Vida não é texto que se costure, a não ser que você costure
a vida como um texto. Em Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos usa técnicas de
ficção para contar a verdade. Uma delas é focar uma dúvida da percepção para iluminar o entorno, destacar um elemento
protagonista para elucidar pormenores. Invoca-se, por exemplo, com dois vultos
fixos vistos na madrugada da janela da sua cela. Não atina o que seja e usa a
dúvida para ir narrando sua insônia, feita de migalhas e vivências. Outra
técnica é dizer que não lembra de determinados detalhes enquanto outros se
tornam abundantes.
Para tornar explícita a miséria social e política, afunda-se
na baixa auto-estima, como se o personagem que cria – ele mesmo, a vítima de
uma injustiça – seja o fruto da escassez que domina o país. A família que
descreve – a esposa mesquinha e histérica, os filhos agitadores – tem perfil
fictício, o que o deixa à vontade para reforçar o papel de uma situação
doméstica opressiva, contra a qual a prisão acaba se oferecendo como uma
bizarra solução. O drama se desenrola no varejo, com vingancinhas pessoais,
pequenas traições nos gestos e palavras, ruas mal iluminadas, prédios
sinistros, funções inúteis, cidadania zerada.
O narrador está no miolo de um drama que se expõe das bordas
às vísceras, em que a rotina doméstica é substituída pela falta absoluta de
sentido do encarceramento. Graciliano Ramos conta sua história compondo um
mural literário inspirado na memória. É o tempo todo literatura, pois os fatos
se unem pelo fio narrativo de uma improbabilidade, o mundo sendo definido pela
visão amarga e ríspida de alguém que sobrevive à revelia.
Ainda estou no começo do livro. Quis compartilhar essas
impressões, pois se deixo para o final da leitura posso perder muita coisa.
Graciliano escreveu-o dez anos depois dos eventos narrados. Saiu da prisão e
foi trabalhar no Ministério de Educação.
RETORNO - Neste post, algumas luzes sobre o drama de Graciliano.