Nei Duclós
It´s a Wonderful Life (A Felicidade não se compra), de Frank Capra, eleito o melhor filme de Natal de todos os tempos numa pesquisa do site Rotten Tomatoes , é uma descida aos infernos e lá o entendimento acontece porque a percepção humana muda, ou melhor, amadurece.
Para enxergar Capra, não devemos fugir do que ele representa na
sociedade americana. Sua obra-prima funciona como mensagem de adaptação à
dura realidade da depressão e da guerra. Foi feita logo depois do fim
da guerra, quando os americanos precisam reforçar a auto-estima (agora
virou virose mortal, mas na época ela estava impregnada de algo que
parecia melhor). Reforça a importância da família, da vida do cidadão
comum que não teve maiores chances. Poderia ser um hino ao conformismo,
não fosse o crescente ódio que toma conta do coração do personagem
principal, interpretado por James Stewart.
A fonte desse ódio são os
bons sentimentos e a ética. Ele queria ser recompensado por ter sido
correto com o irmão, ao qual cedeu a vez para que se formasse na
faculdade, enquanto ele substituía o pai eliminado pelo poder econômico
da especulação financeira. Mas foi excluído (o irmão pagou-lhe com
ingratidão), teve que ficar, casou e caiu na armadilha, a mesma que
tinha acabado com seu pai. Seu ódio então vem à tona (onde ficaram os
bons sentimentos?), com tudo. É uma obsessão perversa auto-destrutiva
que o leva, numa noite de Natal gelada, diante de um abismo, pronto para
o suicídio.
A aparição de um anjo tão perdedor quanto o herói do filme é
um dos maiores achado do humor capriano. Os dois precisavam de uma
segunda chance. O anjo, que seria recompensado com um par de asas se
fosse bem sucedido na sua missão (ascensão social no céu americano, tão
comum no cinema deles, que é pura representação da nação
imperial-corporativa). O anjo usa a argumentação sedutora e depois a
revelação dos resultados do ódio ao qual o outro sucumbiu.
Não há, no cinema americano, seqüência mais sinistra do que a visita
que Stewart faz à sua não-vida, às conseqüências da sua vontade de
jamais ter nascido. É muito semelhante à história de Dickens, em que o
velho avarento é levado por um espírito para visitar momentos
importantes da sua vida, em que ele vê o Mal que encarnou em sucessivas
manifestações de egoísmo e crueldade (roteiro filmado mil vezes). No
caso do filme de Capra, o terror tem a mesma intensidade, que leva o
espectador a um sentimento de perda e de remorso.
Antes do
arrependimento, que é uma apoteose, a Queda no poço do remorso é uma
descida aos infernos digna da melhor literatura. Essa seqüência foi
inteiramente chupada no filme De volta para o futuro II, em que o jovem
que volta para casa vê sua família e sua cidade destruídas por um ato
que ele próprio cometeu no passado. A visão aterradora da cidade
entregue à sanha assassina é de um tremendo impacto, mas Capra é o
original e seu trabalho é infinitamente melhor. É uma obra-prima que enfoca a vida
comunitária e suas resistências contra o Mal. É o fim da ingenuidade e o
início do amadurecimento de uma nação que precisava conviver com o ódio
na origem de uma paz precária, como a que foi estabelecida no fim da II
Guerra. É uma representação política da destruição social provocada
pela pirataria financeira, o que lhe dá uma atualidade incômoda.
O final feliz é apenas o regresso ao lar de um ex-condenado, alguém
que esteve no front e viu a Morte de frente e que agradece por ainda
estar vivo e possuir o pouco que tem. Nada mais humano, e do jeito que
Capra fez, absolutamente genial. Não se deve ter vergonha de se
emocionar diante de um filme como este. Se pedirem sua opinião, diga que
gostou, sem restrições, e que você está ao lado da Criação e contra
seus sanguessugas.