Nei Duclós (*)
Produzir pensamento é ofício raro. Ainda reiteramos idéias de milhares de anos atrás e devemos agradecer por isso, pois as mais recentes (de alguns séculos) nos deixam de cabelo em pé. Átomo, idéia, república são conceitos milenares que fazem parte da nossa natureza. Já capitalismo, fundamentalismo, bigbrother são emergentes, adotados como definitivos, mas como os terremotos, devem passar, mesmo que persista o estrago que provocam.
O pensamento inspirou tiranias até se voltar contra elas. Mas isso acabou criando novas formas de opressão. Como houve um impasse - dinheiro triunfante de um lado, miséria global do outro; Berlusconi caindo de pára-quedas, bandeiras vermelhas sumindo por trás do armário - a solução encontrada pelos poderes foi melhorar a pizza.
Há uma série de ingredientes para tornar digerível a lei que proíbe pensar em mudanças radicais da realidade. Não há como derrubar o sistema que substitui comida por cana, ou convence poupadores sobre crédito imobiliário pôdre. Já que não há saída, são enviados em nosso socorro pensamentos sob medida, que devem preencher todos os compartimentos do cérebro. Lembro de um episódio de Married with children, a série demolidora dos anos 90, em que a garota não poderia colocar uma idéia nova na cabeça sem que uma idéia velha não saísse pelo ouvido.
É onde hoje nos encontramos. No Brasil, ganhou contornos sinistros. Não faça crítica de nenhuma espécie, senão suas palavras serão colocadas nos nichos ditos ideológicos das campanhas eleitorais. Você é, obrigatoriamente, contra ou a favor de uma das forças políticas que se digladiam. Qualquer esforço para sair da reta cai no deboche. A palavra “alternativa” acabou sendo devorada pela tempestade ideológica do Mesmo, entronizado como única verdade.
Do que estou falando? “Hello!” diz a expressão da moda, que significa: não saia dos trilhos, acorde para o que nos é imposto. Tudo já foi pensado antes, basta você escolher o paper encomendado, o livro pornô de memórias, o programa cacifado pelo governo, o blockbuster, o projeto sobre a prospecção de óleo sujo e obsoleto sob o manto azul do Atlântico, o anacronismo em tom de profecia, que está tudo lá. É por isso que a palavra de ordem “nem pensar” ocupou o lugar das lutas pela liberdade.
Esse expediente não está restrito aos tempos contemporâneos. A História é adaptada por força do revisionismo, que impera em todas as mídias. Uma das tendências é desmoralizar os gênios (a pessoa que mudou o mundo fatalmente tinha um esqueleto no armário). Outra é justificar grandes crimes, para que os atuais não soem tão desproporcionados. “Desde que o mundo é mundo” é o pensamento que entroniza o obscurantismo, pois tenta nos convencer de um crime: a de que nada ameaça o direito de posse de latifúndios do tamanho da Ásia, ou algo semelhante.
De mãos atadas, nos refugiamos em pensadores exemplares. Os melhores estão na literatura. Máximo Gorki, por exemplo, nos deslumbra com seu livro Infância (edição da Cosac & Naif), onde uma família recém saída da servidão usa o açoite no ambiente doméstico.
O espírito humano, segundo o sólido e rigoroso exercício do talento em Gorki, a tudo sobrevive. Desde que sua experiência o ilumine, por mais terrível que tenha sido. Desde que não jogue no lixo, por submissão ou ignorância, a herança de seus ancestrais. Ou faça dela insumo para reforçar a barbárie.
Produzir pensamento é ofício raro. Ainda reiteramos idéias de milhares de anos atrás e devemos agradecer por isso, pois as mais recentes (de alguns séculos) nos deixam de cabelo em pé. Átomo, idéia, república são conceitos milenares que fazem parte da nossa natureza. Já capitalismo, fundamentalismo, bigbrother são emergentes, adotados como definitivos, mas como os terremotos, devem passar, mesmo que persista o estrago que provocam.
O pensamento inspirou tiranias até se voltar contra elas. Mas isso acabou criando novas formas de opressão. Como houve um impasse - dinheiro triunfante de um lado, miséria global do outro; Berlusconi caindo de pára-quedas, bandeiras vermelhas sumindo por trás do armário - a solução encontrada pelos poderes foi melhorar a pizza.
Há uma série de ingredientes para tornar digerível a lei que proíbe pensar em mudanças radicais da realidade. Não há como derrubar o sistema que substitui comida por cana, ou convence poupadores sobre crédito imobiliário pôdre. Já que não há saída, são enviados em nosso socorro pensamentos sob medida, que devem preencher todos os compartimentos do cérebro. Lembro de um episódio de Married with children, a série demolidora dos anos 90, em que a garota não poderia colocar uma idéia nova na cabeça sem que uma idéia velha não saísse pelo ouvido.
É onde hoje nos encontramos. No Brasil, ganhou contornos sinistros. Não faça crítica de nenhuma espécie, senão suas palavras serão colocadas nos nichos ditos ideológicos das campanhas eleitorais. Você é, obrigatoriamente, contra ou a favor de uma das forças políticas que se digladiam. Qualquer esforço para sair da reta cai no deboche. A palavra “alternativa” acabou sendo devorada pela tempestade ideológica do Mesmo, entronizado como única verdade.
Do que estou falando? “Hello!” diz a expressão da moda, que significa: não saia dos trilhos, acorde para o que nos é imposto. Tudo já foi pensado antes, basta você escolher o paper encomendado, o livro pornô de memórias, o programa cacifado pelo governo, o blockbuster, o projeto sobre a prospecção de óleo sujo e obsoleto sob o manto azul do Atlântico, o anacronismo em tom de profecia, que está tudo lá. É por isso que a palavra de ordem “nem pensar” ocupou o lugar das lutas pela liberdade.
Esse expediente não está restrito aos tempos contemporâneos. A História é adaptada por força do revisionismo, que impera em todas as mídias. Uma das tendências é desmoralizar os gênios (a pessoa que mudou o mundo fatalmente tinha um esqueleto no armário). Outra é justificar grandes crimes, para que os atuais não soem tão desproporcionados. “Desde que o mundo é mundo” é o pensamento que entroniza o obscurantismo, pois tenta nos convencer de um crime: a de que nada ameaça o direito de posse de latifúndios do tamanho da Ásia, ou algo semelhante.
De mãos atadas, nos refugiamos em pensadores exemplares. Os melhores estão na literatura. Máximo Gorki, por exemplo, nos deslumbra com seu livro Infância (edição da Cosac & Naif), onde uma família recém saída da servidão usa o açoite no ambiente doméstico.
O espírito humano, segundo o sólido e rigoroso exercício do talento em Gorki, a tudo sobrevive. Desde que sua experiência o ilumine, por mais terrível que tenha sido. Desde que não jogue no lixo, por submissão ou ignorância, a herança de seus ancestrais. Ou faça dela insumo para reforçar a barbárie.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada dia 29 de abril de 2008 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Christina Applegate em "Married with children".