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27 de janeiro de 2012
PINA, DE WIM WENDERS: A FORÇA DO GESTO FRAGILIZADO
Nei Duclós
O corpo desenhado pela dança clássica representa não apenas o belo, mas a permanência, a eternidade do gesto cristalizado num conceito de arte e transcendência. O gesto extraído na coreografia de Pina Bausch (1940-2009) é o oposto: a escassez, a precariedade,a fragilidade do corpo datado e criado para desaparecer. Paradoxalmente, essa é a sua força. A morte do corpo não está na arte radical da denúncia e celebração pelo avesso de Pina, mas sim no imutável conceito da dança tradicional. Ao extrair o gesto da queda de corpos que buscam, no desespero, a verdade tocando em locais sagrados como a memória, o medo, o sonho e a dor, Pina se contrapõe ao engessamento imposto ao corpo pela realidade da sociedade industrial, e seus elementos de sociedade do espetáculo.
Esse contraponto ou identificação de contemporaneidades entre a dança alucinada e a urbanidade é a exposição que Wim Wenders faz da sua admiração. Para mostrar o impacto que a dança coreografada por Pina teve sobre sua percepção, Wenders ambienta o gesto desesperado no caos de indústrias, trânsito, ruas, edifícios. E ao levar essa mesma dança para a natureza inóspita de deserto e pedras e montanhas, ele procura revelar a origem da inspiração que levou a grande artista a formatar uma obra de densidade demolidora, que por meio da incorporação, da celebração e a denúncia procura o que restou de humano no massacre social.
Os depoimentos dos dançarinos mostram rostos concentrados com o áudio em off de suas falas, como a provar o deslocamento da dança em relação à palavra. O gesto é a palavra muda, tão sugestivo quanto ela, funcionando também como sínteses de realidades interiores. “Seja mais louca, me assuste; por que você tem medo de mim?” As lembranças dos toques de Pina transparecem nos depoimentos de forma minimalista e significativa. Não é preciso dizer muito para atingir a essência. Ela mostrou que eu estava com medo, diz um dançarino depois de confessar que tentou mostrar tudo de si , sem causar nenhuma impressão na diretora. Ela conseguiu enxergar as limitações dele por meio da observação calada e certeira.
Os gestos sociais engessados estão representados em cenas dilacerantes: a coreografia coletivo de salão, que lembram os eventos sociais,a s reuniões; a manipulação das relações humanas por meio da pessoa que formata abraços e beijos no casal; a animação feérica entre machos e fêmeas que não se tocam, apenas expelem suas manifestações anímicas de maneira brutal e invasiva; tudo isso é dança, que usa situações recorrentes, como a queda dos corpos, principalmente os das mulheres. No fundo, é a mulher a grande protagonista desta arte definitiva do nosso tempo. Por meio de corpos anti-estéticos, ao mesmo tempo belos, angulosos e líricos, a dança mostra gestos extremos femininos à mercê de inúmeras vontades e manipulações.
Prisões de braços e pernas, mergulhos em espaços exíguos, passos trêmulos, a mulher em Pina é entrega por meio da Queda. E que supera o que entendemos de humano ou vanguarda. Pois a dança vai além da conta, ultrapassa as fronteiras do conhecido e do esperado. Os espectadores são surpreendidos por esse filme que é mais do que dança filmada, faz parte também agora dos gestos extraídos por Pina no redemoinho da vida exposta e inviável.
O fato de Pina ter morrido enquanto Wenders estava em pleno projeto é a radicalização dessa metáfora da permanência de uma arte que se propõe datada, sintonizada com o tempo, mas que acaba não só revelando suas vísceras, mas transpondo seus limites. Não há mais a presença física da protagonista, mas sua arte é a consolidação de uma corrente poderosa de criação. Não se trata de nada sublime, apesar de grandes momentos de lirismo. O impacto é tamanho que somos obrigados a abrir mão de palavras que o definam.
É desesperador assistir essa sequência de cenas mortais, e é ao mesmo tempo libertador. Depois de Pina, nosso gesto adquire autoconsciência e é capaz de mudar o mundo.
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