Nei Duclós
Qual a causa do comportamento de Scarlet O´Hara (Vivien
Leight), a assediadora serial de todos os homens, solteiros e casados? Fazia
isso por ser bonita e mimada e achava que podia? Nada brota do nada. Nos diálogos com seu grande
amor, Ashley (Leslie Howard), um vizinho mais velho que a conhecia desde
garota, matamos a charada: para conseguir os favores da moça, o veterano disse
que a amava, anos antes da época do início de E O Vento levou (1939).
Scarlet cobra dele o tempo todo e ele tenta se esquivar, mas jamais nega que um
dia confessou esse amor para a adolescente que caiu na sua lábia.
Plena dessa atenção que mereceu de um homem mais velho, a menina
cresceu com a certeza de que era irresistível. Cultivou essa declaração de amor
secretamente, já que o assédio é proibido, e usou sua performance de
conquistadora barata para fazer ciúme a quem lhe tinha seduzido, pois Ashley se aproveitara da garota, mas não quis saber da mulher. Preferiu a prima, Melanie
(Olivia de Havilland) que por toda vida fingiu que nada sobia sobre o
relacionamento do marido com a outra. O
desconforto existia antes da guerra e, no filme, talvez a grande carnificina
seja apenas uma representação dessa transgressão secreta em idade precoce,
quando o mundo descamba e joga a vítima no redemoinho.
Scarlett procura refúgio nessa obsessão da adolescência,
confundindo-o com amor, única maneira de justificar para si o trágico evento. Ao sobreviver e enriquecer, ganha todos os personagens
para seu aprisco, manipulando-os e chantageando. Só quem vê todo seu jogo desde o começo é
Rhett Butler (Clark Gable), que por sua vez participa de um outro triângulo.
Ele é o amante da dona do cabaré (e possivelmente pai do filho dela) , que o
ama sem esperança. Rhett é apaixonado por Scarlett por ser idêntica a ele:
ambos são ambiciosos e corações de pedra. Seus relacionamentos são de eterno
conflito, desde o flerte até o desenlace fatal da filha de ambos. A gangorra de
sentimentos (quando um descobre estar apaixonado pelo outro, mas em fases distintas
do tempo) inclui inclusive uma cena de sexo forçada pelo marido ciumento, o que
acaba em celebração e consentimento da esposa.
Butler queria uma forma de paz num mundo em destruição e sem
princípios. Iludiu-se que poderia ter conforto no conflito. Mergulhou numa
espiral de ciúme e morte , já que não pode curar a dor original de Scarlet, o
de ter sido enganada ainda menina por um aproveitador. Ashley confessa-se
covarde e mantém ao longo da história a traição à esposa. Melanie é a fuga da
evidência, refugia-se no amor ao marido e à admiração a Scarlet, a coragem que
ela não consegue ter. O casal covarde usa a traumatizada sobrevivente como escudo
e álibi, pois todas as culpas recaem sobre Scarlett, a mulher fatal, a viúva
devoradora de maridos que jamais amou.
A complexidade desta trama, que sugere informações ocultas em
momentos fundamentais para a compreensão da história, intensifica o carisma da
grande obra de Hollywood. Scarlet é assaltada e estuprada também quando é uma
empresária de sucesso. A cena é explícita: o rosto do assaltante se aproxima da
câmara ameaçador e a vítima desmaia, entregue ao criminoso. A reação violenta
provocada entre os homens que se ofenderam com a selvageria mostra que foi
exatamente isso que aconteceu. Mas estávamos em 1939. Não se podia dizer com
todas as letras, como se diz hoje.
Só que acho muito mais eficiente a maneira como era dito,
sob forte censura. O filme toca no núcleo do drama humano: amor, estupro,
guerra, nascimento, morte, traição. E, fundamental, cinema. O céu irreal de
estúdio da terra, Tara, é a marca clássica de grande filme. A câmara que se
afasta no plano geral das vítimas da guerra é outro momento de pura celebração
narrativa da Sétima Arte vendo a si mesma. A fuga do casal com a criança, contornos
de um teatro de sombras no cenário incendiado, reporta-se à salvação anunciada
pelo nascimento em meio à maldição da história humana.
Tudo é soberbo em E O Vento Levou. O mergulho que faz no
drama primordial de Scarlet – a garota assediada que exibe comportamento
doentio depois do crime – ajuda a transformá-lo numa saga épica, digna das obras
inesquecíveis.