24 de dezembro de 2012

AMOR: CONFLITO E CONFORTO EM E O VENTO LEVOU



Nei Duclós

Qual a causa do comportamento de Scarlet O´Hara (Vivien Leight), a assediadora serial de todos os homens, solteiros e casados? Fazia isso por ser bonita e mimada e achava que podia? Nada brota do nada. Nos diálogos com seu grande amor, Ashley (Leslie Howard), um vizinho mais velho que a conhecia desde garota, matamos a charada: para conseguir os favores da moça, o veterano disse que a amava, anos antes da época do início de E O Vento levou (1939). Scarlet cobra dele o tempo todo e ele tenta se esquivar, mas jamais nega que um dia confessou esse amor para a adolescente que caiu na sua lábia.

Plena dessa atenção que mereceu de um homem mais velho, a menina cresceu com a certeza de que era irresistível. Cultivou essa declaração de amor secretamente, já que o assédio é proibido, e usou sua performance de conquistadora barata para fazer ciúme a quem lhe tinha seduzido, pois Ashley se aproveitara da garota, mas não quis saber da mulher. Preferiu a prima, Melanie (Olivia de Havilland) que por toda vida fingiu que nada sobia sobre o relacionamento do marido com a outra.  O desconforto existia antes da guerra e, no filme, talvez a grande carnificina seja apenas uma representação dessa transgressão secreta em idade precoce, quando o mundo descamba e joga a vítima no redemoinho.

Scarlett procura refúgio nessa obsessão da adolescência, confundindo-o com amor, única maneira de justificar para si o trágico evento. Ao sobreviver e enriquecer, ganha todos os personagens para seu aprisco, manipulando-os e chantageando. Só quem vê todo seu jogo desde o começo é Rhett Butler (Clark Gable), que por sua vez participa de um outro triângulo. Ele é o amante da dona do cabaré (e possivelmente pai do filho dela) , que o ama sem esperança. Rhett é apaixonado por Scarlett por ser idêntica a ele: ambos são ambiciosos e corações de pedra. Seus relacionamentos são de eterno conflito, desde o flerte até o desenlace fatal da filha de ambos. A gangorra de sentimentos (quando um descobre estar apaixonado pelo outro, mas em fases distintas do tempo) inclui inclusive uma cena de sexo forçada pelo marido ciumento, o que acaba em celebração e consentimento da esposa.

Butler queria uma forma de paz num mundo em destruição e sem princípios. Iludiu-se que poderia ter conforto no conflito. Mergulhou numa espiral de ciúme e morte , já que não pode curar a dor original de Scarlet, o de ter sido enganada ainda menina por um aproveitador. Ashley confessa-se covarde e mantém ao longo da história a traição à esposa. Melanie é a fuga da evidência, refugia-se no amor ao marido e à admiração a Scarlet, a coragem que ela não consegue ter. O casal covarde usa a traumatizada sobrevivente como escudo e álibi, pois todas as culpas recaem sobre Scarlett, a mulher fatal, a viúva devoradora de maridos que jamais amou.

A complexidade desta trama, que sugere informações ocultas em momentos fundamentais para a compreensão da história, intensifica o carisma da grande obra de Hollywood. Scarlet é assaltada e estuprada também quando é uma empresária de sucesso. A cena é explícita: o rosto do assaltante se aproxima da câmara ameaçador e a vítima desmaia, entregue ao criminoso. A reação violenta provocada entre os homens que se ofenderam com a selvageria mostra que foi exatamente isso que aconteceu. Mas estávamos em 1939. Não se podia dizer com todas as letras, como se diz hoje.

Só que acho muito mais eficiente a maneira como era dito, sob forte censura. O filme toca no núcleo do drama humano: amor, estupro, guerra, nascimento, morte, traição. E, fundamental, cinema. O céu irreal de estúdio da terra, Tara, é a marca clássica de grande filme. A câmara que se afasta no plano geral das vítimas da guerra é outro momento de pura celebração narrativa da Sétima Arte vendo a si mesma. A fuga do casal com a criança, contornos de um teatro de sombras no cenário incendiado, reporta-se à salvação anunciada pelo nascimento em meio à maldição da história humana.

Tudo é soberbo em E O Vento Levou. O mergulho que faz no drama primordial de Scarlet – a garota assediada que exibe comportamento doentio depois do crime – ajuda a transformá-lo numa saga épica, digna das obras inesquecíveis.