30 de dezembro de 2008

ANTES DO TELHADO


Nei Duclós (*)

Vi a coruja na ponta do telhado. Vertical, fazendo pose no entardecer. O periscópio do olhar transmite a impressão de corpo retorcido, fora de prumo. Ela apenas está atenta, girando a cabeça enquanto o corpo, imóvel, imita uma espiral. Seu canto é o silêncio, a sabedoria dos ouvintes. Calada, como fruto em fim da feira, exibe a presença descartável quando acendem as luzes da aldeia. Quase não se vê o vulto que se apaga como as ilustrações de livros obscuros. Mas ela está lá. Seu segredo é que nada anuncia.

Ela se encerra, como um cofre de vime. Guarda-se em penas, desenhos mortos, pincéis de espinhos. A coruja trafega no lusco-fusco das celebrações ocultas. Existia antes do telhado, antes mesmo do terreno baldio cercado, antes do século, da História, da trilha. Já montava guarda quando nem pátria existia. Compartilhava o assombro dos habitantes do trovão, da nudez dos gigantes, das pedras trabalhadas em alfabetos perdidos. Percebia os invasores armados de velas, sabres, varíolas. Sabia o desfecho, já que pousa no telhado há uma eternidade.

Eu a conheço porque se identifica. Não que pronuncie seu nome ou faça algum gesto repetido. É porque habitamos esse chão comum do universo imperfeito. Temos noção exata do pensamento um do outro. Já fervemos em caldeirões, escapamos de armadilhas, sobrevoamos lobos. Agora jogamos no mesmo time.

Imagino tudo, menos o fato de que continua ali, na véspera dos fogos. Talvez não seja o mesmo exemplar que incendiou os antigos. Mas é feita da mesma natureza, obedece ao impulso que a gerou. É um modelo de criatura que se reproduz na posição ereta das efígies. Lembra um signo, representando alguma nação que perdemos. Ou será o anúncio dos parentes que chegam novamente para ver a festa?

Na quina, avessa ao mundo, a coruja esconde um labirinto. Ao primeiro estrondo, ela voa em curva, como se um gesto imaginário desenhasse a linha de sua desistência. Mas um duende permanece, mesmo que o sol rebente e a noite seja devorada na fervura das estrelas. A coruja é o verão, ambiente de sonhos. O Ano Novo é apenas o guardião de sua asa, fio de suas garras, brinco de realeza.

RETORNO 1. Imagem desta edição: Mascote, foto de Elaine Borges. Achei que tem tudo a ver com a crônica, apesar de o pássaro que está na beira do barco não ser uma coruja. Mesmo que fosse outro texto, esta seria a ilustração. Foto absolutamente magnífica da grande jornalista que aportou aqui na ilha há décadas. 2. (*) Crônica publicada hoje, dia 30 de dezembro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.

29 de dezembro de 2008

DISTRIBUIÇÃO EM MASSA DE PRIVILÉGIOS



Em vez de distribuir renda, o Brasil distribuiu privilégios. É a maneira que nossa cultura secular encontrou de, aparentemente, fazer justiça. Acontece o contrário: disseminar o privilégio ajuda a manter a sociedade de castas, pois multiplica a exclusão. Para onde você dirige o olhar, topa com alguém impondo ou usufruindo um privilégio, o que significa ir contra os que não possuem o mesmo acesso. Vamos por nichos:

TRÂNSITO – Chapa branca, vaga particular em espaço público, imposição de presença por meio de carros com dimensões acima do que seria permitido, tráfego na contra-mão ou acostamento para driblar engarrafamentos, vidro com película escura proibida por lei, farol azul brilhante que cega quem vem pela frente, som envenenado de mil megatons para humilhar o ouvido alheio, principalmente na praia. É uma sucessão bandida de eventos.

Excluídos: pedestres, motoristas de carros velhos, usuários de transporte público.

PROPRIEDADE - Grilagem de terras públicas e invasão de terrenos de posse por meio da força bruta, uso da máquina do governo para gerar mais latifúndios (como a marotagem de reservar uma porção da terra desapropriada para os meganhas da burocracia), usufruto de recursos público para lavouras predatórias, mau uso do solo para exploração de jazidas ou plantação criminosa de árvores direcionadas para a indústria de papel e celulose, latifúndios improdutivos, terra arável sendo usada para soja, cana, eucalipto, gado, sementes para o biodiesel.

Excluídos: pequenos proprietários, sem terra, população em geral que acaba pagando alimento envenenado e caro.

IDADE - Ruy Castro hoje na Folha fala de alguns crimes cometidos por gangs de jovens, em cruzeiros marítimos, salas de aula etc. A juventude solta e drogada, sem parâmetros, incentivada a desprezar o Brasil sem soberania e sem História decente (conforme os ensinamentos dos professores pseudo-politicamente corretos, faz o que quer e pode. É incentivada para isso, como comprovam os mega-shows de nulidades como Madonna, que além de músicas de merda ainda fica apontando a genitália durante o show, como se os genitais fossem uma grande coisa para ser apontada em público. Mas não é só a juventude que é privilegiada. A Terceira Idade, com acesso ao Viagra, à aposentadoria precoce (inflada por mil artimanhas jurídicas) e à furação de fila em todo lugar também são uma casta de privilegiados.

Excluídos: os aposentados com remuneração pífia, os que são considerados, pela idade, obsoletos para o mercado de trabalho, a multidão de jovens que não com seguem emprego, a infância abandonada e violentada.

CELEBRIDADES - Exigir mil toalinhas de papel crepom e croissants de com recheio de crme de amora, mais água mineral importada e outras frescuras é a exibição do privilégio por parte dos incensados pela mídia, os imbecis que ascendem à celebridade e usufruem a grana preta que a população mal resolvida, e iludida pelo marketing, deposita aos seus pés. Depois os famosos acabam internados em clínicas por excesso de consumo de drogas ou se metem em casamentos imbecis, que acabam em morte ou separação, celebrados pelas revistas do egocentrismo, e todo mundo se espanta.

Excluídos: os talentos anônimos, que não conseguem mostrar seus trabalhos, pois está tudo tomados pelos sertanojos, os padres marcelo rossi, as xuxas e tudo o mais.

GÊNERO E RAÇA - Se você, como eu e todo brasileiro, tiver uma pele um pouco mais escura, pronto, nem precisa fazer vestibular, vai na onda das cotas. Se resolveu ou nasceu ser homossexual será cacifado por dinheiro público para festejar sua opção de maneira bizarra em praça pública. Se vende seu corpo por dinheiro porque é uma infeliz ou uma pessoa desesperada e sem perspectivas, então pode valer seus deretchos. Se não possui testosterona pode alardear sua condição feminina aos quatro ventos e policiar quem mija em pé. Se você é um machão asqueroso que vive de agarros com seus iguais, então você pode fechar puteiros, invadir praias, fazer baderna e exibir seus bíceps e fórceps onde estiver.

Excluídos: todos os que queimam as pestanas para passar no vestibular, os que gostam de fato de pessoas do outro sexo, os que não freqüentam academias, os acima do peso.

RENDA – Quem dá duro, dança. Quem investe em papéis podres, também, mas por algum tempo se acha um privilegiado. Quem está na lista de esmolas oficiais, quer que o presidente continue. Quem exerce cargo eletivo e acha que ganha pouco, pode votar, na madrugada, um aumento de rendimentos na base dos mil por cento. Quem especula com terra, está por cima. Quem mantém milhares de imóveis ou terrenos vazios enquanto a população se acumula nas favelas, é apenas um investidor, entende?

Excluídos: os que estão fora das 19 mil famílias que dominam a renda no Brasil.

RETORNO - Imagem desta edição: Transporte Na Holanda, foto de Daniel e Carla Duclós. A Holanda não distribui privilégios, mas nem por isso corta o acesso da população ao que há de melhor. Simplesmente cria soluções de massa para uma vida normal, saudável, proveitosa, como é o caso dos trens confortáveis para qualquer canto de Amsterdam, do país, da Europa. Todos tem acesso às ferrovias. Não se trata de um privilégio para uma casta. É um serviço democrático.


26 de dezembro de 2008

O PAPA BATE FORTE


Na Missa do Galo transmitida pela TV, longos e largos minutos de absoluto silêncio tomaram conta da multidão na Basílica São Pedro, por imposição de Bento XVI. Eis um papa que toca no ponto. Esses dias, ultimando meu livro novo de poemas, Partimos de Manhã, descobri que uso a palavra silêncio mais de 30 vezes, espalhada por inúmeros versos. Fazemos ruído demais, diz o Papa, que propõe calarmos a boca, parar com o ruído. Os padres que transmitiam a missa não agüentaram tanto tempo quietos e começaram a sua algaravia, típica da mídia que nos atordoa. Este Papa não está a passeio.

Gosto de estadistas concentrados, que seguem rotinas, que aprofundam e intensificam suas decisões, que trabalham. Não importa se viajam ou não, a questão não é essa. João Paulo I viajava e era um grande estadista. Ratzinger, que assumiu o papado em meio à má vontade geral, acusado de nazista, ultra-conservador, reacionário, hiper burocrático, a favor da igreja fundamentalista e não sei mais o quê, investiu, em sua tradicional mensagem de Natal, contra a ditadura da ciranda financeira. Ela nos levará a ruína, avisou. O que nos salvará é a solidariedade. Não essa de ocasião e em frente às câmaras ou que distribui porcarias chinesas para criança pobre.

Também mandou calar a boca esses carismáticos que enchem a paciência dos fiéis nas missas. Não tenho ido mais à Igreja, porque não agüento tantas mãos levantadas, sacudindo no ar, como se todo mundo estivesse se despedindo de um navio de imigrantes. Também cantarolar o Padre-Nosso com as palmas abertas, em vez apenas de rezar com as mãos postas, me deixam passado. Já tive vários momentos de ruptura com a Igreja. Uma foi quando a extrema direita dominava o discurso dos padres, como acontecia antes de João 23. Depois, quanto os petistas inventaram que Jesus foi carpinteiro, ou seja, “trabalhador”. Cristo era filho do dono da oficina, não podia portanto ser operário. Era artesão e proprietário.

Agora é esse troço carismático. Quando ainda morava em São Paulo, me retirei de uma missa porque o padre começou a chamar os cabecinhas brancas para homenagear a Terceira Idade. Não quis pagar o mico de ficar lá na frente à mercê de um sacerdote performático. Quando cheguei em Florianópolis, assisti várias missas no centro da cidade, na maravilhosa Igreja Matriz e também na linda e simpática Igreja de São Francisco. Lá, ouvi sermões perfeitos, de profunda sabedoria teológica e super sintonizados com os nossos tempos e nosso país. Há luzes na Igreja.

Os carismáticos são os evangélicos do catolicismo. Tem uma grande igreja aqui que diz assim num painel: Igreja Católica. Ora, vão se catar. Não somos uma pentecostal qualquer para nos identificar entre muitas outras. A Católica é a Igreja fundada por Cristo, tem mais de dois mil anos, não precisa de painel. Precisa ser um templo, parecer um templo, e não esses galpões modernosos oscarniemayerizados que inventaram de construir em tudo que é lugar. A frieza e a indiferença do concreto tomou conta das construções católicas e vemos imitações das curvas da Basílica de Brasília por todo o lado. Prefiro aquele grande teto redondo das igrejas tradicionais, o sacrário, os vitrais, a capela, o grande altar, a torre com sino.

Segundo a Folha, Folha, Bento 16 pediu solidariedade, em vez de egoísmo, em tempos de crise econômica, no seu discurso "Urbe et Orbi" feito na praça São Pedro. Falou também falou do "horizonte sombrio" para palestinos e israelenses."Se as pessoas olharem apenas para seus próprios interesses, o mundo certamente irá se arruinar."

E falou da África, com todas as letras: citou especificadamente o Zimbábue, onde as pessoas "estão presas há muito tempo numa crise política e social que, tristemente, só piora". Citou ainda a violência na República Democrática do Congo e na região sudanesa de Darfur, além dos "sofrimentos intermináveis" da Somália. Ainda segundo a Folha (que reproduzo aqui porque fiquei impressionado com a contundência do Papa), disse que "o horizonte parece ter se tornado sombrio para os israelenses e palestinos" -na última sexta-feira, expirou a trégua entre o grupo radical palestino Hamas e Israel. E abençoou aqueles que escolheram "a vida do diálogo". Bento 16 fez ainda um apelo às crianças sem família e "vítimas da indústria pornográfica e de outras formas de abuso".

Isso depois de dizer investir contra a celebração do homossexualismo, que contraria as lições da criação. Não se trata de criminalizar homossexuais, mas de impedir que o troço vire lei. O Papa bate forte.

RETORNO - Imagem deste post: detalhe da Catedral Santana, de Uruguaiana, foto de Anderson Petroceli.

25 de dezembro de 2008

CÉU E INFERNO, DE AKIRA KUROSAWA



Nei Duclós

"Céu e Inferno" (ou High and low) é, como todos, um filme sobre cinema: a investigação de um crime de seqüestro é a leitura de imagens e sons. As pistas audiovisuais fecham o cerco sobre o criminoso, que consegue o resgate porque enxerga mais: pelo telescópio, segue todos os passos da sua vítima, o executivo que exibe poder e fortuna na grande janela envidraçada da sua mansão, a cavaleiro sobre a favela. Mas o olhar individual do sequestrador não vence o olhar coletivo, da sociedade e instituições mobilizadas para descobri-lo. É desmascarado por meio dos ruídos que deixa gravados nos seus telefonemas de chantagem, da voz que denuncia sua pouca idade, das opções que acabam entregando a localização do seu esconderijo.

Da mesma forma que a polícia no encalço do bandido, o espectador também precisa palmilhar essa busca da agulha no palheiro vendo o que Akira Kurosawa tece com maestria. Perto de "Céu e inferno", o festejado
Blow-up, de Antonioni, que é a descoberta de um crime por meio de uma seqüência de fotos, é apenas um esboço.

Neste consideradíssimo cult de 1963, baseado numa história do escritor Ed MacBain, Kurosawa opõe o céu – o espírito de grupo, a união coletiva, que representa a sobrevivência, a superação e a resistência – ao inferno - o individualismo, a dispersão e o isolamento que geram a fraqueza, a pobreza, a decadência espiritual, moral e material. Não se trata de chamar de paraíso o mundo dos ricos e jogar na condenação eterna o dos pobres, já que o egoísmo e a solidariedade existem nos dois universos sociais. Mas sim de tentar localizar o equilíbrio nos princípios que regem uma vida coletiva e denunciar o crime como resultado da falta de conexão entre os semelhantes.

Toshiro Mifune é o executivo que paga resgate de 30 milhões de ienes pelo o filho do seu motorista seqüestrado por um estudante pobre de medicina e morador da favela situada em frente à sua mansão. O evento surge em meio a uma tempestade corporativa: os outros sócios da fábrica de sapatos querem gerar lucro a qualquer custo, principalmente da qualidade dos produtos.

A princípio, quando descobre que seu filho está a salvo e que o bandido se apossou da outra criança, o executivo prefere ficar com o dinheiro que arrecadou para tomar o poder dentro da indústria e evitar que ela se desvirtue na mão dos sócios. É uma opção que causa escândalo – ele opta pelo individual, carreira, fortuna, família, mas se justifica dizendo que escolhe a permanência do empreendimento, o que seria ficar do lado do bem social.

Mifune sai desse inferno para o céu, quando paga o resgate e assim sensibiliza a população, que fica sabendo da história pela imprensa. É o consenso de uma sociedade coesa (apesar das transformações) que expressam os princípios mais nobres, na visão de Kurosawa. O departamento de polícia, dividido em inúmeras equipes que cercam o seqüestrador por todos os lados e evidências, é esse ambiente ético que quer fazer justiça e devolver a dignidade perdida à vítima, já que o executivo entra em desgraça no trabalho e perde tudo. Ao mesmo tempo, os policiais forçam mão para que o seqüestrador seja pego em flagrante de assassinato dos comparsas, para assim ser executado e não pegar apenas 15 anos pelo crime de seqüestro.

Essa dupla face do céu e inferno não existe apenas no executivo ou na polícia. Também nos jornalistas, que fazem parte do pacto de solidariedade ao redor das vítimas, mas concordam em omitir informações e divulgar notícias falsas para colaborar no cerco ao criminoso. A Justiça fora dos trilhos (o “certo” seria pegar o seqüestrador em vez de levá-lo a cometer outro crime por meio da mentira?); a imprensa como instrumento da investigação policial (o “certo” seria divulgar os fatos sem ceder às ordens policiais?) fazem parte desse rodízio entre o paraíso (o Japão unido) e o inferno (a nação nas mãos das drogas, do crime, da falsidade e do egoísmo).

Eis mais um (como todos) Kurosawa maior, com seqüências antológicas como o pagamento do resgate no trem bala em movimento, cenas maravilhosas como o balanço das providências na grande reunião dos especialistas da Polícia, a compra de heroína no dancing bar, entre outras preciosidades. Filme atualíssimo que aborda a nação que tenta ficar firme para enfrentar o esgarçamento social, a divisão das personalidades em conflito permanente, o caos urbano provocado pela sociedade de classes, o raciocínio lógico pautado pela ética no trabalho. Temas fundamentais, que passam ao largo do cinema atual, tão envolvido em explosões, narcisismos, crueldades, vazio, indiferença, desamor.

Sabe aquele gesto típico japonês de pessoas que se curvam diante dos outros, em sinal de respeito? É o que todos devem fazer em direção a Kurosawa. Assim que devemos nos comportar diante do Mestre.

RETORNO - Imagem deste post: Toshiro Mifune, de costas, na sala envidraçada de sua mansão, olha para a favela onde se esconde o sequestrador.

BATE O BUMBO - Agora sim, dá para escutar meu poema Manhã, musicado e interpretado por Carlinhos Hartlieb. No site está "Manhãs", mas o título original é no singular. O poema foi publicado em 1975 no meu livro de estréia Outubro.

BOAS INTENÇÕES


Nei Duclós
(*)

Vamos chamar de discurso as promessas da virada do ano. E de vida o que fazemos depois. O divórcio entre discurso e vida é um lugar comum, que contamina de compromissos não cumpridos a época das Festas. E que vira fonte de ressacas extremas de autopunição. Não tem saída, pois essa defasagem entre palavra dada e gesto real é maior e mais profundo do que percebemos.

As palavras assumiram o lugar dos fatos e não vivemos mais num ambiente tradicional, como casa, família, emprego, mas num mundo artificial regido pelo verbo: beba, coma, compre, voe, ame, sorria, chore, pule. Não há mais vida, nem pessoas, e sim suas representações: o paizão margarina, a mamãe xampu, o espertinho ao volante, o pensador contratado, o milionário bondoso, o estadista ágrafo, o casamento vitrine, a solidariedade datada. Não podemos mudar, sob pena de cairmos no poço da exclusão. Quem se marginaliza por opção, para fugir do "sistema", acaba posando para as câmaras: volta ao universo do discurso, pois é preciso que seu gesto seja difundido, sob pena de não existir.

O discurso assume a responsabilidade, mas ele não é confiável por natureza, já que a enunciação das medidas saudáveis substitui as ações. É uma espécie de terceirização. É deixado nas mãos das palavras o esforço que caberia ao devoto da nova fase. Há inclusive uma adequação pressionada pelo tempo. Como a vontade se desmoraliza com as sucessivas traições, aos poucos as promessas se tornam mais viáveis, em tese. Mas o hábito da desistência acaba fortalecendo a impermeabilidade do novo juramento, por mais raso que seja.

É difícil, mas proveitoso, romper esse laço entre o dito e o feito e entregar-se ao que realmente for possível, na hora certa. Livrar Natal e Ano Novo das listas das decisões é deixar de tomar as pílulas pseudo-religiosas ou pretensamente filosóficas do bem viver, pragas da indústria do aconselhamento. Não acredite, por exemplo, que toda crise encerra uma oportunidade. Desconfie de ideograma chinês, ou do horóscopo chinês. O ano do búfalo pode ser da serpente. Vai lá saber. O Tempo não tem boas intenções.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no caderno Variedades da edição de 23 de dezembro de 2008 do Diário Catarinense. 2. Imagem deste post: Navegantes, mais uma estupenda foto de Sérgio Saraiva.

23 de dezembro de 2008

O NATAL PASSA RÁPIDO


O cartão acima foi escolhido o melhor deste Natal. Enviado por Daniel e Carla Duclós, de Amsterdam.

Quero agradecer a todos que me enviaram, por e-mail ou pelo Orkut, as mensagens de Boas Festas. O Natal é uma data importante. Ainda existem arvores bem decoradas, sapatinhos embaixo delas e presentes. E há a expectativa da ceia, da confraternização, das emoções. Mas passa rápido. Daqui a pouco já é dia 26, depois Ano Novo e pronto, estamos em 2009.

Foram assim os sucessivos anos em que nos metemos a viver nesta terra. Convocados pelo Mistério, estamos aqui, juntos, no mesmo lugar, querendo escapar dos pepinos, tentando ser maiores do que os conflitos, procurando de qualquer maneira habitar o espírito seco de tanta indiferença. Mas agora não é hora de escrever nada. Este ano escrevi demais. Chega a dar um fartão. Por que tanta palavra, meu Deus? Porque essa é a vocação, este é o tempo e sua urgência e esta é a oportunidade de dizermos alguma coisa.

Pois vamos continuar dizendo. Enquanto isso for possível e houver esperança. Feliz Natal, e que nossa amizade, fortalecida pela escrita e a leitura, continue firme.

BATE O BUMBO - 1. Dois estudantes de Geografia do II Grau fizeram um video e colocaram no You tube. É baseado no texto meu publicado aqui no Diário da Fonte, São Paulo, Cidade Eterna. Vejam.

2. No Portal Cronopios, um
balanço das principais leituras deste ano. Minha contribuição foi a seguinte: "A Trilogia de Máximo Górky, da Cosac Naify, esteve comigo por alguns meses este ano. Infância, Ganhando meu pão e Minhas universidades fazem parte de uma antologia universal da melhor literatura. O impacto da leitura me resgatou o prazer de ter um livro nas mãos, a vontade de não deixá-lo de lado, não apenas pela maestria da linguagem, ou pela curiosidade despertada pela intensa narrativa (uma sucessão de eventos extraordinários da Rússia czarista), mas principalmente porque Górky revisitado recupera para nós a importância da obra literária, longe das modinhas, firulas, esvaziamentos, poses. Górky é a vocação legítima do escritor, algo que precisa estar bem determinado entre nós, pois é muito comum no Brasil e na nossa época a falsidade ser entronizada pela reiteração do mesmo, sepultando não apenas a diversidade, mas a própria literatura. Escrita antes da revolução de 1917, a trilogia de Górki nada tem a ver com o realismo socialista, arapuca em que o autor foi enredado anos mais tarde. Os textos mantém a atualidade, o frescor, o brilho e a contundência originais, como se tivessem sido escritos hoje de manhã.

Outro autor que destaco é Rubens Jardim, o poeta que lança seu primeiro livro em 30 anos. Membro importante do movimento Catequese Poética dos anos 60, Jardim transcende suas origens e no extraordinário "Cantares da Paixão" busca no caos primordial da palavra (lá onde as falas impositivas não apitam) a força que falta à poesia brasileira.

Nei Duclós é escritor."

21 de dezembro de 2008

VAMOS CHEGAR A UM ACORDO?


Tem coisa que precisa ser enfrentada com o verbo duro e a esperança de que tudo mude de fato. Vamos dar a resposta por itens:

Crise é crise, oportunidade é oportunidade. Uma coisa não gera a outra, pois ambas não tem nada a ver entre si. Você não enxerga tua casa no meio da lama como a grande oportunidade de aparecer no noticiário, por exemplo. Você enxerga a casa na lama, ponto. Se você passar no concurso, isso não vai gerar crise nenhuma, é a tua chance. Ponto final. Estamos então de acordo sobre isso? Chega de ideograma chinês? Só existe oportunidade na crise para os oportunistas. Você recolher um tênis do donativo para seu filhão, por exemplo.

O mundo não mudou em 2008. Só porque elegeram um americano formado em Harvard, senador democrata, com carreira normal na política do Império, que convoca para seus assessores as pessoas mais tradicionais do mundo, não quer dizer que o mundo mudou só porque ele é negro. Ele foi eleito porque faz parte do establishment do seu país, não porque faça parte de Burundi, Moçoca ou Congo profundo. E o mundo não mudou só porque a ciranda financeira foi desmoralizada. Para que ela acabe precisa de uma revolução, daquele tipo que toma conta das ruas e invade os palácios. “Tomamos Petrogrado!” É assim que a especulação financeira vai acabar, só assim.

O Natal é uma festa muito legal. Só porque você é contra o sistema, usa poncho e conga, coloca em diagonal a boina cheguevarista, ou investiu décadas contra as festas natalinas, ou só porque esta é uma época de consumismo besta desenfreado, só porque o Papai Noel substituiu o verdadeiro significado da data não quer dizer que uma árvore bem produzida, cheia de presentes, com uma ceia reunindo a família seja uma coisa a ser evitada. O Natal é maravilhoso, assim como todos, eu disse todos, os filmes de Natal. Esses dias passou na Globo "Sobrevivendo ao Natal", que eu já tinha visto em DVD, em que o cara milionário e solitário aluga uma família para poder cruzar o Natal. Filme absolutamente magnífico. Ver sem culpa. O Natal é muito, muito legal, viu? Pode continuar contra link no shopping ou na compra de porcarias chinesas em ruas populares do comércio. Mas deixe o Natal fora disso, ok?

O maior patrimônio do Brasil é o seu litoral. Não é o pré-sal, viu? Não é porque tem um burrilhão de miliolitros de óleo sujo a cem quilômetros da superfície que a gente deva emporcalhar essa maravilha da natureza e do Brasil soberano que são oito mil quilômetros de costa. Os europeus, que não tomam banho, acham o litoral um saco, pois qual a graça de mergulhar o corpo numa água maravilhosa em pleno verão tropical? Claro, nenhuma. Mas nós, brasileiros, morando ou não na praia, achamos que nossa costa é a coisa mais maravilhosa que Deus criou sobre a face da terra. Então, não leve seus cachorros, seus cocôs, suas latas de cerveja, seus caminhões em forma de caminhonete para o mar, que pega mal. Não ande de moto ou jet ski no meio dos banhistas. Desligue esse rádio de merda, jogue todo o som no lixo e escute o som das ondas. E veja, veja aquela ilha pontificando no horizonte. Grite de alegria de manhã, recolha-se do solaço à tarde e chore vendo o entardecer entre gaivotas. Deus fez isso para viver em paz. Não destrua o paraíso, seu.

RETORNO - Imagem desta edição: Praia de Ingleses, por Miguel Duclós.

19 de dezembro de 2008

O BRILHO DAS ÁRVORES


Nei Duclós

Tanto para ser dito ainda, no ano findo. Por mais que escreva, mais coisa fica. Devemos nos entregar às evidências da mídia, sapatos que voam, morros que desandam, ou procurar o sinal humano afogado entre malandros e facínoras? Ninguém permite a ascensão desse surdo escoar de gritos. Está estabelecido, há séculos, o enterro explícito do que um dia foi poema e hoje é produto. Quites com a dívida, o fisco, resta o escândalo de permanecer mudo. É a morte prematura da palavra nua, a que vem ao mundo para soar no templo, e que acaba confinada ao feno apodrecido.

Do estábulo vemos a rua coberta de lances obscuros. Balbuciamos uma nova língua, mas só os bichos escutam. As pessoas se transformaram em mercadorias. Não há como escapar, dizem, nem mesmo o talento que afias diariamente, nem mesmo o sonho de acordar dessa loucura. Deves te ordenar na comunhão dos aflitos, enquanto envelhecem os bandidos e seus tesouros acumulados. Nenhum franco atirador postado na torre da capela, para mantê-los à distância, enquanto resistimos.

O escritor também é omisso. Permanece oculto, teclado entre víboras. Não pode apartar a briga pelo butim, nem encaminhar a mocidade, amarrada aos pés da violência e o desatino. Não é um líder. Faz parte da paisagem tomada pelo lixo, como os andarilhos, os bêbados comuns. Ele olha, pela vitrine, o bom mocismo dos escribas de aluguel fazendo conferências. Inclusive os transgressores, esses cabelos revoltos, esses andrajos medidos, essas expressões de falsa fúria, esses livros descartáveis e pífios, premiados em todas as instâncias.

O escritor faz parte do trigo, o que foi reservado num pequeno galpão do instituto de pesquisa. É um exemplar das sementes não modificadas, guardadas mais por curiosidade científica do que por esperança de que, no futuro, vençam a partida. Ao lado do grão, o escritor faz o balanço. Perde a conta do tempo escoado pela trilha. Seleciona os momentos em que esteve perto da literatura: foi quando, despido, enfrentou voragem e frio.

Agora, o que fazer com tanto trabalho guardado na pele, nos ombros, nos bolsos furados? Onde guardar a poesia que sobra em seu embornal? O linho do amor cobre seu rosto ainda vivo, enquanto o olhar se atira, aprendiz de sonhos, confessor de mendigos. O escritor esquece o que guardou para se jogar de novo na aventura da criação, a que é dita por compulsão e herança, e que se projeta como um míssil desgovernado espaço afora, em busca de um planeta solto sem estrela.

Lá, nesse território íntimo, ele exercita mais um gesto do espírito que não se entrega, mesmo sendo vítima de armadilhas. Foi levado para golpes de vista, apontamentos brutos, páginas de brita. Mas voltou e colabora com os feixes de luz do sol que inaugura, mais uma vez, a pesca sobre escombros, as pombas entre pálidos lampiões, as luas feridas. Um lápis sem ponta, um vídeo riscado, uma conexão tosca. Ei-lo de volta, o anunciador de espinhos, baú de murmúrios.

Tanto por dizer no ano que finda. Tanto para escrever, com a insistência das denúncias, até a demência absoluta. Recolham as palavras no campo recém lavado. Elas brilham nas árvores, como os pingos depois da chuva.

RETORNO - Imagem desta edição: uma das mandalas produzidas artesanalmente por Juliana Duclós, autora da foto, na romã do quintal.

BATE O BUMBO - DUAS CITAÇÕES ACADÊMICAS

Estudo Crítico da Bibliografia sobre Cecília Meireles - Ana Maria Domingues de Oliveira (pg.150):

DUCLÓS, Nei. Verbo mágico. Leia livros. São Paulo: 5 (45), abr./mai. 1982, p. 6. (D) Resenha de Cânticos (1981) e de Ilusões do mundo (Nova Fronteira, 1981). No primeiro, Nei Duclós aponta a proximidade da poesia oriental, e no segundo constata a atualidade dos temas abordados.

Análise da legitimação da obra de Dyonélio Machado. Por Maria Zenilda Grawunde (pg. 151
):

DUCLÓS, Nei. Quarenta anos de silêncio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 de fev. 1979 p.27

17 de dezembro de 2008

OS MELHORES DE 2008


A tradicional lista do Diário da Fonte acumula algumas vitórias ao longo da sua história. Na última segunda-feira, por exemplo, na Noite do Livro, o Prêmio Açorianos de 2007 contemplou Marco Celso Viola e seu grande evento Porto Poesia, um destaque aqui do DF na lista de dezembro do ano passado. Esse é apenas um exemplo. Antes de irmos para os contemplados, mais uma vez quero dar os parabéns ao Marco Celso pelo trabalho que está realizando em Porto Alegre, a cidade da Cultura.

Esta é uma lista pessoal, circunscrita ao meu olhar, inspirada em meu ver, ouvir, sentir e até mesmo adivinhar. Ou seja, igualzinha às outras. Ela começa assim, mas pode melhorar ao longo dos dias, até o final do ano. Participe e dê sugestões.

POESIA

Rubens Jardim com “Cantares da Paixão”: primeiro livro em 30 anos do grande poeta que traz de volta a palavra unida às fontes do verbo abundante e radical das falas do Brasil revisitadas pelo tlento inovador.

Pedro Du Bois: seus poemas inéditos, enviados por e-mail são de grande qualidade e intensidade poética. Destaque obrigatório deste ano para um trabalho contínuo, persistente, ótimo.

ROMANCE

General Osório e seu tempo : o monumental livro de José Antônio Severo compõe um mural sobre as guerras de formação de fronteiras e resgata a coragem dos que ajudaram a inventar um país.

O detetive sentimental
, de Tabajara Ruas, lançado pela Record. O grande escritor continua a mil, apesar da mídia se ocupar com outras personalidades, mais carimbadas.

TELEVISÃO

Profissão: Repórter. O programa de Caco Barcelos, apesar da suíte de ontem sobre Sat Catarina, é o que há de melhor na TV brasileira. Pena que vá ao ar quando o programador do traço está na ativa, ou seja, aí pela madrugada. Esperar pelo Caco é sofrer com o Toma Lá Dá Cá, que jamais sai do ar.

MÚSICA

Coleção dos 50 Anos da Bossa Nova, da Folha, organizada por Ruy Castro. Um resgate do melhor da música inesquecível, que mudou o som produzido pelo mundo.

Oly Jr. e seu estupendo cd Milonga Blues, um trabalho que nasce clássico e ao mesmo tempo lembra e projeta sons.

BLOGS

Luiz Carlos Merten: posts magníficos sobre a Sétima Arte, imperdíveis. Merten está solto, costurando tudo, lembrando tudo, entregando todas, um banquete para os amantes do cinema.

Paulo Moreira Leite: o importante e talentoso repórter e grande editor mantém um blog sério, de primeira e cheio de análises, informações e provocações.
Clovis Heberle: memórias, artigos, viagens: uma trajetória fundada na força da vivência e na emoção do resgate.

Blogs familiares: meu filho Daniel implica com minha lista dizendo que ele ganha todos os anos, chegando inclusive a vencer na categoria Melhor Blog para Curso de Letras da USP. Implicâncias à parte, neste ano os blogs familiares detonaram.
A começar pelo internacional e carismático Ducs em Amsterdam, que Daniel e Carla Duclós (filho e nora) mantêm para a alegria dos amigos, familiares e viajantes à Holanda. O Ducs são já referência para quem quiser viajar para lá.
Miguel Duclós (filho), nos últimos tempo, detonou no seu blog (link ao lado) com vários posts de grande intensidade cultural, com insights provocadores.
Juliana Duclós (filha), com seu FreakMothers (link ao lado) está postando sobre arte e infância, um trabalho de grande repercussão na rede.
E Ida Duclós (esposa), depois de nos deslumbrar com sua pesquisa sobre as raízes italianas, foi buscar em Portugal as origens da família da Carla, provocando também grande alarido (link ao lado no Nada a ver).

INCENTIVO À LEITURA

Espaço Literário, do Comunique-se, editado pelo escritor e jornalista Pedro J. Bondaczuk . Cinco crônicas diárias, há mais de dois anos, com mais de cem colaboradores, entre os fixos e os que se revezam: eis um projeto de primeira água, fonte de mais criatividade e com um grande potencial para que a maior parte dos textos saia na forma de livro.

CINEMA

Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles. Um filme baseado em José Saramago, cacifado pelo dinheiro internacional, que tinha tudo para ser um blockbuster mas que, nas mãos de Meirelles se transformou em mais um filme brasileiro: como o Brasil é visto por quem enxerga sozinho o caos promovido pela cegueira geral. Um clássico emergente.

O cavaleiro das trevas (Dark Knigh), de Christopher Nolan: ele não é um herói, não é um vilão, é Batman, o cara. O filmaço que nos arrebatou em 2008.

Enquanto a noite não chega, de Beto Souza, com Miguel Ramos e Clenia Teixeira. Nem entrou em circuito comercial, mas já é um dos melhores do ano. Casal se recusa a sair da cidade condenada: a resistência poética e sem esperança no país terminal. Baseado em texto de Josué Guimarães. Como está aqui nesta lista? “Vi os cartaz” dizia meu irmão João Carlos quando perguntávamos como sabia tanto detalhes sobre filme do Zorro que nem tinha chegado ainda na cidade.

Netto e o domador de cavalos, de Tabajara Ruas. O resgate de uma lenda na véspera de uma guerra: o filme esnobado pelos festivais é, de longe, um dos grandes lançamentos do ano.

Carlinhos Hartlieb: Um Risco Fixo No Céu, de René Goya Filho – a volta daquele que se foi cedo demais e nos deixou um maravilhoso punhado de canções. Esse documentário foi o grande vencedor Prêmio Histórias Curtas 2008

ARTE

Ricky Bols e seu magnífico trabalho deubolsnalinha.

REPORTAGEM

Evanildo da Silveira, com suas matérias para a revista Problemas Brasileiros , no seu blog e em outros veículos. O fôlego e o rigor do grande repórter veterano dão o exemplo nesta época de notinhas e firulas.

FOTOGRAFIA

Omar Junior, de Porto Alegre: suas fotos no flickr são um arraso. Pena que não dá para reproduzir aqui, é impossível.
Irene Schmidt, do Rio Grande do Sul: a fotógrafa maior, quando mira a câmara, todo mundo senta para olhar.

RETORNO - Imagem deste post: janela/vitrine holandesa, foto de Daniel e Carla Duclós. Como explica Daniduc: " foto é a janela de uma casa em Utrecht, uma das grandes cidades da Holanda. Como é peculiar da Holanda, a janela é também uma vitrine."

BATE O BUMBO - MANIFESTAÇÕES SOBRE ESTA LISTA

Pedro du Bois (escolhido melhor poeta do ano, junto com Rubens Jardim): "Caríssimo Nei, agradeço emocionado pela inclusão. sinto-me honrado em participar da sua lista, entre tantas personalidades. Em outro email você me perguntou sobre livros: pois é, tenho um editado pela Scortecci, SP, por ter sido o vencedor do concurso literário da livraria Asabeça, em 2005, "Os Objetos e as Coisas". Tenho outros editados por mim, como editor-autor, artesanalmente (feitos em casa), com tiragens mínimas que distribuo entre bibliotecas, colégios e interessados".

Evanildo da Silveira (escolhido Repórter do Ano): "Gostei mesmo. Mas acho muita bondade sua. O coração deve ter pesado aí." (Nota do editor: Nada disso, Evanildo. Leio reportagens todos os dias. As tuas são as melhores).

Oly Jr. (músico do ano): "Bah... que beleza... é uma honra!!!Saibas que é muito importante esse teu apoio, Nei...!!!O artista faz sua arte independente da opinião das pessoas, mas um elogio sincero, uma crítica construtiva, sempre são bem vindos!!! Valeu, mesmo!!! Um grande abraço!!! "

16 de dezembro de 2008

VIVA SAPATO!


O QUE É O GÊNIO?


Nei Duclós (*)

O gênio é aquele que acerta sempre no exercício do seu ofício. Pode cometer falhas na vida pessoal, cair em armadilhas, promover injustiças, magoar, ferir, se arrepender. O gênio pode ser, em quase tudo, uma pessoa normal, mas se destaca por esse detalhe: tudo o que produz é perfeito, sem errar um só detalhe.

Hoje, a tendência é fazer faz tabula rasa das pessoas. A mediocridade triunfante fareja o talento, esse mistério da sabedoria, para esbagaçá-lo de alguma forma. É assim que mantém seu poder. Ninguém escapa. Quantas vezes não vemos alguém negar que Shakespeare realmente existiu? Ou que as grandes descobertas devem ser atribuídas ao cônjuge, ao amigo, ao vizinho de um autor? Ou que o pintor definitivo usava a capacidade dos seus alunos para produzir seus quadros?

Particularmente, implico com a palavra “menor” ao lado de um criador de obras-primas. É importante fazer um reparo: todo Kurosawa é maior. Não existe um só filme de Akira Kurosawa que possa ser classificado de outra forma. Nem vou falar dos mais explícitos, como Dersu Uzalá, Ran, Os Sete Samurais, Sanjuro, Yojimbo. Mas de O Barba Ruiva (1965), em que Toshiro Mifune interpreta o doutor dos pobres, um sábio que ensina, pelo exemplo, seu aprendiz arrogante.

Ele prova que por trás de uma doença incurável há uma desgraça provocada pela pobreza. A medicina é apenas coadjuvante e não protagonista nesse processo complicado, profundo, irredutível e impossível de ser solucionado de maneira simples. Pelo menos, enquanto forem mantidos os privilégios de casta, a soberba dos mais novos, o medo dos idosos, a crueldade e o cinismo dos bandidos, a insânia das vítimas.

Impressiona no Mestre a composição das narrativas, em que os personagens cruzam paisagens hostis de neve, chuva, vento e terremotos, vestindo apenas um quimono. É antológica a cena do desencontro do casal, que ao se despedir tenta reatar. Vemos, representadas visualmente, sem palavras, as idas e vindas, os olhares que não se encontram, as intenções que se anulam mutuamente, formulando uma coreografia dramática.

Assim se expressa o gênio, que tanto nos faz falta. Ele é gerado pelo humano para transcendê-lo. Criatura insondável, existe para nos salvar.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 16 de dezembro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Toshiro Mifune quebra braços e pernas de alguns valentões em "O Barba Ruiva", de Kurosawa. Não existe Kurosawa menor. Outra cena impressionante é quando as mulheres do hospital berram e uivam na beira do poço para impedir que a alma do garoto que se envenenou junto com a família, morra. O chamado para o fundo da terra prende a alma que tenta ir embora. É de saltar da cadeira.

15 de dezembro de 2008

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: NÃO VER É SENTIR


Nei Duclós

A crítica cinematográfica é cega. Não consegue enxergar um filme. Acharam “Ensaio sobre a cegueira”, de Fernando Meirelles, baseado no romance de José Saramago, deprimente, apocalíptico, azedo, óbvio. Se é para despejar adjetivos, para que a crítica? Uma análise precisa ver o que a obra mostra de maneira explícita, em todos os frames, cortes, formas, objetos, situações, diálogos, cores. E não o que o crítico acha. Não podemos achar nada sobre coisa alguma, apenas nos render ao que é evidente. E o filme é de uma transparência didática e cristalina: despojados da visão, as pessoas se desvinculam dos laços sociais, que regem a vida contemporânea por meio do massacre dos signos manipulados (os faróis do trânsito, as faixas de segurança, a indústria visual). Emerge então o que estava enterrado sob pressão, a barbárie e o sentimento.

A barbárie se manifesta na reprodução fiel da sociedade no microcosmo de um abrigo dos infectados pela epidemia (com um assustador Gael Garcia Bernal na liderança dos malfeitores). As pessoas chafurdam na sujeira, se submetem às maiores humilhações por comida, matam-se mutuamente, abrem mão dos vínculos familiares, se despedaçam. Quando ficam livres da prisão, encontram o Brasil, o país que não vê onde está realmente metido. As cenas de São Paulo imunda é o retrato do país entregue às moscas e aos cachorros. Numa das cenas, em que essa maravilhosa atriz chamada Juliane Moore entra num supermercado que está sendo saqueado, vemos exatamente as mesmas imagens que recentemente assombraram o noticiário, quando uma multidão entrou num supermercado inundado. As situações são praticamente idênticas.

O Brasil, no filme de Meirelles, é a metáfora do mundo entregue ao caos, por força dos que não conseguem mais ver o ambiente que produziram. É muito pior do que a favela carioca. No Rio, a brutalidade está confinada aos redutos da miséria. Aqui, é a cidade inteira, gigantesca, que está imersa no caos. Os cegos tentam sobreviver assaltando, aos berros, encontrões, empurrões, arranhões. Ao mesmo tempo, descobrem que podem sentir alguma coisa pelos seus semelhantes, os que estão mais próximos, que compartilham a saga e o martírio.

Não se trata de amor à espécie, que a simples eliminação da visão não irá despertar. Mas de algum amor, que se manifesta no velho (um tocante Danny Glover) que se declara à moça (Alice Braga, a estrela cresce), na relação de amantes isolados, no arrependimento das traições (Mark Rufallo, intenso, concentrado), na descoberta dos rostos antigos e distantes. Livres dos signos que decidem a vida social do dinheiro, dos carros, dos edifícios, dos papéis e funções profissionais, as pessoas se reencontram, emocionadas com o que podem tocar e ouvir.

A civilização em queda, em Meirelles, é o paredão de concreto que tolda a visão do próximo. O céu, a natureza, ou a tempestade branca, símbolo da cegueira, é o rito de passagem necessário para que volte o que perdemos. É por isso que Juliane olha para o alto e vê a representação da cegueira. Depois desce o olhar e vê o muro de edifícios de Metrópolis. São Paulo, a megalópole brasileira, encarna o pesadelo da civilização que não se enxerga e vai em frente com seu trem de insânias.

Todo filme é sobre cinema: Juliane, a única que vê, é o olhar do cineasta que acompanha a tragédia. Ela pouco pode fazer a não ser olhar a loucura tomando conta de tudo. Há impotência em sua expressão de dor diante da brutalidade. Há denúncia nesse desespero mudo, mas não cego. Quando todos perdem a visão, o artista é o único que enxerga. Se ningém conseguir ver o que ele mostra de maneira tão eloqüente, é porque o Mal venceu e pouco resta de esperança.

Ficar indiferente ao filme é participar do cerco a essas evidências. Fernando Meirelles, autor de grandes obras, compõe a dor de ver, e o que ele enxerga é uma janela para o que nos oprime. Vamos ficar atentos, descobrir o que nosso olhar viciado oculta. Para isso existe o grande cinema.

RETORNO - Imagem desta edição: Juliane Moore, talento e técnica de uma grande atriz.

14 de dezembro de 2008

ARTE É LUTA DE CLASSES


Nei Duclós

Estão pontificando adoidado sobre arte, pois o que está em jogo é a posse de verbas públicas: ganhar a parada teórica significa estar sintonizado com as exclusões promovidas pelo privilégio, e assim ter acesso aos recursos reservados para exposições, bienais, cadernos culturais etc. Se você conceituar na contracorrente, desmascarando o jogo bruto da luta de classes no miolo do universo artístico, então despeça-se daquela grana providencial vindo das generosas fontes arrecadadoras. Estou me referindo à recente Bienal do Vazio, em São Paulo, e a prisão de uma pichadora, episódio comentado por Jorge Coli no Mais! deste domingo.

Por que Bienal do Vazio? Porque os poderes se apropriam de todos os espaços, principalmente os que ainda estão vagos. É uma reserva de território: além de se locupletar com os terrenos tradicionais, é preciso assegurar o futuro, tomar posse do que ainda está à deriva. Não é outro o significado da grilagem de terras públicas: os maganos invadem terras do governo porque não podem deixar à mercê da população a posse desse vazio patrimonial.

A Bienal, sob o guarda-chuva da transgressão institucionalizada, pretendeu promover um insight perceptivo ao destacar espaços vazios naquele monstrengo do Oscar Niemeyer no Ibirapuera, um lugar insuportável, quente demais, cheio de concreto exposto, árido e estéril, como costuma acontecer com as obras desenhados pelo queridinho das empreiteiras (que se diz comunista!). Um grupo de artistas emergentes se insurgiu contra o desperdício. Uma jovem artista pichou um dos espaços vazios e agora pode pegar uma cana braba, de dois a três anos.

O ato, que é de vandalismo, justificado ou não, serviu para expor novamente os motivos nobres dos pichadores, que deveriam limpar tudo o que sujaram nos prédios que não pediram sua arte. Essa oposição no fundo reitera o que a produz. Os poderes da arte maquiam os conceitos, celebrando a superficialidade do descartável como se fossem arautos de uma revolução eterna (o que é uma besteira, pois toda ruptura é feita em cima de uma tradição, se você elimina a tradição não há ruptura, não há revolução). A garotada se insurge, dizendo que eles sim são a transgressão. Ambos estão errados, pois intensificam a anti-arte em nome de um avanço cultural teleológico, como se o espírito humano evoluísse assim como as lagartas se transformam em borboletas.

O espírito humano obedece aos ciclos, como a natureza. Ele não avança indefinidamente. Há sempre o retorno, a volta, a reencarnação, a recuperação, o resgate e assim sucessivamente, num movimento circular, em espiral, eterno. Não se trata de linha reta, pois se você coloca um mijador numa Bienal e diz que é arte, o que colocará na seguinte? Um cagador? A pichadora presa diz que sua arte é para o povo olhar e não gostar. Significa que ela olha o povo e não gosta. E, claro, inverte os papéis. Ela exibe um fundo aristocrático, natural num país da exclusão, de escravos, em que todo mundo é senhor.

Já elogiei várias vezes aqui o caderno Mais!, da Folha. Desta vez o destaque é Madona, aquela senhora que dissemina a obsessão pelos gestos sexuais enquanto se esganiça em músicas idênticas. Sem comentários. Ultimamente o Mais! está ilegível,ou seja, deixou de oferecer diversidade de talentos e opiniões para se concentrar todo numa espécie de consenso de celebração do baixo nível cultural. Na edição do domingo passado, destaca a idéia exagerada de que o cérebro é uma gambiarra da evolução e não essa supermáquina com que era vista até há pouco tempo.

O problema é que exageraram sobre o cérebro para criar uma falsa idéia do seu poder e agora, baseados, não no cérebro, mas nessa representação fake, oferecem o antídoto: calma lá gente, não é bem por aí! Irrita o modo como tratam a evolução, como se tudo fosse uma grande sacanagem da natureza, como se os processos naturais fossem o espelho da economia globalizada, cheia de truques e armadilhas. A evolução é séria demais para ser tratada como insumo impactante da mídia.

Em outro artigo, uma entronização do obscurantismo, pois a chamada psicologia experimental (sempre existe um nome pomposo para as novidades) ataca a noção de que a racionalidade é juiz imune a influências. Isso é uma asneira sem fim. A racionalidade trafega do simples ao complexo, ou do complexo precário para a complexidade mais completa. Nada é imune a influência, muito menos a racionalidade. O problema é que a razão foi usada para destruir a liberdade de espírito e agora que o serviço sujo está feito chega alguém e diz: calma lá, gente não é bem por aí.

Tem mais. Um filósofo emérito aborda o plágio na arte e detecta a tendência de que estão colocando em xeque a idéia da autoria. Isso sim é serviço completo. Como já fizeram todos os cânones, tudo o que é bom já está decidido, então nada mais resta para os emergentes. Jamais teremos de novo grande arte, grande literatura, pois tudo está pronto. Então o que deve ser destacado, nesse enfoque perverso, é exatamente a impropriedade do direito à autoria. É por isso que a moça foi lá na Bienal pichar. Para ser reconhecida como autora, para ser levada em consideração, para existir. Mesmo que ela defenda a arte coletiva, é a sua personalidade que está clamando por reconhecimento.

Há também um artigo de um inglês que visitou o Brasil e diz que as mulheres brasileiras deslizam como se estivessem dançando samba. Ora, vai cagar pedra. Seu editor brasileiro, ao lado dele, morria de vergonha das manifestações suarentas dos conterrâneos. Revirava os olhinhos, o sujeito. Quanta colonização, quanto mico. E o Mais! fica difundindo esses troços, de maneira coesa.

Menos, Mais! Há também, na Folha, a tragédia televisionada dos debates culturais. Num deles, Caetano usa a maior parte do seu tempo para gaguejar. Em outro, sobre os 50 anos da Ilustrada, o parâmetro é o caderno cultural dos anos 80 para cá. Em 80 começou a decadência da Ilustrada, quando as reportagens sobre fatos culturais foram substituídas pela difusão dos eventos do show-bizz (ainda se diz isso?), quando o marketing substituiu a notícia. Entre outras barbaridades, houve uma longa campanha mistificadora sobre o grupo The Smiths, que ninguém mais lembra. Era tudo muito forçado.

RETORNO - Imagem desta edição: o horrendo e desumano prédio da Bienal no Ibirapuera, obra de Oscar Niemeyer, o rei do concreto sufocante. O prédio já é o vazio absoluto.

13 de dezembro de 2008

A CHAMA E A SOMBRA


Nei Duclós

Pode ser coincidência, mas o significado do nome próprio dinamarquês Citronen pode ser, graças a uma variação etimológica, o mesmo da palavra francesa Citröen: “todos por um”, segundo especialistas em sânscrito. Citronen é o nome de um herói da Dinamarca da Segunda Guerra. Junto com Flammen (chama), fez parte de uma equipe de resistência ao nazismo, eliminando colaboradores no país ocupado. O recente filme Flammen & Citronen (2008), de Ole Cristhian Madsen, é uma revisita ao mito que se formou ao redor dessa dupla de matadores, enterrados com honras depois da derrota alemã, quando foram retirados de uma vala comum para serem colocados no panteon dos heróis da pátria.

O filme é uma apurada sucessão de imagens de alta intensidade visual e dramática. As cores carregadas em contrastes gritantes fazem dele um noir do século 21: lâmpadas fortes sobre escrivaninhas minuciosamente produzidas, paisagens maravilhosas de céu, mar e grama que duelam com automóveis de cores berrantes, Estocolmo e Copenhagen esplendorosas na sua frieza incendiada pela ação e personagens sinistros em armadilhas mortais fazem desse lançamento internacional um acontecimento importante, mesmo quem seja considerado longo demais, confuso muitas vezes e com situações forçadas em algumas partes.

O que vale é essa atualização do imaginário do país. A ultra-sofisticada e culta Dinamarca não poderia produzir um panegírico, já que se trata de uma democracia de verdade e lá houve uma guerra ferocíssima que marcou a população. A abordagem é sobre a omissão diante da humilhação, a necessidade de reagir, mas como? Os dois heróis se prestam ao jogo dos assassinatos, apesar de Flammen (interpretado por Thure Lindhardt) ser um brilhante aluno e Citronen (Mads Mikkelsen) um pai de família incapaz de matar uma pessoa. As contingências empurram os dois idealistas para o crime. Esse idealismo – a chama segurada pela sombra, a ação carregada pela idéia de nação, o tiro amparado pela resistência – é que faz reviver o heroísmo.

Eles podem ainda ser lembrados de maneira solene, apesar de terem caído em todas as arapucas, matado inocentes sem saber, se prestarem a um serviço sujo enquanto os facínoras do serviço secreto inglês, entre outros comerciantes, dividiam os lucros. Os campos se confundem na luta desigual entre a individualidade e a corporação. A dúvida é encarnada na figura da mulher (a personagem Ketty Selmer, interpretada por Stine Stengade), a agente dupla que acaba delatando o amante procurado a peso de ouro. A traição feminina e a solidariedade encarnada pela dupla masculina são recorrentes no cinema europeu e americano. Como a confirmar a função de Eva seduzida pela serpente e o trouxa que acaba provando a maçã envenenada. Mas esse lugar comum não tira o mérito do filme.

Citronen usa capa preta, chapéu escuro enterrado na testa, enquanto o cabelo loiro de Flamme navega pelos corredores e ruas, armado de chispas de uma revolução que ficou inacabada. A chama e a sombra convivem com seus equívocos até o fim, sem conseguir mudar nada. O objetivo era matar todo nazista que tivesse invadido a Dinamarca e seus colaboradores. O projeto não deu certo. Os heróis se enredaram na própria cegueira diante da complexidade do conflito. Isso é recuperado de maneira poderosa pelo cineasta Madsen, que foca o heroísmo possível nesta época de transparências.

Não cabem mais na cultura de hoje heróis vistos como antigamente, impolutos, sem nenhuma mancha, sem sua natureza humana, escassa e precária. Ao mesmo tempo, não podemos sucumbir ao jogo de achincalhes diante dos que arriscaram a vida em nome de uma idéia fundamental da sobrevivência, a nação.

Longa vida aos heróis da pátria. Mesmo com todos os defeitos, eles se destacam no mundo com sua natureza dupla, entre iluminação e a névoa, entre o ideal e a prática, entre a certeza e a dúvida.

12 de dezembro de 2008

COLT É IRMÃO DA WINCHESTER




Nei Duclós

Em dois filmes irmãos - Cão Danado (1949), de Akira Kurosawa, e Winchester 73 (1950), de Anthony Mann - Caim e Abel se defrontam depois de uma perseguição implacável. O que liga os protagonistas em cada filme são armas de estimação, importantes, raras. No Japão do pós-guerra, um colt roubado vira instrumento de crimes sucessivos, enchendo de culpa seu dono, o policial (Toshiro Mifune), que depois de muita luta, recupera a arma. No velho Oeste, a Winchester perfeita, considerada “uma entre um mil”, é disputada pelos dois filhos de um rancheiro e acaba passando de mão em mão até o duelo final, quando o filho bom (James Stewart) a resgata ao eliminar, no meio das pedras de um penhasco, o irmão assassino.

Existe sempre um Kuroswa maior para assistirmos. Cão Danado é noir criado pelo pai da matéria (o cinema). Todos se inspiraram, chuparam, copiaram o Mestre japonês, principalmente os americanos. Quantas vezes você não viu uma investigação se desenvolver em meio a um calorão que faz todo mundo, principalmente os perseguidores, passarem o lenço no rosto e na cabeça a cada segundo? Quantas vezes você não seguiu uma narrativa em que entram apenas as pernas em movimento dos atores? Quantas vezes não viu um filme que começa com um animal torturado? Detalhes que intensificam visualmente a obra e se transformam num espetáculo à parte.

O faroeste refilmou várias realizações do Mestre (John Sturges, Sergio Leone, entre outros), mas não desta vez. Os dois filmes irmãos percorrem leitos comuns da narrativa, mas não se trata da mesma história. O que notei são os pontos de contato, poderosos. Além dos apontados acima – irmandade (virtual, no filme japonês, e real, no faroeste) e as armas roubadas – o que une os dois filmes é a vingança. O policial quer vingar os crimes praticados pelo ladrão com seu colt e o rancheiro quer vingar, armado de sua winchester, a morte do pai pelas costas, um crime cometido pelo próprio irmão. A revanche se cumpre em pleno calor, mas em ambientes opostos. Em Kurosawa, num ermo florido, onde os duelistas se dilaceram e quase não são percebidos pela vizinhança em bocejo. Em Mann , no meio das pedras e do pó, com os dois contendores sós, sem ninguém ao redor, a não ser a História da Sétima Arte e nós, os admiradores confessos e obecados por cinema.

Como já foi apontado pela crítica, o policial e o ladrão são como faces do mesmo rosto. Ambos lutaram na guerra, foram roubados na volta para casa, só que um escolheu o Bem, o emprego, e o outro o Mal, a vida fácil e ressentida, sem trabalho mas com dinheiro alheio. Seriam como irmãos com objetivos diferentes, que acabam se cruzando na obsessiva trajetória compartilhada entre um, que quer solucionar os crimes, e o outro, que quer agradar a namorada com presentes caros. Os dois irmãos de fato, no faroeste, foram treinados pelo pai, morto depois que o filho tentou se esconder em sua casa fugido dos xerifes.

A convivência é impossível quando os crimes são imperdoáveis. O desfecho é obrigatório: um precisa eliminar o outro. A sombra que essas histórias projetam são vividas por nós, hoje. Os criminosos são vocacionados para o Mal ou fruto de situações de colapso? Como diz um trabalhador do filme de Kurosawa, cunhado do ladrão: ele tem muita raiva, culpa o Japão por tudo. Conhecemos essa história, não? Quantas vezes ouvimos ou dizemos a explicação definitiva: “É o Brasil!” A culpa é do país, por isso todos podem cometer qualquer crime.

Esse tema é debatido em diálogos importantes. O veterano inspetor Sato, interpretado por Takashi Shimura, não acredita em vítimas do sistema, mas em ruindade mesmo, ao contrário do novato interpretado por Mifune, que vê na barbárie da guerra entre nações a origem do comportamento do ladrão. Debate que nos consome aqui no Brasil, com pessoas divididas entre a recuperação e a pena de morte. No faroeste, James Stewart explica que o erro do pai foi ensinar a técnica, mas não a ética.

O que dizer mais desses dois filmes imperdíveis, sumidos do mapa e que deveriam ser obrigatórios , pelo menos uma vez por ano, nos canais de televisão aberta e fechada? Podemos apontar a esplêndida pradaria de dia e de noite no filme de Mann, com cactos irmanados com a lua; e as seqüências sufocantes de Kurosawa, intercaladas por grandes janelas, como o jogo de beisebol no estádio lotado ou a dança das coristas no bas-fond suspeito. Tudo é solene e sublime quando há arte, quando existem cineastas, atores fundamentais, quando o cinema diz a que veio.

Um colt e uma winchester: o talento puxa o gatilho. Alguém vai morrer no final. Se segurem nas cadeiras, porque ninguém está na terra a passeio.

RETORNO - Imagens desta edição: James Stewart na primeira foto e Toshiro Mifune e Takashi Shimura na segunda.

10 de dezembro de 2008

AKI KAURISMÄKI: O GESTO ENGESSADO



Nei Duclós

Cineasta finlandês faz filmes dramáticos hilários: o drama se expressa pela imobilidade do gesto, que provoca situações de humor terminal, aquela risada antes do fuzilamento. Os diálogos são escassos, como as ações dentro das narrativas (que, paradoxalmente, são dinâmicas). As conversas pontuam essa situação limite: “Se quiseres falar consigo mesmo, fale finlandês” diz um dos personagens de Segure seu cachecol, Tatiana, de 1994, um road movies que toca em algumas feridas básicas daquela estranha nacionalidade. Parte do antigo império russo, do qual se separou depois de algumas guerras, e por muito tempo dentro da área de influência sueca, o país exibe índices razoáveis de qualidade de vida, mas o isolamento e a falta de sabor da sociedade finlandesa tornam-se explícitas nos filmes de Kaurismäki.

Isso, claro, é apenas um truque. O cineasta aparentemente filma a imagem que o país faz de si mesmo, e em conseqüência, projeta para o resto do mundo. Mas ele é um arqueólogo e procura até achar, cavando na mansa mornidão que contamina tudo, a erupção de graça, humanidade, poesia, solidariedade, medo, esperança dos seus memoráveis personagens, encarnados por mestres da interpretação. Só a presença constante da professora de teatro de Helsinki, Kati Outinen, em todas as suas obras, faz dos filmes de Kaurismäki um modelo dessa difícil arte, pois vá criar algo convincente sem se mexer, sem mover linhas de rosto, sem “dar”, sem violência, sem nada.

Basta uma cena, em que Kati enfim convence o imbecil do adolescente tardio que estava muito a fim de um relacionamento. Sua personagem Tatiana conviveu com o cara dias e noites numa viagem. Ele consegue entender o assédio amoroso e senta ao lado dela numa parada da viagem. Kati/ Tatiana, então, vagarosamente, coloca a cabeça no ombro dele, ao som de música comovente. É de despedaçar o coração. Alta intensidade dramática em apenas alguns segundos. Pessoas sem a mínima chance enfim se encontram, e abrem a possibilidade de uma vida a dois.

Aliás, a presença da música é fundamental na obra deste cineasta. Bandinhas perdidas da Finlândia profunda, que se apresentam em palcos improvisados, pequenas orquestras que animam bailes em restaurantes, rocks estranhos do fundo do baú, músicos antiqüíssimos tocando acordeão, vozes obsoletas e encantadoras pousando nas cenas, além de performances magistrais como o solo de piano no início de Nuvens Passageiras.

Kati, prêmio de melhor atriz em Cannes de 2002, por Um homem sem passado (já comentado aqui no Diário da Fonte) é impressionante em todos os sentidos. A travadíssima gerente de restaurante no maravilhoso Nuvens Passageiras (1996), é um papel antológico. Sua seriedade, determinação, força, imobilidade, tristeza profunda fazem parte da paisagem extraordinariamente colorida, num ambiente pcitórico over, como se o contraste de cores básicas fosse a exacerbação que falta para fazer deslanchar o gesto preso dos personagens. Trata-se de pintura exercida por um mestre: cada filme do grande cineasta é uma exposição visual de primeira grandeza.

Markku Peltola é outro ator básico em Kaurismäki. Em O Homem sem passado (que analisei como uma denúncia do sucateamento econômico da nação provocado por esses flibusteiros que deveriam estar na cadeia, para usar a indignação de José Saramago), Markku nos conquista exatamente por não esperarmos nada dele. O cara é meio troncho, desajeitado, inexpressivo, duro em tudo. Como consegue reproduzir personagens tão diferentes quanto nesse filme, do sujeito que perde a memória, e o cozinheiro alcoólatra em Nuvens passageiras? É porque interpretação é trabalhar intenções e não dar ou comer em cena.

Um aspecto interessante do engessamento do gesto em Kaurismäki são os diálogos decorados, que denunciam a natureza das invenções do roteiro. Não são conversas naturais, a não ser que a falta de brilho das pessoas seja confundido com uma outra natureza. No curto episódio de Ten Minutes Older (The Trumpet), Dogs have no hell (2002), Kati e Markku fazem o jogo de cena de um casal que foge da Finlândia para a Rússia, mas antes, por exigência dela, ficam noivos. Eles conversam como se fosse num teatro de escola amador. Parece, mas não é. Kaurismäki compõe a artificialidade das situações para deslocar a cena para a autenticidade, por mais estranho que isso possa parecer. Funciona!

É o que eu já disse sobre o faroeste: coisas que jamais acontecem e que são absolutamente verdadeiras. Serve para Kaurismäki, o criador dos velhos roqueiros finlandeses bebedores de vodka e café que não conseguem se relacionar com as mulheres; o casal que perde emprego e móveis e acaba dando a volta por cima num negócio próprio; o cara que esquece tudo e recompõe a vida numa outra dimensão pessoal e coletiva; o casal que se compromete numa aliança antes de abandonar a pátria.

Eis Kaurismäki, um cineasta essencial que só aparece por aqui em mostras de cinema e em algum ou outro dvd. Mas que deveria estar em horário nobre, em televisão aberta, para que todos possam aprender com ele, se emocionar, estranhar e viver um pouco a arte de transgressão e talento que corre pelo mundo sem que a gente tome conhecimento.

RETORNO - Imagem desta edição: Kati e Markku imóveis, um diante do outro, em "O Homem sem passado".

BATE O BUMBO - Miguel Duclós divulga mais uma Atualizações Consciencia: "Publicamos no site um trabalho acadêmico sobre Immanuel Kant, de Francisco Nunes de Carvalho, estudante de filosofia. BLOG - Postei vários ensaios curtos sobre filosofia e literatura no meu blog. Para ler (e comentar, claro), visite. ARGOS - O sistema Argos de filosofia foi modificado. A indexação e pesquisa não é feita mais através do nosso sistema interno, que estava desatualizado, mas agora por uma busca personalizada google. Configuramos o Google para pesquisar somente nos sites, selecionados, que são os que estavam anteriormente contemplados. O endereço para acionar o serviço continua o mesmo".

9 de dezembro de 2008

UM LANCE DO BRASIL PROFUNDO


Um dos vícios do jornalista é achar que está a cavaleiro da realidade, por cima da carne seca, por dentro do movimento, conhecedor dos detalhes da coisa como um todo, o que o torna, em tese, uma espécie de rei da cocada preta, pontificador absoluto sobre tudo. Um jornalista metido a coisa acerta todas as previsões, pois ele confunde sua profissão, que é procurar saber, em achar que sabe tudo de antemão (ou por meio de fontes super exclusivas, dessas que acabam em CPI).

Jamais se entrega ao acaso, tanto é que vive a repetir “não é por acaso”, como se a sorte, o incomensurável, o mistério, o sonho, todas essas coisas que fazem parte dos fatos, não existissem. Ainda mais quando surge um lance que tem tudo para ser, arrá! te peguei!, marketing, sacanagem, apelação. Ou seja: a volta de Ronaldo para o futebol brasileiro, nos braços do povo, a torcida corintiana.

Precisamos navegar no significado desse acontecimento, que nasce pelas contingências e talvez nem tenha sido imposto por comerciantes vis ou algo que o valha. O que há de comum entre Ronaldo e o Corinthians? Óbvio, a segunda chance. Tanto o timão quando o cracaço estão chegando de momentos complicados. Corinthians ficou um ano na segundona, enquanto Ronaldo imobilizava-se, machucado. Um, felizmente, com a faixa de campeão, agora em escala ascendente depois de ter amargado a humilhação de sair da série A. O segundo, fora de forma, afastado dos gramados há tempos, saindo de episódios pessoais lamentáveis. O que pode acontecer quando há essa sintonia de situações?

Acho que o futebol é capaz de nos surpreender quando tudo parecia se repetir indefinidamente. Pode-se argumentar: o cara está no fim da carreira, gordo, flácido, lento, bobo, preguiçoso. O que vai fazer no timão, que está a mil, cheio de jovens talentos, pronto para dar um salto? Não vai atrapalhar, não vai afundar de novo a equipe que está tinindo? Por que sacrificar o certo pelo duvidoso? E se ele claudicar, como enfrentará a Fiel? E se não fizer gols, se machucar novamente? Essas considerações seriam até pertinentes, não fossem fruto da falta de fé. Ora , fé, dirão, que bobagem. Fé não ganha campeonato.

Não falo em fé fundamentalista, aquela que diz fica com Deus ou distribui beijos no coração (bleargh!). Mas na fé do Brasil profundo, soberano, que existe à revelia dos ditadores, dos pessimistas, dos derrotados, dos vencedores, dos espertos, dos desonestos, dos gente boa. O Brasil é uma criatura tão poderosamente real que acaba ditando suas leis por mais que tentem desmoralizá-lo. É possível que não aconteça nada do previsto, nem para o bem nem para o mal.

Mas se não houver vitórias, haverá derrotas, pois não? Não acho isso importante. O que pega é o sinal que esse acontecimento emite. O que acontece no futebol brasileiro? Caos absoluto. Nossos craques estão sendo levados ainda no berço, ou seja, o extrativismo está levando o veio de ouro, a mina, a terra arável, não mais o produto. Estamos nos desfazendo de território, patrimônio, talento, futuro. Tem craque nosso encostado na Eslobóvia Meridional, que aluga para nossos clubes a riqueza construída aqui. Já importamos estrelas de outros países, como se precisássemos. Entregamos tudo para a bandidagem e depois vamos garimpando alguém que saiba chutar a bola.

Ronaldo se revelou muito menino e cedo se foi. Faz parte desse gigantesco movimento de entrega do país. Mas Ronaldo é um grande e fenomenal craque. É responsável por pelo menos uma Copa do Mundo. Criou lances de gênio ao longo da carreira. Sua volta ao futebol brasileiro, mesmo depois de tantos anos, sem o físico adequado, cheio de incertezas, significa que podemos sonhar com o grande talento entre nós. É como uma história de aventura contada ao redor do fogo.

O herói partiu, tornou-se um mito e voltou depois de muito tempo, amargurado por tantas injustiças. Rico, realizado, mas ainda falta o último lance. Exatamente aquele que cria o desfecho de uma narrativa. Seu retorno costura um texto, já que futebol é linguagem e cada jogador é uma biografia que se cruza nessa peça infinita de um teatro de massas. O cara voltou. Ninguém sabe o que acontecerá. Mas se trata de Ronaldo. Estamos falando do Corinthians.

É verdade, acabou o longo licenciamento. Voltei ao timão. Volto, junto com Ronaldo.

RETORNO - Imagem desta edição: um lance do futebol corintiano dos anos 30, quando o Brasil inventou seu destino.

REVOLUÇÃO


Nei Duclós (*)

Escravidão é implantar, por qualquer meio, a submissão de corpos e mentes. O exercício da tirania, combatido há séculos pelos espíritos livres, consegue se superar modificando seus métodos, conforme vão mudando os paradigmas. São intermináveis cabeças ressurgidas da Hidra, o mito helênico da eternidade de um monstro. Hoje, exsite tecnologia suficiente para libertar a humanidade, mas esse conhecimento está sob as ordens da servidão.

A produção de alimentos chega ao auge de oferecer sementes estéreis em frutos modificados. Plantar e colher, assim, são exclusividade das corporações. No lugar de um colar infinito de propriedades conhecedoras da complexidade do manejo orgânico, temos os ganhos de escala de processos agrícolas perversos. Há pressão para que isso mude, pois as populações aos poucos acordam para a brutalidade do envenenamento. A demanda cresce, enquanto aqui sobrevivem os latifúndios para a monocultura e outros hábitos condenados pelo bom senso.

Os arqui-bilionários da atualidade são os que se apropriam de uma tecnologia que pode democratizar o acesso ao saber. Criminalizar a livre circulação dos produtos culturais é um aspecto revelador da falta de competência para lidar com a nova realidade. As leis deveriam se adaptar aos avanços tecnológicos para resolver o impasse. Não se deveria deixar que alguns privilegiados exibissem suas megafortunas ao colocar sob suspeita, ou na vala comum do crime sem perdão, todos os que preferem usar as conquistas a seu modo.

No fundo, quem procura alternativas para cumprir suas metas prefere a institucionalização, jamais a marginalidade. É empurrado para ela de maneira burra pelos poderes constituídos, que insistem em manter os modelos de opressão herdados de uma época em que a tecnologia estava a serviço de poucos. Plantar, colher, acessar aquele filme perdido e distante, recuperar a música do passado, se atualizar são ações que não podem ficar à mercê dos que não se contentam em mandar no mundo. Querem interferir em destinos, sugar almas, fazer a cabeça da massa.

É quando se renova a necessidade da palavra revolução. Pacífica, esclarecida, insistente, decisiva, democrática. Desde que tudo isso não se transforme em mais uma ONG.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 9 de dezembro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: foto de Juliana Duclós, onde aparecem suas mandalas cercando meu livro O Refúgio do Príncipe, entre outros exemplares da biblioteca aqui de casa. Está chegando o Natal. Sabe aquele sobrinho, o cunhado, a avó, o irmão, que você precisa dar um presente no lugar de uma lembrancinha? Algo que os emocione, que os surpreenda? Pois dê de presente este livro. Basta me enviar um e-mail (neiduclos@hotmail.com) me dizendo o endereço, que eu digo qual a conta para o depósito. Por vinte reais, com frete incluído (correio normal) para todo o Brasil, você terá em mãos o seu exemplar (se for o caso, autografado para a pessoa que você quiser presentear). Descontos especiais para quem levar mais de um. Participe. Esta é uma campanha do Diário da Fonte, jornal que existe desde 2002 e exercita a liberdade de expressão numa época de ditadura. Poderão dizer: mas você insiste, não? Claro que sim. Insisto: essa é a melhor forma de retribuir a oferta gratuita de textos diários aqui neste espaço. Diga sim ao livro selecionado pelos espanhóis para fazer parte do catálogo da mais recente Feira do Livro de Madri. Tenha na mão o que a Espanha recomenda.

8 de dezembro de 2008

PARA QUE SERVE O CINEMA?


Nei Duclós

O cinema, soma de todas as artes, serve para humanizar o espírito exilado do talento (esse mistério da sabedoria). Imersos na barbárie, na luta pela sobrevivência, dedicados ao esporte de se eliminar mutuamente, vocacionados para a indiferença, centrados no egoísmo, os povos acumulam fome de transcendência, que só o cinema pode atender. As ditaduras costumam expulsar os seres humanos completos, os cineastas, normalmente vindos da estiva do teatro, da demência literária, do exílio das artes plásticas, que buscam refúgio em outros sistemas políticos, onde podem exercer sua grande arte até que novamente os grilhões de voltem contra eles, podando-os, destruindo ou desvirtuando suas obras ou implantado neles a desesperança que enfim vence, renegando o que fizeram para o limbo absoluto.

É o que aconteceu com alguns alemães refugiados do nazismo em Hollywood. Como Max Ophuls (que mais tarde voltou a filmar na Europa, sempre em busca da liberdade), autor de inúmeros filmes consideradíssimos, como Le Plaisir, de 1952, baseado em contos de Guy de Maupassant. Ou Ernst Lubitsch, o serial realizador de filmes inesquecíveis, que chegou a ter sua grande obra, Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova), de 1932, submersa na censura até 1968, graças à perseguição promovida, a partir de 1935, pelo famigerado Código Hays (aquele que impunha a separação dos corpos no leito conjugal, o que me levava a acreditar que os americanos não dispunham de cama de casal). O DVD saiu há apenas cinco anos, em 2003.

Vi ontem Ladrão de Alcova e chovo no molhado, já que o filme é tido como um dos grandes até hoje: trata-se de trabalho maduro, hilário, encantador, radicalmente inovador, que denuncia a falsidade das elites, não só pelos costumes, as roupas, os gestos, as conversas, mas principalmente pelo que fazem para se tornar elite, ou seja, falcatruas, desvios de dinheiro, roubo puro e simples. A história é sobre um casal de ladrões que surrupia jóias e dinheiro de gente rica. Poderia ser apenas a abordagem cínica de uma evidência, a de que as pessoas são tungadas para garantir o luxo e a indolência dos milionários. Mas é muito mais.

É uma comédia ligeira, de diálogos cortantes, de ritmo alucinante (o roteiro, elogiadíssimo, é de Samson Richardson), que mostra (sem se entregar totalmente) como os princípios e sentimentos humanos podem atrapalhar os planos e objetivos da racionalidade a serviço da bandalheira. O ladrão é tão charmoso que faz a milionária apaixonar-se. A ladra é tão apaixonada, que finge renunciar ao butim. Os velhos são tão patéticos, que tentam confinar a juventude a seus hábitos preguiçosos. O dinheiro é tão fundamental que acaba ocupando um lugar coadjuvante na trama. Lubitsch nos mostra que a humanidade pode sobreviver no ambiente mais hostil e corrupto possível e que existe grandeza mesmo num servo (que para existir precisa renunciar a tudo) ou num larápio.

O que encanta no filme é essa sobrevivência da emoção em território arrasado. É possível encontrar representações do amor em jóias encontradas no lixo, é possível recolher o produto do roubo de cima de uma cama apenas para fazer uma desfeita amorosa, jamais para se locupletar na riqueza descartável. O que importa não é o produto do roubo, mas a vivência do coração nos redutos da superficialidade, da inveja, da falta de escrúpulos. O humanista Lubistch, como bom turrão, não dá o braço a torcer. Mas se trata de um sentimental, o que tenta fazer emergir de si, furando as camadas de decepção, a beleza do ser humano, vilipendiado por suas contingências, mas capaz de driblar destinos e reinaugurar algo parecido com a inocência, que tem a mesma graça e o mesmo sabor: exatamente o cinema, lugar onde somos infantes, amantes, levados, galantes.

Em Le Plaisir, Max Ophuls filma, em três episódios (ou contos) a relação que pode existir entre o prazer e o amor, o prazer e a inocência e o prazer e a morte. Imaginem essas cenas: na igreja lotada do interior, a câmara desce dos anjos do teto e cai sobre a multidão em prantos, que chora de emoção induzida pela presença chorosa de prostitutas, tocadas pela cerimônia da primeira comunhão da sobrinha de uma delas; o camponês que se apaixona pela garota do bordel se despede dela na estação, corre para seguir o trem e volta cabisbaixo, com sua carroça carregada de flores colhidas no caminho por ela e suas amigas; na praia prateada, um pintor leva na cadeira de rodas sua esposa, ex-modelo que tentou suicídio quando foi dispensada pelo marido, agora pagando o preço do sua culpa e arrependimento; enquanto isso, ao fundo, o mar, a areia e as crianças que levantam pipa compõem um quadro surrealista de grande impacto visual.

É pouco? É tudo. Do jeito que vai o cinema comercial, que não contrata nem sombra dos talentos que se desperdiçam no anonimato, daqui a pouco vão começar a distribuir filmes que metralham as platéias, para garantir audiência. É só o que falta. No lugar de enfrentar a indiferença natural dos seres humanos com arte, talento, inovação, eles se entregam às obviedades de suas sacadas marqueteiras, como se o povo gostasse de ser ludibriado. As grandes obras primas do passado, como essa duas que citei aqui, atraíam o povo para os cinemas. Mas a mediocriade invejosa destruiu tudo, para que ficássemos à mercê da brutalidade, sendo obrigados a considerar o que nos faz vítimas, dentro da atual lógica do estupro, em que você, além de ser violentado, ainda tem que dizer que gosta.

RETORNO - Imagem desta edição: cena de Le Plaisir, com Jean Gabin fazendo o papel de um campônio, pai de família, que recebe a visita avassladora de algumas mulheres da cidade grande, que vêm visitá-lo no interior.

BATE O BUMBO - Cidadãos exemplares atendem aos reclames do poeta e adquirem exemplares autografados de O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento. De Uruguaiana, a poeta Marina Fagundes Coello (que fez um poema a partir do conto principal do livro: "meu Príncipe é Rei/ recria seu reino/ com os fios invisíveis/ dos sonhos dos deuses/ e a terra e os homens/ do abismo/levitam/ um sopro que é brisa/ do todo e do nada/ renascida" ); de Piracicaba, Jacqueneide Santiago, além do atencioso leitor Paulo Renato, são os pioneiros da campanha. Basta me enviar um e-mail (neiduclos@hotmail.com), me dizendo o endereço, que eu digo em qual conta devem ser depositados os vinte reais, com frete incluído para todo o Brasil. Não se acanhem, sigam o exemplo. Aqui no centrinho da praia de Ingleses, na simpática e competente Livraria Mar e Letras, O Refúgio entrou em ritmo de Natal e está sendo oferecido neste preço de promoção (vinte reais). Agora é a hora. Faça um escritor sorrir e delicie-se com a prosa poética dessa seleta de mar e pampa.

7 de dezembro de 2008

MIUDEZAS


Nei Duclós (*)

Minha mãe mantinha em cima de sua cômoda, no quarto, em lugar de destaque, o único presente que lhe dei na vida. Era uma pequena cesta de vime, com tampa, que trouxera da viagem que fiz pela primeira vez ao mar, quando tinha nove anos de idade. Nela guardava um retrato meu e outras lembranças. Era seu pequeno tesouro, a saudade do filho que fora, entre tantos outros, cumprir seu destino na capital.

Os maiores tesouros existem dentro de pequenos recipientes. Não falo em diamantes, o preferido dos exilados ricos, que consegue refazer a vida do outro lado do mundo só com o que trouxeram escondido no forro do casaco. Mas daquela pedra lisa, fina e transparente, de duas cores (amarelo e marrom) que coloquei numa pequena caverna que a chuva formara na parede da cozinha do lado de fora, rente ao quintal. O reboco cedera com a umidade, mas um pedaço dele, com a tinta externa ainda intacta, funcionava como a tampa de uma gruta criada ao acaso.

Uma brincadeira qualquer, exercida em lugares ermos, me revelou o segredo. Bastou retirar com cuidado aquela parte que se deslocara naturalmente do resto da parede, cavar um pouco a massa esgarçada pela chuva e tampar tudo de novo, como se ali não tivesse acontecido nada. Aproveitei os dias seguintes para observar se havia perigo de descobrirem a mutreta.

Como a armação permaneceu intacta e desconhecida, lá comecei a colocar os objetos mais caros, os que jamais poderiam cair em mãos inimigas, ou seja, irmãos ou vizinhos. O primeiro era a pedra rara, colhida na beira do rio, e que se destacava das outras, normalmente redondas e opacas. Essa era retangular e deixava passar a luz transformando-a, de branca, em ouro puro. Eu carregara a preciosidade por meses em todos os bolsos, e acreditava que era obediente ao tato, como se sua forma fosse mudando conforme eu esfregava o dedo ou a colocava entre as mãos postas.

Eu tinha predileção por cantos, afastados de todos, onde podia imaginar a realidade que habitava minha timidez. Cheguei a ficar um ano, na escolinha do pré-primário, nesse anonimato, refugiado na pequena mesa situada longe da agitação geral. Como não tinha ainda idade para a alfabetização, fiquei mais um período e tentei recomeçar no mesmo lugar que abandonara antes das férias. Mas a professora não permitiu. E me incluiu na mesa principal, onde dividíamos jogos, desenhos e brincadeiras. Aprendi a compartilhar os momentos, mas em casa, mesmo convivendo com multidões de crianças que habitavam e freqüentavam a esquina onde morávamos, arranjava um jeito para desenvolver minha guerra particular.

Foi por isso que coloquei no esconderijo o revólver de madeira que fabriquei de maneira tosca, já que nunca fui vocacionado para o artesanato, mesmo o mais simples. Era constituído de um cabo, um falso cano e um elástico, que servia para arremessar objetos em direção aos bandoleiros. Toda vez em que me via em perigo, eu abria a batcaverna e de lá extraía a ferramenta necessária para enfrentar a bandidagem.

Hoje é proibido ter arma, assim como desapareceram miçangas e lantejoulas, que eram as esmeraldas e pérolas das meninas, colecionadas em caixas coloridas. Era proibido invadir essas arcas, mesmo em época de carnaval, quando precisávamos confeccionar fantasias para achacar a rua com nossos estandartes. Pedíamos licença então para as irmãs costurarem algum mimo no pano sujo que empunhávamos em mastros improvisados. E saíamos batendo lata, acobertados por máscaras de pano da pior qualidade e enfeitadas pelo brilho supérfluo dos bordados. Voltávamos com o dinheiro para o sorvete e até mesmo, às vezes, para as revistas.

Os recursos arrecadados com o auxílio das miudezas femininas, que garantiam a credibilidade do nosso bloco (pois denunciavam um certo cuidado no improviso) nos ajudavam a adquirir novos tesouros, que escondíamos para nos preservar. Era uma garantia para o futuro, essas coisas insubstituíveis que ficaram para sempre. Elas projetam lembranças de uma infância eterna e tão sagrada quando uma prosaica cesta na cômoda da família numerosa.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: foto de Juliana Duclós da caixa confeccionada pela amiga Nely Garcia e presenteada para minha neta Maria Clara.