14 de janeiro de 2012

O GAROTO DA BICICLETA: A LINHAGEM DO ESTILO



Nei Duclós

Yasujirô Ozu está na lista dos cineastas favoritos da dupla belga Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, que foi acusada de repetitiva no festival de Cannes do ano passado, apesar de ser vitorioso, quando ganhou o Grande Prêmio do Juri com seu O Garoto da Bicicleta, considerado um dos melhores do ano pela crítica. Ozu é mestre da formatação de um estilo no cinema. O filme de Ozu que está na lista dos irmãos cineastas é Floating Weeds( Ervas Flutuantes, de 1959), mas o drama do garoto (interpretado por Thomas Doret ) que tenta recuperar o pai (Jérémie Renier) e acaba ganhando a dedicada mãe adotiva (a carismática Cécile De France ) está mais para Late Spring, do mesmo Ozu (Pai e Filha, de 1949). Pelo menos visualmente na cena que identifica o filme, o passeio de bicicleta no final.


Note as duas imagens em destaque, de ambos os filmes. A alegria do passeio a dois é a mesma. O mote também se aproxima: a relação com os filhos. O cinema francês é o mais encantador de todos porque jamais abre mão do seu foco na humanidade dos personagens e situações. Tudo está a serviço das pessoas. Identificá-las, reportar seus dramas e alegrias, pensar sobre suas dificuldades, eis a estratégia da indústria cinematográfica da França, centro mundial do humanismo em todos os tempos. Dificilmente temos a oportunidade de ver nos filmes da França um lugar comum do cinema americano: um grupo ninja querendo trucidar o semelhante enquanto o império digital manipulado por assassinos profissionais, oficiais e impunes levam o espectador para aventuras sem sentido.

Aqui vemos o garoto se expressando por meio da bicicleta, único laço afetivo com o pai ausente que o abandonou e colocou à venda o presente que tinha dado, exatamente a valiosa bike, para assim poder fugir e deixar o filho no orfanato. A bicicleta é extensão do gesto e do corpo do menino, que se entrega à depressão apesar do esforço da mãe adotiva. Ele cai na armadilha da delinqüência, que comparada a que temos no Brasil é de uma ingenuidade a toda prova. Os agressores se arrependem, os culpados são aprisionados e a justiça faz a mediação que coloca tudo nos eixos. Nada mais utópico se formos comparar com nosso país.

As cores fortes e básicas definem a identidade dos personagens. O garoto veste sempre camiseta ou casaco vermelho, numa clássica referência á orfandade de Le Balon Rouge, de Albert Lamorisse, premiado em Cannes e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1956. A mulher veste azul, cor da contemporização. O pai fujão, ajudante de cozinha, o branco da neutralidade e da indiferença. Em todas as cenas, o foco em pessoas desamparadas: a mulher solitária que adota um órfão, o garoto que perdeu o pai, a avô que não consegue se mexer na cama, o delinqüente juvenil que procura parceiros para seus golpes, o pai que busca recomeçar a vida em outro lugar longe do menino.

Os dois cineastas belgas consolidam seu estilo, como Ozu fez ao longo de muitos filmes. Não se trata de repetição, mas de lapidação de uma linguagem, para que ela se torne identificável entre muitas outras, como falava Mario Quintana da poesia. Em Ozu, temos o ascetismo da cultura japonesa, rígida em seus gestos e hábitos, que experimenta sempre a transgressão e a decadência. Nos irmãos Dardenne, a falta de emoção na vida francesa contamina a todos, mas a trama que se desenrola acaba demolindo as resistências. O choro convulso de Cécile de France, o arrependimento do menino ou a explosão de raiva que o atinge depois de um crime são momentos cruciais deste belo filme, em que a emoção sepultada aflora e se contrapõe ao ambiente formatado para a anulação da humanidade.

Por ser a busca permanente do humano, e a sua exposição em todas as formas, co o cinema francês consegue nos fisgar pela importância e competência, se contrapondo à avalanche de superficialidades e baixarias que a indústria cinematográfica despeja todos os anos sobre nós.

RETORNO - Imagens desta edição: cenas de Late Spring, de Ozu e de O Garoto de Bicicleta, dos irmãos Dardenne.

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