Nei Duclós
Publiquei esta reportagem na revista Santista (editada pelos
jornalistas Fernando Poyares e Sérgio Leal Maia) em 1992, no centenário do
escritor alagoano, quando a editora Record estava relançando toda sua obra. Agora
que se celebram os 120 anos do seu nascimento, reproduzo o texto, encontrado
nos meus arquivos.
Um centenário para comemorar o rigor ético da palavra
A palavra, como Corisco, não se entrega. Tem a vocação da
permanência, apesar de fustigada pela passagem da fanfarra. Por um tempo, pode
até colorir o discurso, vender sabonete ou escorrer em panfletos de rua. Mas
seu destino final, conduzido sob a ética do talento, é refazer o mundo, por
pior que ele seja. Mesmo aquele mundo seco, rude, duro do interior de Alagoas,
que criou Graciliano ramos a partir de 1892.
No seu livro “Infância” , ele conta como foi difícil
aprender a ler no meio do sertão. O pai sem paciência e a escola, ameaçadora e
punitiva, forjaram na dificuldade sua iniciação ao texto. É esta lição, de um
mestre de ofício a iluminar, na pedra, suas origens e o futuro, que ele deixa
para um país ainda pobnre e perdido.
“Graciliano nos ensinou a provocar emoção discretamente, concisamente,
diz a escritora Edla Van Steen. “Ele nos apontou uma nova maneira de escrever,
através do acabamento impecável do texto, num estilo sem adjetivos. É o pai dos
modernistas brasileiros”. Esse é um dos paradoxos do mestre: de formação
clássica, nunca tinha lido Proust e gostava mesmo era de Flaubert, Balzac,
Dostoiewski. Seu poeta predileto era Manuel Bandeira, assim mesmo de “Cinza das
Horas”. Não gostava da oralidade dos modernistas e chegou a falar mal de Oswald
e Mário de Andrade. Segundo o crítico Fábio Lucas, ele dizia que precisava
comprar uma gramática paulista para entendê-los.
Logo o “velho Graça” – expressão lembrada, numa crônica,
pela sua contemporânea Rachel de Queiroz -, tão cheio de regionalismos: “Graciliano
é o mais representativo de uma região que se universaliza”, diz Fábio Lucas. . “A
partir de Caetés, seu primeiro romance, publicado em 1933, introduz um
vocabulário exclusivo do Nordeste, usando com rigor a tradição da língua”.
Fábio nota que em sua obra prima, “Vidas Secas” (1939), ele despoja as
personagens com tal riqueza de traços que estes acabam se tornando o
prolongamento dos animais e da paisagem.
Outro contemporâneo, o poeta Ledo Ivo – ex-menino prodígio
que em 1933, aos dez anos de idade, foi cumprimentado pelo Diretor de Instrução
Pública de Maceió, o próprio Graciliano em pessoa – destaca a análise
psicológica do mestre, feita num cenário geográfico e político. “É um escritor
elíptico e sumário”, diz, “que se baseou na tradição literária. Ao mesmo tempo,
ele é singular por não ter a eloquência do perfil brasileiro. Mas o traço mais marcante da personalidade do
escritor é, segundo Ledo Ivo, o da vítima inocente, que sofreu a punição sem culpa.
“Memórias do Cárcere”, seu alentado depoimento sobre um ano
de encarceramento em 1936 – quando foi acusado de comunista – e publicado
depois de sua morte em 1953, é a obra mais citada por Ledo Ivo: “Além do ressentimento
de ter sofrido uma prisão kafkiana, ele tinha uma visão trágica da vida. Era um
bicho do mato, um caracol. Vivia recolhido e era avesso à publicidade. Não
participava da festa do sucesso dos escritores nordestinos, como José Lins do
Rego ou Jorge Amado. Sua glória é póstuma”.
Laços de família tinham aproximado ainda mais Ledo Ivo da casa
de Graciliano, que ficava no Rio de Janeiro no início da década de 40. Foi lá
que conversara longamente pela primeira vez, quando o escritor mostrou ao jovem
poeta um artigo que este tinha publicado aos 14 anos, sobre Vidas Secas.
Esse foi também o início da amizade do poeta com o filho do
mestre, Ricardo Ramos. “É curiosa a relação entre pai e filho” (ambos na foto acima), diz a
pesquisadora Yedda Dias Lima, do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros, da USP
– Universidade de São Paulo. “Ambos morreram no mesmo dia, 23 de março, vítimas
da mesma doença, o câncer, e deixaram, cada um, um livro não concluído”. O pai
deixou “Memórias do Cárcere” e o filho, que morreu em 1992, quando se preparava
para coordenar as festividades do centenário, “Graciliano, um retrato
fragmentado”, lançado pela Siciliano.
A polêmica que se seguiu à publicação do livro póstumo de
Graciliano está relacionado diretamente
aos 3.500 originais que deixou em poder da mulher, Heloisa e se encontra no IEB
desde 1982, sob a responsabilidade de uma equipe coordenada por Yedda. O
crítico Wilson Martins cegou a dizer que “Memórias do Cárcere” foi corrigido pelo Partido Comunista.
Longe desse tipo de briga, o Instituto vai lançar em em
outubro, data do aniversário do escritor, que nasceu dia 27, um catálogo de
todos os manuscritos,produzido por uma dedicada equipe formada pelas
pesquisadoras Eliane Jacqueline Matralia, Cássia Raquel da Silveira, Ariovaldo
José Vidal e Maria Lúcia Palma Gama. Tem
quase tudo do autor, como Memórias do Cárcere, Infância,. Vidas Secas, Viventes
das Alagoas, Linhas Tortas. E curiosidades como os seus discursos, com destaque
para um pronunciamento, contundente, a favor da Constituinte de 1945: “Não nos
gastamos em ódios inúteis: as nossas tarefas nos consomem tempo. E a tarefa
principal, hoje é esta que aqui nos reúne: exigir uma Assembléia Constituinte
livremente eleita".
A fidelidade ao que realmente acontece, o sentido de
retidão, a sua recusa à mentira, a sua reflexão profunda sobre a realidade faz Xe
Graciliano um prato cheio para estudiosos como o professor de Literatura
Comparada da USP, João Luís Tafetá (*), autor de um estudo sobre a roqueza e
complexidade da obra do escritor. “Ele é a sua própria experiência, disse Lafetá.
“Nele, o fundamental é o modo honesto de contar. O escritor está preso ao real
e longe, portanto, da falsidade. “ O trabalho, tese de livre docência, enfoca
três ângulos principais, que se comunicam internamente. O primeiro é literário,
examina as técnicas das formas de narrativa, onde se sobressai o texto
neo-realista que acaba transcendendo os rótulos.
O segundo é psicanalítico, que levanta um oblíquo complexo
de Édipo em Caetés e dois triângulos
amorosos: um imaginário em São Bernardo” – onde os ciúmes do anti-herói Honório
leva a mulher ao suicídio – e outro real em “Angústia”, onde Luis da Silva,
outro anti-herói, acaba matando o rival. Para Lafetá, Graciliano diminui suas
personagens e revela os cortes que sofreu ao longo da vida. Ele gosta de citar
um trecho de Infância: “Herdei a vocação para as coisas inúteis”.
O terceiro enfoque é do linguagem da ironia, que basicamente
é uma inversão e procura dizer o máximo num mínimo de palavras. Lafetá estuda a
ética da construção da linguagem de Graciliano, raiz da sua exigência e
contenção. “Ele cortava tanto seus textos a cada nova edição, que a esposa
advertiu que acabaria apenas com páginas em branco”, lembra Fábio Lucas. Yedda
conta detalhes da sua técnica de escrever: Colocava um cigarro ao lado do
outro, fora do maço, para não perder tempo. Desenhava uma letra caligráfica,
que descia a detalhes da perna da letra a. Quando cortava, passava uma régua em cima e
abaixo da palavra, riscava no meio e até, ás vezes, um cigarro aceso, para não
haver dúvidas”.
Descoberto pelo poeta Augfusto Frederico Schmidt, graças aos
seus relatórios quando foi prefeito em palmeiras dos Índios, Graciliano Ramos
foi traduzido em 32 línguas e seus livros venderam, até 1992, cinco milhões de
exemplares, só no Brasil. Alguns deles, como Vidas Secas, Insônia, São Bernardo
e Memórias do Cárcere, viraram filmes. Ele destacou-se por virtudes que por um
tempo foram esquecidas no Brasil. Hoje elas ressurgem como um exemplo para um
país que precisa desesperadamente reencontrar seu rumo.
RETORNO - (* ) O professor Lafetá, nascido em 1946, morreu
em 1996. Seu trabalho de livre docência sobre Graciliano Ramos estavaainda
inédito na época da reportagem, 1992.