova York, prefeito e governador inclusive. Mas volta para as ruas, pois sua missão está cumprida. Foi nobre por um dia, mas não importa, a filha, sua descendência,está garantida, entrou para o panteão da nobreza. É quando os cidadãos da república podem usufruir dos privilégios do sangue azul.
O ritmo dos diálogos, a perfeição das cenas, as interpretações magistrais (como a de Thomas Mitchell como o juiz corrupto) fazem da segunda versão de Dama por um dia um filme antológico. É absolutamente hilário e encantador. O encanto que cruza o tempo e se mantém intacto. Não se trata de cultuar o passado, mas de competência na arte difícil que é o cinema.
Quem dá dimensão exata da grandeza do filme é Bette Davis. Quando ela é transformada numa dama, por exemplo, assume aquela postura tão conhecida da sua biografia cinematográfica, em inúmeros filmes em que deitou charme enchendo a tela. Mas esse ar aristocrático, que ela faz transparecer tão natural, ficaria estranho para uma mendiga. Bette Davis então o que faz? Caminha de maneira trôpega pela sala, pois o andar define a personagem. O contraste entre sua aparência, suas roupas e maquiagem, com aquele andar prejudicado, é uma grande performance desta que é uma das maiores atrizes de todos os tempos.
RETORNO - Imagens desta edição: na foto maior, Bette Davis e Glenn Ford; na menor, Peter Falk.
15 de julho de 2011
A MORTE DE JOSELITA DE JESUS PEDREIRA
Nei Duclós
Em Feira de Santana, na Bahia,
assaltante foge e atira para trás.
Mulher que passa é atingida nas costas.
Pede perdão duas vezes, faz o sinal da cruz e morre
Duas vezes perdão, minha compatriota,
e um sinal da cruz para entrar no eterno.
Foi tudo muito rápido e improvisaste
tua extrema unção.
Passavas com a flor da tua leveza,
alinhada e séria, compenetrada passante.
Tentaste te proteger mas foste colhida
pela bala. És nossa prece
Em que pensavas quando foste interrompida
pela truculência? Quais teus planos, teu sonho?
De onde vinhas, amiga?
Levas teu segredo, o perdão
Que o céu te receba em sua glória.
Porque tua fé revela a eternidade,
oculta na cidade bruta.
Fé nessa hora extrema é o amor que nos falta
Matam sem olhar. Todos são alvo do horror armado,
da densa e opaca maldade.
Só tu, diáfana passageira do sonho morto,
flutua sobre tanta dor
És a mulher que cruza o caminho
do bandido em fuga.
A graça do passo derrubado à traição pelo atropelo.
A beleza na mira do covarde
O que carregava o bandido na sua ânsia de morte?
Quinquilharias de uma loja do subúrbio.
Matou a única jóia verdadeira
que passou perto dele
RETORNO - 1.Imagem desta edição: Joselita de Jesus Pedreira, 35 anos, promotora de vendas. 2. As informações para este poema foram apresentadas pelo Jornal da Band de 14 de julho de 2011.
14 de julho de 2011
BANQUETE CULTURAL NA SAGARANA 44
Julio Monteiro Martins, o mais importante escritor brasileiro em atividade no Exterior, que completou recentemente 56 anos bem vividos, é tema do livro Un Mare Così Ampio (LibertàEdizioni),de Rosanna Morace, que analisa toda a obra de Julio, incluindo a sua produção brasileira antes da imigração. Rosanna é jovem e premiada doutora em estudos linguísticos e trata sobre "I Racconti-in-romanzo di Julio Monteiro Martins". O lançamento faz parte de um projeto magnífico que está sendo desenvolvido na Itália sobre a contribuição dos migrantes para a literatura feita hoje no país. E o primeiro volume é exatamente o do nosso Julio!, que está animado.
Diz ele numa carta para mim: "Eu tenho esta grande alegria interior de ter cumprido, e de estar cumprindo, creio, o meu dever, em favor da literatura, da cultura italiana, e também do Brasil, da sua cultura, que querendo ou não um pouco se internacionaliza, não é? Pois o Brasil, como explica muito bem a Rosanna Morace, está todo dentro da minha obra, mesmo naquela em lingua italiana. Te mando em anexo a primeira resenha do livro, que saiu ontem publicada na revista "El-Ghibli".
Numa leitura inicial que fiz das primeiras páginas de Un Mare Così Ampio, notei a admiração da estudiosa pela obra de Julio e o cuidado que ela tem na abordagem, escapando de qualquer tentação de padronizar conceitos sobre o trabalho literário. Abrindo o leque de sua análise, ela mergulha na obra do escritor brasileiro, que nos últimos anos tem publicado em italiano sua prosa, que não se enquadra nos lugares comuns, já que é pura invenção e criatividade, com cruzamento de gêneros e liberdade total. Quanto seriedade na Italia, como tratam com deferência o escritor brasileiro que saiu daqui depois de muitos conflitos e encontrou seu lugar lá em Lucca, onde é também professor de narrativa na sua escola Sagarana!
E por falar em Sagarana, Julio anuncia também a edição número 44 da melhor revista cultural do mundo. A carta de divulgação traz estas palavras:
Caros amigos e amigas. É com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 44 da revista Sagarana, em língua italiana, neste endereço. A capa desta edição é dedicada ao poeta e compositor norte-americano Gil Scott-Heron, falecido há dois meses: é presente uma tradução inédita em italiano da letra da sua canção mais conhecida, "The Revolution Will Not Be Televised", traduzida por Pina Piccolo especialmente para Sagarana.
Este número reúne diversos ensaios e artigos inéditos na Itália: “Le ragioni di un mondo sottosopra”, de Karim Metref, sobre o Oriente Médio hoje, sobre o quanto as rebeliões são espontâneas ou fomentadas por interesses estrangeiros; “Una bottiglia in mare”, um depoimento comovente de um filho que descobre o caderno com as poesias deixadas pelo pai “desaparecido” na Argentina; “Il collasso della globalizzazione” de Chris Hedges; “Lo spleen rivisitato”, um texto sobre a melancolia e a nostalgia na música contemporânea; “L’effetto Berlusconi”, uma entrevista com Slavoj Žižek; e em seguida o diretor de cinema Bernardo Bertolucci conta como foi “o seu 1968”.
Tem também os ensaios breves de Cherilyn Parson – sobre o conceito de romance na obra de Orhan Pamuk –, de Serge Latouche, “Abbondanza frugale”, dois de Perry Anderson, “La sinistra invertebrata” e “Il mondo fato carne”, sobre o corpo como instrumento de política, e de Vassilij Grossman, sobre o campo de extermínio de Treblinka, além de duas outras entrevistas: com Serge Quadruppani e com Grahan Priest.
O Editorial desta edição, de Monteiro Martins, “Per un’idea diversa di successo”, reflete sobre o fato de que de todas as possíveis e importantes funções da literatura hoje é justamente aquela mais sujeita a manipulações, o resultado das vendas do “produto”, a ser considerada como determinante na avaliação do “sucesso” de um livro.
Em Narrativa apresentamos a tradução inédita do conto “Dies Irae”, de Ronaldo Cagiano, além dos contos “La legge dela vita” de Jack London e textos de Franz Kafka, Ascanio Celestini, Robert Graves, Erri De Luca, Heloneida Studart e do escritor suiço Peter Bichsel.
Em Poesia, além daquela já mencionada, de Scott-Heron, comparecem “L’appendice a Teorema”, de Pasolini, duas poesias de Borges e a poesia inédita na Itália “Il Ché”, do poeta argentino Humberto “Cacho” Costantini, além de outras poesias, todas traduzidas pela primeira vez, de Ali “Moshtaq” Askari, Mary Oliver, Zack Rogow, Ana Istarù e a mini-antologia poética “Come svanito treno” organizada por Tomaso Pieragnolo e Rosa Galitelli. E têm ainda os contos e poesias dos novíssimos autores presentes na seção Vento Nuovo.
Neste mesmo endereço telemático encontrarão a atualização da seção Il Direttore, com o conto La collezione, de Julio Cesar Monteiro Martins. Esperamos que os ensaios, os contos, as poesias e os trechos de romances selecionados possam oferecer-lhes muitas horas de agradável leitura. Cordialmente, A Redação de Sagarana.
O FUTEBOL E A MIDIA SEM FUNDO
Por algum motivo, perdi o jogo do Brasil com Equador em 13 de julho de 2011. No dia seguinte, quero ver o que aconteceu. Os “textos” da cobertura obedecem à nova estrutura, ou seja, empilhamento de frases que nada tem a ver umas com as outras, repetindo jargões e não dando informações substanciais. Não sabia que Maicon, um dos pilares da seleção de Dunga, tinha sido convocado. Pois foi, jogou e ajudou a decidir, pelo que vi num lance de gol do Neymar. Consigo ver precariamente no you tube os melhores momentos, mas muitos vídeos estão censurados pela empresa dona dos direitos. O Equador me pareceu uma galinha morta, mas depois vi que eles foram bem perigosos, pressionando bastante. Ou não?Não dá para saber. Sei que foi 4 a 2 para o Brasil, e que os goleiros falharam duas vezes. Julio Cesar levou um frango e o deles bateu roupa num lance decisivo.
Não é sobre o jogo que quero falar, apesar de não resistir à tentação de abordar a celebração dos gols, que são feitos com gestos exagerados fake, como se os argentinos agora fossem o modelo de comemoração, os hermanos que vibram como se festejassem um assassinato. Descobri porque. No futebol, jogo coletivo, um gol dificilmente é de autoria solo, é fruto de um conjunto. Mas o grupo precisa caçar o finalizador para também pegar uma parte do crédito, pois o sujeito foge de todos, dá até tapa para então urrar sem nenhuma concorrência, e sacudir a cabeça, cerrando os punhos, como fez Pato Berlusconi. E todos jogam os dedinhos para cima como se Deus achasse o máximo que o adversário tenha levado mais um. O ego é a medida do valor do jogador no mercado, então ele precisa intensificar sua presença depois de marcar. Por isso tudo nos parece falso. É bonito quando o finalizador aponta para quem deu o passe, mas isso nem sempre acontece.
Mas o que eu queria falar? Ah. As noticias disponíveis roçam nos fatos como gaivotas na praia, fazem espuma onde deveria haver cardumes. É comum se referir a outra notícia, a alguma publicação anterior (até mesmo a um Boletim de Ocorrência). Não se segura por si. Precisa citar algo que não pertence a ela. Vamos então no encalço da origem. O portal pega do jornal, que pega de uma publicação estrangeira, que pega de um blog, que pega de um outro portal. Não se chega nunca ao repórter diante da fonte, essência do jornalismo. É a mídia sem fundo. Não há como segurar. Falo no acervo digital, o que está disponível na rede, já que não compro mais impresso, pois é difícil de ter esse tipo de criatura por aqui, algum exemplar de jornal grande. E custa uma fortuna.
(Sempre esqueço que falar em liquidez escassa afasta as pessoas, pois elas tem medo dessa coisa de “pobre”. Estou me lixando. Costuma faltar, apesar da nossa fama de remediado. Numa sociedade sem fundos, que deve R$ 1,8 trilhão, nunguém tem fundos, como notou uma vez, brilhantemente, Virson Holderbaum.)
Bueno, noves fora. Quis saber sobre o jogo e fiquei a ver navios. Se não acompanho ao vivo, sobro. No dia seguinte, sem ter assistido o evento, é difícil saber do que se trata. Ok, tem os especialistas, os jornais que se dedicam só a isso, mas falo da oferta mais próxima, da mídia que deveria atender a demanda e não faz. Vemos, quando perdemos o fato, como é precário o esquema de coberturas. Não fosse um ou outro jornalista mais bem articulado, estaríamos fritos. As redações estão carentes de mão-de-obra especializada no ofício, apesar de existir muito talento e competência, a maioria desperdiçados.
Ou então é só implicância minha. Vai ver estou bravo por descobrir que, se não assisto, o Brasil ganha. Vou desligar a TV em dia de jogo. Quem sabe assim seremos campeões da Copa América. E quem falar em pé frio saiba que “assisti” cinco copas (via rádio ou TV) em que levantamos a taça. Menos a de 1958, claro, pois a final foi bem na hora do Roy Rogers, no Cine Corbacho, em Uruguaiana.
RETORNO - Imagem desta edição: Roy Rogers montado em seu Trigger celebrando mais um gol do Brasil, para deslumbre da mocinha.
12 de julho de 2011
OMBROS DIURNOS DA LUA
Nei Duclós
A Lua flutua na manhã com sua túnica transparente caindo pelos ombros. É uma roupa formada pela neblina que o excesso de luz bordou ao redor, talvez para cobri-la diante do escândalo de aparecer assim, quando as estrelas já se despediram e o forro de veludo da noite sumiu de vista. Ela está acordada por algum motivo e pousa no algodão do ar com o rosto quase impassível. Noto que está transfigurada no céu sem nuvens.
Talvez, por ser de dia, nos ache estranhos, nós que a amamos tanto quando o denso forro da noite desce sobre os telhados. E nos enxergue andando penosamente numa civilização de metais, em meio a barulhos que jamais formam uma nota. Andamos de costas para essa presença estranha no limite do Verão inesquecível. Todos se voltam para algum objetivo, esquecidos da Lua, ainda embalada por algumas canções e seduzida pela capacidade que temos, sem o testemunho do Sol, de sermos de outra natureza, mais perto da criação.
Essa é a diferença entre a noite que nos revela e o dia que nos seqüestra. A civilização só existe quando há Lua. Ela se acostumou ao nosso lamento, ao olhar que lançamos, da varanda, para o brilho que emite. Acompanhamos seu vôo noturno, ocupados em tecer metáforas e compor memórias. Não somos nada disso quando acordamos. Ficamos dependurados em trens de carne exposta em fuligem, nos atropelamos pelas calçadas cada vez mais estreitas, avançamos sobre nossos semelhantes como se fôssemos uma tribo de bárbaros em fuga.
De costas para a Lua, nos amontoamos nos escritórios e tentamos tirar dos outros o que mais nos falta: o insumo da sobrevivência escassa, enquanto perdemos aos poucos o viço e somos acompanhados pelos moços, que olham penalizados o corpo exposto assim sem cerimônia.
Mas, trafegando pelo mundo insano, guardamos o que temos de luar. Por isso sentimos que ela vem nos visitar com imenso espanto. Ela não sabia que as criaturas poderiam um dia sair debaixo da sua saia. Que podíamos resgatar a princesa num pátio diurno e no dorso de um potro mau levá-la para o prazer que só existe nas nuvens.
Ela se diverte com isso, a Lua, mestra dos disfarces. Imaginava que tinha apenas a companhia consciente das bruxas, já que dos bêbados jamais levou a mínima fé. É fácil derrubar na calçada alguém cheio de álcool na cabeça, mas é preciso respeitar as donas dos caldeirões, as antigas senhoras com poderes sobrenaturais. No passeio no Sol a pino, a Lua disfarça a surpresa ao descobrir nas gentes o que imaginava ser apenas conversa jogada fora em serestas antigas. As pessoas são capazes de sair dos lençóis de linho para palmilhar o pó da ingratidão, nessa vida sem lua. De desviver, se é possível conjugar esse verbo, até o limite das preocupações.
Agora sabe que tudo pode acontecer na terra que ela enxerga a distância. Nesse espaço que roda diante de si, nessa terra misteriosa de olhos de água e tremores de fúria, há mais mistérios do que pode sonhar.
A aparição diurna é fruto dessa vontade de nos conhecer melhor, de decifrar nossos segredos. Mas ela é apenas a Lua, não uma divindade. É flagrada pelo impacto de um dia do Verão terminal e aparece assim, na sala de conferências, ainda tonta de sono, encantadora em magnífica vestimenta de festa que se estendeu até estrela Dalva. É a Imperatriz que irrompe nos negócios de Estado, colocando todos os homens de pé e as mulheres em breve reverência.
Ela flutua então de pés descalços, a Lua, esse soberbo encantamento que nenhuma palavra é capaz de descrever em sua totalidade. Nem mesmo a poesia, irmã gêmea, que diante dela se curva como se tivesse encontrado uma rainha, soberba em tirano esplendor. Sabemos apenas que ela, de dia, surge do nada e para o nada retorna, como se fosse mágica. Talvez, diante do susto que provoca, tenha recorrido a alguma maquiagem excessiva, que por ser feita de puro cristal, a limpou definitivamente do céu. Este, ermo de lua, volta a nos pertencer, como um presente devolvido no dia seguinte ao rompimento de um noivado.
RETORNO - Imagem desta edição: foto de Daniel Duclós. Quer saber o que pega em Amsterdam, de uma maneira prática, divertida e super bem escrita? Adquira o Guia de Amsterdam, do Daniel!
11 de julho de 2011
MÍDIAS SOCIAIS: O DESAFIO TEÓRICO
Nei Duclós
Tudo ficou obsoleto ou passível de reavaliação e atualização depois que a cidadania ganhou status de mídia, especialmente os conceitos sobre cultura, as análises sobre superestrutura, o cânone teórico que permeia a produção acadêmica até o início deste século. Qualquer livro que se leia sobre ideologia ou cultura esbarra no grande caos teórico sugerido pelas mídias sociais, que é ao mesmo tempo arena de debate, expressão múltipla de individualidades, acervo cultural coletivo, instrumento poderoso de marketing, entre outras coisas. Enterra inclusive a vagareza da sintonia entre a produção intelectual e a velocidade das transformações impostas pelos recursos digitais em rede.
O conceito de cultura popular,por exemplo, já tinha ido para o beleléu com a massificação da TV (basta ver o fenômeno sertanojo). Hoje, com novos agentes se manifestando nas mídias sociais, que ampliam geometricamente sua expansão e seu alcance, não existe mais a pirâmide social das idéias, que se entrecruzam e se modificam no embate das mensagens e nas interações midiáticas emergentes. Seria forçar a barra do que está acontecendo? Acredito que não. Não devemos apenas nos deslumbrar com a capacidade de mobilização em insurgências políticas, como acontece desde o golpe de estado do Irã nas suas ultimas eleições, que provocou reação em massa reportada e estimulada pelas mídias sociais. O buraco é mais em cima.
É preciso ficar atento aos saltos proporcionados pela conversa coletiva, em que não apenas frases curtas estão em pauta, mas principalmente os links, que remetem os milhões de autores à diversidade cultural de todos os tempos, já que o universo digital hoje é a nova biblioteca de Alexandria, que não nos ouçam os duendes do fogo e da destruição. Pego um exemplo. Há um vasto contingente humano fixado em música erudita ou na obra de Michel Foucault, por exemplo (não diga que não, basta consultar a rede). A exposição dessas preferências provoca reações e retornos que acabam modificando a percepção original . Se para melhor ou pior, não importa. O que vale é intensa carga de relativização sobre o que entendemos por cultura e isso é anexado naturalmente no imaginário e na realidade (que se confundem) do mundo de hoje.
Vejo com tristeza as manifestações contra as mídias sociais e mesmo a internet por parte de quem está com a vida ganha, notoriedades que atingiram a celebridade nos limites analógicos e que esperneiam diante da concorrência gerada pela computação integrada. Enquanto as redes tradicionais de televisão e da comunicação em geral se esforçam para definir a vilania da internet – para assim poder, via leis, engessá-la e colocá-la no cabresto – algumas celebridades se entregam a um lúgubre canto de cisne, apontando a desfaçatez e a agressividade como hegemônicas na rede. A internet tem de tudo e não pode se reduzida a um papel tosco, de coadjuvante ou de marginal.
Há também seriedade na abordagem por parte de muitos nichos de estudiosos, tanto da comunicação como de outras áreas. Há sempre a ronda do marketing puro e simples, querendo impor a publicidade em todas as manifestações das mídias sociais, como se a cidadania tivesse como destino o consumismo puro e simples, em que o cliente não é gente, mas faturamento. Mas há resistência, ainda pequena, mas determinante. Há muito valor exposto na vitrina mundial dos bits e é preciso abordá-lo com a isenção contaminada pela paixão, que levaou tantos estudiosos, no passado, a gerar um grande acervo de revelações.
Não se trata de transformar o que foi escrito no passado como se fosse inútil, ao contrário. Muitos autores encontraram seu ambiente natural na rede, como aconteceu com Caio Fernando Abreu, Manuel de Barros, Mario Quintana ou Clarice Lispector, exageros de postagens à parte. Muitos teóricos encontram também na realidade virtual um campo de concretização de profecias, como se tivessem previsto a transformação radical que iríamos experimentar.
A verdade é que nada surpreende a humanidade e tudo convive simultaneamente. Precisamos apenas trabalhar com o que temos e não criar obstáculos à compreensão, se encher de cuidados inúteis e esperar não sei o quê. Há urgência, mas é necessário profundidade. E há também a vontade de anunciar, em plano geral, o que pode pegar firme no que está acontecendo, como tentamos fazer aqui.
RETORNO - Imagem desta edição: entrada do Museu Van Gogh, em Amsterdam. Foto de Daniel Duclós.
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