Nei Duclós
Revi Central do Brasil (Walter Salles, 1998). Um grande
filme, vencedor do Urso de Ouro de Berlim. Mas, 15 anos depois, o que era
vanguarda de denúncia tornou-se obsoleto. O que parecia ser o limite de uma
situação social e econômica – o abandono paterno, familiar e institucional –
provocou reação à altura. Não temos mais cidadãos marginalizados à deriva, à mercê
da omissão criminosa, temos uma grande
massa de marginalidade organizada em facções unidas em todo o país e que estão
mantendo a cidadania como refém. É como se a população inteira fosse agora
condenada à prisão perpétua. Não há mais, portanto, o ambiente para a fé e a
esperança expressa na religiosidade. Temos o desespero e o pânico e a sensação
nítida de que entramos numa arapuca mortal sem solução.
As técnicas do terror, que trabalham a minoridade
compulsivamente inocente por lei, por mais bandida que seja, disseminam-se por
capitais e interior, capitaneadas de dentro de um sistema carcerário totalmente
dominado pelo crime. É onde chegamos depois de décadas de política voltada
para o enriquecimento ilícito de meia dúzia, quando a insurgência popular
contra a tirania acabou gerando novos milionários e disseminando em rede a
corrupção. Não é mais a propina filmada de políticos que existe por toda parte,
é o suborno de funcionários para prover serviços básicos. Se você vende hoje
uma casa e precisa religar a luz para fechar o negócio, o sujeito da escadinha do
setor de energia te arranca uma baba. É só um exemplo. E você paga, senão não
vende a casa.
Essa criminalidade explícita presente em todo o tecido
social convive com o crescimento assustador da bandidagem. Novas gerações estão
sendo treinadas no crime. Se você garante impunidade para uma pessoa até os 18
anos, em que ela pode matar, roubar e estuprar, essa é a política de educação.
Central do Brasil mostra um molecão de 16 anos roubando uma quinquilharia de um
comerciante e fugindo pelos trilhos, onde é executado por seguranças. Hoje ele
não corre mais, ele toca fogo. A mulher indiferente com crise de consciência –
Fernanda Montenegro – é uma personagem de ficção, pois a barra da sobrevivência
no país em ruinas não permite mais essa margem para os bons sentimentos.
Cheio de citações cinematográficas – Chaplin, Glauber, John
Cassavetes (pode-se dizer que Central do Brasil é quase Gloria, de 1980,
refilmado) – Central do Brasil é um road movie pelos grandes espaços vazios do
país jogado às traças. Lá no ermo absoluto, diz essa lenda premiada, mora um
pai alcoólatra que talvez possa se recuperar e voltar à família destruída. Há
uma chance, uma esperança nesse final de século, mas filmes posteriores, como
Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), já enterraram esse tipo de fé. É um
Salve Geral, como mostrou Sergio Rezende no seu grande filme de 2009 sobre o
PCC em São Paulo . Fomos capturados para sempre. Teu bairro virou “comunidade”.
Vão te cobrar pedágio para existir.
A fonte desse horror é a tirania que se consolidou, se
legitimou a partir de 1985. Ou se desmonta esse regime mascarado de democracia,
do voto manipulado e da política engessada, movida a corrupção, mentira e
miséria, ou o país não terá chances de sobrevivência.
RETORNO - Imagem desta edição: Vinicius de Oliveira e Fernanda Montenegro - a infância abandonada consola o maior abandonado.